As ágoras da maestria acadêmica encontram-se em crise e com elas a identidade do professor e os projetos políticos que aí se construíam e alimentavam. Por falar de projeto, talvez deva ser esta uma pauta a ser defendida pelos órgãos de classe, justamente a luta pelo estímulo e reinstalação desses espaços sagrados da docência, a sala de professores.
Há poucos dias assisti ao filme premiado A sala dos professores, obra intrigante que reúne uma série de elementos sociais, emocionais, éticos e morais… mas é de uma sala de professores que já foi bem mais presente que pretendo falar.
Das grandes perdas que marcaram o período da pandemia, um vazio sensível, embora pouco dizível, restou nas salas dos professores.
Recordo-me delas em seus momentos de glória, em momentos que precediam as aulas, ou no intervalo delas, tantas conversas leves, revigorantes, boas risadas e, outras tantas vezes, agitada por profundos debates, das mais diversas áreas. Por vezes comentários sobre as dificuldades com turmas, ou alunos. Enfim, um oásis existencial onde as identidades se construíam, afirmavam, renovavam.
Garanto que não é preciso esforço aos colegas docentes para recordarem-se das primeiras vezes em que foram acolhidos pela sala dos professores. Inquestionável a sua importância na construção do “ser professor”, projeto existencial que nunca termina e que, naquele espaço, encontrava moldes a serem seguidos.
Mas vieram os tempos diferentes, de isolamento, nos reinventamos, nos reconstruímos… e ainda estamos em processo de adequação. O discurso tem sido da necessidade de sermos mais adaptáveis, mais resilientes, mais tecnológicos. São muitos os cases a serem seguidos, mas todos tão artificiais quanto a “inteligência” que cada vez ganha mais espaço, muito distantes da materialidade da sala de professores.
De outra parte, escola e universidade têm buscado se situar, entre aquilo que historicamente representou e a liquidez dos novos tempos. Tempos de virtualidade, de ceder para sobreviver.
Neste novo contexto, das dificuldades econômicas das escolas e universidades, das salas virtuais, distanciamo-nos do glamour daquele espaço sagrado da docência. Agora, apesar das salas desocupadas que se multiplicam, não há espaço para a sala dos professores.
Isso me leva a, pelo menos, duas constatações.
Primeira, é que retornamos da pandemia mais tendenciosos ao isolamento, menos identificados uns com os outros, mais preocupados com nossos próprios espaços e conceitos, mais líquidos nas relações e na perspectiva de futuro. Decorre daí, conforme pesquisas têm demonstrado, o fato de os novos professores universitários, por exemplo, não se virem nesta atividade a longo prazo, não almejando o magistério como atividade definitiva, apesar de, quase sempre, gostarem muito de estarem como acadêmicos.
Uma segunda conclusão a que chego é que pode haver o interesse em não fomentar, ou mesmo desconstruir, esse espaço poético, mas também político, de articulação e fixação de pautas e posições.
Não é difícil entender que, se cada vez menos os professores se articularem em grupos, também a pressão exercida sobre as entidades mantenedoras das instituições que lhes empregam, sejam públicas ou privadas, diminuem, situação que agrada a esses grupos.
Resulta disso a maior fragilização dos trabalhadores e trabalhadoras e das relações de trabalho. Obviamente que, no mesmo contexto da fragilização dos órgãos de representação de categorias, como os sindicatos, também o desestímulo, ou dificuldade, em manter as salas dos professores, faz parte de um projeto.
Enfim, as ágoras da maestria acadêmica encontram-se em crise e com elas a identidade do professor e os projetos políticos que aí se construíam e alimentavam. Por falar de projeto, talvez deva ser esta uma pauta a ser defendida pelos órgãos de classe, justamente a luta pelo estímulo e reinstalação desses espaços sagrados da docência, a sala de professores.
Os professores e professoras reclamam e querem de volta a sala de professores como um espaço de acolhida, descanso, amparo e liberdade (individual e coletiva). Querem também que este lugar acolha sentimentos, ideias, críticas e angústias que envolvem sua vida profissional, justamente com quem convive sob as mesmas condições: seus pares. (Nei Alberto Pies) Leia mais:https://www.neipies.com/sala-de-professores-e-professoras-que-lugar-e-este/
Autor: Jean Menuzzi, graduado em Filosofia, mestre e doutor em Direito, é professor da Universidade Regional Integrada (URI), campus Frederico Westphalen, e policial civil.
A educação de “buraco de minhoca” que vivenciamos nos dias atuais em muitas realidades públicas e privadas do Brasil faz menção a este processo midiático de prestação de contas eleitorais de práticas mínimas e para demonstração de poder.
Na teoria da relatividade de Einstein, entre outros conceitos, encontramos a teoria do “Buraco de Minhoca”, uma estrutura de duas bocas e um túnel (por isso buraco de minhoca), que permitiria dobrar o espaço tempo possibilitando viajar acima da velocidade da luz, uma teoria de viagem no tempo.
Considerando a aprendizagem através do sistema educativo como um elo de ligação entre passado, presente e futuro podemos observar aí uma práxis da teoria de Einstein do ponto de vista cognitivo. Porém, é necessário que, para o efetivo desenvolvimento deste conceito, sejam considerados alguns elementos fundamentais: ciência, desenvolvimento teórico-prático e valor humano.
Outro fator relevante e não menos importante é a gestão deste processo educativo. Não se chega ao espaço para contemplar um “Buraco de Minhoca” sem planejamento e investimento nas necessidades corretas. Também não se faz educação sem investimento no cientista, na pesquisa e no público alvo.
Assim como boa parte das viagens ao espaço foram de ordem especulativa e midiática, somente para a queda de braço dos impérios terrenos, isso desde a guerra fria até o boom tecnológico da atualidade, também uma educação midiática que somente alimenta o poder político não nos levará a esperada evolução, assim como ainda não conseguimos viver experiências de viagem no tempo.
A educação de “buraco de minhoca” que vivenciamos nos dias atuais em muitas realidades públicas e privadas do Brasil faz menção a este processo midiático de prestação de contas eleitorais de práticas mínimas (apenas para a prestação de contas) e para demonstração de poder. Isto quando não ridicularizam a própria teoria educacional dando “as minhocas” (literalmente)a função de escavar o futuro, enquanto ao educador a repressão do Império, e as viagens espaciais (educacionais), talvez sejam apenas um sonho para a maioria esmagadora, como viajar no tempo.
Você tem o poder de fazer de sua vida uma bênção, ou uma maldição. A escolha é sua.
Ela se chama X, mas poderia ser Y e até mesmo Z. Ela tem uma avó super idosa. Uma senhora que muito lhe ajudou. Coisa que ela esqueceu. Por isso, a maldição de que vai ver e sentir a velhice não é uma praga, é uma possibilidade.
No último Natal e no Ano Novo não se deu o tempo para ligar; para um “alô”. Estava ocupada com as redes sociais, fazendo “selfies” com amigas deslumbradas.
Porto Alegre acaba de sofrer sua maior enchente, com prejuízos sem precedentes. Amigos, parentes e conhecidos ligavam com aperto no coração para ter notícias. Porém, nem todos agiram assim. Teve gente que não se importou com os seus parentes. Nem de seus parentes idosos. A solidariedade foi fantástica, todos falam. É verdadeiro. De uma parcela da população; mas houve quem nada lhe tocou. O infortúnio era dos outros. E a perversidade veio acompanhada de “fake news”, de pix falsos, de desvios de doações, de politicagem.
Afinal, há pessoas que têm os velhos como um estorvo, não se importam com eles, são descartáveis. Descartáveis; invisíveis como os pobres que circulam, que esmolam, que estão nas frias calçadas das cidades. A escravidão contemporânea não lhes toca, como a História é apenas um livro esquecido do ensino médio.
Ah, mas se tiverem acesso ao cartão bancário dos seus parentes aposentados metem a mão. É a escumalha da sociedade, são os sanguessugas das pessoas idosas, quando não as maltratam, largando-as e deixando muitas ao abandono.
Temos no Brasil uma “cultura” às avessas, beirando ao comportamento amoral, algo entre o Estado da Natureza e o perverso da pós-modernidade. Quais seriam as razões para termos criado esta monstruosidade comportamental? Não foram nem os índios nem os negros africanos que nos legaram esta maldição. Pelo contrário.
A pessoa idosa, os tempos, as diferenças.
Os atenienses, na época de Aristóteles, não gostavam de pessoas idosas e, muitas vezes, revoltam-se contra eles. Até nos dias atuais, parece que, por lá, ainda estão nas suas próprias mãos e na dos familiares. Na Idade Média, a velhice era retratada como uma fase de vida cruel. Thomas Morus, autor de Utopia, era uma voz discordante. Pouco mudou no Renascimento. Já no pensamento oriental – com a influência do confucionismo – vemos uma abordagem mais coletivista, onde o valor das hierarquias da família, do idoso tornava-se cada vez mais importante.
Nas culturas ocidentais modernas, o status cultural dos idosos diminuiu. Os idosos, muitas vezes, se encontram deslocados por restrições financeiras ou por incapacidade de viver independentemente. Muitos são obrigados a mudar para “lares”. Na sociedade prevalece a busca da “juventude eterna” e da beleza. Pouco se valoriza o hábito de se alimentar bem e as formas saudáveis de se viver. Há exceções, é claro.
Nunca se pode esquecer que vivemos numa sociedade de classes, de ricos, remediados, pobres, desvalidos. Há quem tenha moradia, outros tem a favela ou a rua, mesmo na velhice.
É forçoso aqui assinalar que há tratamentos diferenciados entre povos. Os indígenas primam pelas tradições. Para eles, a pessoa idosa é a mais respeitada e importante do seu meio. São responsáveis pela orientação aos mais jovens. Não vivem para acumular riquezas. O que possuem tem sentido coletivo. Que diferença!
