Seu amor contagia. Suas palavras ateiam fogo nos corações ávidos de vida. Sua postura subversiva ante as demandas da vida desafiam seus pares a que deixem o ostracismo e voltem a acreditar num amor que valha a pena. Sinceramente, espero ser contado entre esses.
Todos sonhamos viver um grande amor. Do tipo que nos deixe sem fôlego, sem sono, sem chão. Uma paixão arrebatadora, digna de um roteiro de cinema.
Poucos, porém, realizam tal sonho. Daí vem a frustração, o desapontamento com o roteiro que a vida nos impõe. Somos vencidos pela rotina. A monotonia sabota nossos sonhos. Não há dragões a serem vencidos pelo mocinho valente, nem mocinha a ser salva. Não há príncipe para despertar a princesa de seu sono profundo. O sapo segue sendo sapo, mesmo depois do beijo.
As cores da vida vão se desbotando aos poucos. Temos aquela amarga impressão de termos sido enganados. Tudo não passou de um conto… não de fadas, mas do vigário. É esse súbito desapontamento com a vida o responsável por parir o que chamamos de maturidade.
Seguimos em nossa jornada, cativos do cronograma existencial. Acordar, escovar os dentes, tomar café, sair para o trabalho, voltar para casa, jantar, voltar a dormir. Dia após dia, os mesmos cenários, o mesmo script, a mesma dor, o mesmo sorriso amarelo, o mesmo tudo. Já decoramos nosso papel. Já sabemos o que dizer e como proceder em cada situação ‘inusitada’. Infelizmente, de inusitada só tem o nome. Tudo é absolutamente previsível.
De repente, 30. E mais um pouco, 40. E quando menos esperamos, 50, 60, 70, tchau.
Tomando emprestada a frase de um célebre humorista brasileiro já falecido, não tenho medo de morrer, tenho é pena. Pena por não ter vivido tudo o que havia para se viver.
Os maiores arrependimentos não são por aquilo que fizemos, mas pelo que deixamos de fazer.
Parafraseando Lennon, a vida vai passando, escapando-nos pelos dedos, enquanto estamos ocupados com outras coisas.
Mas há os que conseguem escapar da tirania das trivialidades. Há os que se recusam a ser simples engrenagens de um sistema fadado a entrar em colapso. Estes, embora tenham crescido, lá no fundo ainda são crianças. Abaixo da crosta, das camadas geológicas da alma, ainda há um magma buscando passagem, pronto para entrar em erupção.
Esses ainda cortejam a ingenuidade, o idealismo. Não importa o quão desgastados estejam seus corpos, suas mentes seguem intactas, ou nas palavras de Paulo, o apóstolo, seu ‘homem interior’ se renova dia a dia. São os que descobriram que há vida após a adolescência.
Estes não se contentam em ser plateia, figurantes ou coadjuvantes, antes, decidiram protagonizar a história escrita pelo Supremo Roteirista.
Apesar de crescidinhos, ainda acreditam que o mundo possa ser um lugar melhor. Ainda acalentam sonhos. O cinismo não logrou capturá-los.
Por isso, vivem e deixam viver quem quer que aposte no amor.
Seu amor contagia. Suas palavras ateiam fogo nos corações ávidos de vida. Sua postura subversiva ante as demandas da vida desafiam seus pares a que deixem o ostracismo e voltem a acreditar num amor que valha a pena.
O tempo avança, inventamos a roda e ficamos muito mais rápidos, mas ouso aqui afirmar: a escada é uma invenção ainda mais sábia pois nos leva “ao céu ” um passo de cada vez. É preciso ensinar a subir escadas!
Em meus mais inspirados dias destes 25 anos de atuação pedagógica, aprimorei técnicas psicomotoras de desenvolvimento infantil na primeira infância que auxiliaram várias gerações a alcançarem uma passagem tranquila para alunos e professoras pela fase desafiadora do Fundamental I.
Modéstia à parte, a criatividade sempre foi fundamento de atividade e mesmo no desafiador período de tempos pandêmicos as aulas de educação física e psicomotricidade transformavam qualquer ambiente e objetos em ferramentas essenciais para o desenvolvimento neurofuncional.
Sim, as crianças aprendem a ler, a escrever, a calcular, a organizar, a distribuir e a pensar sobre as ações desenvolvidas lá mesmo, no pátio, na educação física.
Entre as ferramentas permanentes das minhas aulas, a escada sempre foi utensílio básico para o desenvolvimento cognitivo global de um grupo de crianças. O ato que parece simplista, desnecessário e até de risco para alguns, faz com que a criança estabeleça metas, objetivos, escalas de mudança, vença o medo, compreenda seus próprios limites, ganhe força, equilíbrio, estabilidade, espaço temporal, agilidade, utilize-se de membros superiores e inferiores, estimule a curvatura normal da coluna e na pior das visões pedagógicas e com licença poética, “Alcance o céu”.
