Cultura

Chama-se cultura tudo o que é feito pelos homens, ou resulta do trabalho deles e de seus pensamentos.

Além dos seres vivos e da matéria cósmica, existem também coisas culturais, muitíssimo mais complicadas. Chama-se cultura tudo o que é feito pelos homens, ou resulta do trabalho deles e de seus pensamentos. Por exemplo, uma cadeira está na cara que é cultural porque foi feita por alguém. Mesmo o banquinho mais vagabundo, que mal se põe em pé, é uma coisa cultural. É cultura, também, porque feita pelos homens, uma galinha.

Sem a intervenção humana, que criou os bichos domésticos, as galinhas, as vacas, os porcos, os cabritos, as cabras não existiriam. Só haveria animais selvagens. A minhoca criada para produzir humo é cultural, eu compreendo. Mas a lombriga que você tem na barriga é apenas um ser biológico. Ou será ela também um ser cultural? Cultural não é, porque ninguém cria lombrigas. Elas é que se criam e se reproduzem nas suas tripas.

Uma casa qualquer, ainda que material, é claramente um produto cultural, porque é feita pelos homens. A mesma coisa pode-se dizer de um prato de sopa, de um picolé ou de um diário. Mas estas são coisas de cultura material, que se pode ver, medir, pesar.

Há, também, para complicar, as coisas da cultura imaterial, impropriamente chamadas de espiritual – muitíssimo mais complicadas. A fala, por exemplo, que se revela quando a gente conversa, e que existe independentemente de qualquer boca falante, é criação cultural. Aliás, a mais importante. Sem a fala, os homens seriam uns macacos, porque não poderiam se entender uns com os outros, para acumular conhecimentos e mudar o mundo como temos mudado.

A fala está aí, onde existe gente, para qualquer um aprender. Aprende-se, geralmente, a da mãe. Se ela é uma índia, aprende-se a falar a fala dos índios, dos xavantes, por exemplo. Se ela é uma carioca, professora, moradora da Tijuca, a gente aprende aquele português lá dos tijucanos. Mas se você trocar a filhinha da índia pela filha da professora, e criar, bem ali na praça Saens Peña, ela vai crescer como uma menina qualquer, tijucana, dali mesmo. E vice-versa, o mesmo ocorre se a filha da professora for levada para a tribo xavante: ela vai crescer lá, como uma xavantinha perfeita – falando a língua dos xavantes e xavanteando muito bem, sem nem saber que há tijucanos.

Além da fala, temos as crenças, as artes, que são criações culturais, porque inventadas pelos homens e transmitidas uns aos outros através de gerações. Elas se tornam visíveis, se manifestam, através de criações artísticas, ou de ritos e práticas – o batizado, o casamento, a missa –, em que a gente vê os conceitos e as ideias religiosas ou artísticas se realizarem.

Essa separação de coisas cósmicas, coisas vivas, coisas culturais, ajuda a gente de alguma forma? Sei não. Se não ajuda, diverte. É melhor que decorar um dicionário, ou aprender datas. Você não acha?

__________ RIBEIRO, Darcy. Noções de coisas. São Paulo: FTD, 1999, p. 34. Disponível em: http://www.projovemurbano.gov.br/userfiles/file/materialdidatico/educador/guias/GUIA_UF_I_FINAL_X1a_2.pdf. Acesso: 10 mai. 2013.

Sugestões de práticas de aprendizagem

Sugerimos algumas práticas de aprendizagem que abordem temáticas e habilidades trabalhadas pelo Componente Curricular Filosofia no Ensino Fundamental.

HABILIDADES

(EF09FL01PF01) Compreender o ser humano como ser individual, social e cultural que se modifica na sua ação; 

(EF09FL01PF02) Entender a cultura como ação humana

QUESTÕES PARA TRABALHAR COM ESTUDANTES:

A) A partir da leitura do texto, o que podemos considerar como Cultura?

B) Apresente três exemplos de manifestações que, de acordo com o texto, podem ser consideradas culturais.

C) Quais práticas culturais podem ser prejudiciais à comunidade ou ao próprio homem? Explique.

D) Segundo o texto, a fala é a mais importante criação cultural. Qual a relação entre a fala e a cultura?

E) Darcy Ribeiro foi sociólogo, antropólogo, educador, escritor e indigenista brasileiro, defensor da educação pública e de qualidade. Seus estudos são grandes referências para o entendimento da cultura indígena e para a formação do povo brasileiro. Faça uma pesquisa sobre a biografia de Darcy Ribeiro, anotando também algumas ideias e pensamentos deste importante brasileiro.

F) Assista aos Comentários sobre o Documentário Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro: https://youtu.be/CqgKx5E-0tQ?t=318 Faça um breve comentário seu sobre esta construção cultural (mosaico) do nosso querido Brasil.

Quem paga o preço quando a religião vira arma de campanha?

Você acredita que há espaço para políticas religiosas específicas em um Estado laico?

Em meio a discursos sobre “unidade” no Café da Manhã Nacional de Oração, Donald Trump surpreendeu ao declarar a criação de um “gabinete da fé” na Casa Branca e uma força-tarefa liderada pela ex-procuradora Pam Bondi para combater o que chamou de “viés anticristão” no governo federal. A medida, segundo ele, visa “investigar violência e vandalismo anticristão” e “defender os direitos dos crentes”. Mas onde estão os exemplos concretos dessa perseguição?

Enquanto o governo Biden lançou planos para combater discurso antimuçulmano e antissemita, Trump mira seu discurso em um suposto “ataque aos cristãos” — baseando-se em retórica vaga e alinhando-se ao eleitorado evangélico, que representa 27% do eleitor republicano. A jogada parece clara: consolidar apoio antes das eleições, vendendo uma narrativa de perseguição religiosa sem provas.

E não para por aí: o ex-presidente, que afirma ter recebido “uma unção divina” após sobreviver a um atentado, nomeou a pastora Paula White — sua conselheira religiosa há anos — para comandar o gabinete. Será mera coincidência que ela seja uma figura polêmica, ligada à teologia da prosperidade e a escândalos financeiros?

A questão que ninguém pode ignorar:

A Primeira Emenda dos EUA proíbe o Estado de endossar religiões específicas. Ao criar uma força-tarefa exclusiva para “proteger cristãos”, Trump não só ignora a diversidade religiosa do país, mas risca a linha tênue entre Igreja e Estado. Será proteção legítima ou marketing político disfarçado de fé?

Enquanto isso, sua fala sobre “se livrar dos woke” revela o tom partidário e polarizador por trás do suposto apelo à unidade. Cristãos conservadores podem celebrar, mas a pergunta fica: quem paga o preço quando a religião vira arma de campanha?

Comente: Você acredita que há espaço para políticas religiosas específicas em um Estado laico?

Há prenúncios de que essa estratégia já esteja em andamento no Brasil? Já ouviu políticos da bancada evangélica falarem de “Cristofobia”?

Autor: Hermes C. Fernandes.  Reflexão escrita em fevereiro/2025.Também escreveu e publicou no site “Jesus não combina com preconceito”: www.neipies.com/esus-jesus-nao-combina-com-preconceito/

Edição: A. R.

Justiça Restaurativa: um Caminho, não um negócio!

A justiça restaurativa convida à igualdade verdadeira: não há um que ensina e outro que aprende, um que cura e outro que é curado. Todos estamos em processo.

Quando você se concentra na lição, você evolui.