Na África, nem tudo é igual, há diferenças. Mas o poeta do Mali, Amadou Hampaté-Bâ, diz que “quando morre um africano idoso é como se queimasse uma biblioteca”. Ainda na tradição africana, os “griôs” são contadores de histórias, muito sábios e respeitados onde vivem.
Você vai ver e sentir a velhice
A neta que não liga para a avó, o filho que não trabalha e pega o cartão dos pais para benefício seu, o que larga seus velhos numa Instituição de Longa Permanência duvidosa ou na maior “cara de pau” tenta deixar o pai ou a mãe numa asilo vai ver e sentir a “sua” velhice. Talvez por comer hambúrguer, batatas fritas e refri vá antes… A escolha de vida é sua, pois a vida poderá ser uma benção ou uma maldição!
Para que mudemos o atual quadro da velhice no Brasil é preciso educar as crianças com uma mentalidade cooperativa, com uma visão inclusiva, sem preconceitos. Quais são as perspectivas por ações públicas e de sociedade para os jovens da geração Z, “nem nem”. Os poderes públicos têm que reagir contra o “status quo”, pois é esta uma das razões de ser governo.
Não basta uma Lei como o Estatuto do Idoso, criação de Conselhos Municipais “para inglês ver”. Ou a norma é uma letra viva, com conteúdo aplicado, numa interação entre lei e realidade, ou não passa de uma enganação.
Vai esperar para ver? Ou vai agir?
Na sociedade – seja nas instituições de ensino, nos governos, nas instituições, nos movimentos sociais – ou se faz ou se paga. O custo será alto, se não mudarmos nossos comportamentos.
Os governos estão, regra geral, desmoralizados. Com as enchentes e o desdém com a pessoa idosa, este contingente de pessoas não vai querer votar, se votar vai votar contra o prefeito que lhe virou as costas. E fará bem. A atual geração de pessoas idosas, regra geral, é mais politizada, menos conservadora que muitos jovens atuais.
Não se pode ter mais as ilusões românticas as quais nos levavam a sonhar com uma revolução social de igualdades, pois o capitalismo financeiro e imobiliário determina a exploração, a submissão e a exclusão. Este mesmo que enterrou o Estado de bem estar social. E com a sua forma fascista tenta enterrar o Estado democrático de direito. Ou seja, novas formas de organização e de lutas sociais terão que ser construídas. As armas são outras. A mídia, as mídias sociais determinam comportamentos. O idoso diante das novas tecnologias se torna um ser mais dependente, mais vulnerável, suscetível a crimes nunca antes imaginados.
É bom “não pagar para ver”!
Um novo movimento social
Numa de nossas rodas de conversa, Afonso Escosteguy mostrou que temos que encarar os vários tipos de idosos, os pouco ricos e remediados, os que em quaisquer circunstâncias tem proteção à saúde e ao bem estar, e aquela legião de desamparados, pobres, periféricos. Quase todos eles, não importa a condição social, não têm a mesma mobilidade e condições de agir como se eles fossem o próprio movimento de suas defesas, como foi e é a luta antirracista, contra a homofobia, o feminismo. Por isso, as pessoas idosas precisam de uma sociedade civil mais consciente, governos mais comprometidos com a sustentabilidade social, econômica, cultural e ambiental para buscar meios inclusivos das imensas populações de idosas que só crescem pelo mundo afora.
Há poucos grupos organizados em ação, apesar de termos pequenos agrupamentos que, às vezes, são lembrados como capital eleitoral por alguns prefeitos, dando-lhes condições de alguns passeios e alguns bailinhos. Isto não se despreza, mas é totalmente insuficiente.
O habitar
A moradia seja um apartamento no Centro de uma capital, uma casinha compartilhada com a família na favela, os velhos se agarram ao seu habitat como a última raiz que os vincula à vida, creio que foi a arquiteta Elenara Stein Leitão que disse algo assim numa de nossas reuniões. Como vocês podem observar não falo a partir de mim apenas, falo de um coletivo que pensa e repensa o transcorrer da vida. Graças a amiga Claire Abreu que em um café, ah os cafés… fez-me pensar mais na temática dos 60+ como se falava. Destes papos surgiu o livro “Metamorfose da Vida”, volume 1, com 21 autores falando do tema, fugindo de ser um livro acadêmico, ou de autoajuda. É um livro sobre o “envelhecer”.
Com as enchentes, com novos agregados ao grupo, surgiu a necessidade de falar do abandono, dos resgates malfeitos, da falta de políticas públicas, surgindo o livro “Perdi Tudo, e Agora?”.
No momento em que escrevo (julho de 2024) vamos para o prazo fatal de entrega de textos para o volume 2 de “Metamorfose da Vida”, escritos sobre o envelhecer.
No tema “do habitar” ainda estamos engatinhando. Os “asilos” estão sendo substituídos por “casas de repouso” – que nome horroroso – casas geriátricas, clínicas, ou qualquer outra designação. Muitas vezes não passam de um “depósito de idosos”. Ainda há casas em que há convívios de pessoas com Parkinson, Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas com pessoas com dificuldades de locomoção ou apenas mais velhas (porém com saúde). Nem sempre tem sido uma prática fácil ou salutar.
Os custos destes espaços são inacessíveis para muitas famílias.
Logo, impõe-se o estudo e a proposição de políticas públicas ou comunitárias que deem cabo destas demandas por habitação para as pessoas idosas.
Ah, você que não liga para sua avó, prepare-se porque amanhã haverá mais idosos, e será que a sociedade saberá lhe ajudar ou tratar melhor? Vai ter o “seu cantinho”?
É hora de “cutucar a onça com vara curta”. Afinal, a escolha é sua!.
Autor: Adeli Sell. Professor, escritor, bacharel em Direito, vereador em Porto Alegre. Também escreveu e publicou no site “O velho e a enchente”: www.neipies.com/o-velho-e-a-enchente/
Quem ainda não percebeu das horas que nos consomem, é porque não parou e olhou demoradamente seu ponteiro dos segundos.
Quem não olhou ainda para os ponteiros dos segundos de um relógio e não sentiu a fragilidade da sua vida, não se atentou para a corrida do tempo, contra os seus próprios dias. Não há como não amar um relógio de pulso. Ainda mais quando se tem 10 anos.
E não há como não o odiar, igualmente, vendo em seus segundos, um instante que nos consome, num girar sem fim, sem retorno e sem paradas. Triste destino este, dos relógios, condenados que são a denunciar o tempo todo, em todas as horas, a nossa vida fragmentada.
Entretanto, que alívio ao vermos um relógio quebrado! Inerte, sem ação, como nos lembrando do delírio de um tempo que não importa mais e que a tudo parou.
Nos meus 10 anos incompletos, meu pai tinha uma mesa de cabeceira junto a sua cama. Uma portinhola para seus calçados e, logo acima, uma gaveta.
Quando aberta, via-se três relógios. Uma descoberta maravilhosa para uma criança e um sonho inesperado que nascia naquele momento; vestir meu pulso com um relógio e sair pela cidade. Nem precisaria funcionar!
Mas não o ganhei. Foram anos tentando e até a chave da gaveta pensei em descobrir. Como meu pai viajava muito, teria todo o tempo do mundo para sentar ao lado do móvel, muito próximo…e esperar. E conspirar.
Minha Mãe, que temia mais meu Pai que a Deus, possuía uma cópia da gaveta do móvel infame. Mas nunca se permitiu a abrir, mostrar ou mesmo falar, como por exemplo:
_ Tome, é seu. Mas por um dia! Logo que anoitecer o relógio deverá voltar ao seu lugar. Para o descanso das horas e para o retorno do mofo que abraça sua pulseira.
O que queria um menino em seus 10 anos? Comer chocolate escondido? Tomar banhos nos rios? Expiar fechaduras? E o que um relógio faria de diferença em uma trinca deles, todos abandonados ao fundo de uma gaveta ignóbil?
Sendo óbvio o que um analista falaria, e economizando centenas de sessões, aos 50 anos vi a minha própria gaveta cheia, com 40 deles. Relógios de várias marcas e tamanhos, formatos, cores e lembranças dos dias em que os arranquei das vitrines dos vários lugares onde passei.
Todavia, a gaveta da minha infância permanecia na memória, ainda fechada, com a sua chave escondida.
_O que custava me emprestar, que fosse, o dito relógio suspirado? Murmurava.
_Que mal poderia fazer, senão sofrer o massacre do ponteiro dos segundos, nos 10 anos iniciados, tempos aqueles em que não se tinha qualquer pressa?
Bem, um dia desses, resolvi desapegar dos relógios para chamuscar a nuvem da velha gaveta que me assombrava. Contei 43.
_Vamos vender todos, falei. Menos os três.
Eu explico: Quando meu saudoso Pai nos deixou, herdei de sua misteriosa gaveta, documentos, um porte de arma vencido há 60 anos, carteira de fundador do clube local, papéis, jornais…quanta coisa! E claro, fui presenteado com os três relógios. Mas aí já era tarde para as armadilhas da mente.
Sequer me interessei em saber seus nomes e reservei a eles o fundo escuro, de uma nova gaveta, moderna que os abrigava. Foi a vingança!
Mas era amigo todos, admirando-os de quando em vez, desinteressado na sua pontualidade. Muito amigos, na verdade, pois não há amigo melhor do que um relógio parado, incapaz de denunciar o tempo e de lembrar a você o tempo todo… da sua extinção.
Quem ainda não percebeu das horas que nos consomem, é porque não parou e olhou demoradamente seu ponteiro dos segundos. Ali, vê-se um spoiler da vida que caminha para o fim.
E fui ao joalheiro!
_Senhor! Preciso trocar as pilhas de 40 relógios, mais três.
Eis que encontrei um novo amigo no tempo, e que não usava qualquer relógio em seu pulso, apesar de sua teimosia em consertá-los. Ter um amigo joalheiro é uma espécie de garantia pelos anos. A figura de um guardião da passagem das horas.
Combinando preços e prazos, o bom homem, inimigo das eras, imagina-se, perguntou:
_Por que você não procura por um automático?
