Quando vier a Primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira/ E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada/ A realidade não precisa de mim. (Fernando Pessoa)
Durante o inverno Brado Retumbante hibernou em sua caverna. Baixou as cortinas, fechou portas e janelas, desligou telefones, computador e não recebeu quaisquer tipos de visitas. Aproveitou também economizar nos banhos, na feitura da barba e no corte dos cabelos. Avisou o porteiro que só voltaria no início da primavera. Para o senso comum, Werther que só andava pelas beiradas das coisas, tornou-se um Nonada, no sentido de Grande Sertão Veredas.
Finda a estação, Brado Retumbante sacudiu-se todo para derrubar seus parasitas interiores e exteriores com chás e banhos de imersão, esfregando-se até gastar sua pele embrutecida. Um novo homem haveria de impressionar positivamente o gado que estava retido nas cercas de um mundo com suas eternas contradições.
Avisou a imprensa sobre a experiência de três meses no interior da bolha da caverna. Ao dar suas primeiras voltas na Pólis, estranhou que ninguém o reconheceu e nem sequer lhe cumprimentou. Talvez pelos óculos escuros para fim de adaptar-se à claridade ofuscante da luz do sol. Despreparado fisicamente, retornou à caverna doméstica cansado e ofegante. Pediu água e recolheu-se ao ninho caótico e mofado até o novo dia cinzento com sol avermelhado. Deu-lhe náuseas e tosses intermitentes o ar com cheiro de cinzas.
Contaram-lhe que uma parte do Brasil estava em chamas: a Amazônia Legal, o Pantanal, os cafezais e os canaviais. A outra parte mais ao sul estava sofrendo com as intempéries: enchentes, temporais, ventanias, raios. Pensou:
– Até parece o Juízo Final. Ou é o tal do Aquecimento Global sobre o qual tanto falam?
– Isso mesmo! Mas não só no Brasil. Aonde olhares, podes verificar o derretimento das geleiras, o aumento da temperatura global, as secas e as enchentes, dentre outras movimentações verificadas na natureza. Porém não é só isso, Brado Retumbante.
– Certas criaturas do planeta Terra parecem que estar em transe. Reinventaram as guerras, novas armas de destruição em massa, venenos que estão causando novas doenças. Em que mundo estiveste e em qual estás, Brado Retumbante?! E tem mais, caro vivente:
– A pior invenção da humanidade, as guerras, retornaram com tudo. Veja o que acontece entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e Palestina/Líbano! Dá a impressão de que retornamos aos tempos bárbaros!
– É, pois é, exclamou Brado!
Em todo o Brasil vemos Organizações criminosas promovendo chacinas, dominando bairros e vilas, mantendo famílias reféns dos seus interesses. E, o pior, certos aspirantes ao poder pregam exemplarmente a violência com socos e cadeiraços nos debates eleitorais. Há, inclusive, sugestão de pancadaços nos centros urbanos.
– Não acredito! A que nível chegamos… Dá até vontade de me recolher definitivamente à caverna! Mas não! Sou resiliente e confiante, pois nada melhor do que apreciar o riso espontâneo e puro de uma criança. Admirar o desabrochar das flores dos ipês e ver assegurados os direitos humanos entre as pessoas e os países. Preservar os mares, os rios, a terra e o ar é, sobretudo, preservar a vida que pulsa em tudo.
O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.
— Vai ter chantili? — Essa pergunta, aparentemente fora de contexto para o ambiente escolar, é frequente entre as alunas do projeto SOFIA – Leitura e Escrita Criativa.
O SOFIA vai além da leitura e da escrita. Ele propõe a construção de um espaço onde cada um pode ser o que é, cercado por uma rede de afeto. Embora tenha começado como um projeto de leitura, rapidamente se tornou um círculo de convivência.
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Nesse espaço, não há imposição de matérias, nem pressão por alto desempenho. O ingresso é voluntário, e quem decide sair o faz sem problemas. As únicas exigências são bom comportamento, boas notas e o compromisso de ler ao menos parte dos livros disponíveis. No entanto, o que prevalece é o afeto.
Os alunos, ao oferecerem essas “moedas de troca”, ganham mais do que livros emprestados ou sorteados para chamar de seus. Eles têm a oportunidade de se expressar em bate-papos literários, sem a pressão de notas, ou de simplesmente ouvir, se preferirem.
Também participam de passeios a livrarias, eventos e oficinas, além de receberem visitas de artistas e pesquisadores, que vêm à escola para compartilhar experiências. Um dos primeiros gestos do SOFIA, por exemplo, foi uma sessão de fotos com as alunas iniciais, realizada por um fotógrafo particular — algo que, talvez, tenha um impacto positivo na autoestima das estudantes.
E ganham chantili. Desde o início, as alunas pediram comida nos encontros, porque sabem, intuitivamente, que a comida une. Compartilhar uma refeição não sacia apenas a fome física, mas também a da alma. Quando paramos para tomar um café e conversar, sentimos segurança e esperança. Afinal, só quem tem esperança se alimenta; só quem tem esperança lê um livro.
O chantili, nas confraternizações do SOFIA, virou sucesso. Embora delicioso no café, acredito que o sucesso vai além do sabor. Servir chantili é uma forma de mostrar afeto, de demonstrar cuidado. Às vezes, são os pequenos gestos que mais marcam. Como professor, espero que associem esses momentos à leitura e, um dia, façam seu próprio chantili, enquanto saboreiam um café com um bom livro.
Talvez se lembrem do SOFIA. Talvez se lembrem de mim. Talvez aprendamos melhor quando nos sentimos seguros. Talvez a educação seja — ou deveria ser — como tomar um café com amigos. Com chantili, com afeto.
O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.
Autora de romance sobre luta ambiental, Morgana Kretzmann reivindica temas sociais e climáticos para sua literatura. Autora trata literatura como ferramenta didático- pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores.
Por Luiza Zauza
Um ecossistema ameaçado por um empreendimento predatório. Uma comunidade à mercê da ambição mesquinha e maliciosa de políticos e empresários corruptos. Um esquema de contrabando marcado por violência, heranças e prejuízos ambientais. Essas são algumas premissas do enredo de Água Turva, romance recente de Morgana Kretzmann. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A proximidade entre ficção e realidade faz parte do projeto literário da atriz e escritora gaúcha.
“Eu venho de um lugar onde quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção”, afirma. Esse lugar de que Morgana fala é onde se passa a trama de seu livro e de onde ela conversa com Radis (https://radis.ensp.fiocruz.br/ ) por chamada de vídeo: sua região natal, próxima ao Parque Estadual do Turvo, no interior rural do Rio Grande do Sul. Foram quatro anos dedicados a construir com detalhes factuais o cenário fictício ao redor dessa unidade de conservação ambiental, localizada na fronteira entre Brasil e Argentina, no Noroeste do estado.
A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com seu romance de estreia Ao pó foi atrás de se especializar em Gestão Ambiental no Instituto Federal de Santa Catarina, entrevistar profissionais da área e visitar pessoalmente o Parque do Turvo diversas vezes para contar essa história, que se desenrola em torno da ameaça de uma hidrelétrica, cuja construção irá alagar a reserva ambiental, sumindo com o Salto do Yucumã, a maior queda d’água longitudinal do mundo, e o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.
O pano de fundo turbulento movimenta as ações das três protagonistas: Chaya, guarda- florestal que vive pela proteção do Turvo; Olga, jornalista e assessora parlamentar do machista e criminoso deputado Heichma; e Preta, líder do grupo de caçadores e contrabandistas, Pies Rubros, que atuam pelo Rio Uruguai no lado argentino. O destino das três se cruza em meio a conflitos familiares e heranças geracionais, numa trama ágil que evoca a literatura policial para discutir o colapso climático e ambiental.