A justiça restaurativa é uma travessia profunda que parte do reconhecimento das dores e das violências que atravessam nossa história. Ela não ignora as feridas, mas propõe um espaço seguro onde essas dores possam ser nomeadas, reconhecidas e, pouco a pouco, superadas. É nesse espaço — construído com escuta, respeito e confiança — que a vida pode voltar a fazer sentido, que a segurança em si mesmo pode ser reencontrada, que os vínculos com o outro e com a comunidade podem ser reconstruídos.

Esse caminho só é possível quando nos despojamos do poder que, muitas vezes, carregamos inconscientemente. Poder de saber, de julgar, de dirigir. A justiça restaurativa convida à igualdade verdadeira: não há um que ensina e outro que aprende, um que cura e outro que é curado. Todos estamos em processo. Respeitar o outro, em qualquer circunstância, é essencial — inclusive respeitar aqueles que servem, que sustentam o processo em silêncio, na humildade do cotidiano.

É urgente lembrar que quem facilita um processo restaurativo não é aquele que tudo sabe, mas sim quem se coloca a serviço da escuta, da presença e da construção conjunta. Em vivências concretas, já vimos círculos onde uma pessoa que vive em situação de rua trouxe mais sabedoria e verdade do que quem tinha diplomas ou títulos. Em um presídio, vimos um policia penal se emocionar ao ouvir uma mulher presa pedir perdão por erros cometidos com dor e arrependimento verdadeiro.

Não há roteiro nem manual: há entrega, humanidade e coragem para sentir.

A justiça restaurativa precisa ser um ato concreto, especialmente no Brasil, onde o sistema prisional está superlotado e injusto. O desencarceramento é uma urgência ética e política. Quem tem o poder de garantir o cumprimento da lei, corrigir os abusos, respeitar os tempos da pena, acima de tudo.

Não podemos esquecer que a justiça restaurativa não nasceu de um poder. Ela nasce das práticas ancestrais dos povos originários, que nos ensinam sobre reconexão, equilíbrio e cura coletiva. Por isso, é contraditório — e até violento — ver práticas restaurativas sendo comercializadas com preços abusivos, inacessíveis para quem mais precisa. A justiça restaurativa não pode ser mercadoria.

É preciso levá-la para a periferia, onde a dor é maior, mas também onde há uma imensa potência de reconstrução. Levar com humildade, com cuidado, com escuta. Sem querer salvar, sem querer ensinar. Apenas estar, facilitar o encontro, e confiar na força do coletivo.

Porque quando nos concentramos na lição, evoluímos todos. E a justiça deixa de ser privilégio para ser CAMINHO.

Autora: Vera Dalzotto. Também escreveu e publicou no site “O sentido da vida é fazer sentido à outras vidas”: www.neipies.com/o-sentido-da-vida-e-fazer-sentido-a-outras-vidas/

Edição: A. R.

Uma festa rosa

A palavra comemorar, do latim, COMMEMORARE, segundo Aurélio, é trazer à memória, fazer recordar, lembrar. Debruçando-se sobre esse conceito, o texto da minha aluna Milena de Oliveira Mascarenhas, estudante do Colégio Tiradentes da Brigada Militar de Passo Fundo, nos convida a refletir sobre a realização do evento em comemorar a vida.

É importante fazer notar, segundo ela, esse ato está assumindo hoje feições diferenciadas ao mesmo tempo. Mascarenhas nos faz lembrar da permanência do verdadeiro sentido de celebrar a vida. Ou seja, um ato simbólico capaz de ir muito além de soprar as velinhas. Ela fala da permanência de um ideário em criar lembranças para marcar um tempo único que não volta mais, sobretudo, a importância de reforçar laços emocionais, particularmente momentos significativos com pessoas que amamos.

Boa leitura a todos!

O que dizer sobre um domingo ensolarado…? Uma mesa cheia dos mais variados aperitivos, doces, brigadeiros e um bolo totalmente coberto por um glacê rosa. A decoração cheia de vida, um cenário fruto de algumas noites mal dormidas. Imagino que não há nada melhor do que estar cercado por amigos, familiares e colegas que fazem bem, sentir-se amado, no final das contas. Tudo capturado por uma pequena câmera.

Com o passar das estações, dos dias, dos meses e até mesmo dos anos, alguns detalhes vão se perdendo. Uma festa que não pôde acontecer por falta de planejamento acabou se tornando uma comemoração em uma pizzaria. Ainda assim, não deixou de ser mágica, afinal, ainda havia pessoas ao redor, presenças que se importavam e faziam o coração transbordar de amor.

Mas o pior acontece quando o ciclo se quebra. Todos, inevitavelmente, crescem, e isso causa mudanças – não sobre as aparências, mas sobre o conteúdo. Um colega que não pôde comparecer. Um amigo, um familiar, um pai. Laços familiares podem ser como uma linha fina que, a qualquer momento, pode se romper por completo.

No final, o dia já não carrega mais aquela magia. O calendário deixa de marcar a tão esperada contagem regressiva, os doces não existem mais e, muito menos, o bolo. As pessoas presentes agora podem ser contadas nos dedos. Ainda assim, apesar do inevitável, sempre há alguém que traz conforto. Alguém que transforma lembranças em uma máquina do tempo e faz voltar ao ano de 2010, para uma festa parcialmente rosa, rodeada de amor”.

Foto estudante Milena de Oliveira Mascarenhas

Autora: Deise Bressan. Também escreveu e publicou no site Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”: www.neipies.com/desafios-para-a-valorizacao-da-heranca-africana-no-brasil/

Edição: A. R.

É possível cantar a Deus numa terra devastada?

A quem pergunta pelos frutos de tão custosa mobilização, respondo que há força e eloquência nos gritos mudos das ruínas das casas, das feridas vivas na alma das pessoas e das veias abertas da terra. (Itacir Brassiani)

Transcorrido quase um mês da realização da 47ª Romaria da Terra, ainda escuto na alma dos romeiros e romeiras ecos surdos do comovente cântico dos hebreus exilados: “Junto aos rios da Babilônia nos sentávamos chorando, com saudades de Sião. Como cantar o cântico do Senhor em terra estranha? Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que eu não lembre da minha mão direita; e que a minha língua se pregue ao céu da boca” (Sl 137).

Diversamente do que ocorreu com os hebreus, arrancados da sua terra e deportados na Babilônia por Nabucodonosor no século VI a. C, sob um sol escaldante e uma temperatura em torno de 40 graus, os romeiros e romeiras contemplaram estarrecidos os escombros de bairros devastados e viram neles sinais daquilo que poderá acontecer ao planeta todo.  E este grito de denúncia e esperança ressoou por todo o mundo graças à presença profissional e solidária da TV Voz.

Para os que ainda temos ouvidos, eles falaram com eloquência: “Não há uma economia sem alma! Não a um estilo de vida depredador! Não às relações dominadoras! Venha a terra sem males, o jardim sonhado por Deus! Em nome de Deus, reconstruiremos e cuidaremos”. E o grito de dor e protesto se transformou em compromisso público: “Reconstruir e cuidar da Casa comum com fé, esperança e solidariedade!” Peregrinos de esperança, cremos que os clamores um dia se tornarão louvores.

Movimentos e organizações que se agrupam em torno de distintas causas esqueceram suas diferenças. Em torno de 20 bispos e arcebispos de dez dioceses e arquidioceses do Rio Grande do Sul e Santa Cataria juntaram as vozes para denunciar a emergência climática e a necessidade de uma ecologia integral. Centenas de padres, diáconos, religiosos e pastores deram-se as mãos, abriram portas e construíram pontes. E aos dez mil romeiros juntaram-se milhares de internautas que acessaram a TV Voz.