_Há, que desejo oculto esse, respondi.
Isso porque os relógios automáticos são como nossos melhores sonhos; basta sacudi-los um pouco e logo tornam a funcionar.
_O que você me indica?
_Indico um Tissot. Tenho a sua máquina, basta encontrarmos uma caixa adequada.
Retornando à casa, errei pela cidade com este curto diálogo na cabeça. E à noite, sempre à noite, há surpresas…e abri a gaveta esplendorosa, onde escondia meu desconsolo e meu vazio dos 10 anos ou mais. A negação vestida com pulseira. A indignação oculta por tudo o que marca o tempo…
Fui até o seu fundo… e quase caí!
Entre os três relógios que meu Pai deixou, estava um Tissot.
E foi o Universo me passando um pano no rosto, lembrando que, em se tratando de sincronia, somos homens disformes e desafinados. Caminhei pela casa com o relógio em mãos e ao meu gosto; com ele devidamente parado.
Mas ao fim dos primeiros passos, o ponteiro dos segundos se mexeu. Quase caí novamente! E então dei mais passos, mais uns, outros mais e o relógio automático mostrou a que veio: funcionou perfeitamente!
Coração disparado, com um nó de marinheiro malfeito a ser engolido, ajustei os ponteiros sem graça das horas e ele trabalhou a noite toda. Isso após 13 anos de descaso. Pois é: eu sabia que as coisas que mais importam estão próximas a nós, sem a necessidade de mover o mundo para conquistá-las. Mas precisava receber um recado tão claro?
Vou deixar em meu testamento incógnito, uma ordem expressa! Ao fechar a tampa do ignominioso esquife, certifiquem-se todos que em minha mão esquerda o Tissot esteja funcionando. Ele agora não terá forças para muito tempo; benfeito! Que ironia, aliás. Ditou o tempo nesses anos todos e agora, logo mais, a sua morte será programada.
Preciso partir com ele no meu braço, pois tenho muitas perguntas a fazer ao meu estimado pai. E de respostas, que divã algum poderá me oferecer. Em seu erro, ou, em seu acerto, ao não me presentear, evitando a corrida dos dias e anos e ensinando que a espera também pertence ao seu tempo.
Voltando à gaveta, sem qualquer interesse nos demais, encontrei a abominável chave que abria a outra, a antiga, nos anos em que eu pensava, que um relógio poderia me elevar e despender o tédio nos passeios das minhas tardes de domingo.
_Que ela fique onde está. Não abrirá mais nada! Pensei aos gritos.
Se bem que há muitas outras gavetas trancadas a vasculhar, para justamente abrir, conhecer, entender, libertar-se de tantos desejos menores de nossos primeiros anos, muitos deles negados, e, em seguida, jogar fora todas as chaves.
A engorda é tirar a areia de uma praia e colocar em outra para alargar a sua faixa de área litorânea. Os homens de negócios costumam dizer que assim vão dar mais trabalho aos comerciantes das praias e os turistas terão uma faixa mais larga de areia para se bronzearem e passearem.
Os homens! Sempre eles! E agora inventaram um negócio meio esquisito e que pode causar grande impacto no meio ambiente, mas como é para o bem do povo e da boniteza das praias eles dizem ser necessário o feitio deste trabalho chamado de “engorda”. Mas que raios é essa tal de engorda? É pra engordar ou deixar a praia magrinha como as modelos brasileiras? Brincadeiras à parte, vamos ao importante.
A engorda é tirar a areia de uma praia e colocar em outra para alargar a sua faixa de área litorânea. Os homens de negócios costumam dizer que assim vão dar mais trabalho aos comerciantes das praias e os turistas terão uma faixa mais larga de areia para se bronzearem e passearem.
No entanto, devemos pensar primeiro naquele local de onde será retirada a faixa de areia mexendo com o habitat e com a alimentação dos peixes e outros animais marinhos. A engorda pode ser boa para os turistas e os comerciantes das praias, mas não é uma boa ideia nunca mexer com o meio ambiente.
Não se deve mexer com o meio ambiente desse jeito. É preciso um grandioso estudo de profissionais e técnicos em meio ambiente para saber quais consequências teremos no futuro de onde foi retirada esta areia e no local onde ela foi colocada.
Aumentar a área litorânea de uma praia pode ser boa ideia para quem costuma ver as coisas com ambição e necessidade de comércio local, mas para os peixes e animais marinhos isso pode causar grandes danos inclusive as mortes desses animais.
Fazer a engorda de uma praia não é coisa fácil. Tudo o que mexe com o meio ambiente deve passar pelo crivo de técnicos especializados naquilo que se está em questão, pois poderemos causar um grande desastre ecológico num futuro breve.
Especialistas costumam afirmar que a engorda de uma praia pode evitar a erosão de morros e dunas, como é o caso do que se está sendo visto na praia de Ponta Negra em Natal, Rio Grande do Norte. Realmente, o morro vem se desmanchando aos poucos e criando falésias ao seu redor com o movimento das marés.
Contudo, proteger uma parte ambiental tão linda que são os morros para modificar a paisagem de outras que são os habitats dos animais marinhos pode não ser uma ideia tão boa assim como pensam os especialistas. É preciso cautela.
Há de se pensar que o meio ambiente não resiste ao movimento desnecessário dos homens e que ele foi feito conforme às mãos de um criador qualquer dentro das suas bonitezas de regularidades e capacidades naturais.
O Brasil perdeu quase 70 mil hectares de dunas, praias e areias entre 1985 e 2020, há 36 anos, eram 451 mil hectares; em 2020, apenas 382 mil hectares, segundo o MapBiomas (rede composta por ONGs, universidades e empresas). Os motivos dessa perda vão desde o crescimento de vegetação inapropriada nos locais, devido a ação dos homens, a ocupação imobiliária e o grande crescimento de prédios de frente às praias mais belas do país. Vendo por este lado a engorda parece necessária, sem dúvidas, mas tudo exige cuidados.
Segundo a grande maioria dos biólogos, a engorda é menos prejudicial do que a colocação de barreiras físicas nas praias, mas podem causar mortandade de fauna e flora na área doadora da areia quanto na que vai receber, além do problema que pode vir a ser acarretado com o efeito estufa.
Por esta razão, é que para se fazer a engorda em uma determinada praia é necessário a licença de órgãos públicos ambientais que geralmente pedem uma série de documentos com perguntas às autoridades que devem ser respondidas de forma técnica e com coerência para que o serviço possa ser autorizado. Não é tão simples fazer uma engorda, como já disse, há uma série de fatores que podem complicar o meio ambiente quando se mexe com ele sem os devidos cuidados.
Do ponto de vista urbanístico, toda praia necessita de uma engorda com o tempo, devido ao movimento das marés que causam a erosão nas suas dunas, e que podem trazer a água do mar para os calçadões e avenidas de frente às praias. Mas, se estamos precisando engordar as praias, como diz mamãe, é porque elas estão famintas e precisando de alimentos, estes que foram alterados pelo abuso da destruição das florestas, do aumento de veículos e dos seus combustíveis que agridem o meio ambiente causando os desastres climáticos mais diversos que o mundo tem visto nos últimos tempos.
Quando construímos prédios, shopping centers e outros prédios residenciais ou não, mexemos com o meio ambiente e consequentemente as cidades litorâneas sofrem com essas intervenções que vão desde a construção de avenidas, muros, derrubadas de árvores, devastação de vegetações nos morros e costas, logo as praias começam a sentirem a erosão e não têm para onde se expandirem.
O mar vai tomando conta daquilo que já foi seu, ou seja, o mar vai buscar o alimento que lhe foi tirado uma vez o deixando magro e sem a sua boniteza. Na verdade, era para o homem não interferir tanto no meio ambiente, mas como se desenvolver e crescer sem fazer isso? Eis a grande questão. As nossas cidades litorâneas são as mais bonitas e as que mais sofrem com as erosões das suas dunas e morros.
Para continuarmos, a área que doa a areia pode sofrer diversos problemas com a sua fauna e flora passando por desequilíbrios da cadeia e teia alimentar até a sua morte. A engorda, também, pode introduzir cistos de algas nas áreas de onde saíram a areia, por exemplo. Isso é só alguns dos problemas mais comuns que podemos citar, mas na verdade podem acontecer muitas outras coisas.
O engordamento das praias pode fazer com que o carbono que fica no fundo do mar possa subir e se constituir nos gases de efeito estufa, causando diversos impactos ao meio ambiente. Todos nós estamos sofrendo com um clima desordenado.
Não é que eu seja contra o desenvolvimento das cidades. O que exijo e peço das autoridades são cuidados técnicos e responsáveis por esses tipos de serviços que mexem com o nosso meio ambiente, pois não sabemos até quando a natureza vai resistir a tantos impactos negativos causados pelos homens.
As cidades litorâneas exigem mais cuidados ainda, pois as suas belezas naturais são maravilhosas e mexermos com o que foi criado por uma divindade suprema, um Bem maior do que nós, pode não ser coisa boa, pois acabamos prejudicando a natureza quando não nos atentamos para regularizar serviços e obras necessários para os nossos crescimentos e desenvolvimentos.
Vamos engordar as praias que apenas necessitarem desse tipo de serviço, mas sem exageros, pois no país já temos várias cidades fazendo isso. Mexendo com a nossa natureza e alterando a paisagem natural que vai se degradando por falta de sensibilidade dos homens que constroem casas e prédios aonde chegam sem se preocuparem com o meio ambiente.
Assim, deixo vocês hoje com a minha reflexão sobre o serviço da engorda e com o poema “Mar” da grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen que nos diz
“Mar, metade da minha alma é feita de maresia/Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,/Que há no vasto clamor da maré cheia,/ Que nunca nenhum bem me satisfez. /E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia/Mais fortes se levantam outra vez,/Que após cada queda caminho para a vida,/Por uma nova ilusão entontecida./E se vou dizendo aos astros o meu mal/É porque também tu revoltado e teatral/Fazes soar a tua dor pelas alturas./E se antes de tudo odeio e fujo/O que é impuro, profano e sujo,/É só porque as tuas ondas são puras.”