O que foi rotulado como thriller ecológico, hoje também integra o que tem sido considerado pelo mercado editorial de cli-fi, climate fiction, ou ficção climática, um gênero literário que se preocupa em tematizar a emergência climática e os impactos da ação humana sobre o meio ambiente. Para a autora, Água Turva é o resultado de uma realidade que é prioridade também para a ficção — “o que vejo como a maior urgência que vivemos no planeta e que não vai acabar agora”.
No bate-papo de quase uma hora, no fim de junho, Morgana conta sobre o processo de criação do seu segundo romance, o convívio da natureza com a espiritualidade e como a literatura pode ser uma ferramenta de mudança. Emocionada, ela também dá um testemunho sobre a tragédia que, poucos meses depois da publicação de Água Turva, devastou o Rio Grande do Sul exatamente por consequência do desequilíbrio ecológico. “Hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana”. Descubra na entrevista a seguir.
Conte um pouco da sua trajetória até chegar na literatura. Como a escrita se tornou cada vez mais frequente na sua vida?
Nasci no interior do Brasil, na fronteira com a Argentina, num lugar muito ermo — que é onde eu estou nesse momento, por sinal. Estudei, porém, em escolas que sempre incentivaram esse meu lado artístico. A arte surgiu na minha vida muito cedo: dança, teatro e escrita. Com 9 anos, comecei a escrever meus primeiros e pequenos livros. Inclusive, eu os fabricava: grampeava as folhas e fazia os desenhos. Era uma maneira de criar o mundo que eu queria estar.
E como você foi da carreira de atriz para a de escritora?
Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre, comecei a trabalhar como atriz. Estudei no Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre) e, depois, na Escola de Atores. Fui para o Rio de Janeiro fazer CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), uma das escolas mais conceituadas e importantes do Brasil. E foi no Rio que comecei a ter menos vergonha de mostrar o que escrevia. Nunca havia publicado nada, a não ser em blogs, onde deixava alguns textos, poemas e coisas muito loucas que não tinham nem gênero específico. Quando casei com o Paulo Scott, que também é escritor, eu já estava morando no Rio de Janeiro de novo e comecei a fazer um curso de extensão de Roteiro Cinematográfico na PUC-Rio. É nele que realmente começo a escrever e surge meu primeiro livro, Ao pó, com o qual ganhei o Prêmio São Paulo. Esse livro nasce como um roteiro, mas começa a virar um romance e eu passo sete anos escrevendo-o, tentando encontrar a linguagem, reescrevendo-o várias e várias vezes. Quando eu já era finalista do Prêmio [São Paulo de Literatura], começaram a surgir convites para editoras maiores.
E como nasceu o romance Água Turva?
Acabei optando pela Companhia das Letras, onde publiquei, então, o Água Turva, que é esse livro que fala sobre crimes ambientais e tem pinceladas do que é o aquecimento global. E os próximos livros, que já assinei com eles, também terão questões ambientais e sociais, que permeiam a minha arte. Nesse meio tempo, também me formei em Gestão Ambiental, não para trabalhar como gestora, mas para poder colocar [em Água Turva] os temas ambientais que o planeta vive, o que hoje vejo como a maior urgência que vivemos e que não vai acabar agora. Eu vou morrer e isso vai continuar sendo uma urgência. Queria estudar para poder escrever, não falar bobagem; para ter um pouco mais de domínio das coisas. E foi imprescindível, tanto que o meu trabalho de conclusão de curso era literatura e meio ambiente: a importância da literatura como ferramenta didático-pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores. O que posso dizer é que Água Turva seria a aplicação da pesquisa que fiz.
A literatura se torna então um instrumento para refletir sobre a realidade, correto?
Hoje, três meses depois do lançamento, percebo que o meu projeto de pesquisa não estava errado, já que realmente o livro está chegando em pessoas que, inclusive, diziam que não liam nada sobre meio ambiente porque parecia chato. Tem gente que na literatura compara [as discussões sobre] meio ambiente com ficção científica, como se isso estivesse longe da realidade. De repente, você começa a ver coisas reais, como o que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e pega um livro que trata de problemas ambientais e que também se passa aqui. Um livro que tem uma linguagem ágil. É um thriller que fala de assuntos afetivos, de uma saga familiar. Quando eu dizia que, através da literatura, as pessoas poderiam ter um novo tipo de afeto em relação ao planeta, percebo que, com Água Turva, isso está acontecendo.
Como foi transformar sua pesquisa acadêmica em ficção?
Eu não transformo pesquisa acadêmica em ficção. Eu faço ficção, como sempre trabalhei. Porém, os conhecimentos que adquiri durante a faculdade estão ali dentro, como as leis ambientais, sobre caça e unidades de conservação. Só para o Parque do Turvo eu viajei cinco vezes para entrevistar guardas florestais, funcionários, ribeirinhos, pessoas que moram do lado argentino e do lado brasileiro do parque. Tudo isso para entender os crimes ambientais que acontecem nessa região. Considero a geografia do Parque Estadual do Turvo perfeita para essa história, não só porque é uma unidade de conservação, mas porque está numa fronteira, dividida por um rio. Consigo tratar, então, não só de crimes ambientais, mas de toda uma gama de crimes que permeiam uma fronteira. Uma fronteira que não tem policiamento e tem as próprias leis. Quando crio os Pies Rubros, um grupo de caçadores de animais silvestres e contrabandistas que moram do lado argentino, é porque sabemos que nesse lugar há um acordo entre as pessoas do local, que vai além das leis que temos na nossa ou na constituição argentina. Queria escrever um livro policial que falasse de crimes ambientais e fronteiriços. E esse era o lugar mais propício para fazer isso.
O que a abordagem policial trouxe para o livro?
Tenho um incômodo muito grande quando colocam livros policiais como um gênero menor. Não é de maneira nenhuma. Quando digo que é uma obra policial, não estou diminuindo a minha história. Passei quatro anos escrevendo. Ele tem quase 300 páginas, foi feita uma baita pesquisa. Entrei dentro do Parque Estadual do Turvo com o meu irmão, num lugar muito ermo, junto com um guarda-florestal, para encontrar os acampamentos desativados de caçadores, as cevas, os trepeiros [caçadores que sobem em cima das árvores para preparar armadilhas e capturar animais]. Tudo isso foi super perigoso. Os caçadores estavam lá, tivemos que fugir. Toda essa sensação de fuga e de busca está no livro. Optei por essa linguagem por acreditar que faria as pessoas se interessarem ainda mais por uma obra com uma temática ambiental. Não é um livro “chato” sobre o meio ambiente — como algumas pessoas antigamente falavam.
Seu livro apresenta aspectos fantásticos e espirituais interessantes, tendo esse misticismo ligado predominantemente à natureza. Por que combinar essas duas abordagens?
Às vezes, as pessoas falam em “Brasil profundo”, “realismo mágico ou fantástico” e vários outros termos. Acredito que elas pensam que isso está muito longe, quase algo irreal, enquanto para mim, meus irmãos, minha sobrinha, meus avós e todos que vivemos aqui, é a realidade. Quando estou dentro do Parque do Turvo e um panapaná [nuvem de borboletas] se forma ao redor de mim, como no livro Cem anos de solidão do Gabo [Gabriel García Márquez], não descrevo algo que imaginei e sonhei. Eu vivi isso. Entrei no Parque do Turvo e uma nuvem de borboletas voou ao meu redor, e elas não fogem, não vão embora, você fica tomado por elas. Quando falamos de um personagem como o Sarampião, existem várias figuras aqui no interior, nessa fronteira — e não só aqui, mas em outras regiões também — que morreram e as pessoas rezam por elas. As pessoas realmente têm fé nelas. É claro que invento: o meu Sarampião não existe, mas poderia ter existido. Existiu um guarda-parque no Turvo há muitos e muitos anos atrás, meus avós chegaram a conhecê-lo, que tinha esse apelido, chamavam-no de Sarampião de brincadeira. Achei um nome tão incrível que criei uma família inteira e um santo ao seu redor.