A quem pergunta pelos frutos de tão custosa mobilização, respondo que há força e eloquência nos gritos mudos das ruínas das casas, das feridas vivas na alma das pessoas e das veias abertas da terra. Elas nos fazem tomar consciência de nossa responsabilidade no cuidado da Casa Comum. Esta “casa” que compreende o meio ambiente, mas inclui também as relações familiares econômicas, sociais e políticas.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo da Diocese de Santa Cruz do Sul

Esta edição da Romaria da Terra teve uma novidade: a transmissão ao vivo, feita pela Voz Tv, uma emissora digital do município de Pontão, RS.

Entrevistamos Vitor Hugo da Silva, repórter que esteve ao vivo, narrando e transmitindo este evento religioso tão relevante no Rio Grande do Sul (RS).

Como surgiu esta importante iniciativa de transmissão ao vivo pela Voz TV da 27ª Romaria da Terra?

Obrigado pelo convite de estar aqui escrevendo aos amigos leitores. Pontão é um município do norte gaúcho muito ligado a movimentos sociais e a Voz Tv surgiu exatamente aqui, e tendo esse ciclo de pessoas ligadas aos movimentos e também à fé. Exemplo Padre Arnildo Fritzen com quem a gente foi construindo a ideia de oportunizar as pessoas de assistir a transmissão ao vivo da 47ª Romaria da Terra e prontamente fomos bem recebidos e auxiliado pela Diocese de Santa Cruz do Sul através do Dom Itacir Brassiani.

Na sua visão de repórter, o que destacarias desta Romaria?

Na Romaria da Terra, especialmente além da fé, da parte religiosa, existe essa relação muito próxima das pessoas e a luta histórica pela Terra, mas essa edição se torna ainda mais especial por que representa ainda a Solidariedade do Povo Gaúcho com os atingidos pelas enchentes e, mais ainda, a reconstrução. Tudo isso nos leva a uma conclusão que todos somos absolutamente iguais, não interessa cor, conta bancária, religião. Perante a Deus e Natureza, todos somos iguais e temos o mesmo compromisso em cuidar, preservar e reconstruir.

Como viste a participação e o engajamento na Romaria dos mais de 10 mil romeiros e romeiras de todo RS?

A participação popular é algo comovente, que vai desde a organização: muitas pessoas, centenas, trabalhando para que tudo desse certo em todos os detalhes. As pessoas começam a chegar na véspera da Romaria, mas sua grande maioria nas primeiras horas do dia, todos foram recebidos com um delicioso café de manhã e, a cada minuto, a presença de público aumenta com Romeiros vindo em caravanas de vários locais do estado e fora dele, inclusive. Sem dúvidas, um momento histórico para todos.

Qual foi o momento ou a cena que mais gostaste de transmitir? Por que?

Alguns símbolos e momentos chamaram muito a atenção na Romaria. O Memorial em homenagem às vítimas fatais das enchentes, a Cruz feita com madeiras retiradas dos escombros, o báculo do Bispo Dom Itacir Brassiani também feito com restos de madeiras das residências destruídas e as hóstias ofertadas aos fiéis em marmitas, simbolizando todas as refeições servidas aos trabalhadores voluntários e população afetada que, através de marmitas, faziam suas refeições. Tudo isso graças à solidariedade e empenho de muitos que fizeram sua parte diante de tamanha dificuldade.

O que significou, para a VOZ TV a participação inédita na transmissão ao vivo desta Romaria da Terra?

Para nós, da Equipe Voz Tv, significa muito estarmos presentes nesse momento tão importante e simbólico para a fé dos gaúchos, mas fazendo exatamente o que nos cabe: aproximar as pessoas, levar as imagens e áudio com qualidade pra que todos os que, mesmo ausentes, puderam assistir e acompanhar ao vivo, como também outros tantos que não estiveram presentes e puderam ver e relembrar depois. Agradecemos muito a todos que puderam tornar esse momento possível, incentivadores, patrocinadores e em especial à nossa audiência.

Outras considerações.

Agradeço mais uma vez a oportunidade de estar em contato com os milhares de leitores, e parabenizo a equipe pelo trabalho importante de levar a informação com responsabilidade, destacando e dando visibilidade as pessoas e locais simples que ficam muitas vezes invisíveis a grande mídia.

Conheça aqui o trabalho de transmissão ao vivo, gravado no yotube e em página de rede social:

  1. https://youtu.be/Loyl40F0wGc?t=946
  2. https://www.facebook.com/voztv1/videos/voztv/610069515271559/

Edição: A. R.

Bem-vindos todos os que voltaram, os que nunca saíram e os que acham que nunca chegarão…ao fundo do poço!

Underground background of inside a scary water well

O fundo do poço é um lugar de passagem, onde se encontra toda a soma das suas escolhas, erradas, claro, mas que agora, acumuladas, observa-o com discrição, através de suas paredes cacimbadas. Mas é passagem! Não é moradia.

Alguém falou que o fundo do poço é o lugar mais visitado do mundo. 

Poço! Imaginário ou real.

Esqueceram de falar, contudo, que a ele se volta mais de uma vez.

Você vai sair de alguma forma; puxado por alguém que jamais imaginaria, ou, voltará para fora empurrado pela própria água, que, em seu reflexo o fez cair.  Mas não se afogou, pelo menos.

O fundo do poço é o melhor lugar do mundo para se conhecer as pessoas. Os amigos, os nem tanto, os próximos, a família, colegas, todos.  Ali é o local onde as ingratidões vêm à tona, com o perdão da anáfora.

É o lugar onde começamos a ver o que realmente importa; a crueldade do ser humano, quando despido de todas as suas máscaras. Muitos não vão ajudar!

Mesmo que passando rente a sua entrada, ao escutarem seus gritos de ajuda, apressarão seus passos no rumo do seu caminho. Até porque, lá fundo, há sempre um depósito de máscaras esquecidas.

Pedidos de socorro ou de perdão, pouquíssimos irão ouvir.  Esqueça os que convivem com você. Salvo exceções, a maioria das pessoas do seu convívio estarão imersas em suas realidades e interesses, e poucos prestarão ajuda.  Talvez por medo de afogar-se ao seu lado.

Pois não será em festas onde se conhecerão os amigos.  Ali, sabe-se, as pessoas estão vestidas para o teatro; em seus trajes de batalhas e suas armaduras. Em festas, quem não tem aquafobia, não afunda.

Mas quando se está na iminência de cair no escuro de um poço, as amizades começam a ficam menos frequentes e os convites, desaparecem. Ninguém quer ficar à disposição de alguém que carrega umidade, com a unhas cheias de musgos, em sua tentativa de sair de um buraco frio. As pessoas gostam de sonhos, alegrias e ainda de outras pessoas que as seguem: em seus desejos ou alienações.

Quando se chega perto de alguém com a retina escurecida, pelos dias em que passou na escuridão, quem quer a sua companhia? 

Um dia, e eles são tantos, quase todos caem; seja porque se esforçaram demais para ver seus rostos refletidos em sua água rasa, seja porque não se importaram com os avisos iminentes:  _ cuidado! Poço sem fundo à vista!

Muitas vezes, foi a curiosidade que o arrastou para dentro, em outras tantas, o desprezo com os avisos ignorados pelo caminho. E todos caem!