Embarquemos na pureza das ondas do mar, permitindo que ele viva até ficar velhinho sem engordas, sem intervenção humana, apenas sendo o que ele é, lindo e bonito com um barquinho à deriva e um pescador a contar as suas histórias.
Cidade Educadora não é, em definitivo, um título, uma logomarca ou um projeto com fim em si mesmo, mas uma prática política que procura fomentar a participação social, o espírito de coletividade e a responsabilidade de todos e todas no processo de educação como forma de melhorar, substancialmente, a qualidade de vida da população das cidades.
Sabemos que são grandes os desafios dos gestores municipais quando aderem à “Carta de princípios das Cidades Educadoras”, movimento que nasceu em Barcelona, com a intenção de promover maiores e melhores condições de viver e conviver nas cidades.
Esta proposta implica uma metodologia, uma abordagem, uma prática de gestão que considere o protagonismo e o reconhecimento dos diferentes sujeitos sociais que fazem parte da cidade. Não é, em definitivo, um título, uma logomarca ou um projeto com fim em si mesmo, mas uma prática política que procura fomentar a participação social, o espírito de coletividade e a responsabilidade de todos e todas no processo de educação. A Cidade Educadora não é um projeto de governo, mas um conjunto de políticas públicas e metodologias com vistas a transformação do território em espaço educativo.
O embrião do movimento “Cidades Educadoras” foi originalmente lançado em Barcelona, em novembro de 1990, no I Congresso das Cidades Educadoras. As cidades presentes pactuaram a luta em prol de um objetivo:trabalhar juntas em projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida dos habitantes.
O documento norteador para as cidades que fazem parte do projeto, a “Carta das Cidades Educadoras”, foi lançado nesse mesmo Congresso e contou como principais referências: a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Declaração Mundial da Educação para Todos (1990) e a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001). Dentre os princípios da Carta, destacam-se:
Trabalhar a escola como espaço comunitário;
Trabalhar a cidade como grande espaço educador;
Aprender na cidade, com a cidade e com as pessoas;
Valorizar o aprendizado vivencial;
Priorizar a formação de valores.
Nossa cidade, Passo Fundo, fez adesão à “Carta de princípios das Cidades Educadoras” no ano de 2021, quando a Câmara de Vereadores de Passo Fundo aprovou, em 19 de abril, o Projeto de Lei nº 18/2021, de autoria do Executivo Municipal, que autorizou a adesão do Município à Carta das Cidades Educadoras e o ingresso na Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE).
Deste período para cá, muitas questões têm sido levantadas e problematizadas em nossa cidade, a partir do que se anuncia como Cidade Educadora.
Os professores e professoras municipais, por exemplo, ainda não vislumbram, com clareza, qual é o seu papel numa Cidade Educadora? Como uma Cidade Educadora não valoriza mais seus professores e professoras? Por outro lado, organizações sociais e populares que atuam em pautas de cidadania e de direitos humanos na cidade reclamam que não foram ouvidas nem convidadas para discutir e apropriar-se desta ideia da Cidade Educadora, que não deve restringir-se às ações, iniciativas ou programas governamentais.
A não valorização dos professores e a ausência das organizações sociais e populares nesse debate fere um dos princípios da Carta das Cidades Educadoras, qual seja, a prática da cidadania democrática, a ser pautada pelo respeito, pela tolerância, pela participação, pela responsabilidade e interesse pela coisa pública e todos os seus projetos, serviços, bens ou programas.
Registramos, na sequência, esforços coletivos que vem sendo feitos por pessoas e por organizações sociais nos últimos anos, almejando que Passo Fundo realmente seja uma Cidade Educadora. Agora, neste momento histórico e de realização da eleição municipal, estes esforços deveriam abranger o conjunto da sociedade e das organizações interessadas no assunto.
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Conhecemos, em 2022, através do Congresso Municipal do CMP Sindicato, com o tema: Cidade educadora: o que temos a ver com isso”?, a experiência de uma cidade que, antes da nossa, já vivencia e pratica a ideia de uma cidade educadora.
Adria Brum de Azambuja, secretária de educação da cidade gaúcha de Soledade, ao ser questionada sobre o que é essencial para que uma cidade vivencie as intencionalidades e os princípios da Carta acima referida, responde:
“uma Cidade Educadora não se limita a vivenciar os recursos pedagógicos somente nas escolas, mas se estende como agente educativo por todo seu território e a todos os seus cidadãos, é uma cidade que se relaciona com todo seu potencial estético, ambiental, de comunicação e criação, mediante o diálogo intersetorial com e para a cidade”.
E acrescenta:
“pensar a cidade na perspectiva educadora supera a ideia de mais um projeto coletivo ou uma temática participativa, mas configura-se numa intencionalidade política que demanda ações planejadas e articuladas a partir do processo educativo. Não é algo dado, não está pronto, não é tarefa fácil nem uma tarefa individual”.
Márcio Taschetto, professor universitário, entusiasta e estudioso do tema Cidades educadoras, em convite para I Encontro sobre Cidades Educadoras e Inteligentes: desafios dos municípios do século XXI, em Passo Fundo, 13 e 14 de setembro de 2017, assim escreveu: “na Cidade Educadora e Inteligente, a escola é parte essencial do processo educativo e assume o território como campo de pesquisa, currículo e lugar de estudo. Aberta à comunidade, ela envolve locais e se reconhece no território, atuando em prol de suas transformações”. Leia mais:https://www.neipies.com/por-uma-cidade-educadora-e-inteligente/
Tiago Machado, em publicação neste site, também refletiu sobre o tema afirmando que “cidade Educadora não é, de longe, uma ação específica da Secretaria Municipal de Educação, os professores/as e as suas escolas, a partir das respectivas comunidades escolares, podem fazer importantes ligações e interfaces com as demandas e as necessidades das comunidades locais. A escola pode se tornar um centro irradiador de estudos, de articulações e de realização de atividades que reúnam os diferentes sujeitos sociais das comunidades. Os professores e professoras de uma Cidade Educadora precisam ser valorizados, reconhecidos e convidamos para serem também os protagonistas da mudança das realidades, a partir dos territórios que circundam as comunidades escolares”. Leia mais:https://www.neipies.com/por-onde-passa-o-futuro-das-cidades-educadoras/
A partir das reflexões suscitadas, depreende-se que uma cidade será Cidade Educadora quando a mesma for compreendida e, principalmente, vivenciada como território educativo. O elemento humano, nesse cenário, desempenha papel fundamental, eis que sem ele não há cidade nem tampouco Cidade Educadora. Antes de qualquer coisa, para que a Cidade seja Educadora há necessidade de humanizá-la. É o humano que nos torna iguais e nos confere o sentido de pertencimento à cidade e ao território.
Como cidadãos desta cidade que adotamos e amamos tanto, sugerimos que, em 2024, durante o processo eleitoral, a cidade de Passo Fundo confronte-se com as ideias e propósitos de uma Cidade Educadora sustentada nos princípios de sua Carta (https://www.edcities.org/pt/carta-das-cidades-educadoras/ ). Que se levantem questões sobre o que ainda precisamos fazer para que Cidade Educadora não fique apenas em anúncios, viagens de intercâmbio ou ações e iniciativas governamentais como a implantação de Escolas Públicas (de Música, de Trânsito, Escola das Profissões, …). Que se abram espaços para a participação popular onde se discuta sobre a cidade que queremos, sobre projetos e ações públicas que efetivamente melhorem a qualidade de vida de nossos habitantes.
Que, ao renovar nosso amor pela cidade, exerçamos dever cívico de construí-la inclusiva, com participação social, com reconhecimento de todos os sujeitos sociais, indistintamente. Que a educação seja promotora de mudanças necessárias para que Passo Fundo seja um lugar bom de viver, de sonhar e de realizar dignidade humana, cidadania e felicidade. Que sejamos, de fato e de direito, uma Cidade Educadora a partir de nossa participação cidadã individual e coletiva, a partir das categorias do protagonismo e do reconhecimento.
Educadora é a cidade que articula, reconhece e promove todas as formas de educar, como também os atores sociais que fazem parte destas. Não exclui escolas do processo de educação global, mas considera as mesmas referências irradiadoras e aglutinadoras de cultura, arte e educação popular, a partir das comunidades onde estão inseridas.
Passo Fundo deve se assumir uma “Cidade Educadora”?
A Psicologia existe para estar do lado do ser humano, com um caráter de cuidado humanista. Ela existe como fonte de apoio, de escuta, uma área que luta pela humanização das pessoas, pela manutenção de seus direitos, trabalhando em prol da saúde mental e psicológica de todos.
Vivemos em um mundo que gira num ritmo muito acelerado. Cada vez mais temos prazos, obrigações e metas a serem cumpridas, de maneira cada vez mais rápida. E, ainda assim, quando terminamos de fazer as coisas importantes que precisamos fazer, somente o cansaço prevalece. Parece que perdemos a capacidade de somente aproveitar o tempo, e de ter um dia de descanso e paz na rotina normal, e não somente nos fins de semana (o famoso “sextou”) e nas férias (ou as de inverno, ou as no final de ano).
O filme “Divertida Mente 2”, assim como seu antecessor, aborda questões da mente humana de maneira brilhante, introduzindo diversas emoções, com a emoção nova mais destacada: Ansiedade. A produção da Disney retrata como essa emoção (que, ao longo de nossa evolução como espécie foi muito importante e, mesmo atualmente, existem situações em que ela é necessária) afeta a saúde mental de um ser humano, e como não saber lidar com ela e com as pressões do mundo externo podem afetar a pessoa como um todo, e causar consequências graves para a sua qualidade de vida.