Pois bem, o tempo passou, já não atuo mais na educação formal e o que vejo hoje é que parece não termos absorvido o impacto de precisarmos nos manter vivos diante da tecnologia, não aprendemos mais a subir escadas.
Recordo-me da minha professora de primeira série que parou uma aula inteira, por várias vezes, as atividades para me ensinar a colocar o pé um em cada degrau. Pois assim aprendi com minha mãe, deficiente física, e isso me atrasava e aos colegas. Lembrei de escolas privadas que não colocam crianças a subir escadas em razão de um possível “risco” e lembrei também das escolas públicas que enjaulam as crianças em sala, muitas vezes por falta de espaço ou em prol de uma disciplina que criança, família e escola não tem ou ainda para digitalizar as experiências pensando apenas na rede social da vez.
Pois bem, o tempo avança, inventamos a roda e ficamos muito mais rápidos, mas ouso aqui afirmar: a escada é uma invenção ainda mais sábia pois nos leva “ao céu ” um passo de cada vez. É preciso ensinar a subir escadas!
Autor: Alexandre da Rosa Vieira, Acadêmico Academia Passofundense de Letras, cadeira 26. Também já escreveu e publicou no site a crônica “Educação: um buraco de minhoca”: https://www.neipies.com/educacao-um-buraco-de-minhoca/
Estamos próximos das eleições municipais brasileiras e em nossa querida Passo Fundo esperamos viver uma festa democrática. Buscando evoluir como sociedade, o mínimo que se espera é respeito a quem tem ponto de vista diferente, desde que a explanação da sua ideia não seja feita de maneira ofensiva e discriminatória.
Tornar-se professor da educação pública pressupõe anos de estudos, dedicação e ser aprovado em concurso seletivo. Normalmente essa conquista é motivo de orgulho, de satisfação pessoal e profissional, embora a crescente desvalorização do magistério. No caso de um professor de Filosofia, Geografia, História ou Ensino Religioso a carga de leitura costuma ser densa e exigente, com destaque para a reflexão sobre a vida humana em sociedade.
O título do artigo se refere a uma brincadeira entre amigos que já presenciei. Pergunta: “qual a diferença entre um professor de Humanas e um soco?” Resposta: o golpe pode ser de direita; ou então: qual a diferença entre um empresário e um soco? O golpe pode ser de esquerda.
Não se trata de dado científico, comprovado, porém se percebe que boa parte dos profissionais das ciências humanas tendem a defender ideias mais alinhadas com a esquerda política, entendendo essa como uma busca por maior igualdade de oportunidades e redução de privilégios das classes mais endinheiradas.
Por outro lado, geralmente as categorias da sociedade economicamente mais favorecidas tendem a desenvolver um gosto maior pela chamada “direita” política, entendendo que as diferenças sociais são inevitáveis, simpatizando com conceitos mais conservadores. Claro que essa divisão é permeada de contradições, por exemplo, temas polêmicos como aborto ou maioridade penal costumam ter muitas divergências entre pessoas de um mesmo lado político.
A origem dos termos esquerda e direita remontam à Revolução Francesa, do final do século XVIII, na qual quem estava mais à esquerda no Parlamento defendia mudanças mais radicais.
Hoje, qualquer menção a defender um “lado” ou um partido político parece ser uma agressão a quem pensa diferente. Algumas redes sociais, por exemplo, tornam-se terreno fértil para disseminação de discursos de ódio e preconceito, pois o agressor muitas vezes se esconde em perfis falsos e dificilmente recebe uma punição adequada.
A história não se repete, mas pode haver muitas semelhanças entre contextos com certa distância temporal. Hoje, parece que voltamos aos tempos da Guerra Fria, onde praticamente só havia o Capitalismo dos Estados Unidos (EUA) e o Comunismo da União Soviética (URSS). Quem não se alinhar a um dos lados pode ser classificado com “em cima do muro”.
Estamos próximos das eleições municipais brasileiras e em nossa querida Passo Fundo esperamos viver uma festa democrática. Buscando evoluir como sociedade, o mínimo que se espera é respeito a quem tem ponto de vista diferente, desde que a explanação da sua ideia não seja feita de maneira ofensiva e discriminatória.
Em tempos de campanha eleitoral, promessas mirabolantes costumam surgir como solução para os nossos problemas cotidianos. Estaria na hora de trocar de representantes políticos? Seguir com aqueles que nos corresponderam?
Ser classificado como de direita ou de esquerda, nesse caso, não é o mais importante, mas que nossos vereadores e o prefeito mereçam a grande oportunidade que lhes será dada novamente. Por uma cidade de todos. Você acredita?