Como sair agora?  Todos saem, igualmente.  Molhados e trôpegos, mas saem.

Caso seja você, o novo migrante destas valas escuras, fique sabendo que uma forma de sair é justamente saber submergir um pouco.  Mergulhar na indiferença dos que o cercam, sem se afogar em rancores ou arrependimentos. Ficar com a cabeça para fora, apenas poder respirar, sabendo que os seus apelos poderão não ser ouvidos… Pode ser. Nessa hora, nem os passos dos seus amigos serão percebidos; até porque eles se foram.

Quando se está lá no fundo, o silêncio e o frio o cercam, como se você estivesse a sós no mundo.  _ em nossos dias, seria como deletarmos todos os nossos contatos no celular e nas redes, até porque quase ninguém nesta relação irá parar e ouvir seus gritos.  Aparentemente, não.

Então, é chegada a hora de comprar uma balança imaginária e nela pensar nos nomes dos que sempre estiveram ao seu lado, mas que sumiram, por algum motivo. E os contrapesos que poderiam puxá-lo para cima, desapareceram. Mágoas e rancores, nessa hora, serão inúteis.

Não desanime!

As possibilidades em ser ouvido e puxado por alguém desconhecido ou que jamais esteve entre as suas rotinas, serão enormes. Fique sabendo que são grandes as chances de que o seu socorro virá pelas mãos de anônimos. Os nossos gritos reverberam mais em ouvidos estranhos; Jesus que o diga.

Quase sempre é chegada a hora de reavaliarmos a família, que também pode ter sumido e começar a remontá-la; agora pela nova família de alma, como nos fala Marcelo Cotrim. Isso porque o sangue comum pode não ser suficiente para o seu amparo.

Finalmente, tome todo o cuidado porque o fundo de um poço pode ser cativante, especialmente para sapos e rãs em seu coaxo. Viver em uma umidade pegajosa, acostumar-se com murmurações e rancores diante dos dias que escorrem rapidamente… Quem irá ouvi-lo?

O fundo do poço é um lugar de passagem, onde se encontra toda a soma das suas escolhas, erradas, claro, mas que agora, acumuladas, observa-o com discrição, através de suas paredes cacimbadas. Mas é passagem! Não é moradia.

O seu auxílio está a caminho e você servirá de alerta para tantos que estão na iminência de nele cair.  Mas a sua vontade de gritar e sair deste mundo de musgos e água fria, tem de ser maior do que chamar a atenção alheia, pela pouca estima que restou em você.

Você vai sair, acredite! E bem melhor do que entrou.

Tome fôlego, portanto, e reaprenda a respirar. Inspire o ar possível e já comece a expirar gratidão.

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “qual é o limite de nossa empatia: sentir o desamparo do outro ou viver a sua dor”: www.neipies.com/quais-os-limites-da-nossa-empatia-sentir-o-desamparo-do-outro-ou-viver-a-sua-dor/

Edição: A. R.

Gestão Pedagógica e a privatização das Escolas Estaduais

Pode parecer forçado e desconexo, mas, da mesma forma que vivenciamos os perigos do monopólio privado no fornecimento da água, temos o dever de alertar para os perigos do monopólio na gestão pedagógica das escolas estaduais.

O início do ano de 2025 está marcado em várias cidades do Rio Grande do Sul, com grande repercussão em Passo Fundo, pelas consequências negativas da privatização do fornecimento de água, com longas interrupções no fornecimento, diminuição na qualidade e aumento do custo para o consumidor.

Trata-se de um histórico no qual o Governador Eduardo Leite mudou a Constituição Estadual que impedia a privatização da Corsan, desonrando um compromisso de campanha. Nessa mudança da legislação estadual, o governador foi liberado de realizar um plebiscito escutando a população a respeito da privatização do fornecimento da água.

Para cumprir com seus compromissos com o setor financeiro que o apoiaram, o governador desonrou os compromissos e a população gaúcha mudou a Constituição e começou o   processo de privatização, incluindo representantes da empresa Aegea na gestão da Corsan. Outra etapa muito importante no processo de privatização do fornecimento da água foi a negociação e convencimento dos prefeitos a realizarem novos contratos com a Corsan. Esses novos contratos foram feitos sem debate público e, no caso de Passo Fundo, sem a aprovação do Legislativo municipal.

A condição imposta pela Aegea para assumir o monopólio do fornecimento da água era realizar novos contratos com os municípios, especialmente os maiores, que fossem mais favoráveis para o seu objetivo de ampliar o retorno financeiro.

Pode parecer forçado e desconexo, mas, da mesma forma que vivenciamos os perigos do monopólio privado no fornecimento da água, temos o dever de alertar para os perigos do monopólio na gestão pedagógica das escolas estaduais. 

A gestão das escolas estaduais do Rio Grande do Sul passa a ser regulada por uma nova lei em 2024, que aumenta a interferência da secretaria estadual e diminui o poder da comunidade escolar, na definição das equipes diretivas da escola. Outro aspecto central na configuração atual das gestões escolares é a desvalorização da coordenação pedagógica e a concentração dos poderes nos supervisores e mentores escolares.

Mesmo sem estar na lei de gestão das escolas, o governo instituiu a figura do mentor escolar, que se apresenta como facilitador para a equipe diretiva, mas assume função central no controle digital da gestão escolar. Mais especificamente, a gestão pedagógica das escolas passou a ser centralizada, definida e controlada por uma “sombra” burocrática e digital, com a instituição de uma infinidade de novas disciplinas, na qual os sujeitos definidores, protagonistas e construtores das mesmas não são os educadores nem os estudantes.

 Diante deste contexto, faz-se necessário ampliar o debate sobre as condições atuais da gestão pedagógica das escolas e mais especificamente sobre a gestão pedagógica da sala de aula. Caso contrário, nós professores não seremos mais os gestores da sala de aula e passaremos a ser escravos da função burocrática de executar as determinações impostas pelo monopólio privado das sombras burocráticas digitais.

Autor: Israel Kujawa. Também escreveu e publicou no site “O valor da água para nossas vidas”: www.neipies.com/o-valor-da-agua-para-as-nossas-vidas/

Edição: A.R.

A formação da autonomia discente e o papel da autoridade docente

Os professores necessitam de espaço e tempo para que possam exercer sua docência de forma reflexiva e investigativa tendo em vista o aperfeiçoamento constante de sua própria prática. Isso vai na contramão das reformas trabalhistas, orientadas sobretudo pelos interesses empresariais, que estão em curso e que reduzem direitos e fragilizam o trabalho docente.

Há quinze anos atrás publiquei com minha grande parceira de pesquisa Carina Tonieto (na época minha orientanda de mestrado no PPGEdu/UPF), o livro autoral Educar o Educador: reflexões sobre formação docente (Fávero e Tonieto (2010). 

Na apresentação do livro ressaltamos que a formação docente tomada como objeto de investigação originou “uma diversidade de teorias e práticas pedagógicas cujas preocupações geram uma pluralidade de concepções que valorizam a experiência vivida dos profissionais da educação”. Essa pluralidade de concepções espelha o cenário dos grandes desafios para pensar a relação pedagógica entre professor e aluno e como se dá a relação tensional entre formação da autonomia discente e a autoridade docente.

O termo “tensionamento” tem a clara intenção de indicar que a relação entre autonomia discente e autoridade docente não se dá de forma passiva ou espontânea, mas constitui-se de uma mediação dialógica que pode ou não ocorrer na experiência formativa da escola.