Como destacado em Divertida Mente (em que a personagem Riley tem 14 anos, sendo alguns anos mais velha do que no primeiro filme da saga), quando crescemos, existem cada vez mais pressões, obrigações e exigências do mundo e da sociedade sobre as nossas vidas.
Na adultez, valores como produtividade, lucro, competitividade, individualismo e meritocracia são cada vez mais destacados no nosso modo de viver capitalista. Ao longo dos dias, semanas e meses, a sensação é de que até quando parados, continuamos em movimento, pois não podemos nos dar o direito de descansar e aproveitar um momento de paz verdadeiramente sem nos sentirmos culpados por tal.
Frases como “Trabalhe enquanto eles dormem” ou “Se eu consegui, você também consegue”, dominam as propagandas audiovisuais, como se fossem um incentivo para que os “guerreiros” se engajem numa batalha para derrubar seus adversários a qualquer custo e lutem pelo o que sempre deveria ter sido seu. Esses conceitos estão intrinsecamente relacionados com a meritocracia. Nesse modelo de vida, de acordo com os lemas já citados, somente os mais trabalhadores e preparados teriam para si alguns prêmios como a felicidade, a ascensão financeira e a realização pessoal.
Isso também é muito retratado nas mídias sociais, onde os “Coaches” aparecem cada vez mais com propagandas, propostas de receitas do sucesso ou propondo mudanças de hábito cada vez mais desumanas (geralmente baseadas em teses sem embasamento científico) para que alguém faça uma transformação radical em sua vida e que, somente com essa transformação, a pessoa poderia se considerar realizada e feliz.
Essas situações e a busca incessante por sucesso a todo custo podem levar ao desenvolvimento de transtornos como o de Burnout.
A transformação de um indivíduo único em um sujeito neoliberal, que produz todos os dias sem ter tempo para observar suas próprias emoções e subjetividade, acaba por modificar o modo como o indivíduo se enxerga, como ele vê o mundo ao seu redor, alterando continuamente suas relações interpessoais. Essas modificações se expressam diariamente nas nossas rotinas, levando a quadros de sofrimento, infelicidade, sentimentos de inferioridade, além de um distanciamento entre as pessoas, com cada vez menos conexões e laços verdadeiros e vitais entre as pessoas.
Aqueles que não conseguem atingir patamar de perfeição absoluta, por diversas razões, se sentem inferiores, menos capazes, sentindo que deveriam se esforçar mais, se empenhar mais, mesmo que isso não seja verdade, até por que a situação pessoal de cada pessoa não ser igual à da outra.
Além do Burnout, já citado neste ensaio, não são raros os diagnósticos de transtornos de depressão e ansiedade em pessoas que passam por esse tipo de situação, uma vez que as pressões pessoais e sociais que recaem sobre a pessoa muitas vezes se tornam um fardo grande demais para se carregar por conta própria. E, com o apagamento das individualidades e o isolamento das pessoas decorrente desse sistema que enxerga os outros como rivais e não como fontes de apoio, as consequências desse fardo podem se tornar devastadoras para a saúde mental de alguém em sofrimento.
Mais do que nunca, a importância de uma área de conhecimento que enxergue o ser humano como um ser humano, disponibilizando ferramentas para ajudá-lo a superar seus traumas e dificuldades: a Psicologia.
Não somos apenas uma máquina de produtividade, ou apenas mais um que tenta sem intervalo bater metas praticamente impossíveis. Somos gente com emoções, com história de vida individual, que tem o direito de ser ouvido, respeitado, amado e, principalmente, de não ser visto somente como número ou estatística em algum banco de dados de produtividade e, sim, como um ser humano digno de descanso e de não ser perfeito em todos os momentos. Afinal, está tudo bem em não estar bem o tempo inteiro.
A Psicologia existe para estar do lado do ser humano, com um caráter de cuidado humanista. Ela existe como fonte de apoio, de escuta, uma área que luta pela humanização das pessoas, pela manutenção de seus direitos, trabalhando em prol da saúde mental e psicológica de todos.
Atualmente, a Psicologia assume também um papel de resistência pelo direito das pessoas serem quem elas são e pelo nosso direito de nos expressarmos, comunicarmos e nos conectarmos uns com os outros de maneira verdadeira. Não precisamos estar produzindo algo o tempo todo como máquinas infalíveis para sermos felizes, dignos de amor, carinho e respeito.
Todos nós podemos não ser perfeitos, e está tudo bem! A Psicologia e seus profissionais estão aqui para nos ajudar a descobrir que viver é muito bom.
Autor: Luís Gustavo Dalchiavon Pies, estudante de Psicologia.
A meritocracia se torna uma cilada, pois produz “frustrações profundas” para todos, sentimento de impotência e desesperança nas camadas pobres, “ressentimentos sem precedentes dentro da classe média” e “ansiedade incompreensível dentro da elite”.
A compreensão da meritocracia requer um cuidadoso e detalhado olhar, pois se trata de um termo polissêmico, complexo e problemático. Não se trata de uma simples definição que facilmente pode ser resolvida com a ida ao dicionário ou com a invocação o senso comum, pois requer investigação de forma mais profunda sobre seu desdobramento sociológico, histórico, filosófico e ideológico.
Há um consenso entre os diversos estudiosos sobre a temática que o termo meritocracia tem sua origem semântica na obra The Rise of the Meritocracy (A Ascensão da Meritocracia, 1958, sem tradução para o português) do sociólogo inglês Michael Young (1915-2002). Para o sociólogo, a meritocracia se colocaria como um sistema de oposição aos privilégios aristocráticos que perduram na história humana.
A obra distópica de Young (1958) propunha que a Grã-Bretanha mudasse seu critério de organização social, imaginando que o mérito passaria ser o fator que as lideranças utilizariam para selecionar entre as massas os indivíduos que teriam um maior grau de inteligência e de esforço individual, para ocupar as profissões mais bem remuneradas e os cargos políticos mais importantes.
Na distopia de Young (1958), haveria testes sofisticados, cada vez mais eficientes e eficazes, os quais permitiriam prever o coeficiente de inteligência dos indivíduos a tal ponto que seria possível determinar o futuro de cada pessoa, logo após seu nascimento. Assim, a estratificação, antes balizada pelos laços de sangue, agora seria definida pelo mérito “igualmente excludente”.
No final da obra, Young (1958) descreve uma revolta social das classes baixas contra o sistema meritocrático, pois ele acabou por produzir uma elevada eficiência de uma sociedade aparentemente justa, mas profundamente desigual.
Assim, conforme ressaltam Mazza e De Mari (2021, p. 4) em estudo recente, “o texto de Young não se propõe fazer uma discussão analítica dentro dos rigores acadêmicos sobre o significado da meritocracia, mas apresenta as consequências contraditórias pela adesão ao princípio como resultados de uma ideologia de organização social”.
É importante ressaltar que, seguindo os passos de Mazza e De Mari (2021), bem como os estudos de Barbosa (2008), embora o termo meritocracia apareça na segunda metade do século XX, seu nascimento enquanto ideia se confunde com o período moderno europeu, pois foi nesse contexto que a sociedade começou a questionar os privilégios hereditários destinados aos nobres e aristocratas. Se tivermos por referência que “a apologia do liberalismo à igualdade” constitui um dos valores meritocráticos de um processo de organização social, então é possível dizer que a concepção de meritocracia lança suas raízes na gênese do pensamento moderno.
Também é possível afirmar que a seleção por mérito pode manifestar-se tanto como um “valor negativo”, na medida que recusa os privilégios e afirma que nenhum indivíduo pode ter seu destino determinado pelo nascimento e classe social, quanto um “valor afirmativo”, na medida em que as características particulares dos indivíduos se tornam critérios para distingui-los dos demais para obter o merecimento da posição ou status que ocupa. “A meritocracia entendida como negação de privilégios é aceita por todos como uma ferramenta contra a desigualdade social, mas quando aplicada como afirmação do merecimento, justifica as desigualdades” (Mazza; De Mari, 2021, p. 5).
A distinção da “meritocracia como negação” e a “meritocracia como afirmação” é importante, pois, enquanto a primeira tem como consequência social “a tentativa de equalizar oportunidades de desenvolvimento e mobilidade social”, a segunda “se converte na verificação das capacidades individuais”, o que gera individualismo, competição, distinções arbitrárias, consequências paradoxais, “pois o mérito passa de instrumento de luta contra os privilégios a um novo critério de discriminação da sociedade moderna” (Mazza; De Mari, 2021, p. 5–6). É nessa segunda perspectiva que a meritocracia se torna um ideal ético na racionalidade neoliberal.
No seu polêmico e provocativo ensaio A cilada da meritocracia, o professor de direito privado Daniel Markovits (2021) denuncia o mito fundamental da sociedade neoliberal que alimenta a desigualdade, destrói a classe média e consome a elite. A origem de sua denúncia, transformada posteriormente em livro, deu-se quando, ao ser convidado a discursar para os formandos de 2015 da Escola de Direito da Universidade de Yale, “em vez do tradicional discurso laudatório”, Darkovits optou por “partilhar com seus pupilos uma reflexão sobre as causas, engrenagens e consequências da meritocracia” (Vieira, 2021, p. 7).
As reflexões de Darkovits (2021) são oportunas, pois, além de “dissecar o regime meritocrático norte-americano, com especial atenção às distorções que provoca no sistema educacional e no mundo do trabalho, aumentando a desigualdade” (Vieira, 2021, p. 11), ajudam-nos a entender a falaciosa retórica da Tirania do Mérito (Sandel, 2021) ou das medições que reforçam as desigualdades (Fávero; Oliveira, Faria, 2022), ou ainda, “fornecer combustível intelectual para a desconstrução da armadilha meritocrática” e possibilitar “a construção de um regime de ‘igualdade democrática’, centrado no valor inerente a cada ser humano, e não numa falsa meritocracia” (Vieira, 2021, p. 11, grifos do autor).