Essa abordagem que mistura o místico e a natureza parte, portanto, de suas próprias vivências?
Quando falamos de plantas medicinais, ontem mesmo, eu estava catando espinheira santa, quebra-pedra e funcho para fazer um chá. Meu pai quando está com pressão alta, toma os seus remédios, mas antes de dormir vai aqui fora, cata as folhinhas certas, lava, faz um chá e toma. Quando colocamos isso num livro, as pessoas, principalmente da cidade grande, veem como algo muito mágico, quando para nós é a realidade. Crescemos nesse Brasil que muitos nem acreditam existir e com o tempo vamos aprendendo com os mais velhos sobre essa medicina familiar, que está dentro do pátio da nossa casa e nunca mais esquecemos. O Sarampião nasce disso, quando ele salva as netas com os emplastos, os remédios e os chás. Eu entendo o termo realismo mágico. O livro vai ser publicado na Alemanha e, para eles, é realmente outro mundo. A palavra que eles usam é “encantados” e penso que é, em todos os sentidos da palavra: do arrebatamento e da magia. Eles não conseguem imaginar o que é o rio Uruguai, por exemplo. Eu escrevi uma crônica com uma lenda sobre esse rio para uma revista alemã e eles achavam que era tudo fantasia, e eu falo que não, o Rio Uruguai existe, gente! [risos]
Chaya, uma das personagens centrais do seu livro, delega para si o compromisso de cuidar e salvaguardar o Parque do Turvo. Que nível de poder uma sociedade pode ter sobre as questões ambientais ou das mudanças climáticas?
No livro, vemos a Chaya mais ativa, mas essa é uma luta comunitária. Existe um projeto de uma hidrelétrica no Rio Uruguai que se chama Garabi Panambi. Ele custaria 5 bilhões de dólares e existe desde a década de 1970. Se fosse construída — no livro, mudo o nome e crio a Gran-Roncador, já que faço ficção em cima de uma notícia —, essa hidrelétrica iria gerar uma quantidade de energia muito pequena para todo investimento financeiro, desgaste e crimes ambientais dispensados. O salto do Yucumã, por exemplo, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ficaria debaixo d’água. Perderíamos o último reduto da onça-pintada do Sul do Brasil, que fica entre Brasil e Argentina. A onça desce pela floresta e tem os seus filhotes no Turvo, atravessa o rio Uruguai a nado — é uma ótima nadadora. Espera a cria estar mais ou menos pronta para a caça, atravessa de volta, e ensina a oncinha a caçar dentro do Turvo. Isso tudo se perderia debaixo d’água, sem contar a região dos ribeirinhos, cidades e comunidades agrícolas ao redor.
A literatura pode ajudar a sociedade a reagir contra interesses que ameaçam a preservação ambiental?
Em vários lugares falam a mesma coisa: “Vou construir uma hidrelétrica, e daí trazer universidade, empresas, asfalto, isso e aquilo”. É a mesma desculpa do investimento. Só que com 5 bilhões de dólares, constroem-se quantas universidades, empresas e asfalto? Quantas cidades podem se reerguer? O quanto se pode girar a economia desses municípios com 5 bilhões sem precisar colocar em risco o Salto do Yucumã, a Reserva do Turvo, o último reduto da onça-pintada? E não é dinheiro só de instituição privada. Na medida em que as comunidades se unem e entendem as discussões econômicas, sem serem enganadas, elas vão dizer ‘não’ para tudo isso. É o que tento colocar no livro, especialmente na cena da primeira reunião sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Tento colocar isso na boca de alguns personagens. É por isso que precisamos lutar social e politicamente no Brasil: pelo conhecimento.
“Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos.”
O conhecimento liberta, não é mesmo?
Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos. E a literatura entra nessa questão. Quando entregamos um livro que trata de questões ambientais, raça ou colorismo, como o Água Turva, o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e o Avesso da Pele, do Jefferson Tenório, e alguém lê e estabelece uma relação afetiva com esses temas, sabemos que essa pessoa constrói outro pensamento. Para conseguir dominá-la, sejam políticos, igrejas ou patrões, será mais difícil. Quando essas pessoas começam a pensar por si, seja por meio da literatura ou dos estudos, elas vão reivindicar o que elas querem. Precisamos lutar pelo estudo e pela leitura para que as pessoas pensem por si e não deixem uma meia dúzia de poderosos que mandam no nosso continente decidirem por nós. A gente pode decidir. No Água Turva, quando todos se levantam e vão embora com a Chaya, é uma comunidade inteira lutando contra meia dúzia de poderosos. E eles vão vencer. Nem sempre isso acontece na realidade, mas a minha esperança é que cada vez mais essas coisas aconteçam.
“Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção.”
Você acha, então, que a literatura pode servir a um propósito?
Acho muito complicado colocarmos o artista num lugar de imposição. O artista não deve nada, deve à sua própria arte. Ele faz aquilo que acredita, seja qual for o caminho. Eu, por exemplo, estou num momento da minha vida que cheguei a estudar gestão ambiental porque quero continuar falando sobre assuntos ambientais e sociais. São questões caras para mim. Eu venho de uma cidade muito pobre, de uma região paupérrima do Rio Grande do Sul. Aqui, nesse momento, por causa das enchentes, está faltando tudo. Falta comida, remédio, gasolina. As pessoas estão realmente passando fome e necessidade. Estou vendo isso agora, mas já vi tantas outras vezes. Venho de uma família de agricultores, muito pobres. Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção. É o que eu posso fazer. Mas você pode escrever um livro por puro entretenimento, e isso abrir as portas para quem nunca leu na vida ler outros livros.
E como a sua literatura dialoga com o protagonismo feminino?
Quero continuar falando sobre questões sociais, ambientais e, também, femininas. Me perguntam, mas você só vai escrever livros com protagonistas mulheres? Gente, tem milhares de livros com protagonistas homens. A porcentagem de livros com protagonistas mulheres é infinitamente menor do que com protagonistas homens. Por que vou escrever mais um livro com um protagonista homem? Quero escrever sobre mulheres. Em matéria de ficção, o meu prazer é muito maior em criar personagens femininas fortes, que lutam, que estão com um facão na mão, estão defendendo a sua comunidade e as suas famílias. Eu me sinto muito mais à vontade fazendo isso.
Suas personagens são complexas, não são maniqueístas. Elas também têm relações complicadas e têm seus lados imperfeitos, como todos nós temos.
Teve uma pessoa na rede social que disse: “mas em Água Turva as personagens femininas são todas boas e os masculinos são todos maus”. Um cara que tinha feito uma ótima resenha respondeu: “Querido, você não leu o livro” [risos]. Quando as mulheres [do livro] têm que ser más, elas são muito más. O livro começa com a Chaya matando um homem sem pensar duas vezes.
Exato. A Preta também é uma personagem interessante nesse sentido. Ela tem uma raiva vinda de herança da avó, uma angústia muito grande por conta da família. Ela também é uma caçadora, então, de certa forma, ela prejudica o parque. Porém, é a sua maneira de sobreviver. É difícil julgar completamente esses personagens, não é?