Conforme expressa com lucidez o pesquisador Yves de La Taille (1999, p. 10) “diz-se de alguém que tem autoridade quando seus enunciados e suas ordens são considerados legítimos por parte de quem ouve e obedece”. Nem todo ato de obediência é derivado de uma relação de autoridade, pois há situações (por exemplo num regime ditatorial) que a obediência se dá por medo e não por considerar legítimo quem nos dá ordens. Algo diferente ocorre quando estamos diante de uma autoridade legítima, democraticamente instituída. Neste caso, a autoridade é legítima porque suas ordens não são obedecidas por medo ou por coação, mas por respeito e por saber que o seu cumprimento pode produzir melhorias e crescimento.

A relação entre professor e aluno pode ser um exemplo deste tipo de autoridade. O professor tem autoridade legítima sobre seus alunos quando suas ordens ou condução pedagógica das atividades tem por finalidade a aprendizagem e a formação dos alunos. Mas como pensar essa relação num cenário marcado por complexidades, fanatismos, ideologias conflitantes, negacionismos, autoritarismos, confusões conceituais e crises de autoridade? Que desafios precisam ser enfrentados para que a autonomia discente não seja confundida com anarquia irresponsável e a autoridade docente não seja confundida com autoritarismo castrador e promotor de medo e insegurança? As escolas podem espaços da construção de tempos e espaços de construir processos de autonomia discente?  Qual o papel da autoridade docente neste processo? Na sequência deste escrito apresento três aspectos fundamentais para enfrentar minimamente estes questionamentos.

  1. A escola como espaço flexível para construir processos de autonomia

Torna-se cada vez mais notório que os processos educacionais estão sendo orientados para atender as demandas do mercado. A advertência de Nussbaum (2015, p. 4) é contundente quando alerta que “os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios”.

As instituições escolares estão se moldando à lógica de mercado e admitindo que se não acompanharem o “andar da carruagem” perderão espaço, importância e sua função. Esse desespero mercadológico, chamado por Bauman (2008) de “tornar a necessidade virtude”, leva os formuladores das políticas educacionais e os intelectuais, a aderirem ao jogo da oferta e da procura, no qual “os intelectuais, coletivamente degradados pela competição do mercado, convertem-se em promotores zelosos de critérios de mercado na vida universitária” e os critérios de avaliação de cursos, projetos e títulos passam a ser  “uma boa abertura para o mercado, se vende bem – e a capacidade de vender (‘encontrar-se com a demanda’, ‘satisfazer as necessidades do potencial humano’, ‘oferecer os serviços que a indústria demanda’)” (Bauman, 2008, p. 173 – grifos do autor).

Tais constatações estendem-se para a educação básica, onde se voltam muitos projetos de reformas educacionais inspiradas pelas demandas e necessidades do mercado e da indústria, as quais são legítimas enquanto espaço de produção de bens e serviços, mas ilegítimas como projeto único de formação humana.

O perigo está em tornar as instituições escolares e as próprias universidades em meros complementos das demandas de treinamento, para garantir as necessidades do mercado, já que tal proposta não dá conta da complexidade e das necessidades da formação humana e pode se agravar se tais espaços formativos não assumirem direção de seu próprio processo (Tonieto; Fávero; Silva, 2022).

Não se trata de resgatar o ideal legislador da modernidade sólida em que escola era a principal responsável para formular o tecido social, mas dizer que a escola deve assumir a responsabilidade de definir a direção do seu próprio percurso é defender a posição que há questões além daquelas exigidas pelo mercado, que não podem sair do horizonte formativo dos seres humanos. É nesse sentido que a formação para a autonomia de sujeitos críticos constitui uma tarefa imprescindível da escola, ao mesmo tempo que necessita ser suficientemente flexível para reconhecer que em tempos-líquidos, as vozes e autoridades podem vir de vários lugares.

Na transição da modernidade sólida para a líquida, os espaços não formais de aprendizagem acentuaram-se consideravelmente, conforme vimos anteriormente. Inevitavelmente a educação formal “não pode mais deixá-los de lado, já que marcam cada vez mais o comportamento, o hábito e, em última instância, as influências extrainstitucionais no processo de socialização” (Flickinger, 2009, p. 77). Por isso, a flexibilidade é ponto decisivo para as instituições da educação formal, desde que seja com autonomia.

O sujeito da modernidade líquida muda num tempo mais curto daquele necessário para consolidar hábitos, rotinas e formas de agir (Bauman, 2007, p. 7), e a escola, tendo-o à sua frente, deve exercer seu papel de educar nessa transitoriedade de momentos e experiências que ele vive. Bauman recupera uma tese de Rorty (1999 apud Bauman, 2007, p. 21), que “definiu como objetivos desejáveis e realizáveis dos professores, as tarefas de agitar os garotos e instigar dúvidas nos alunos sobre as imagens que eles têm da sociedade a qual pertencem”. Isso pode significar preparar os alunos para a vida líquida, para a era da incerteza, mas sobretudo instigá-los a duvidar da imagem que possuem de si próprios e da sociedade em que vivem, superando consensos forçados, verdades imutáveis, e a própria lógica do consumo, que atrai as vidas.

Em síntese, a docência na modernidade líquida é flexível e autônoma por não decretar o que é certo e verdadeiro, mas por ajudar os educandos a encarar com sobriedade e reflexão o mundo cambiável em que se vive.

            b) A autoridade docente emana da reflexão e da investigação

A modernidade líquida, ao desestabilizar os conhecimentos imutáveis, colocou em crise a autoridade docente que tinha o poder de transmitir tais conhecimentos que perdurariam por todo o sempre. A negação desta lógica moderno-sólida e a insurgência de uma aprendizagem ao longo da vida, na modernidade líquida, pode nos levar a encontrar elementos positivos das condições líquido-modernas.

Para Flickinger (2009, p. 68), a reorganização e deslocamento dos lugares da produção do saber para além das instituições tradicionais, “representam apenas algumas consequências de um processo econômico-social que não se satisfaz mais com um determinado estoque de conhecimentos disponíveis”.  A nova noção de aprendizagem tem como pauta “romper com a regularidade, flexível o bastante a ponto de permitir libertar-se de velhos hábitos e com uma enorme capacidade de reorganizar experiências episódicas e fragmentárias em pautas anteriormente pouco familiares” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 71). Embora seja paradoxal, a regularidade é não haver regularidade ou continuidade.

Diante disso, pressupõe-se que os processos formativos não estão mais completamente dados a priori, instaurados de forma definitiva nas instituições tradicionais, mas envolvidos numa trama bastante complexa e permeável pelas condições dos tempos líquidos da contemporaneidade. Isso significa que a docência precisa fazer as pazes com a incerteza diariamente fabricada e com a ambiguidade, além dos diversos pontos de vista e a inexistência de autoridades infalíveis e seguras (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 71).

Fazer as pazes com a incerteza não significa abrir mão de elementos duradouros e essenciais para a formação humana em nome de um relativismo extremado, sem direção, mas reconhecer que este ambiente de pouca estabilidade pode promover um processo reflexivo permanente.

Algo de instigante que nos aparece nesses tempos cambiáveis é que “no lugar de conhecimentos objetivos e de habilidades instrumentais exige-se uma competência reflexiva”, de questionar as certezas antes construídas e de redefinir, sempre de novo, o papel supostamente estável” (Flickinger, 2009, p. 68). Na sociedade de produtores e consumidores, a ambivalência entre ser e parecer ser dificulta que os indivíduos se voltem para si mesmos, ampliado o desafio docente para o exercício da reflexão, como base da formação.