Darkovits (2021, p. 17–18) inicia a introdução do seu ensaio dizendo que “mérito é uma farsa”, pois, “a meritocracia promete promover a igualdade e a oportunidade”; promete “compatibilizar as vantagens privadas com o interesse público, ao afirmar que riqueza e status devem ser obtidos por conquista”; pretende “unir a sociedade em torno de uma visão comum de trabalho árduo, competência e merecida recompensa”, mas, na prática, “a meritocracia já não funciona como promete”.
Um olhar atento mostra que “as crianças de classe média perdem para as crianças ricas nas escolas”, os adultos da classe média “perdem para a elite de formação superior no trabalho” e, assim, “bloqueia as oportunidades para a classe média”, que se sente culpada por perder “a competição por renda e status”.
A própria elite se torna vítima da meritocracia, pois exige altos investimentos de tempo e dinheiro na educação dos filhos e “os empregos meritocráticos exigem que os adultos da elite trabalhem com uma intensidade esmagadora”, o que leva a uma “concorrência vitalícia implacável para garantir renda e status por meio de sua exagerada dedicação ao trabalho”.
A análise crítica de Markovits (2021, p. 18–22) é cirúrgica quando diz que “a meritocracia atual concentra privilégios e sustenta desigualdades tóxicas”, visto que se tornou “um mecanismo para a concentração e transmissão dinástica de riqueza e privilégios de geração para geração”. Por isso que “o próprio mérito tornou-se um simulacro de virtude, um falso ídolo” que precisa ser exposto, percebido e combatido.
O mérito é um falso ídolo porque faz crer que a meritocracia carrega em si o “senso de justiça e bondade”, que os privilégios foram conquistados com esforço e trabalho, mas, ao mesmo tempo, esconde as condicionalidades dessas conquistas e as desigualdades produzidas pelo jogo meritocrático. Enquanto “o brilho da meritocracia seduz a imaginação e captura o olhar”, identificando-se como moral básica para a experiência cotidiana do jogo democrático, “dissimula os danos” e progride, impondo “uma nova e opressiva hierarquia” das e nas elites que “monopolizam não só a renda, a riqueza e o poder, mas também as atividades, as honras públicas e o apreço”.
A meritocracia é cruel e desumana com os pobres, com os destituídos de condições materiais, com os que recebem uma educação precária, com os que não possuem, nos termos de Bourdieu (2001), capital econômico, cultural, social e simbólico. Mas, para Markovits (2021, p. 22–25), a meritocracia oprime também a classe média, pois “expulsa a maioria dos cidadãos para as margens da sociedade, condenando as crianças de classe média a escolas menos brilhantes e os adultos de classe média a empregos medíocres”. É um equívoco, frequentemente assimilado pelo senso comum, confundir “meritocracia com igualdade de oportunidades” (Markovits, 2021).
Embora a meritocracia tenha sido adotada retoricamente como estando à serviço da igualdade de oportunidades, proporcionando virtualmente uma suposta mobilidade de classe, “atualmente ela mais estaciona do que favorece a mobilidade social” (Markovits, 2021). De forma astuta, “a meritocracia modifica empregos de modo a favorecer os graduados super instruídos das universidades de elite” (Markovits, 2021), “faz do desempenho escolar e laboral a imagem da honra”, ao mesmo tempo que “frustra as tentativas de satisfazer os padrões que ela própria proclama, garantindo que a maior parte das pessoas não os atinja”.
Outro fator importante apontado por Markovits (2021, p. 27), diz respeito à forma como a meritocracia divide a sociedade, em que se produz uma “desigualdade meritocrática” que “inspira hostilidade” e “alimenta um conflito de classes sistemático que deforma a vida social e política”. Tal conflito gera “ressentimento e desconfiança” contra “os ideais e as instituições que a meritocracia valoriza”. Facilmente, o ressentimento e a desconfiança se transformam em discurso de ódio contra os diferentes, os indesejados, os estranhos, os oponentes e os rotulados como “culpados”.
O Brasil vive esse cenário quando a polarização política ganha traços de ressentimentos convertidos em discurso de ódio às instituições ou a grupos que supostamente se colocam como obstáculos à suposta e mal compreendida liberdade de expressão e a participação do ilusório jogo meritocrático.
Seguindo os propósitos deste escrito, resta dizer que a meritocracia é peça chave para compreender a lógica interna da racionalidade liberal, pois concretiza tanto os princípios quanto as ações que dão materialidade à referida racionalidade. Individualismo, competição, competitividade, empresariamento de si mesmo, livre iniciativa, flexibilidade, redução dos encargos sociais e dos direitos sociais, mínima intervenção estatal da economia, autogestão e autorregulação do mercado, flexibilização, globalização da economia, ethos empreender, eficiência, eficácia, gerencialismo são alguns dos tantos termos que caracterizam a racionalidade neoliberal que tem colonizado o mundo da vida nas últimas décadas, inclusive no campo educacional escolar.
Conhecer e compreender essa racionalidade colonizadora constitui uma estratégia importante e central para descortinar as armadilhas sedutoras que dominam corpos e mentes na triste epopeia neoliberal que transformou o planeta terra e a própria humanidade em objetos subservientes ao deus mercado, em que tudo e todos são reduzidos à condição de mercadoria. Nesse processo de transformação da vida e das relações em bens mercadológicos, a apropriação da meritocracia pela racionalidade neoliberal ocupa um lugar estratégico importante de convencimento e de sedução.
Conforme bem qualifica Markovits (2021, p. 28–30), “o brilho da meritocracia sequestra a imaginação e distrai a atenção analítica”, ao mesmo tempo que desmobiliza o “espírito crítico” e produz “um poço profundo de descontentamento”. O discurso amplamente difundido de que “qualquer um pode ter sucesso”, de que a “educação nunca recebeu tanto dinheiro nem foi tão acessível como na atualidade” e de que empregos e carreiras “agora estão cada vez mais abertos ao esforço e ao talento”, torna-se falacioso quando confrontado com as evidências empíricas do aumento da “desigualdade meritocrática”.
Assim, a meritocracia se torna uma cilada, pois produz “frustrações profundas” para todos, sentimento de impotência e desesperança nas camadas pobres, “ressentimentos sem precedentes dentro da classe média” e “ansiedade incompreensível dentro da elite”. A cilada da meritocracia se torna mais eficiente quando se torna um dispositivo educacional doutrinador da racionalidade neoliberal.
O texto aqui apresentado é uma parte do Capítulo intitulado “A meritocracia como ideal ético da racionalidade neoliberal e suas implicações na educação” (Pereira, Fávero, Costa e Fochesatto, 2024) publicado na décima quarta coletânea do Gepes/PPGEdu/UPF. Para os que tiverem interesse em acessar a coletânea completa, segue o link de acesso ao ebook gratuito:
FÁVERO, Altair Alberto; OLIVEIRA, Julia Costa; FARIA, Thalia Leite de. Crítica às “medições” em educação à luz da teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade. Revista Internacional de Educação Superior – Riesup, Campinas/SP, v. 8, p. 1–16, 2022. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/riesup/article/view/8665579 Acesso em: 23 out.2023.
MARKOVITS, Daniel. A cilada da meritocracia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
MAZZA, José Giordano; DE MARI, Cezar Luiz. Meritocracia: origens do termo e desdobramentos no sistema educacional do Reino Unido. Pro-Posições, Campinas/SP, v.32, e20190063, p. 1–22, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pp/a/RgrxhFhvFqnLwSGcdZ3VMky/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 13 out. 2023.
PEREIRA, Taís Silva; FÁVERO, Altair Alberto; COSTA, Adriana; FOCHESATTO, Ana Luiza. A meritocracia como ideal ético da racionalidade neoliberal e suas implicações na educação. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; CENTENARO, Junior Bufon (Orgs.). Políticas Educacionais e Neoliberalismo. Porto Alegre: Livrologia, 2024, p.613-630.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Prefácio. In: MARKOVITS, Daniel. A cilada da meritocracia.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, p. 7–16.
Reproduzimos, nesta Seção do site, entrevista com ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, concedida à Revista Radis número 259/abril 2024. Esta entrevista demonstra os desafios do Brasil para conciliar agenda econômica/de desenvolvimento com as questões emergentes do meio ambiente.
Filha dos seringais
Não foi fácil encontrar uma brecha na rotina da ministra. Marina não para. Da estiagem em Roraima às enchentes no Acre, de um encontro com jovens no Rio de Janeiro onde falou sobre justiça climática em tempos de transformações às reuniões em seu gabinete em Brasília para discutir o mercado de carbono e a transição para a economia verde. Sua fala é um percurso por todos os lugares por onde passa: Vale do Taquari, Brasileia, São Gabriel da Cachoeira, Curralinho. Nesse trajeto, ela nos convoca a todos.
Da pequena comunidade de Breu Velho, onde nasceu no Seringal Bagaço, em Rio Branco, ela guarda muitas histórias e a casinha em miniatura onde morou com a avó. “Para nunca esquecer de onde eu venho”. Aos 66 anos, mãe de quatro filhos, três vezes candidata à Presidência da República, Maria Osmarina da Silva Vaz de Lima — nome de batismo — está cada vez mais aguerrida.
Em 2023, durante uma reunião do G-20, indagou de forma direta: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer a diferença?”
Aqui, ela esboça uma resposta. Com a palavra, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Ministra, há 17 anos, a senhora esteve na capa de Radis e, já naquele momento, alertava para os efeitos do aquecimento global na vida das pessoas, em especial entre os mais vulnerabilizados. O que mudou de lá para cá?
Acho que a gente tem uma mudança paradoxal. A primeira delas é que ampliou a consciência. Há 17 anos, a gente falava dessas questões, mas não tinha a mesma reverberação que hoje tem. A gente não tinha a quantidade de meios de comunicação mostrando o problema, não tinha tantas pesquisas científicas. A outra questão é que também aumentaram os problemas. Ou seja, hoje, nós temos uma percepção muito maior porque a gente tem um agravamento da situação. Eu diria que teve uma ampliação da consciência em função de vários vetores, inclusive o vetor da dor e do sofrimento concreto. As pessoas perdem seus entes queridos, perdem suas casas, seu patrimônio, suas ruas, suas cidades — seja pela seca e pelo calor intenso, seja pelas cheias.