A minha ideia era essa, principalmente a Preta, que é a minha personagem favorita. Ela surge por último durante o processo de criação. Eu defendo a Preta, inclusive. Ela faz o que tem que ser feito para defender aquilo que ela acredita. Agora, é correta a maneira que ela faz as coisas que ela precisa fazer? Não, não é.
O que podemos fazer para quebrar o ciclo trágico que acompanha a crise climática?
Veja o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Estamos em ano de eleições municipais e precisamos pensar em pessoas que amem as suas cidades. Estamos cheios de prefeitos em cidades grandes e do interior, de todas as vertentes políticas, que parecem odiá-las. Se começássemos a votar em pessoas que amam o seu chão, o seu território, elas estariam hoje pensando em soluções ambientais para manter esses lugares. Vemos o que aconteceu em Porto Alegre. É um absurdo que o prefeito tenha colocado sacos de areia em cima de bueiros para que não abrissem as tampas e a água voltasse a alagar a cidade. Alguém precisa odiar demais a sua cidade para pensar nesse tipo de solução. Sinceramente, não tenho resposta para essa pergunta. Mas continuo achando que agora as coisas vão ser pautadas pela crise climática, e se tornar questões econômicas e, assim, mobilizar um número maior de pessoas. Quando digo um número maior de pessoas, são os poderosos, as pessoas que realmente mandam no mundo. Quem sabe, [a emergência climática] comece a ser vista de outra maneira.
Como tem sido vivenciar o cotidiano após as enchentes no Rio Grande do Sul?
Cheguei aqui no Rio Grande do Sul na terça-feira [em junho], e hoje é o primeiro dia que parou de chover desde que cheguei. Tive que descer de avião em Chapecó [SC]. Não tem voo mais para o estado. As estradas estão horrorosas. Além da chuva, são estradas que não foram construídas para aguentar esse volume tão grande de caminhões. Você vê que está tudo muito destruído. Tem uma tristeza tão grande no ar que só estando aqui para entender. Tenho vontade de chorar. O Mário Quintana tem uma frase maravilhosa que diz que a gente sempre está voltando para casa, mesmo que ela não exista mais. Você vê o seu lar destruído, mas, ao mesmo tempo, é o seu lar. É uma tristeza muito grande ver tudo debaixo d’água: as estradas destruídas, os morros caídos e a tristeza das pessoas. Então, hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana.
“Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também.”
Que tipo de herança você quer que seus personagens e seu livro deixem para as gerações futuras?
Somos responsáveis pelas próximas gerações. É aquele ditado africano, que diz que quando uma criança nasce, a comunidade toda é responsável por ela. Precisamos pensar que mundo vamos deixar e como eles vão sobreviver nele. Se esse livro for lido daqui a 20, 30 anos, espero que ele leve a mensagem de que nem todos foram negligentes no Brasil e no mundo de hoje. Tivemos comunidades e indivíduos que tentaram lutar com
as armas que tinham para melhorar e deixar o mundo habitável para as próximas gerações. Como disse Chico Mendes, ecologia sem luta de classes é jardinagem. Penso que não adianta lutarmos só pelas questões ambientais sem pensar nas sociais. É o que acontece no Rio Grande do Sul. As pessoas mais pobres estão vivendo um sofrimento que não conseguimos imaginar. No frio, na chuva, sem comida, muitos ainda sem lar. Perderam absolutamente tudo, ainda não conseguiram ajuda governamental para comprar o básico. Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também. Espero realmente que as próximas gerações entendam a história de Água Turva, da região de Dourado, da família Sarampião e de como a comunidade que vive ao redor do Parque do Turvo lutou para barrar essa construção que permeia o livro.
O esvaziamento das esferas de participação política é uma forma de morte democrática. A política, em sua essência, deve ser o espaço de construção de consensos, de debates plurais e de busca pelo bem-estar comum.
Nos últimos anos, a política brasileira tem experimentado uma transformação que, longe de ser uma evolução democrática, representa um retrocesso ao seu papel fundamental: o de zelar pelo bem público. A praça pública, historicamente o lugar de debate e deliberação, tem sido tomada pelo espetáculo da antipolítica, esvaziando a essência do que é ser político e governar em prol da sociedade. A emergência da necropolítica, conceito do filósofo Achille Mbembe, torna-se cada vez mais visível, sinalizando a morte da política como força vital e transformadora da vida em sociedade.
O Abandono da Ágora mostra o Espaço Público em Ruínas, na Grécia Antiga, a ágora era o espaço central das cidades, onde os cidadãos se reuniam para discutir questões de interesse comum, tomando decisões sobre o futuro da polis (cidade).
No Brasil contemporâneo, este espaço simbólico da ágora foi gradualmente erodido por uma retórica de polarização, desinformação e um apelo ao individualismo exacerbado. Em vez de discussões racionais e produtivas, o debate público se transformou em um palco de discursos violentos e excludentes, incapazes de construir pontes entre diferentes setores da sociedade. A polarização, que se ampliou exponencialmente nas últimas eleições, transforma cada vez mais a praça pública em um campo de batalha onde prevalece o ataque pessoal em detrimento do diálogo construtivo.
O abandono desse espaço de debate é sintomático de um fenômeno maior: a corrosão da confiança nas instituições democráticas. A população, insatisfeita com a ineficácia das políticas públicas e com a corrupção desenfreada, volta-se para alternativas que promovem um discurso autoritário, anti-institucional e, em alguns casos, antidemocrático. Ao invés de revitalizar a política, o que temos visto é o surgimento de uma antipolítica, que se coloca como o antídoto ao sistema vigente, mas que, na realidade, colabora para o aprofundamento da crise.
Antipolítica e o Caminho para a Necropolítica, a antipolítica se alimenta da insatisfação popular, e sua ascensão é um reflexo da incapacidade do sistema político de oferecer soluções para os problemas sociais. No entanto, em vez de promover uma renovação dos mecanismos democráticos, essa postura reforça a ideia de que as instituições são incapazes de prover respostas adequadas. O resultado é uma forma de governança que, em vez de se preocupar com o bem comum, legitima a marginalização de certos grupos, a concentração de poder e a exclusão do debate público.
A necropolítica, em sua essência, é a política da morte, onde o Estado decide quem vive e quem morre, quem tem direito à vida e quem é descartável. No Brasil, vemos essa lógica aplicada de diversas formas.
A violência policial nas periferias, a negligência com populações vulneráveis como os povos indígenas e quilombolas, e a falta de uma política sanitária eficaz durante a pandemia de COVID-19 são exemplos claros da necropolítica em ação. Em vez de proteger os cidadãos, o Estado se omite ou age de forma violenta, perpetuando a desigualdade e a exclusão. Essa necropolítica não é apenas física, mas também simbólica.
O esvaziamento das esferas de participação política é uma forma de morte democrática.
A política, em sua essência, deve ser o espaço de construção de consensos, de debates plurais e de busca pelo bem-estar comum. Quando esses princípios são abandonados em prol de um espetáculo de violência e polarização, estamos, de fato, testemunhando a morte da política.
A Urgência de Reocupar a Praça Pública. Se o destino da política no Brasil parece sombrio, é justamente na resistência ao avanço da necropolítica que reside uma possível saída. Reocupar o espaço público – não apenas o físico, mas o simbólico – é uma tarefa urgente para aqueles que acreditam na democracia e no poder transformador da política. Essa reocupação passa pela construção de uma nova ética política, onde o diálogo, a transparência e o compromisso com o bem comum sejam valores centrais.
A política deve voltar a ser vista como a “arte do possível”, um meio para melhorar as condições de vida da população, e não como uma arena de disputas mesquinhas e violentas. Também é essencial que o cidadão comum retome seu papel ativo na política.