O segundo desafio, consiste então, em compreender a docência na modernidade líquida em vias de reflexão e investigação, ou seja, conceber o professor como um agente reflexivo e investigativo.

Trata-se de conceber os professores como aqueles que assumem uma autoridade dentro daquilo que Bauman (2010) definiu como interpretação. Interpretar é a marca do trabalho intelectual e profissional do professor da modernidade líquida, que necessita superar em grande medida a autoridade verticalista do professor com relação a “massa” de aprendizes. Além de ser um sujeito que compreende, também torna-se autor de sua própria prática pedagógica, na medida em que investiga seu próprio fazer e se torna capaz de pensar a educação e não somente reproduzir e aplicar mecanicamente ações planejadas por outros. Segundo Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 89), tal visão “representa um duro golpe nas pretensões proselitistas ainda existentes no campo educacional, que continuam a insistir na posse da verdade e, por consequência, da prática educativa que, inexoravelmente levaria até ela”.

Criar possibilidades para o “professor reflexivo” tem desafiado enormemente os condutores de processos de formação docente inicial e continuada, num cenário de precarização das relações de trabalho no campo educacional. Professores com acúmulo de contratos, excessiva carga horária, baixos salários, precárias condições estruturais das instituições de ensino, amedrontados pelas ações de controle de seu pensamento e de sua ação e diferentes formas e violência estão visivelmente desesperançados com relação às possíveis melhorias num futuro próximo.

Leia também: www.neipies.com/ser-professor-reflexivo/

Os professores necessitam de espaço e tempo para que possam exercer sua docência de forma reflexiva e investigativa tendo em vista o aperfeiçoamento constante de sua própria prática. Isso vai na contramão das reformas trabalhistas, orientadas sobretudo pelos interesses empresariais, que estão em curso e que reduzem direitos e fragilizam o trabalho docente. Por isso, as instituições educacionais, os gestores da educação pública e privada, se almejam profissionais reflexivos, investigativos e qualificados deverão fazer resistência à mercantilização da educação. Caso contrário, a profissão docente se tornará apenas um “bico”, e sendo assim, os rumos da educação nessas condições não serão muito promissores.

c) A escola como espaço de discussão e promoção da justiça social

Observamos que a escola da modernidade sólida era seletiva, eletista e classificatória. Não era uma escola para todos e ficou marcada por excluir grupos que não estivessem de acordo com o perfil estabelecido. Pobres, deficientes físicos, pessoas com transtornos mentais, negros, homossexuais, doentes tornaram-se como que “ervas daninhas” que precisavam ser eliminadas do jardim civilizatório (Bauman, 2010).

Com a escola líquida-moderna, a ambivalência, a diferença, os anteriormente excluídos, poderiam ter seu espaço, pois, a vida passou a ser compreendida de modo mais plural. As instituições educacionais passaram a ter papel importante na busca por justiça social e superação de desigualdades sociais, econômicas, de gênero e acesso aos direitos básicos. Contudo, a escola dos tempos líquido-modernos ainda não conseguiu se efetivar de fato como um lugar de educação para todos e um espaço de superação da injustiça. Continuamos tendo uma escola excludente, classificatória, dual, discriminatória, de dominação branda.

Para Bauman (2010, p. 227), “o novo modo de dominação se distingue pela substituição da repressão pela sedução, do policiamento pelas relações públicas, da autoridade pela propaganda, da imposição da norma pela criação de necessidades”. A ligação dos indivíduos à sociedade se dá pela capacidade de consumo, portanto, é o mercado quem assume as rédeas do controle dos projetos de vida e, por consequência, o poder de excluir e incluir está em suas mãos. Os que não conseguem acompanhar o fluxo das necessidades criadas por esse novo agente de controle, tornam-se os novos reprimidos (Bauman, 2010, p. 230).

A marginalização e a pobreza da contemporaneidade líquida em última análise, parece ser produto da emancipação do capital em relação ao trabalho, já que “hoje o capital não emprega o restante da sociedade no papel de trabalho produtivo” e o “número de pessoas que ele de fato assim emprega torna-se cada vez menor e menos significante” (Bauman, 2010, p. 243). O capital, de outro lado, emprega as pessoas como consumidoras, não mais em função do trabalho estritamente, isto é, as novas massas de pobres aumentam pelo mundo todo, vítimas da não inclusão no emprego do consumo, os quais são os refugos humanos, na linguagem baumaniana.

Inevitavelmente, o trabalho docente na modernidade líquida não pode ignorar a discussão e a busca por justiça social, assim como a formação ética dos sujeitos. A promessa da autenticidade individual, ou autonomia, tão bem defendida pelo iluminismo é dissipada pela “privatização crescente das preocupações individuais” e pela “diminuição na participação em assuntos públicos” (Bauman, 2010, p. 258). A precarização do público, do espaço de relação entre os seres humanos, enquanto membros de uma mesma nação, comunidade ou grupo, acarreta profundas injustiças e desigualdades.

Talvez uma das tarefas intransferíveis dos docentes diante desse contexto é oportunizar aos alunos processos formativos que os tornem conscientes da massiva carga de mercadorização imposta ao sistema educacional.

A velha pretensão instrumental de educar somente para o mercado de trabalho não se sustenta, pois o educando não irá somente trabalhar ou consumir; ele terá uma teia vital bastante complexa e multidimensional para lidar. Por isso, as escolas precisam “prover meios adequados a fins orientados para a pessoa” e no processo educativo “expor as limitações da razão instrumental, restaurando a autonomia da comunicação humana e a criação de significados orientados pela razão prática” (Bauman, 2010, p. 259).

Trata-se de retomar o projeto de autonomia iluminista em contextos líquido-modernos, de voltar a colocar o ser humano no centro do processo formativo, de ressignificar a autoridade docente e da escola, para a emancipação dos sujeitos. Em outras palavras, o projeto moderno está inconcluso, e cabe aos docentes, intelectuais e instituições formativas levá-lo a sua realização.

Considerações finais

A docência continua sendo essencial para os processos educacionais, embora se encontre muito ameaçada e pouco valorizada enquanto profissão. A autoridade docente, na modernidade líquida, possui suas especificidades e desafios numa dialética entre o ofício de normatizar (oferecer conhecimentos basilares e direcionar um processo formativo) e o de interpretar (compreender as relações cambiáveis, diferenças culturais, novos hábitos).

Numa perspectiva baumaniana está posta uma complexa relação entre elementos dos tempos sólidos e dos tempos líquidos, ou seja, uma permanente ambivalência, de coexistência de elementos dissonantes num mesmo espaço e tempo. Os professores continuam sendo protagonistas na retomada do projeto moderno de autonomia centrado no ser humano, que se encontra inacabado em virtude das intenções proselitistas do mercado. A modernidade sólida falhou ao optar pela repressão em vez da autonomia dos indivíduos; a modernidade líquida falha ao optar por consumidores em vez de sujeitos reflexivos.

Segundo a abordagem de Freire (2000, p. 51), considera-se que é importante e imprescindível estabelecer uma consciência coletiva de que nenhuma formação e ação docente responsáveis socialmente podem constituir-se apartadas “do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica”, assim como é salutar para a promoção de uma pedagogia da autonomia “o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição”.