Eu diria que, naquele momento [2007], a gente ainda não tinha um segmento organizado politicamente com uma quantidade significativa de gente fazendo uma militância negacionista em relação às mudanças do clima. Agora, a gente tem um contraponto também mais organizado nessa sociedade dividida. Naquela época, a gente era considerado um nicho, uma minoria, um segmento. Sempre repito: a gente era os ‘ecochatos’, os ‘ecoterroristas’, que ficavam falando de coisas que pareciam tão distantes. Ou seja, agora a gente tem os meios de comunicação, a própria sociedade e uma quantidade muito maior de pessoas relacionando essas questões e debatendo os efeitos das mudanças climáticas. Da parte do governo, se 20 anos atrás, a gente era um grupo pequeno, agora a gente tem o próprio presidente da República liderando essa agenda e dizendo que a política ambiental tem que ser transversal. Porque os problemas causados pelos danos ambientais são igualmente transversais em relação à saúde, às questões econômicas e à qualidade de vida das pessoas, até porque os mais afetados são sempre os mais vulnerabilizados.
Ondas de calor intensas, enchentes, eclosão de novas pandemias. Já estamos sentindo na pele, e de maneira irrestrita, as consequências da crise climática. A pergunta é: o que falta para que a pauta ambiental ganhe adesão total?
Sinto que hoje temos uma aderência incomparavelmente maior. Vou medindo pela minha trajetória de vida. Aos 17 anos, quando a gente começou essa luta, lá atrás com Chico Mendes [ambientalista, sindicalista e seringueiro, símbolo da preservação da Amazônia, assassinado em 1988], a gente era o gueto do gueto. Dentro do próprio campo progressista, a gente era uma minoria — inclusive, muito incompreendida. Diziam que, nessa luta ecológica, a gente era um jogo nas mãos do capitalismo americano para tentar frear a luta dos trabalhadores. Ou seja, tínhamos isso dentro do próprio espaço em que a gente gostaria muito de ser, pelo menos, acolhido. Eu diria que houve, sim, um aumento significativo de adesão entre os formadores de opinião e até em determinados setores de alguns nichos econômicos. Mas do ponto de vista do Congresso, por exemplo, infelizmente essa luta continua sendo minoria. Quando vamos para os temas ambientais, que são os temas de ponta do debate hoje no mundo — a disrupção tecnológica, a questão da mudança climática, o desafio de como as democracias continuarão vigorosas e dando respostas aos problemas da humanidade —, temos ali uma minoria de parlamentares identificados e comprometidos com essa agenda.
Que rumos esse debate tem tomado dentro do Congresso?
É sempre no caminho de retrocesso: como vamos flexibilizar licenciamento? Como vamos flexibilizar a questão em relação ao uso de agrotóxicos? Como vamos flexibilizar a demarcação de terra indígena? Como vamos conter a criação de unidades de conservação? É totalmente na contramão do que precisa ser acelerado.
E como garantir que a pauta ambiental e climática seja prioridade no governo, que em sua base de apoio também reúne setores contrários a essa agenda?
Dentro do governo hoje a mudança é muito grande. Dos 88 programas do PPA [Plano Plurianual], coordenado pela ministra [do Planejamento] Simone Tebet, 50 estão ligados à agenda ambiental e de sustentabilidade. O ministro [da Fazenda] Fernando Haddad está coordenando o Plano de Transformação Ecológica pensando em eixos estratégicos e já trabalhando nos processos de implementação desses eixos. Conseguimos, com a ajuda do Ministério da Fazenda, fazer com que o Fundo Clima, que era da ordem de 400 milhões de reais, passasse agora com os títulos verdes para cerca de 10 bilhões de reais para projetos de desenvolvimento sustentável na área de clima. O próprio PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] coloca a questão da sustentabilidade para que projetos muito complexos e com muita pressão política sejam logo reencaminhados para estudos. O ministro [da Casa Civil] Rui Costa encaminhou para estudos a Ferrogrão [Projeto de ferrovia para ligar o Pará ao Mato Grosso], a exploração de petróleo na margem equatorial e o projeto da [Usina Nuclear] Angra 3. Anteriormente, essas coisas iam direto para o PAC. Agora, está no PAC, mas não vai andar enquanto não vierem os estudos de viabilidade.
“Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Então, vamos ter que acelerar o processo.”
Foto: Luan Martins
O que ainda falta?
Essa pergunta que vocês fazem é a mesma pergunta que fiz numa reunião do G-20: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer as coisas, já que 80% dos recursos financeiros do mundo, digamos assim, estão nas mãos dos 20 países mais ricos, e já que mais de 70% das emissões de CO2 estão sendo feitas por esses países mais ricos? O que está faltando para fazer a diferença?” Acho que tem uma complexidade objetiva, material. Como se perdeu muito tempo desde a Rio 92 [Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, popularmente conhecida como ECO-92] sem fazer o dever de casa, a gente chega ao momento que a mudança climática e os eventos extremos estão instalados, mas, por não ter sido preventivo fazendo o dever de casa progressivamente, você olha e diz: “Mas o que dá para fazer agora?” Agora, não tem mais uma resposta. Não se consegue mudar a matriz energética da noite para o dia. Ainda bem que o Brasil, ao longo desses anos, conseguiu ter uma matriz energética 43% limpa e uma matriz elétrica quase 90% limpa. Mas, mesmo assim, ainda tem espaço para mudança. E somos um país vulnerável porque dependemos de hidroeletricidade. Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Vamos ter que acelerar o processo.
Como isso vai ser possível?
Eu acho que essa aceleração depende de vários esforços: os esforços globais e os esforços no âmbito dos estados nacionais. Nós estamos trabalhando nossas NTCs [Notas Técnicas Conjuntas] para que elas sejam ambiciosas; estamos trabalhando o Plano Clima [principal orientador para o Brasil manter o ritmo de redução no desmatamento e a transição para a economia de baixo carbono rumo à neutralidade climática]; nós temos cerca de nove ações na área de mitigação e 15 ações na área adaptação. A questão da adaptação é urgente, urgentíssima e, infelizmente, essa é uma agenda que foi sendo negligenciada não só no Brasil, mas no mundo. Não sei se é negligenciada, mas a gente falava muito de mitigação, mitigação, mitigação. Agora, a gente está vendo que há necessidade de adaptação, inclusive, do ponto de vista de pensar que novas doenças estão surgindo ou que estão se alastrando para regiões em que elas não existiam. Eu digo que a gente vai ter que se desadaptar. Ao mesmo tempo que a gente vai ter que se adaptar a uma nova realidade, vamos ter que nos desadaptar da velha realidade que tínhamos.
Em que sentido, ministra?
Eu fui no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, e falei assim: “Olha, infelizmente esse lugar aqui é um lugar vulnerável, esses eventos vão acontecer de novo”. E aí, uma pessoa dizia pra mim, resistindo: “Não, mas isso aqui aconteceu há 93 anos”. Talvez querendo dizer: “Vocês, ambientalistas, se aproveitam do problema”. Mas, infelizmente, as enchentes aconteceram três vezes só no ano de 2023. É uma pedagogia dura, difícil de lidar. A pessoa pensa: “Ah, mas a minha rua não vai mais existir? A minha casa não vai existir? A minha empresa não tem mais como ser aqui? A minha identidade com esse bairro, às vezes até com esse município, como fica?” Eu vi agora em Brasileia [cidade do Acre que registrou a maior cheia de sua história em fevereiro]. O município é terra arrasada. Já foram feitas várias reconstruções lá. Não tem como insistir para mudar uma realidade que, no ano que vem, vai acontecer de novo.
“Pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento.”
Nesse cenário, há um ano e meio, a senhora assumiu mais uma vez o comando do Ministério do Meio Ambiente — hoje também Ministério de Mudança do Clima. Está sendo como esperava? Que balanço é possível fazer?
Esse primeiro ano foi duplamente desafiador. Primeiro, foi um ano de reconstrução de políticas públicas, não só na área ambiental, mas em vários setores, principalmente aqueles completamente abandonados e até mesmo perseguidos pelo governo anterior — por exemplo, a área dos direitos humanos, das políticas para mulheres, a área social. A área ambiental, nem se fala. E esse processo não se encerra porque se passou um ano. Tem estruturas que continuarão sendo fortalecidas porque o esgarçamento foi muito grande. Mas acho que a gente conseguiu sair de um momento basal, ali na UTI, para poder ter alta e começar a trabalhar. Estamos trabalhando. Só que nós decidimos que não íamos esperar pelo orçamento ideal ou a situação ideal. A gente foi trabalhando da forma como foi possível desde que chegou aqui. E já no primeiro ano, conseguimos uma redução de desmatamento de 50%. Isso é muita coisa diante da terra arrasada que a gente encontrou. Nós pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento, pegando os eixos estratégicos de um plano de transformação ecológica: a questão das finanças sustentáveis, do adensamento tecnológico, da infraestrutura resiliente, da bioeconomia, da segurança energética, e a agenda da economia circular. Pensamos todos esses eixos sinalizando que os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos. Esse desafio também entra numa outra fase: não mais da formulação, agora é da implementação.
“Os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos.”
E quais são os maiores desafios a partir daqui?