O desencanto com os partidos e a política institucional não pode levar à apatia, mas sim a uma revitalização das formas de participação popular. Movimentos sociais, ONGs e outras formas de organização civil têm um papel crucial em pressionar o Estado a retomar sua função primária de promover o bem público. Urge refletir sobre o cenário político brasileiro atual para entender que ele é um reflexo de uma crise mais profunda que atinge a própria ideia de política.
A necropolítica, com sua face de violência e exclusão, tem se infiltrado nas práticas de Estado, colocando em risco a vida e a dignidade de milhares de cidadãos. Reverter esse quadro passa pela reocupação simbólica da ágora, pela retomada do espaço público como lugar de debate e construção coletiva, e pela reafirmação de que a política, em sua essência, deve servir à República, isto é, à coisa pública, ao bem de todos.
Autor: José André da Costa , msf. É Padre dos Missionários da Sagrada Família, Integrante da Comunidade de Vida Religiosa dos Padres Saletinos, Professor de Ciências Sociais, Estudos Sociológicos em Educação, Atividade de Extensão em Educação Ambiental, Filosofia Geral e do Direito, Tópicos Avançados em Agronomia, nas Faculdades Integradas da América do Sul – INTEGRA – Caldas Novas – GO. Também escreveu e publicou no site “A busca da vida ética”: www.neipies.com/a-busca-da-vida-etica/
O candidato protofascista a prefeito de São Paulo proclama que se comporta como idiota com o objetivo de subir nas pesquisas eleitorais.
Em tal atitude, até agora bem sucedida, se revela a estratégia que aposta na idiotia como atalho para a conquista do poder político.
O professor Muniz Sodré, ao analisar o destampatório que abala o debate eleitoral paulistano (FSP-1/9), pode ter nos oferecido uma preciosa chave de decifração para a lógica que preside, nos quatro cantos do mundo, a degradação atual do processo civilizatório.
Para explicar o sucesso momentâneo de semelhante aberração, Muniz Sodré foi buscar no berço da civilização ocidental as origens da palavra idiota.
Na Grécia antiga, os “idiotes” eram aqueles centrados em negócios privados, totalmente alheios ao ordenamento da vida pública. No polo oposto, estavam os “politikós” que, na Ágora, se ocupavam das ideias, programas e projetos coletivos que definem as várias dimensões da vida humana.
Com o significado dissecado em sua origem, as duas palavras atravessam os séculos como expressão perene da luta política.
Os “idiotes” da política sempre estacionam seu pato amarelo na Paulista ou na Faria Lima. O fogo de palha irresponsável só prospera articulado aos “idiotes” da supremacia absoluta do poder privado.
Não é, portanto, só disputa eleitoral, mas a contraposição, eterna e atemporal, entre civilização e barbárie. “Idiotes” ou “Politikós”, eis a questão!
Filósofo Mario Sérgio Cortella explica a origem da palavra idiota e faz reflexão sobre a política: https://youtu.be/er2aem_Zax0?t=62
É interessante pensar na vinculação entre gestão e resultados escolares. Souza (2019) destacou que nas escolas com mais condições democráticas e pedagógicas os alunos apresentaram melhores resultados, indicando relação positiva entre ambientes democráticos e aprendizagem estudantil.
A eleição de diretores tem sido um dos dispositivos que sustentam a gestão democrática da escola no Brasil. No entanto, o processo democrático não se esgota nela e precisa ser fortalecido pela participação. A Lei no. 16.088/2024, o Decreto nº 57.775/2024 e, mais recentemente, o Edital no. 01/2024 publicado pelo executivo estadual põem centralidade na figura do diretor, colocando na arena de disputas o seu papel e o aparato normativo que o circunda. Tal centralidade indica uma concentração de poder no interior da escola; a autonomia da escola pode ser entendida como a autonomia do diretor. Mais, estamos frente a disputas políticas por entendimentos diferentes de democracia.
O Edital nº 01/2024 para a seleção de diretores e vice-diretores da rede estadual gaúcha faz parte da implementação da nova Lei de Gestão Democrática, recém sancionada. Essa lei trouxe mudanças significativas no processo de escolha de diretores escolares, adotando critérios técnicos e de desempenho num processo de seleção. Tal movimento não é exclusividade da rede estadual gaúcha; a rede municipal de educação de Porto Alegre, por exemplo, tem nova regulamentação para eleição de diretores desde janeiro de 2020.
Tal normativa responsabiliza exclusivamente os diretores pelos resultados dos estudantes em avaliações de larga escala sob o pretexto de garantir uma suposta qualidade educacional ( Massena, 2023 ). Suposta porque estudos como o de Riscal (2016), mostram que as maiores médias do Ideb se referem às escolas em que os Conselhos Escolares sempre definem e validam os aspectos pedagógicos, financeiros e administrativos. Além disso, a pesquisa por ele realizada evidenciou outros fatores relacionados à gestão democrática que influem positivamente no Ideb.
E é interessante pensar nessa vinculação entre gestão e resultados escolares. Souza (2019) destacou que nas escolas com mais condições democráticas e pedagógicas os alunos apresentaram melhores resultados, indicando relação positiva entre ambientes democráticos e aprendizagem estudantil. No entanto, os últimos governos estaduais e municipais de Porto Alegre parecem não estar alinhados com as melhores práticas apontadas por pesquisas científicas.
Além do já sabido sucateamento das escolas, do desmantelamento dos planos de carreira, da precarização do trabalho docente, da atomização dos processos, o esvaziamento dos espaços de participação e decisão coletivos atrelados a uma concepção de sociedade que se distancia da perspectiva de educação cidadã, na qual estão implicadas não só as condições da oferta educacional, mas sobretudo as condições de vida na cidade e no estado.
O Edital retoma a nova Lei de gestão democrática quanto às atribuições dos diretores e vices: representar, coordenar, apresentar e submeter, organizar, manter, gerir, dar conhecimento… Um escopo de gestor, numa perspectiva gerencialista, que coloca o diretor em posição de subordinação em relação à mantenedora. Também, na inscrição no processo seletivo, os candidatos podem indicar três escolas para atuação, possibilitando que o executivo crie um banco de recursos humanos, com “talentos” na área da gestão escolar.
O risco?
A consolidação de uma carreira de gestão, apagando a ideia de professor, de compromisso político-pedagógico no qual toda comunidade está implicada. Considerando essa mesma hipótese, amplia-se o tempo do mandato, de três anos para quatro anos com possibilidade de reconduções independentemente do número de mandatos.
No Edital no. 01/2024 os critérios técnicos e as avaliações objetivas passam a ter maior peso na escolha de diretores. A seleção prevista pelo edital consiste em 5 etapas; do curso autoinstrucional ao pleito eleitoral, aproximadamente 3 meses. Ainda, as mudanças foram apresentadas por meio de uma live no Youtube, sem espaço para debate.
Houve um aligeiramento do processo?
Ao que parece, sim. Nenhuma discussão com as comunidades escolares, com as universidades, no último trimestre do ano letivo. Professores que somos, sabemos das múltiplas e intensas demandas dessa época no ambiente escolar. Esse é o modus operandi autoritário da Seduc/RS (Saraiva; Chagas; Luce, 2022) – e o grande jogo político parece ser o da entrega de responsabilidades para a sociedade desorganizada, sem um claro projeto de mundo; cria-se um campo de disputa que limita e conforma a própria disputa. Da mesma forma, a escola!
O conteúdo das provas e a bibliografia indicada contemplam funções gerenciais, tipos de liderança (incluindo líder-coach), ferramentas para melhoria de desempenho de equipe, proatividade e feedback. Tais elementos possivelmente basearam-se na crença da irracionalidade em termos de gestão e no déficit de liderança, é latente um tipo de compreensão do fracasso escolar como decorrente da precariedade da administração de recursos e da gestão.
