O sistema educacional brasileiro, com suas reformas alinhadas aos princípios e preceitos neoliberais, caminha a passos largos na direção do paradigma da “educação para o lucro” caracterizado por Nussbaum (2015, p.13-26) como uma educação que produz “gerações de máquinas lucrativas” em vez de formar “cidadãos íntegros”.
Em seu manifesto ‘Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades”, a filósofa americana Martha Nussbaum (2015) faz referência a crise silenciosa da educação provocada pela forma como as reformas educacionais tem pautado seus rumos.
“Obcecados pelo PNB, os países – e seus sistemas de educação”, denuncia Nussbaum (2015, p.4), “estão descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia”.
Ao centrarem a educação no lucro deixam de considerar o desenvolvimento humano em sua essência. A retirada das disciplinas humanísticas e as artes dos currículos escolares, contribuem para o embrutecimento da civilização. “Se essa tendência prosseguir”, alerta Nussbaum (2015, p.4), “todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros”.
Na perspectiva de Nussbaum formar “cidadãos íntegros” é imprescindível para “o futuro da democracia” e com isso ela justifica a presença das humanidades e das artes nos processos formativos, pois estas possibilitam a pavimentação de três dimensões da cidadania democrática: pensamento crítico, cidadania universal e imaginação narrativa.
A dimensão do pensamento crítico, também pode ser entendida como pensamento ou pedagogia socrática. Sócrates, pontuou sua vida, bem como a perdeu, defendendo que a capacidade de pensar e argumentar é indispensável e “valiosa para a democracia”. (Nussbaum, 2015, p.48). Em tempos obscuros e de incertezas, onde o sentimento é que a lei do mais forte prevalece, a autora traz o ideal socrático como modelo a ser seguido, pois acredita que, especialmente nas sociedades plurais da contemporaneidade, é salutar que os alunos aprendam a pensar criticamente e desenvolvam a capacidade de argumentar por si mesmos, responsabilizando-se pelo seu raciocínio, com ênfase no respeito mútuo quando ocorrer a troca de ideias, seja no seu ambiente, ou nos diferentes espaços globais.
Nussbaum (2015) defende que a argumentação é uma prática social e pode ser ensinada e aprimorada no processo educativo. Salienta que não é utópico querer transformar as salas de aula de acordo com a pedagogia socrática, pois basta criar ambientes de respeito à inteligência das crianças e estar atento às suas necessidades. E, é nesse sentido que Nussbaum defende a filosofia, e, demais disciplinas das ciências humanas como competências que a humanidade precisa “desesperadamente para manter as democracias vivas, respeitosas e responsáveis” (Nussbaum, 2015, p.77).
A segunda dimensão diz respeito à cidadania universal. Nussbaum (2015) aponta que os problemas ambientais, econômicos, políticos e religiosos, ao mesmo tempo que “têm um alcance global” precisam ser resolvidos. E para que isso aconteça é necessário a cooperação. Nesse sentido, a autora aposta na educação, independente do nível, para que os estudantes consigam desenvolver “a capacidade” de se descobrirem sujeitos de uma nação e mundo heterogêneos, apropriando-se da natureza e da história desses grupos, tornando-se assim “[..]cidadãos do mundo, ou seja, pessoas que percebem que seu país faz parte de um mundo complexo e interligado e que mantêm relações econômicas, políticas e culturais com outros povos e nações” (Nussbaum, 2015, p. 91).
Nussbaum (2015) salienta que a cidadania universal precisa de conhecimentos verdadeiros, que podem ser adquiridos sem uma formação humanista. Porém, a cidadania responsável requer a capacidade de avaliação, de compreensão, de entendimento, em especial, de como a narrativa foi construída, e, por esse viés, é a formação humanista que vai proporcionar ao aluno as condições necessárias de aprendizagem. A autora endossa que “a história do mundo e o conhecimento econômico […] devem ser humanísticos e críticos se quiserem ter alguma utilidade na formação de cidadãos do mundo inteligentes”, que estes sejam capazes de fornecer “uma base útil para os debates públicos que devemos realizar se quisermos cooperar na solução dos principais problemas da humanidade” (Nussbaum, 2015, p.94).
A terceira e última dimensão que trataremos nesse texto diz respeito à imaginação narrativa, também entendida como a capacidade de pensar e se colocar no lugar do outro, no que tange as emoções, os desejos, os anseios. Nussbaum (2015) defende que compreender esse desenvolvimento é um conceito fundamental “sobre a educação democrática”.