Autor: Fabiano Barcellos Teixeira, professor de História da rede municipal de Passo Fundo.
Se hoje temos crianças e jovens que desdenham a escola, que julgam desnecessário se apropriar dos fundamentos culturais que constituíram nossa civilização, isso se deve, em grande parte, a terem sido contaminados com a cultura do tédio e da violência da positividade que tomou conta, inclusive, do ambiente escolar.
O enfrentamento da cultura do tédio não ocorre como um ato isolado, desconectado de um conjunto de ações que devem acontecer organicamente no processo formativo dos que compartilham o espaço escolar. Seria ingenuidade pensar que a simples introdução de atividades isoladas no cotidiano escolar seria suficiente para superar a cultura do tédio, neutralizar a “violência da positividade” e instaurar a cultura do sentido. No entanto, a identificação da violência da positividade e a reflexão sobre a cultura do tédio inserida como exercício pedagógico permanente, com professores altamente capacitados e comprometidos em promover e implantar a “cultura do sentido”, poderá se tornar um importante veículo para enfrentar os dilemas educacionais da contemporaneidade.
Em que aspectos a reflexão sobre a cultura do tédio e a identificação da violência da positividade poderão contribuir para instaurar a cultura do sentido? Indicaremos alguns elementos que poderão ser explorados nessa direção:
Fornecer ferramentas intelectuais para examinar a vida: é do conhecimento de todos nós o famoso pronunciamento de Sócrates em sua defesa, diante do tribunal hostil de Atenas, ao dizer aos seus acusadores, “[…] que vida sem exame não é vida digna de um ser humano.” (Sócrates, 1985, p. 22). Nada mais apropriado para pensar a presença da cultura do sentido como algo indispensável no processo formativo.
O apelo de Sócrates feito há mais de 25 séculos se reatualiza num cenário marcado pela não reflexão, pelo excesso de consumo, pela “vida pequena” que tomou conta da sociedade atual. Ausência de reflexão se traduz em violência da positividade que toma conta da vida. A promoção da Cultura do Sentido pode se tornar potencialmente produtiva para fornecer ferramentas intelectuais que sejam capazes de enfrentar a cultura do tédio. Como diz La Taille (2009, p. 101), “[…] de nada adianta ser capaz de raciocinar bem, mas não possuir conhecimentos que alimentam a reflexão. Mas tampouco adianta possuí-los sem ser capaz de organizá-los de forma a chegar a diversas conclusões.”
Dito de outro modo, pensar uma cultura do sentido nos processos formativos que tenha por objetivo superar a cultura do tédio implica articular competentemente conteúdo e método. No capítulo 3 do livro Educar o educador, Fávero e Tonieto (2010, p. 49-54) analisam como se realiza a relação entre conteúdo e método na formação de professores e avaliam como tal relação influencia de forma direta o trabalho desenvolvido pelos professores no exercício profissional da docência. Eles defendem a tese de que o modo como se compreende a relação entre conteúdo e método determina o modo como são pensados os cursos de formação de professores e o modo como o professor organiza sua prática pedagógica.
Criar espaços para a prática de virtudes que possibilitem a construção de significações para a vida: La Taille (2009, p. 106) indica que algumas virtudes são essenciais e devem ser cultivadas para que ocorra a construção de significações para a vida. A boa-fé, por exemplo, é uma virtude moral, pois corresponde, no dizer do filósofo francês André Comte-Sponville (1995, p. 259), a “[…] amar a verdade mais que a si mesmo.” Uma pessoa de boa-fé é aquela que não mente e se sente desconfortável se aquilo que está dizendo não está de acordo com a verdade. É por isso que, para La Taille (2009, p. 107), “[…] a boa-fé é virtude incontornável para a construção de uma ‘cultura do sentido’.”
Como já dizia Aristóteles, as virtudes não são talentos inatos ou traços que herdamos geneticamente. No dizer de La Taille (2009, p. 101, grifo do autor), “[…] virtudes são qualidades de caráter decorrentes de um trabalho de autoaperfeiçoamento […]” e estão “[…] ao alcance de cada um, contanto que os esforços necessários sejam envidados.”
Acreditamos que a prática da Cultura do Sentido possibilita que o processo formativo seja um espaço de experiência da boa-fé, e a escola, um lugar para a prática da virtude e para o enfrentamento da violência da positividade.