Defende-se, desse modo, que a escola continua sendo indispensável para a promoção de experiência pedagógica voltada para a emancipação humana em tempos líquido-modernos. Para tanto, apontam-se algumas perspectivas a partir das exigências e possibilidades postas pela pedagogia da autonomia freireana e pela compreensão das relações humanas num cenário marcado pela liquidez.

A valorização da carreira docente, a garantia de condições adequadas de trabalho e a aposta em projetos educativos formativos são elementos fundamentais para o fortalecimento e construção da docência, já que somente discursos empolgados em favor da educação e de responsabilização dos docentes pouco ou nada contribuem  para a constituição de ambientes escolares promotores de experiência educativas emancipadoras e que acolham e atendam os interesses juvenis e as necessidades inerentes ao trabalho docente (Fávero; Centenaro; Santos, 2023; Tonieto; Bellenzier; Bukowski, 2023; Fávero; Tonieto; Bellenzier; Bukowski; Consaltér; Centenaro, 2022; Bellenzier; Guerra; Fávero, 2021).

Desse modo, as possibilidades de construção de uma relação harmoniosa entre autonomia discente e autoridade docente no contexto líquido-moderno estão marcadas por um contexto político-pedagógico adverso que, por um lado, desafia os sujeitos envolvidos nas decisões educacionais e, por outro, reforça a necessidade de relações pedagógicas construtivas que contribuam para a formação humana levando em consideração a liquidez das relações humanas e sociais.

Para os que tiverem interesse em acessar o livro completo Educar o Educador: reflexões sobre formação docente, referido no início deste escrito, segue o link de acesso: https://www.researchgate.net/publication/355339078_Educar_o_educador_-_reflexoes_sobre_a_formacao_docente

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes:sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2010.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2007.

BAUMAN, Zygmunt. Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Trad. José Gradel.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2008.

BELLENZIER, Caroline Simon; GUERRA, Simone Zanatta; FÁVERO, Altair Alberto. A docência universitária e as juventudes: implicações das relações pedagógicas em uma perspectiva humanizadora. In: OLIVEIRA, Victor Hugo Nedel; CASTILHLO, Rosane (orgs.). Juventudes brasileiras: Questões contemporâneas. Parnaíba/PI: Acadêmica Editoria, 2021, p.105-126.

FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. Educar o educador: reflexões sobre formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. A autoridade docente na modernidade líquida. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (orgs.). Leituras sobre Zygmunt Bauman e a Educação. Curitiba: CRV, 2019, p.81-99.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon; SANTOS, Antonio Pereira dos. A liberdade de escolha no Novo Ensino Médio: a percepção de gestores escolares quanto à proposta de flexibilização curricular. Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 30, p. e14414, 2023. Disponível em: <https://doi.org/10.5335/rep.v30i1.14414>. Acesso em: 27 fev, 2025.

FÁVERO, Altair Alberto Fávero; TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; BUKOWSKI, Chaiane; CONSÁLTER, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon. O protagonismo dos estudantes na reforma do ensino médio: de que protagonismo estamos falando? In: KÖRBES, Clecí; FERREIRA, Eliza Bartolozzi; SILVA, Monica Ribeiro da; BARBOSA, Renata Peres.  (Orgs.). Ensino médio em pesquisa. Curitiba: CRV, 2022. p. 215-228

FLICKINGER, Hans Georg. A dinâmica do conceito de formação (bildung) na atualidade. In: CENCI et al. Sobre filosofia e educação:racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 52 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2015.

LA TAILLE, Yves, Autoridade na escola. In: AQUINO, Julio Groppa (org.). Autoridade e autonomia. 4 ed. São Paulo: Summus, 1999, p.9-29.

NUSSBAUM, Martha C. Sem fins lucrativos:porque a democracia precisa das humanidades. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

TONIETO, Carina; FÁVERO, Altair Alberto; SILVA, Diocélia Moura da. A magia das competências na educação básica. FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon. (Org.). Leituras sobre a pesquisa em política educacional e a teoria da atuação. Chapecó: Livrologia, 2022. p. 137-156.

TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; BUKOWSKI, Chaiane. As concepções dos estudantes em relação ao protagonismo juvenil no Novo Ensino Médio. Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 30, p. e14398, 2023. Disponível em:

<https://doi.org/10.5335/rep.v30i1.14398>. Acesso em: 27 fev. 2025.

Autor: Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com Professor e pesquisador do Gepes/PPGEdu/UPF. Também escreveu e publicou no site “A construção de uma pedagogia da autonomia”: www.neipies.com/a-construcao-de-uma-pedagogia-da-autonomia/

Edição: A. R.

Para que serve a universidade?

Apesar do cenário dominado pelas gigantes do ensino privado, o acesso à universidade pública vem crescendo cada vez mais devido às políticas públicas como o ProUni.

A universidade não é uma rede informacional, nem um supermercado intelectual, sentencia o ensaísta Mikhail Epstein em seu manifesto sobre as humanidades. Professor de teoria cultural e literária russa, ele defende um ensino universitário que seja transformador: “para educar humanos por humanos para uma humanidade melhor”.

Considerando que a expansão do ensino superior no país segue a lógica dos grandes grupos econômicos de educação, precisamos nos questionar: para que e a quem serve o ensino superior no Brasil?

Segunda nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Art. 43 da LDB/1996) a educação superior tem por finalidade “estimular o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; (…) incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura”, objetivando, desse modo, “desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive”.

Porém, conforme o Censo do IBGE 2022 sobre a educação divulgado dia 26 de fevereiro e de acordo com o Censo da Educação Superior de 2023 (Inep/MEC) nosso ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado, ofertado por empresas com fins lucrativos, é virtual (EaD), disfuncional, desordenada, elitista, concentrado em estados e cidades ricas, acessado predominante por brancos.

Após 15 anos sem informações atualizadas, aas informações do Censo da educação permitem uma análise sobre a condição que a educação se encontra e precisa orientar o planejamento dos planos educacionais para a próxima década e a formulação de políticas públicas educacionais mais sólidas e referenciadas.

Segundo este Censo de 2022 é possível perceber uma expansão expressiva da oferta em todos os níveis e modalidades nas últimas duas décadas do presente século (2000-2022). Porém, é necessária uma análise mais ampla e profunda sobre a natureza e a qualidade dessa expansão, bem como os desafios gigantescos que ainda se apresentam ao Brasil em matéria de universalização da educação e da ciência com qualidade social.

De 2000 a 2022, na população do país com 25 anos ou mais de idade, a proporção dos que tinham nível superior completo cresceu 2,7 vezes: de 6,8% para 18,4%. Analisando os resultados, é possível perceber que o aumento da proporção de pessoas com nível superior ocorreu para todos os grupos de cor ou raça.

O percentual é 18,4% configura-se ainda como uma oferta elitista, pois menos de um quinto da população acessa a formação superior. Enquanto isto, a título de referência, a escolaridade nesta faixa etária é de 67% na Coreia do Sul, 58% no Canadá, 48% no Japão e 40% no Reino Unido. Na Amárica Latina estamos abaixo da Argentina, Colômbia e Chile. Em todos estes países, a escolaridade geral da população é ainda bem mais elevada.

IES e matrículas

O Censo da Educação de 2023 (Inep/MEC) registrou a existência de 2.580 Instituições de Educação Superior (IES) no país. Dessas, 87,8% (2.264) eram privadas e 12,2% (316), públicas. De 2.580 IES, 1.941 são Faculdades, 393 Centros Universitários e, apenas 205 Universidades. As Faculdades e Centros Universitários não são obrigados a realizarem pesquisas nem ações de extensão com as comunidades e a sociedade.