Contudo, tenho outras hipóteses para esse dito fracasso: teria relação com a precariedade em termos de infraestrutura? Com o percentual muito significativo de contratos temporários em detrimento de profissionais efetivos – há apenas 41% de professores efetivos na rede (Brasil, 2023) (aliás, fator que impacta também nas eleições, considerando que somente profissionais efetivos estão aptos a concorrer)? Sobrecarga docente? Desvalorização da carreira (incluindo, obviamente, as questões salariais)? Questões para pensarmos…
Tendo sido aprovados na prova, os profissionais ao se inscreverem para a eleição, devem apresentar um plano de gestão para melhorar a qualidade da educação. Aqui, me repetirei: ora, poderá o diretor planejar e implementar ações que deem conta das condições da oferta educacional que sustentam uma educação de qualidade?
Não esqueçamos da nova Lei. Tudo indica que plano de gestão e projeto político- pedagógico serão entendidos como similares. Como instrumento de determinado mandato. De acordo com a Lei no. 16.088/2024, o projeto político-pedagógico será o principal instrumento de gestão de determinada equipe e não da escola. Logo, o projeto político-pedagógico não representará a expressão da autonomia da instituição com legitimidade administrativa na comunidade.
Por fim, a votação, quarta etapa do processo de seleção, será realizada no formato eletrônico, por meio de aplicativo criado para tal fim pela Seduc/RS. No entanto, o processo eleitoral ainda será regulamentado, por Portaria, a ser publicada em outubro. As normativas publicadas até agora não dizem do cálculo do resultado: será ele paritário? A acompanhar.
Com uma concepção restrita de educação, mantém-se a eleição de diretores no esvaziamento de uma cultura escolar mais democrática. Por enquanto, um “novo modelo de governança” que se utiliza do termo “gestão democrática” para aplicar algo que já vem estruturado em modelos antigos, sob uma nova configuração, ainda fortemente ligada ao modelo empresarial. Esse “novo modelo” pode implicar em pouca participação das comunidades nos processos decisórios, mascarando tensões, dissensos e disputas em torno de diferentes projetos de educação e sociedade.
A improvisação, a pressa ou a distância entre gabinetes ministeriais e escolas, professores e alunos podem fazer naufragar as melhores tentativas, assumindo que se trata de uma tentativa cujos motivos são efetivamente pedagógicos.
Em relação à virtualidade na escola, há muito mais preconceito do que conhecimento certo da sua implementação e das suas conquistas. A experiência da pandemia não foi muito útil, tornou-nos pessimistas quanto aos seus resultados. Em relação à presencialidade, com a qual estamos historicamente familiarizados, temos amplo conhecimento das suas condições, da sua implementação, das suas modestas conquistas e ainda assim há muito preconceito em relação a ela, só que de natureza diferente.
Neste momento o GCBA (Governo da Cidade de Buenos Aires) aparentemente pensa, entre outras mudanças, em reintroduzir o ensino virtual, online, de algumas disciplinas no ensino secundário.
Se assim for, e mesmo que não o seja assim, justifica-se uma reflexão séria porque a improvisação, a pressa ou a distância entre gabinetes ministeriais e escolas, professores e alunos podem fazer naufragar as melhores tentativas, assumindo que se trata de uma tentativa cujos motivos são efetivamente pedagógicos.
Não se trata de leviandades, nem de experiências massivas ou proibições obrigatórias; é preciso pensar nas condições objetivas das nossas escolas, ou seja, suas infraestruturas, seus recursos tecnológicos, seus professores e os seus alunos, e pensar a partir daí que mudanças razoáveis podem ser introduzidas e quais seriam as condições para que essas mudanças permitam aos alunos aprender mais, aprender melhor e compreender a natureza do conhecimento do mundo em que vivem, seja ele a sua casa, o seu bairro, o cidade, etc.
Dispostos como somos nós, os educadores, estamos a criticar quase a priori qualquer mudança, levemos em conta alguns fatos entre os quais não menos importante é que a presencialidade histórica do nosso sistema educativo não tem garantido mais ou melhor aprendizagem; na verdade, se a virtualidade entra em cena – para além de razões políticas– é porque a presença simultânea de professores e alunos nesta invenção moderna que é a sala de aula já não garante mais nada. É necessário voltar aos índices das avaliações já conhecidas?
Obviamente, a virtualidade devidamente implementada requer modificações pedagógicas, tecnológicas, administrativas, recursos económicos e tempo; requer também a revisão de algumas representações imaginárias, como a ideia de que com a presença de alunos e professores na sala de aula é, em si, uma atividade de aprendizagem interativa, construtiva e colaborativa; a verdade é que isso raramente ocorre, não é acumulando crianças que ocorre a famosa interatividade pedagógica.
Existem outros imaginários docentes em dança, por exemplo, que, de alguma forma, a simultaneidade de alunos e professores permite ou facilita um controle de corpos e mentes que não é apenas uma ficção, mas também é impossível e desnecessário e colide com a autonomia e formação crítica que a escola deveria teoricamente incentivar em seus alunos.
O que nos leva a pensar que os alunos da sala de aula estão realmente lá?
Há muito tempo sabemos que os alunos na sala de aula se encontram num local que raramente os atrai; sabemos que em geral a parte mais atrativa da sua experiência escolar acontece dentro da escola, mas fora da sala de aula; não é obrigando-os a ficar sentados durante horas que as quatro paredes da sala se transformam em sala de aula e o tédio se transforma em aprendizagem; não podemos continuar a ignorar que a obrigação é uma faca de dois gumes.
Um fato irrefutável pode ser argumentado a favor da mudança: as cabeças das crianças matriculadas na escola hoje são formatadas por tecnologias com as quais a escola está muito atrasada. Ainda hoje, há muitos professores que não sabem utilizar o Classroom, plataforma que, quando bem utilizada, pode ser extremamente um valioso aliado. A relação entre as crianças e a tecnologia alterou o tempo dos alunos e dos professores, enquanto o tempo escolar permaneceu praticamente inalterado; a organização do tempo escolar é, justamente, de outro tempo; os responsáveis por essa organização deverão ser notificados!
O tempo na escola é um verdadeiro obstáculo pelo seu descompasso com o tempo cultural, mas, sobretudo, e como parte dele, com o tempo dos sujeitos. Acontece que o tempo cronológico da presencialidade não coincide com o tempo lógico e subjetivo das crianças, nada garante que meninos e meninas estejam dispostos a prestar atenção e aprender das 8h às 8h40, por exemplo.
É complexo, mas momentos de presença e encontro de alunos e professores na escola e momentos de virtualidade em que as crianças têm maior vontade subjetiva de se conectar com as propostas de seus professores poderiam muito bem ser vivenciados em algumas escolas, em alguns anos, com alguns professores.
Se aspiramos que um aluno que está na sala de aula esteja simultaneamente na aula, é necessária uma articulação entre o tempo da criança e o tempo escolar, e a virtualidade e especialmente alguma forma híbrida pode ser uma resposta a um problema com o qual o sistema educativo, pelo menos em algum momento, terá que se envolver.
Autor Eduardo Corbo Zabatel. Ensayista, Psicólogo, Profesor de Historia, Magist en Ciencias Sociales. Mora em Buenos Ayres, Argentina. Também escreveu e publicou no site “De empreendedores e falhas”: www.neipies.com/de-empreendedores-e-falhas/
Para quem escreve, a beleza da vida está em ser lido pelos que estão próximos. Como é bom escrever para os amigos do Facebook! A beleza da vida não está longe denós.