O tempo como fluxo de direção e sentido à vida: com frequência escutamos a famosa máxima “tempo é dinheiro”, que marcou não só a sociedade moderna do capitalismo industrial, mas também nosso estilo de vida. Vivemos o tempo cronometrado, o tempo calculado em dinheiro, o tempo escasso, o tempo negociado, a vida sem tempo. É essa “vida sem tempo” que hoje está em crise. Em seu livro A crise do século XX, Gilberto de Mello Kujawski (1988) diz que a crise que vivemos hoje não é algo distante e abstrato, identificável apenas com herméticas especulações filosóficas, mas se manifesta nas situações de desconforto que ocupam o mais prosaico cotidiano. Nas palavras de Han (2016, p. 112), trata-se da microfísica da violência que “[…] destrói toda a possibilidade de ação e atividade. Suas vítimas são jogadas em uma passividade radical. A destrutividade da violência microfísica, tem sua origem no excesso de atividade que se manifesta como hiperatividade.” O excesso de tudo gera a crise de sentido e a violência da positividade.
De acordo com Kujawski (1988, p. 54), “[…] a compreensão da crise do século XX tem que começar por onde nós vivemos, na deterioração do cotidiano […]” Podemos dizer que uma das crises do nosso cotidiano é a deterioração do fluxo do tempo. Em resumo, diz La Taille (2009, p. 115), “[…] cortamos o tempo em fatias, e nosso presente não se liga ao nosso passado e tampouco a nosso futuro.” Em outras palavras, “vivemos no eterno presente”, “estancamos simbolicamente o fluxo do tempo” e, com isso, “penamos em atribuir sentido à vida”. Pensar sobre o tempo, identificar os motivos da eternização do tempo, compreender a crise do tempo que produz a cultura do tédio pode se tornar objeto de investigação para um bom exercício da constituição da cultura do sentido.
Tornar o tempo de formação um espaço de apropriação dos valores culturais: não precisamos fazer grandes estudos para constatar que nosso modelo societário é essencialmente tecnocrata, esquecido, ou simplesmente desinteressado, de grande parte dos valores que foram decisivos na constituição de nossa civilização. Foram esses valores que constituíram a base dos conhecimentos necessários à ideia que se tinha então do que deveria ser a cultura. No entanto, apesar de tantas conquistas, inovações e invenções produzidas, vivemos hoje à deriva de “[…] um mundo saído dos seus eixos […]” (Hermenau, 2003, p. 84).
No Brasil, nunca tivemos tantas crianças e jovens na escola; no entanto, estamos dramaticamente mergulhados numa cultura do tédio, que produz evasão escolar, violência, reprovação, patologias, mal-estar docente, estresse, depressão, ansiedade, apatia e embrutecimento cultural.
Tornar o tempo escolar um espaço de apropriação dos valores culturais significa fazer da escola um lugar onde as crianças e os jovens possam compor sua bagagem intelectual, ou seja, apropriar-se daquilo que a humanidade produziu ao longo dos séculos. Trata-se de um processo de conhecimento dos grandes autores, das grandes obras, das grandes invenções e das grandes descobertas que possibilitam ver o processo evolutivo da sociedade. Não se trata de fazer uma veneração ingênua do passado, mas de auxiliar crianças e jovens a perceberem que há muito mais elementos positivos na história da cultura do que traços destrutivos. La Taille (2009, p. 121-127, grifo do autor) indica três razões que justificam a ideia de que os alunos devem na escola “[…] compor sua bagagem intelectual dando lugar de destaque àquilo de mais rico que a humanidade criou”: i) tornar a memória do passado uma referência importante para perceber o fluxo do tempo; ii) prestar uma homenagem à humanidade; e iii) explicitar a admiração, no sentido de espanto que gera curiosidade e superação. Penso que as três razões indicadas por La Taille estão plenamente relacionadas com o desafio de tornar o saber escolar algo importante e necessário para promover a cultura do sentido.
Se hoje temos crianças e jovens que desdenham a escola, que julgam desnecessário se apropriar dos fundamentos culturais que constituíram nossa civilização, isso se deve, em grande parte, a terem sido contaminados com a cultura do tédio e da violência da positividade que tomou conta, inclusive, do ambiente escolar.
O antídoto para combater esse vírus do tédio e a violência da positividade passa pela instauração do sentido, que é alimentado pela curiosidade e pelo espírito de superação. Penso que a formação de uma cultura do sentido pode ser promissora nessa direção, na medida em que desperta nos estudantes a dimensão problematizadora dos acontecimentos, promove o diálogo investigador e torna o processo de formação um exercício reflexivo sobre a própria vida e a cultura que nos constituiu.
Fazer da educação um processo que dá sentido à vida:em seu belo livro Ética para meu filho, o filósofo e educador espanhol Fenando Savater (2002, p. 97), ao se dirigir ao próprio filho e, por extensão, a todos os jovens do mundo, afirma que a única obrigação que temos nesta vida é “não sermos imbecis”. O próprio Savater esclarece, etimologicamente, que a palavra imbecil significa “bastão”, “bengala”, ou seja, “o imbecil é aquele que precisa de bengala para caminhar.” Tanto a “bengala” quanto “o caminhar” estão sendo usados no sentido metafórico, ou seja, “[…] o imbecil não é manco dos pés, mas do pensamento.”