Nesse contexto, a rede privada ofertou 95,9% (23.681.916) das mais de 24,6 milhões de vagas. Já a rede pública foi responsável por 4,1% (1.005.214) das ofertas, com 65,5% (658.273) dessas vagas em instituições federais. Na modalidade de Educação à Distância (EaD), a oferta de vagas foi de 77,2% (19.181.871); já as presenciais representaram 22,8% (5.505.259). As instituições privadas concentraram a maioria dos matriculados: 79,3% (7.907.652). Já as instituições públicas registraram 20,7% (2.069.130) das matrículas.

O pesquisador José Marcelino Pinto (USP) alerta que o ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado. “Na verdade, é um sistema disfuncional, porque ele cresceu na lógica do mercado, não na lógica da necessidade do país”, diz o pesquisador.

É uma lógica e um movimento que assusta e coloca na frente dos estudantes uma mercadoria, que nem sempre está atrelada à qualidade ou a possibilidades futuras a esses estudantes, muito menos propósitos de vida e um projeto de país.

Natureza dos maiores cursos

O Censo do IBGE identificou a predominância e cursos nas áreas de Gestão e Administração, Direito, Formação Professores e área da Saúde com maior número de graduados no Brasil: Gestão e administração (4.073.666), Formação de professores sem áreas específicas (3.108.277), Direito (2.467.521), Promoção, prevenção, terapia e reabilitação (1.370.508), Contabilidade e tributação (1.143.621), Enfermagem (898.464), Letras (887.873), Psicologia (597.731), Medicina (553.538) e Engenharia Civil e Construção (518.252).

Em 2022, o Brasil tinha 2.467.521 pessoas graduadas na área do Direito e, apenas, 553.538 pessoas graduadas na área de Medicina. Em 2022, havia uma pessoa com curso de graduação concluído em medicina para cada 186,9 moradores do Distrito Federal. Já no Maranhão, havia 921,7 moradores para cada pessoa com curso de graduação concluído em medicina.

A distribuição da população com nível superior completo por cor ou raça difere bastante entre as diferentes áreas detalhadas dos cursos de graduação concluídos. Entre as pessoas com graduação concluída na área de “Medicina”, por exemplo, 75,5% eram da cor ou raça branca.

No fomento da pesquisa, pretos e pardos ainda são minoria entre bolsistas de produtividade do CNPq no Brasil. De 2013 a 2023, quando observada a cor autodeclarada pelos bolsistas, praticamente não houve mudanças. Em 2013, por exemplo, os brancos eram 72% dos pesquisadores cujo pedido de bolsa foi atendido. Em 2023, último ano para o qual há dados do CNPq disponíveis, eles eram 70%. Pardos, por sua vez, passaram de 8% para 10% e pretos, de 1% para 2%, também comparando o mesmo período.

Mulheres no serviço social e enfermagem

A área de Serviço Social tinha a maior participação feminina, considerando-se as 40 áreas detalhadas com maior ocorrência. Em 2022, 93,0% das pessoas com curso de graduação concluído em “Serviço Social” eram mulheres.

As mulheres registravam, também, participação expressiva entre as pessoas com cursos de graduação concluído em áreas como “Enfermagem” (86,3%) e “Formação de professores sem áreas específicas” (92,8%). No polo oposto, apenas 7,4% das pessoas com curso de graduação concluído na de “Engenharia Mecânica e Metalurgia” eram mulheres.

Diversidade, políticas de quotas e inclusão  

Em 2022, a instrução das mulheres com 25 anos ou mais de idade superava a dos homens. Entre elas, 20,7% tinham nível superior completo. Entre eles, essa proporção era de 15,8%

Em 2000, a proporção da população branca com 25 anos ou mais que tinha nível superior (9,9%) era mais de quatro vezes superior ao verificado na população de cor ou raça parda (2,4%) e preta (2,1%).

De 2000 para 2022, essas proporções se elevaram 2,6 vezes para a população branca (25,8%), 5,2 vezes para as pessoas de cor ou raça parda (12,3%) e 5,8 vezes para a população preta (11,7%). Trata-se de uma inclusão e expansão tímida a exclusão racial histórica e estrutural brasileira.

Educação básica

De 2000 a 2022, a frequência escolar cresceu nos grupos etários até os 17 anos. Para as crianças de 0 a 3 anos, a taxa de frequência escolar bruta saltou de 9,4% para 33,9%. Na faixa de 4 a 5 anos, a frequência subiu de 51,4% para 86,7%. No grupo de 6 a 14 anos, próximo da universalização, a taxa foi dos 93,1% aos 98,3%. Na faixa de 15 a 17 anos, a frequência subiu de 77,4% para 85,3%.

O único grupo com recuo na frequência escolar foi o dos 18 aos 24 anos: 31,3% em 2000 e 27,7% em 2022, devido à redução da parcela desses jovens no ensino médio ou em níveis anteriores. Mesmo com várias reformas no ensino médio neste período de duas décadas, talvez inclusive devido a elas, mais de um quarto (26,7%) dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos que frequentam a escola estão matriculados no ensino fundamental, ou seja, tem atraso na trajetória escolar. A qualidade e a conclusão do ensino médio continua sendo o maior desafio da educação brasileira neste século 21.

Refletindo sobre estes dados do IBGE e nos referenciando em estudos como de José Marcelino Pinto (2024) e Fávero, Consaltér e Tonieto (2020), constata-se que a expansão da Educação Superior está mais associada ao crescimento de um mercado das IES com fins lucrativos do que efetivamente à oferta de acesso e qualidade da formação em nível superior.

Neste setor privado a disputa por alunos, o grande número de matrículas na modalidade à distância, a baixa qualidade da formação dos egressos e o reduzido quadro de docentes, confirmam a máxima do mundo empresarial: “fazer mais com menos”.

Nesta perspectiva, o censo do IBGE evidencia uma expansão disfuncional, desorganizada, sem planejamento nacional e regional, com oferta predominantemente mercantil, concentrada nos estados e cidades mais ricas, para população branca de classe média e alta, com formação concentrada em poucas áreas, como: gestão, administração e direito.

As necessidades do Brasil e de suas diversas regiões, o sonho de milhões de estudantes, a promoção da cultura, da ciência e da pesquisa não são levadas em consideração nem se constituem prioridades deste projeto educacional brasileiro predominante.

Persiste uma oferta elitista em pleno século 21 para apenas 18,4% dos estudantes até 29 anos, com uma exclusão dos demais 82% de jovens trabalhadores, reproduzindo e perpetuando a desigualdade histórica e estrutural de nossa sociedade brasileira.

Em 1982, em uma conferência, o antropólogo e educador brasileiro Darcy Ribeiro afirmou: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Hoje, mais de 43% da população carcerária brasileira é de jovens entre 18 e 29 anos e o Brasil é um dos países que mais mata jovens no mundo.

No país, em 2022, dos 46.409 homicídios registrados, segundo o Atlas da Violência de 2024, 49,2% vitimas eram jovens entre 15 e 29 anos. Foram 22.864 jovens mortos, média de 62 assassinados por dia. Considerando a série histórica dos últimos 11 anos (2012-2022), foram 321.466 jovens vítimas da violência letal no Brasil.

Autor Gabriel Grabowski, professor e pesquisador. Também escreveu e publicou no site “Novos e velhos desafios para educação em 2025”: www.neipies.com/novos-e-velhos-desafios-da-educacao-em-2025/

Edição: A. R.

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