A autora reconhece que tais ensinamentos devem se originar na família, porém as universidades e escolas também desempenham um papel importante para a concretização de tais capacidades, bem como, para que os objetivos sejam atingidos, faz-se necessário “um lugar de destaque no currículo para as humanidades e para as artes” (Nussbaum, 2015, p. 95), dessa forma, se desenvolve uma educação participativa que estimula e aprimora a capacidade do sujeito dando-lhe condições de manifestar a sua imaginação narrativa, bem como “[…] desenvolver a capacidade de compreender os outros para além de um corpo, reconhecendo a existência de uma alma, fortalecendo os recursos emocionais e criativos da personalidade, possibilitando que nos maravilhemos conosco mesmo e com os outros.” (Fávero, Agostini, Uangna, Rigoni, 2021, p.177)
Para potencializar esse desenvolvimento, Nussbaum (2015) indica e justifica a importância das brincadeiras lúdicas na infância, as canções infantis, as histórias, a poesia, a literatura, as belas-artes, a dança, a música e o teatro. Manifestações necessárias para o desenvolvimento humano saudável e democrático, capazes de proporcionar, “tanto às crianças como aos adultos a motivação para ir à escola, formas positivas de se relacionar entre si e prazer com o esforço dedicado à aprendizagem” (Nussbaum, 2015, p. 118) consideradas imprescindíveis e necessários para mantermos viva a chama da resistência em prol da democracia, aspecto que passaremos a discutir na próxima seção.
O sistema educacional brasileiro, com suas reformas alinhadas aos princípios e preceitos neoliberais, caminha a passos largos na direção do paradigma da “educação para o lucro” caracterizado por Nussbaum (2015, p.13-26) como uma educação que produz “gerações de máquinas lucrativas” em vez de formar “cidadãos íntegros”.
Essa direção se torna explícita quando analisamos a reforma do ensino médio, a BNCC e mesmo a BNC-Formação. Empreendedorismo, flexibilização, competências, habilidades, gerencialismo, itinerários formativos, inovação, dentre outros, gestão da sala de aula, empresário de si mesmo, são termos do mundo empresarial que aos poucos foram sendo incorporados pelo currículo e passam a fazer parte da formatação da escolarização das crianças e jovens.
A democracia passa a sofrer sérios abalos quando instituições importantes como a escola, a universidade e mesmos os poderes instituídos do Estado passam a ser instrumentalizados pelos donos do capital e, no caso do Brasil, pela elite do atraso. Em seu estudo A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, o sociólogo Jessé Souza (2017) analisa com detalhes o pacto feito entre os donos do poder (elite do atraso) no Brasil com processos pseudodemocráticos para perpetuar uma sociedade cruel forjada na escravidão, ou seja, uma forma perversa de instituir com requintes de democracia um processo de dependência dos mais pobres marcados pela lógica da casa-grande/senzala.
Nas análises de Souza (2017), torna-se temerário e quase impossível avançar num processo de democracia profunda, quando impera na mentalidade da elite do atraso o imaginário de que o único problema do Brasil é a corrupção na política, de que o Estado patrimonialista é corrupto, enquanto que o mercado é santo e de que a solução de todos os problemas, inclusive na educação, é resolvida pela ação livre do mercado. Essa mentalidade possibilita a naturalização de um processo cruel da criação da ralé de novos escravos como continuação da escravidão do Brasil moderno. A mercantilização da educação contribui para pavimentar este processo, na medida em que desconstrói o princípio constitucional da educação como direito e passa a tratá-lo como privilégio de quem tem dinheiro para pagar.
Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal significa desenvolver nos espaços escolares processos de conscientização e de leitura crítica da realidade. Tal processo pode acontecer quando a sala de aula não for limitada um simples espaço e tempo de ocupação dos alunos com atividades mecânicas ou com o treinamento da recepção passiva de saberes técnicos.
Tornar a sala de aula um espaço vivo, dinâmico, colaborativo, dialógico, propositivo e provocativo para pensar outros mundos possíveis, é uma forma de resistência à racionalidade neoliberal. É dessa forma que a vida se mais importante que a ganância por lucros, o conhecimento mais significativo que a performance e a convivência fraterna, mais apreciada que a competição destrutiva. Assim, talvez teremos mais chances de fazer da educação um processo de humanização e de democratização da vida coletiva.
Para as que desejarem aprofundar e ampliar as leituras sobre essa temática indico os diversos capítulos que compõe a coletânea Humanidade: futuro comum, organizada pelos amigos Luiz Carlos Bombassaro e Paulo Cesar Nodari. Segue o link de acesso da coletânea completa:
Referências:
FÁVERO, Altair Alberto; AGOSTINI, Camila; UANGNA, Elia Maria Leandro; RIGONI, Larissa Morés. Educação das emoções e formação humana: a imaginação narrativa na perspectiva de Nussbaum. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Juniro Bufon (orgs.). Leituras sobre Martha Nussbaum e a educação. Curitiba/PR: CRV Editora, 2021, p. 173-188.
NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos porque a democracia precisa das humanidades; tradução Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
Autor: Altair Alberto Fávero – E-mail: altairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado em educação UPF. Também escreveu e publicou no site “Ética e docência: desafios do tempo presente”: https://www.neipies.com/etica-e-docencia-desafios-do-tempo-presente/
Edição: A. R.