Savater (2002, p. 97-98) diz que há vários modelos de imbecis: a) “o que acredita que não quer nada” e que para ele “tudo dá na mesma”, por isso boceja frequentemente e vive eternamente cochilando, mesmo estando de “olhos bem abertos”; b) “o que acredita que quer tudo” o que aparece na sua frente e, por isso, agarra coisas opostas sem se dar conta de que existe diferença entre elas; c) “o que não sabe o que quer nem se dá o trabalho de averiguar”, por isso é “conformista sem reflexão” ou “rebelde sem causa”; d) o que sabe que quer e, mais ou menos, sabe porque o quer, mas quer frouxamente, com medo ou com pouca força; e) “o que quer com força e ferocidade, de maneira bárbara”, mas tem pouca sensibilidade em relação à realidade que vive e, por isso, confunde “vida boa com aquilo que o excita.”
Para Savater (2002, p. 99), todas as formas de imbecilidade terminam mal, no sentido de que os imbecis “[…] acabam prejudicando a si mesmos e nunca conseguem viver a vida boa.” Penso que a caracterização da imbecilidade feita por Savater é oportuna para diagnosticar os traços da cultura do tédio que tomou conta da vida do nosso tempo, inclusive no ambiente escolar. Combater a imbecilidade é, certamente, um bom caminho para promover a cultura do sentido. É nesse aspecto que um dos nossos grandes desafios como educadores é fazer da educação um processo que dá sentido à vida, a fim de impedir que a imbecilidade tome conta do mundo, inclusive da escola.
Os elementos indicativos para promover a formação da cultura do sentido não se encerram aqui. Haveria mais de uma centena de elementos que poderiam ser exaustivamente considerados. Elencamos apenas cinco com a finalidade de indicar ações pragmáticas no contexto escolar para o combate à cultura do tédio e promoção da cultura do sentido. Resta saber se, como educadores, temos coragem, persistência, formação e clareza para implementá-las nas nossas práticas pedagógicas.
Referências:
COMTE-SPONVILLE, A. Tratado das pequenas virtudes.São Paulo: Martins Fontes, 1995.
HERMENAU, F. No fundo, educamos desde sempre para um mundo saído de seus eixos: sobre a relação entre Política e educação em Immanuel Kant e Hannah Arendt. In: DALBOSCO, C. (Org.). Filosofia prática e pedagogia.Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. p. 84-93.
KUJAWSKI, G. de M. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1988.
LA TAILLE, Y. de. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.
SAVATER, F. Ética para meu filho.Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SÓCRATES. Defesa de Sócrates.Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
Construção no fundo, monstra duas das casas da “Calçada Alta”, hoje já quase inexistente, defronte à Academia de Letras. Sem data.
Rua Independência, na década de 1940. O prédio da esquina foi o Banco Nacional do Comércio e, logo ao lado, um casarão, que mais tarde abrigou o famoso “Tia Vina”. Referência: Página Fotos Antigas de Passo Fundo (Facebook).
Desmanteladas as seguranças que nos mantinham de pé, desfeitos os pontos sólidos que marcavam nossos passos, instala-se uma espécie de abismo sem fundo ou de horizonte frio, opaco e indefinido.
Nos tempos modernos ou pós-modernos, ruíram os pilares que sustentavam determinadas referências históricas, culturais ou de tradições familiares. Termos como razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia perdem a aura de deuses, convertendo-se em meros ídolos. As certezas são substituídas pelas dúvidas, as verdades cedem o lugar a hipóteses ou mesmo opiniões. Os astros luminosos se apagam na noite escura, as placas de trânsito desaparecem da estrada e o chão firme se rompe sob os pés.
Tudo parece sacudir, tremer, vacilar, como em um terremoto imaterial, mas nem por isso menos nocivo. Daí o resultado de multiplicarem-se o medo, a inércia, a depressão e a sensação de vertigem. Não se trata de uma época de mudanças, e sim de uma mudança de época. Uma transição, mas transição estranha, incógnita: sabemos de onde viemos, mas desconhecemos para onde nos dirigimos. Encontramo-nos sobre uma espécie de ponte pênsil, na travessia de um rio turbulento, de correntes descontroladas.
Desmanteladas as seguranças que nos mantinham de pé, desfeitos os pontos sólidos que marcavam nossos passos, instala-se uma espécie de abismo sem fundo ou de horizonte frio, opaco e indefinido.