Nós temos uma contradição: ao mesmo tempo que os investimentos terão de ser de longo prazo e com mais recurso, a gente tem mecanismos fiscais que nos impedem em relação a várias políticas que o Estado gostaria de patrocinar e de estar ali na ação de indução dessas políticas. Então, o primeiro desafio foi da reconstrução e da formulação de novas políticas ou da atualização de políticas que deram certo e que precisavam ser atualizadas, como foi o caso do PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], a retomada de políticas que tinham sido paradas, como foi o caso do Fundo-Amazônico e outras. E agora nós estamos neste ano com o desafio de implementar tudo aquilo que a gente planejou. Na Amazônia, depois desses primeiros meses, tivemos uma redução de 29,2% no desmatamento em cima dos 50% que já haviam caído. Por outro lado, tem um desafio enorme em relação ao Cerrado. O bom é que conseguimos fazer o PPCerrado [conjunto de medidas intersetoriais para tentar conter a destruição de parte da vegetação do Cerrado] e estamos em fase de implementação. Tivemos ali uma pequeníssima queda de 4% em relação a 2023, mas ainda não dá para dizer que é uma tendência. É um esforço hercúleo.
Como lidar com essas contradições?
Às vezes, as pessoas falam: “Ah, mas tem contradições”. Existem contradições! Nós somos uma frente ampla, não tem como ser diferente. A contradição faz parte da dinâmica política, social, cultural, acadêmica, né? Dentro do mesmo departamento, você vai ter abordagens metodológicas, que muitas vezes podem parecer contraditórias. É da natureza das dinâmicas humanas. Mas o importante é que o presidente Lula, ele mesmo, está liderando a agenda. A ministra do Meio Ambiente não teria força para dizer: “Não, o Ferrogrão não entra agora no PAC, vai para estudo!” A gente apresenta as razões, os argumentos técnicos, mas a decisão, o poder disso é do presidente da República. E mesmo que haja as contradições, elas têm que ser dirimidas politicamente e tecnicamente. Nem tudo é dirimido só politicamente. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] não pode dizer que aquele agrotóxico não faz mal para saúde, em função de uma visão política. Assim como o Ibama tem a liberdade de dizer que determinado empreendimento não tem viabilidade ambiental e que é preciso buscar alternativas, que às vezes até podem ter um custo maior. Mas, paciência, é isso que precisa ser feito.
Por Adriano De Lavor, Ana Cláudia Peres e Luíza Zauza* (estágio supervisionado)
Ou morreremos de sede ou de calor, mas de dor e de amor ficaremos cegos em busca de nos tornarmos alheios às nossas sofrências iguais às nossas irmãs árvores que, de tanto chorarem, as suas dores decidiram ficar alheias às luzes dos eclipses dos astros criados pelos robôs que se dizem homens e mulheres do bem. O bem é um alheio ao mal.
No poema “Segue o teu destino” do poeta português Fernando Pessoa ele nos diz num dos seus mais bonitos versos “O resto é a sombra de árvores alheias.” Confesso ser este um dos meus poemas preferidos deste poeta que foi pouco reconhecido em vida e hoje é um dos maiores gênios da literatura. Tendo sido sombra durante toda a sua vida na sua própria pátria.
No entanto, ao ler este verso, faz alguns anos, fiquei curiosa para saber o que ele queria dizer com “árvores alheias” e depois de muito refletir posso estar enganada, mas acho que encontrei uma resposta bem ao meu gosto, bem cheia de ternura e criancice daquelas que a gente inventa quando quer esquecer que é gente grande: as árvores para o poeta não estão preocupadas com as coisas que acontecem ao seu redor ou estão tanto quanto as crianças assustadas, mas preferem fingir um riso, o riso da inocência, elas só querem saber de brincar e dar sombras e frutos para quem as ama ou não.
As árvores por fingirem ser alheias aos problemas mundiais e quantos problemas inventamos todos os dias para complicarmos a vida, elas só querem que nos deitemos embaixo das suas sombras e descansemos as nossas almas de todas as bobagens e obstáculos que costumamos acrescentar às nossas existências. Ser alheio não é tornar-se irresponsável, ao contrário é estar por dentro de tudo, mas pensar como quem sabe que tudo será resolvido dentro de instantes, rapidamente, em breve.
Assim, as árvores nos dão a lição de que não adianta ficarmos aflitos, perturbados, ansiosos, depressivos com as dificuldades que nos são impostas diariamente, porém fazermos de conta que somos alheios a tudo isso e que logo venceremos os problemas por mais que pareçamos irresponsáveis, simplesmente não nos deixamos abater por coisas que acreditamos serem possíveis de se resolver com paciência e determinação.
As árvores são alheias não aos problemas dos homens e assim não estão nem aí para eles, ao contrário, elas se preocupam com as nossas vidas e dores, mas elas também sabem que do mesmo jeito que acrescentamos pedras ao benquerer dos nossos corações também podemos tirá-las de lá. Somos nós os culpados por essa bagunça que se tornou o mundo e o existir. Não sabemos sequer quem somos ou o que fazemos por aqui. Parecemos mais robôs do que os próprios softwares de Inteligência Artificial.
Na vida, muitas vezes precisamos ser alheios às coisas ao nosso redor e esquecermos por um ou outro momento as nossas dores para nos colocarmos no lugar do outro, da natureza, das plantas, das florestas, dos animais. Para pensarmos que o conjunto das coisas ao nosso redor é o que nos proporciona um viver com saúde e bem-estar. Não somos deuses que mandamos em tudo e mesmo prevendo tempestades e furacões ainda não podemos fazer a chuva parar de cair.
Se pensarmos que o poeta Fernando Pessoa quis dizer com as árvores serem alheias porque elas simplesmente estão cansadas de tentarem todos os dias nos ensinarem a sermos seres melhores respeitando-as e admirando-as como o olhar de uma criança inocente, se pensarmos que o poeta escolheu esse ser alheio para nos chamar a atenção de que a natureza resolveu parar de pedir socorro e decidiu silenciar-se diante do abuso e mediocridade dos homens que as derrubam todos os dias com machados e serras elétricas que sangram, chega a doer nas suas raízes, machucam, ferem e matam quem só quer nos dar sombra e frutos levaríamos mais a sério o ser alheio das árvores.
Quando as árvores permitiram-se ser alheias aos atos desumanos e cruéis dos homens ao seu redor, tratando-as como coisas que nada significam, quando as árvores acharam melhor ficarem quietas e sem balançarem seus galhos numa tarde de outono qualquer, é porque elas estão aguardando que percebamos o quanto seus silêncios são gritos que chegam a estrondar os chãos e céus à espera de ajuda para que não sejam abandonadas, derrubadas, podadas de forma errada, tratadas como se não servissem para nada.
Não deixemos que as árvores continuem alheias as suas dores e fazendo de conta que está tudo bem consigo quando sabemos que as maltratamos com as nossas ambições desassossegadas de desenvolvimento e massacre das florestas. As árvores assim como as crianças também têm medo de serem abandonadas num lugar frio e cheio de monstros, elas também têm pesadelos e suas angústias.
Que possamos reconhecer a nossa pequenez diante do ser alheias das árvores quando elas, na verdade, nunca param de prestar atenção as nossas ideais malucas de construirmos prédios em lugares onde poderiam plantarmos mais irmãs suas, a nossa rotina de crescimento está destruindo a boniteza das árvores e suas histórias contadas nos finais de tarde às crianças e idosos que sentam-se embaixo das suas sombras para simplesmente ouvirem delas que seus heróis estão vivos e ali prontos para lhes salvarem a qualquer momento.
Tornar-se alheio é o mesmo que dizer cansei, contudo cansar não é desistir da luta e, sim, parar por algum tempo para procurar nas profundezas do existir, do ser, do estar aqui para um propósito qualquer a verdadeira essência do ir além do que a metafísica tenta buscar, ou seja, respostas às dúvidas do que tudo é por um motivo especial e único da sua criação.
Parar e esperar o momento exato da sua fala é o mais correto assim fazem os psicanalistas nos seus consultórios, o sábio já nos ensinava a arte de ouvir. As árvores são mais ouvintes do que falantes, e menos indiretas do que diretas nas suas buscas por sobrevivências em lugares onde a sombra do desenvolvimento assombra e faz medo… tudo está crescendo além céus.
A vida é, existimos, tudo ou nada, somos átomos e células… e nós não temos a certeza se somos únicos no Universo, nem as árvores conseguem mesclar caminhos com desertos em busca de respostas ao mais alheio de que se tornem para não sofrerem ao toque dos tambores dos seus algozes que as matam sem lhes perguntarem por que existem e são o ser do mais-ser.
De uma certa complexidade. ás árvores são como se fossem séculos escapados das mãos de um criador qualquer além religiões que as colocaram na Terra para dizerem aos homens que mais poder têm àqueles que se fingem do que os que saem por aí gritando as suas ambições e destruindo seus próprios jardins primaveris de um existir de paz e virtudes esquecidos no passar dos anos, pois tudo que não passa fica adormecido feito gigante nos oceanos de águas mansas, se bem lembro nunca mais ouvi falar de Adamastor, Pantragruel e Gargântua andando por aí.
O tornar-se alheias das árvores dá para elas uma sabedoria imensa, pois nos mostra que apesar de estarem assustadas com os nossos machados e serras elétricas elas se conservam unidas e mais fortes do que nunca à espera de uma revolução da natureza que vem chegando aos poucos com as constantes enchentes, queimadas, furacões e outros desastres naturais que mostram aos homens o ser mais da natureza diante das suas elucubrações mescladas a um desenvolvimento mesquinho e ambicioso que só destrói a si próprio.
Enquanto as árvores ficarem alheias e deixarem os homens se entenderem e descobrirem que sem elas não serão nada neste mundo criado por algum Bem maior do que eu e você, estarão mais felizes e prontas para receberem as superioridades e inoportunas ausências de cuidado dos nossos governantes e autoridades que comem os olhos da natureza em pratos de ouro sem saberem que o mundo está dando a sua resposta fingindo-se de alheio às crueldades e matanças das árvores.
Ou morreremos de sede ou de calor, mas de dor e de amor ficaremos cegos em busca de nos tornarmos alheios às nossas sofrências iguais às nossas irmãs árvores que, de tanto chorarem, as suas dores decidiram ficar alheias às luzes dos eclipses dos astros criados pelos robôs que se dizem homens e mulheres do bem. O bem é um alheio ao mal.