Uma mulher de quarenta e poucos anos, vou chamá-la de Rebeca, queixava-se de dores musculares generalizadas. O médico não encontrava causa para sua dor até que, ouvindo-a mais e mais, descobriu a grande frustração vivida por ela.
Ambicionava ser escritora publicada nos Estados Unidos. Enviou manuscritos para editoras de cidades que julgava de grande beleza: Nova Iorque e Chicago. As respostas sempre negativas doeram muito. Desistira de escrever e adoecera.
Quando fazemos algo só pelo resultado exitoso, em acordo à expectativa que críamos, talvez não gostemos muito da atividade, pois, quando gostamos, quando somos “do ramo”, o resultado importa bem menos.
No caso de um escritor, o insucesso frente às editoras não o fará desistir. Por quê? Porque a atividade em si é prazerosa para ele.
Talvez Rebeca seja do “ramo”, mas a sensação de que a “beleza” está lá longe a faz perder o gosto. Sofreria pela falsa crença de que só estaria realizada se fosse escritora reconhecida em belas cidades norte-americanas.
Então, o médico conversará com ela sobre a dor menor, as musculares, e a dor maior, a frustração. E colocará duas questões para ela pensar: o ato em si de escrever não é o que lhe deixa realizada; ou deixa realizada, mas está sendo prejudicado pela expectativa inadequada que criou.
No segundo caso, livre dessa expectativa apropriada para quem é norte-americano, inapropriada para quem é brasileira, a frustração cederá a uma nova visão. E as dores irão cedendo.
Para quem escreve, a beleza da vida está em ser lido pelos que estão próximos. Como é bom escrever para os amigos do Facebook! A beleza da vida não está longe de nós.
Vamos falar a verdade de uma vez aos nossos amigos, filhos, crianças e adolescentes? Estamos destruindo tudo: florestas, rios, matas, biomas…tudo. Ainda não há um culpado, claro, pois fica difícil apontar um, quando todos podem ser culpados. Mas como gostaríamos de poder nominar os malfeitores!
Quem tocou fogo e, igualmente, quem viu e não gritou. Quem fotografou um pôr de sol deslumbrante e trágico, mas não se indignou, todos, poderemos ver agora em como será o novo sol em meio a escuridão que nos aguarda.
O sol de cada dia está cada vez mais bonito, E quando ele desce, então, é de um laranja jamais visto. Todos os dias, em seus finais, temos um espetáculo, gratuito, poético. À sua perfeição, ninguém resiste. Fantástico ele! E, igualmente, desesperador.
Nosso sol não brilha como antes, assim como nossa esperança de que ainda é possível colocar um fim nessa sanha destruidora que se abate sobre nós. Talvez sejamos a única espécie que põe fogo em sua própria casa. Como não temos ainda para onde ir, nossos netos e seus descendentes sequer terão um sol para fotografar. Ou terão somente a ele.
Será o ódio incontido? Será o prazer em ver queimar?
Em alguns momentos, estamos vendo como que urnas no horizonte, queimando e arrasando o que tem pela frente. Sequer há prisões que acolham tantos bandidos representados, tamanhos os seus crimes, repetidos, ano após ano. E sou tentado a pensar em seus gritos, em meio as labaredas de urnas torrando no horizonte;
-Queimem todas! Se não fomos nós os vencedores, queimem todas. E aos que venceram, que agora apaguem o fogo.
Mas não creio, não. Volto à realidade e tento me aquietar, pensando que sempre foi assim, períodos de seca e de queima, para, em seguida, nos tempos que antecedem a primavera, em um mês, tudo estar verde e florido, com os campos recompostos de pastos verdejantes. Mas agora sem Pastor.
Mesmo estupefata, assustada ou desamparada, a humanidade, em seu curso, precisa acreditar. Crendo, evita a loucura.
Imaginar que o fogo pode reaver mais brilho em seu verde, equivale a pensar que temos de voltar a andar sobre cavalos nas ruas de nossas cidades. Se o mundo assim o quisesse, estaríamos cobertos de fuligem o ano inteiro. É o que o homem do campo, sempre isolado que foi por séculos, seja pelo desprezo oficial ou pela indiferença de quem já partiu dali, aprendeu no manejo de suas terras, práticas e costumes que não fariam diferença a ninguém, até alguns anos atrás. Mas agora fazem. Porque tudo mudou!
O campo é logo ali, o sol é logo ali, e a fumaça de milhares de quilômetros provoca coriza nos incautos que sempre acreditaram que os problemas dos outros…são dos outros. E isso também mudou. Pelo tamanho do nosso país, jamais pensaríamos que o fogo que nos é alheio, quase alcance nossas janelas. Bem, a fumaça já as atingiu.
Mas e os rios? Onde não se toca fogo e que já dão sinais que estão indo embora? Como explicar que uma natureza exuberante pode dar lugar a um deserto sem vida, seco e cheirando a permanência da morte? Fomos longe demais em nossas intenções de controle e exploração do nosso meio ambiente. Nossos últimos governos e sua legislação, são frágeis e seu controle, sempre insuficiente.
Somos também nós os criminosos do meio ambiente?
Em nosso silêncio. E se já não chove, em algum momento nós mesmos incitamos o clima a não chover. Não há crime anterior que não esteja se manifestando agora. E os mesmos delitos ambientais se avolumam, diante de uma sociedade que se mostra apática e sem reação. As multas gigantes, resultantes desses crimes sequer são pagas. Vê-se o maquinário sendo queimado na floresta, como que nos lembrando de ações enérgicas das autoridades. São fatos isolados. Lá no Congresso, todos sabem que os danos extrapolam o que a mídia tenta nos mostrar, como algo que pareça fiscalização ou Justiça.
O que vemos, no acumulado das agressões ao meio ambiente no país, multipliquemos por 10. A fuligem é apenas um lembrete.
E o mundo assiste impotente o que era o seu pulmão vir a degenerar-se, com que um gigante que sucumbe diante do vício de um bilhão de cigarros medonhos. Seus pulmões, a continuar suas queimadas, logo não vão mais poder ceder à respiração que o planeta precisa. Então, será tarde!
Ainda há esperança para que os vestígios cheguem à Miami e estraguem o piquenique. E até o fim de semana, sem fuligem, ainda está garantido na Key Biscayne. ¹ Por enquanto. Mesmo que o fumacê atravesse o Atlântico a faça tossir nossos patrícios, os protestos de fora poderão demorar a chegar em Brasília. E se chegarem, quem se importa em pegar a palavra?
Por que na capital, nada pode ser feito a partir de seus parlamentares? Duvida-se! Ali estão os interesses cruzados e por isso, poucos protestos ou mesmo ideias surgirão. Há muitos deles que toleram a sujeira toda, pois possuem terras, gado, fazendas, tudo. Como vão se insurgir contra seus interesses? Eles não entendem que ao exaurir a terra até o seu limite, não haverá retorno e que seus latifúndios, um dia, poderão arder em chamas.
“As pessoas raramente acreditam que a origem de seus problemas é a sua iniquidade e estupidez. A culpa é sempre de alguém ou de alguma coisa externa.” ² Nada a esperar, portanto, de um Congresso decidido a somente espezinhar e emparedar um governo ainda titubeante. Os outros é que tem culpa.
Os outros poderemos ser nós agora, já que respiramos o mesmo ar. O fogo ainda será uma arma política de descrédito; anotem! ³
Assim que o Rio Madeira, ou mesmo o Rio Paraguai secar, nossos programas turísticos nestas paragens irão desaparecer. E nem os turistas endinheirados de fora poderão se refestelar, uma vez que as pousadas viraram carvão.