Cabe aqui o adjetivo “líquido”, cunhado por Zygmunt Bauman, para caracterizar a sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo que a terra se desfaz, o céu permanece indiferente. É como se subitamente tivéssemos ficado sós, órfãos, vazios, errantes. Por todos os lados do nosso edifício desabitado, brotam as ervas daninhas da insegurança, da incerteza e da inquietude. Destruindo os valores e sinais que nos orientavam no passado, arruinamos igualmente o presente. Ao mesmo tempo que jogamos nuvens sombrias sobre o futuro. O horizonte se converteu num campo nublado.
O temor e tremor da solidão leva a buscar refúgio fora de nós mesmos.
Cada um como que se tornou o pior inimigo de si próprio. A companhia que mais tememos é nosso “eu” inquieto e irrequieto. Coisa que nos leva à busca obsessiva de pessoas, de gente, seja quem for… da multidão. Esta se converte, contemporaneamente, em lugar para se esconder, mas também em momento para se manifestar.
Escondemos o rosto no oceano anônimo de outras faces. Todos aflitos e apressados, sem saber exatamente para onde vão e o que buscam. Espremidos na multidão, borram-se os contornos de uma identidade enferma e fragmentada. O grande rio e a torrente dos transeuntes tudo baralha e confunde, tudo distorce e apaga.
Por outro lado, e de igual maneira, passamos a compensar o vazio com a posse de “coisas”. Quanto maior a quantidade, melhor podemos nos ocultar a nós mesmos. As sucessivas ondas da moda nos conduzem a um consumismo exacerbado. Enchemos a casa, o quarto, o armário e as gavetas com a maior variedade de objetos, não raro repetidos. Fixamo-nos neles como se representassem tábuas de salvação. Compramos certos produtos que, antes mesmo de desfeito o embrulho, já se converteram em lixo.
Nem nos damos conta que quanto mais abarrotados de “coisas”, mais afastamos permanecemos das pessoas e de nós mesmos, para nem falar de Deus. Mercadoria e multidão funcionam como altares onde oferecemos aos deuses/ídolos cada minuto, cada hora e cada dia de nosso tempo atribulado.
Entretanto, a multidão também é o terreno onde tentamos nos manifestar. Não com voz, rosto e olhar próprios, mas no espectro diabólico de grupos que primam pelo ódio e pela fúria. Sem paradigma e sem princípios de orientação, facilmente seguimos o primeiro rebanho que aparecer no caminho.
O rebanho tende a baixar o nível de reflexão e do bom senso geral, a bestializar cada indivíduo, o qual, por sua vez, também facilmente se torna um desconhecido selvagem.
Quando solitário, revela toda sua fraqueza e timidez; na multidão cega e ensandecida, grita forte, bate os punhos e devasta o que encontra pela frente. A falta de referências e de relações sólidas brutaliza até os limites da insanidade. Com relativa frequência, se transforma num barco à deriva em meio às tempestades socioeconômicas ou político-culturais. Por isso seus gritos, ofensas e ataques bestiais, por mais inflamados que sejam, não passam de braçadas de náufragos que, sem bússola e sem enxergar o farol nem porto, tentam a todo custo escapar das águas turvas e bravias.
Ocorreu no último dia 23 de setembro uma homenagem na Câmara de Vereadores de Passo Fundo em comemoração aos 50 anos do Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo. Durante a solenidade foi entregue uma placa comemorativa pela passagem do cinquentenário da entidade. Verdadeiramente, um momento histórico de um patrimônio de educadoras e educadores, assim como da classe trabalhadora de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul.
Fundado em 14 de setembro de 1974, O Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato, da região do Planalto Norte do estado, teve como sua primeira diretora a professora Santina Rodrigues Dal Paz, ocupando esse cargo por oito anos, até 1982. Antes da fundação, a região de Passo Fundo era acompanhada por uma supervisora do CPERS, posição ocupada por anos pela prof.ª Olga Poletto.
Atualmente o Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato, cobre 29 municípios, com cerca de 3200 filiadas e filiados no seu quadro social. É o 4º maior núcleo do Rio do Grande do Sul. Tem destacada atuação, tanto na cidade de Passo Fundo quanto nos municípios de sua área de abrangência. Por isso, o mesmo caráter que a cidade tem – de eixo integrador de sua região – pode ser atribuído ao Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato.
Fez e faz parcerias com diversas entidades influentes na área educacional, como a Universidade de Passo Fundo (UPF) e o Centro Municipal de Professores – Sindicato (CMP). O título de Cidade Educadora, que a cidade detém, em grande parte é devido à atuação do núcleo como protagonista nos debates educacionais.
Desde sua fundação, o Sétimo Núcleo do CPERS preocupou-se com a defesa da educação pública e gratuita. Foram vários os encontros, seminários e colóquios realizados pelas diretorias do núcleo, como o Seminário Regional de Educação, que ocorreu no princípio dos anos 1980, dando origem ao Colóquio Nacional e Internacional de Educação Popular, importante debate da educação que queremos, sua função social e importância para as filhas e filhos da classe trabalhadora. Deste mesmo período temos o registro da participação na primeira atividade política de grande importância: o movimento das Diretas Já, que teve o protagonismo do núcleo em sua área de atuação. Além disso, o surgimento do movimento feminista em Passo Fundo teve destacada atuação do núcleo.
A tradição de organização de eventos políticos, culturais e científicos, assim como a participação nos diferentes movimentos sociais, é marca registrada do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato em Passo Fundo e na região de atendimento do núcleo. Só dos Colóquios Nacionais de Educação Popular tivemos 12 edições, que ocorreram ao longo de 24 anos, com a presença de especialistas na área do Brasil e de vários países. O compromisso com uma educação pública gratuita e de qualidade sempre esteve presente.
Nos últimos anos, a principal tarefa do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato tem sido a da resistência.
Por, pelo menos, uma década que as carreiras da educação, assim como a escola pública, têm sido vítimas de incessantes ataques travestidos de “modernização”. Aumento da carga de trabalho, terceirizações, privatizações de áreas-chave, como currículo e as plataformas de ensino online, perda de direitos e achatamento salarial têm sido a tônica dos governos estaduais. O núcleo, nesse sentido, tem sido fortemente atuante na defesa dos direitos da categoria, na defesa de uma escola pública gratuita, laica, democrática e comprometida com a parcela mais pobre da população. E não o faz sozinho: sempre buscou e busca estar em articulação com os movimentos sociais da cidade, por entender que é pela união da classe trabalhadora e do povo pobre que a educação que desejamos será alcançada.
Homenagem da Câmara de Vereadores de Passo Fundo.
Ocorreu na noite desta segunda (23) Sessão Solene realizada na Câmara de Vereadores. A iniciativa foi da Mesa Diretora, a pedido da diretoria do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato. Compareceram cerca de 100 pessoas, entre integrantes da categoria, ex-diretores, representantes de outros núcleos do CPERS e convidados.
Foram exibidos dois vídeos: um dos diversas fotos de mobilizações da categoria, com o Hino da Greve do CPERS ao fundo – o que arrancou aplausos das/os presentes, que cantaram junto – e um com momentos e testemunhos da História dos 50 anos da entidade. Fizeram uso da palavra a vereadora Prof.ª Regina (PDT), representando o legislativo municipal, e o diretor-geral, Orlando Marcelino.
Durante a solenidade foi entregue, pela presidente em exercício da Câmara, vereadora Janaína Portela (MDB) uma placa comemorativa pela passagem do cinquentenário do Sétimo Núcleo. Verdadeiramente um momento histórico de um patrimônio de educadoras e educadores, assim como da classe trabalhadora de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul.
Depoimento do Diretor Geral Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo/RS, Orlando Marcelino da Silva Filho:
“Em 14 de setembro de 1974 fundou-se o 7º Núcleo do CPERS-Sindicato em Passo Fundo e Região. A partir daí, nos tornamos referência nas lutas por salário e direitos dos trabalhadores em educação (professores e funcionários de escola). Mas, muito mais do que a luta corporativa, somos impulsionadores das lutas sociais, da organização dos trabalhadores da nossa região por entendermos que a emancipação da classe é um processo coletivo social e transformador. A homenagem da Câmara de Vereadores de Passo Fundo, com a sessão Solene do dia 23 de setembro tem este signo, que, muito além da luta por salário, o 7º Núcleo do CPERS-Sindicato (trabalhadoras e trabalhadores da educação) cumprem um papel social de impulsionar e organizar a nossa classe como sujeitos da História e na construção de uma sociedade justa e igualitária.
Nos sentimos honrados, felizes pelo reconhecimento e, principalmente, pela consolidação da consigna de que os trabalhadores só conseguirão a sua emancipação coletivamente, como já dizia o Velho: “trabalhadores do mundo, uni-vos…”
Fotos:Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo/ Divulgação
Quando vier a Primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira/ E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada/ A realidade não precisa de mim. (Fernando Pessoa)
Durante o inverno Brado Retumbante hibernou em sua caverna. Baixou as cortinas, fechou portas e janelas, desligou telefones, computador e não recebeu quaisquer tipos de visitas. Aproveitou também economizar nos banhos, na feitura da barba e no corte dos cabelos. Avisou o porteiro que só voltaria no início da primavera. Para o senso comum, Werther que só andava pelas beiradas das coisas, tornou-se um Nonada, no sentido de Grande Sertão Veredas.