Teremos ainda de mudar levemente o verde de nossa bandeira, porque já não moramos em um país tão verde assim. Talvez colocar ali uma pequena chama de fogo ardente, para nenhum de seus habitantes do futuro, esquecer que neste país havia uma floresta imensa. Que o fogo e a indiferença consumiram.
_Brasil, estas nossas verdes matas…e este lindo céu azul de anil. E não é que a Aquarela Brasileira terá de mudar sua letra! Alguém pode falar para o Martinho da Vila?
Aos que ainda tem esperança, pequem suas vassouras e tentem ajudar. Nem se para isso, sejam elas representadas pela sua voz, gritos, protestos, indignação. Vamos jogar água neste fogo abjeto e levar nossas crianças para que nos ajudem apagá-lo, nunca permitindo a sua repetição. Vamos tentar explicar a elas que o homem não é tão ruim assim e que tudo pode voltar à normalidade, neste jardim que já foi do Eden. Temos de nos esforçar e dar respostas; com o mínimo de esperança.
Teremos de conviver ainda com o nariz escorrendo e com aquele amigo querido de infância, que se tornou negacionista, sabe-se lá a mando de quem. Falando de que não há nada de mudança climática a se preocupar… (Aí já foi demais! Quando comecei a espirrar, pedi licença…e sumi.)
Aos nossos filhos, crianças e adolescentes, vassouras simbólicas para apagar os fogos do desgosto de agosto. E sempre a verdade!
Aos negacionistas, a fumaça.
Saudades de quando estes Trópicos eram somente tristes!
Breves observações:
1) Kay Biscayne é um bairro chique de Miami
2) Robert Greene, as 48 Leis do Poder, pág 342
3) Uma das fazendas que mais queimam, é a Fazenda Bauru, quase na divisa do Amazonas. Em 2022, foi descoberto um esquema para copiar o “dia do fogo”, ação descrita por fazendeiros do PA, via Whatsapp, para realizar protestos contra as políticas ambientais. Todos impunes até hoje. (Bruno Fonseca e Gabriel Gama;
4) Segundo o MapBiomas, quase 6 milhões de hectares já queimaram, um Estado da Paraíba inteiro.
A ausência de valores e escolhas, ou mesmo quando temos valores que inflacionam e desinflacionam constantemente, a vida torna-se entediante, e, com isso, há perda de sentido. O que fazer diante de uma vida contaminada pela cultura do tédio? É possível, educacionalmente, criar estratégias para vencer a cultura do tédio?
A palavra “sentido” remete a muitos significados. Se formos ao Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, encontraremos 18 significações que o termo carrega em nosso idioma. Não nos interessa aqui analisar cada uma delas. No entanto, gostaria de abordar brevemente dois aspectos existenciais complementares que se tornam decisivos na abordagem que estou fazendo: trata-se dos termos “direção” e “significação”.
O conceito de direção está associado à ideia de rumo, de indicativo, de lugar futuro. Se pergunto “em que sentido devo seguir?” estou me referindo à ideia de direção, projeção, intencionalidade. Certamente, é essa “falta de sentido de direção” que tomou conta da vida de quem está imerso na cultura do tédio. O outro sentido existencial diz respeito à significação. “Uma vida com sentido é uma vida significativa […]”, diz La Taille (2009, p. 75), e é significativa porque está ancorada em valores, escolhas, metas.
A ausência de valores e escolhas, ou mesmo quando temos valores que inflacionam e desinflacionam constantemente, a vida torna-se entediante, e, com isso, há perda de sentido. O que fazer diante de uma vida contaminada pela cultura do tédio? É possível, educacionalmente, criar estratégias para vencer a cultura do tédio?
Para La Taille (2009, p. 79), “[…] somente uma cultura do sentido pode vencer uma cultura do tédio”, mas para que tal cultura se estabeleça são necessárias duas condições: i) que o sujeito se veja imerso num contexto problemático; ii) que estejam ao alcance do sujeito elementos que possam alimentar a construção de novas soluções. Concordo com La Taille que ambas as condições estão presentes no contexto atual e é sobre elas que a educação, de forma mais ampla, e a escola, de forma mais específica, ocupam um lugar de destaque.
A educação é considerada por La Taille a “atividade incontornável” para que se torne realidade a construção de uma cultura do sentido, e a escola pode ser “[…] uma verdadeira usina de sentidos” se conseguir promover espaços de convivência e de cidadania compatíveis com a cultura do sentido. Contudo, para que isso aconteça é necessário que os responsáveis de ambas (educação e escola) sejam capazes de executar tarefas imprescindíveis para a promoção da cultura do sentido.
Quem seriam esses responsáveis e quais seriam essas tarefas? Para La Taille, os responsáveis pela educação e pela escola são os adultos (pais, professores, lideranças, diretores, coordenadores), e uma das primeiras tarefas é cuidar do mundo.
Ao analisarem a tese de que estamos deixando para nossas futuras gerações uma sociedade e um planeta em péssimas condições, os franceses Denis Jeambar e Jacqueline Rémy (2006), em seu livro Nossos filhos nos odiarão, sentenciaram nosso tempo da seguinte maneira: “Uma sociedade que não cuida de seu futuro é uma sociedade que não ama seus filhos.” Ancorado nas considerações dos escritores franceses, La Taille (2009, p. 82-84) analisa a contradição dos que hoje comandam o Planeta: “Quando jovens, os adultos que hoje têm entre 45 a 65 anos, contestaram o conformismo de seus pais […]”, criticaram a sociedade individualista, consumista e autoritária que os tornavam vítimas; quando esses jovens cresceram, “ocuparam seu lugar no mundo do trabalho, criaram famílias, desenharam contornos de convivência, se alimentaram do planeta e dirigiram a educação.”
A contradição reside na ação diametralmente oposta aos ideais que pregavam 40 anos atrás: de contestadores do egoísmo e individualismo construíram uma sociedade hiperindividualista e de relações sociais fragmentadas; de críticos à sociedade do consumo, produziram uma verdadeira bulimia de consumo; de proclamadores da paz e do amor, elegeram a agressão e a violência como características normais de convivência; de zombadores da segurança dos seus pais, vivem hoje na fantasiosa segurança dos condomínios fechados e das companhias de seguros; exigiram a valorização dos jovens e inventaram o culto da juventude, mas hoje descuidam da educação, direito fundamental para uma juventude autêntica. Penso que mais uma vez são apropriadas as palavras dos escritores franceses Denis Jeambar e Jacqueline Rémy (2006, p. 8) quando dizem:
Tivemos todos os trunfos na mão, exercemos sem piedade nosso direito de inventário sobre os valores que as gerações anteriores nos haviam transmitido, crescemos em uma sociedade em plena expansão econômica. E que futuro preparamos para nossos filhos? Somos a primeira geração que legará à próxima menos do que recebeu da anterior. (JEAMBAR; RÉMY apud LA TAILLE, 2009, p. 84).
O que deu errado?
Qual foi o caminho torto que escolhemos para chegar a essa situação que tanto nos amedronta? Como promover uma cultura do sentido diante de uma realidade que está se tornando pesadelo?
Para La Taille (2009, p. 86), “[…] não há ‘cultura do sentido’ sem educação para o sentido.” Para que isso aconteça é necessário reabilitar a verdade; dar crédito à autêntica política; denunciar a falsidade dos apelos publicitários; desmascarar a perversidade dos falsos ídolos; ser mais precavido diante do entusiasmo ingênuo que muitos têm em relação aos meios tecnológicos; ser mais cuidadoso com os julgamentos precipitados e, por isso, preconceituosos; recolocar o conhecimento como âncora essencial do ato educativo; e possibilitar “[…] às novas gerações uma bagagem intelectual sólida.” (LA TAILLE, 2009, p. 101).
Referências:
LA TAILLE, Y. de. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.