Finda a estação, Brado Retumbante sacudiu-se todo para derrubar seus parasitas interiores e exteriores com chás e banhos de imersão, esfregando-se até gastar sua pele embrutecida. Um novo homem haveria de impressionar positivamente o gado que estava retido nas cercas de um mundo com suas eternas contradições.
Avisou a imprensa sobre a experiência de três meses no interior da bolha da caverna. Ao dar suas primeiras voltas na Pólis, estranhou que ninguém o reconheceu e nem sequer lhe cumprimentou. Talvez pelos óculos escuros para fim de adaptar-se à claridade ofuscante da luz do sol. Despreparado fisicamente, retornou à caverna doméstica cansado e ofegante. Pediu água e recolheu-se ao ninho caótico e mofado até o novo dia cinzento com sol avermelhado. Deu-lhe náuseas e tosses intermitentes o ar com cheiro de cinzas.
Contaram-lhe que uma parte do Brasil estava em chamas: a Amazônia Legal, o Pantanal, os cafezais e os canaviais. A outra parte mais ao sul estava sofrendo com as intempéries: enchentes, temporais, ventanias, raios. Pensou:
– Até parece o Juízo Final. Ou é o tal do Aquecimento Global sobre o qual tanto falam?
– Isso mesmo! Mas não só no Brasil. Aonde olhares, podes verificar o derretimento das geleiras, o aumento da temperatura global, as secas e as enchentes, dentre outras movimentações verificadas na natureza. Porém não é só isso, Brado Retumbante.
– Certas criaturas do planeta Terra parecem que estar em transe. Reinventaram as guerras, novas armas de destruição em massa, venenos que estão causando novas doenças. Em que mundo estiveste e em qual estás, Brado Retumbante?! E tem mais, caro vivente:
– A pior invenção da humanidade, as guerras, retornaram com tudo. Veja o que acontece entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e Palestina/Líbano! Dá a impressão de que retornamos aos tempos bárbaros!
– É, pois é, exclamou Brado!
Em todo o Brasil vemos Organizações criminosas promovendo chacinas, dominando bairros e vilas, mantendo famílias reféns dos seus interesses. E, o pior, certos aspirantes ao poder pregam exemplarmente a violência com socos e cadeiraços nos debates eleitorais. Há, inclusive, sugestão de pancadaços nos centros urbanos.
– Não acredito! A que nível chegamos… Dá até vontade de me recolher definitivamente à caverna! Mas não! Sou resiliente e confiante, pois nada melhor do que apreciar o riso espontâneo e puro de uma criança. Admirar o desabrochar das flores dos ipês e ver assegurados os direitos humanos entre as pessoas e os países. Preservar os mares, os rios, a terra e o ar é, sobretudo, preservar a vida que pulsa em tudo.
O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.
— Vai ter chantili? — Essa pergunta, aparentemente fora de contexto para o ambiente escolar, é frequente entre as alunas do projeto SOFIA – Leitura e Escrita Criativa.
O SOFIA vai além da leitura e da escrita. Ele propõe a construção de um espaço onde cada um pode ser o que é, cercado por uma rede de afeto. Embora tenha começado como um projeto de leitura, rapidamente se tornou um círculo de convivência.
Logomarca do projeto
Nesse espaço, não há imposição de matérias, nem pressão por alto desempenho. O ingresso é voluntário, e quem decide sair o faz sem problemas. As únicas exigências são bom comportamento, boas notas e o compromisso de ler ao menos parte dos livros disponíveis. No entanto, o que prevalece é o afeto.
Os alunos, ao oferecerem essas “moedas de troca”, ganham mais do que livros emprestados ou sorteados para chamar de seus. Eles têm a oportunidade de se expressar em bate-papos literários, sem a pressão de notas, ou de simplesmente ouvir, se preferirem.
Também participam de passeios a livrarias, eventos e oficinas, além de receberem visitas de artistas e pesquisadores, que vêm à escola para compartilhar experiências. Um dos primeiros gestos do SOFIA, por exemplo, foi uma sessão de fotos com as alunas iniciais, realizada por um fotógrafo particular — algo que, talvez, tenha um impacto positivo na autoestima das estudantes.
E ganham chantili. Desde o início, as alunas pediram comida nos encontros, porque sabem, intuitivamente, que a comida une. Compartilhar uma refeição não sacia apenas a fome física, mas também a da alma. Quando paramos para tomar um café e conversar, sentimos segurança e esperança. Afinal, só quem tem esperança se alimenta; só quem tem esperança lê um livro.
O chantili, nas confraternizações do SOFIA, virou sucesso. Embora delicioso no café, acredito que o sucesso vai além do sabor. Servir chantili é uma forma de mostrar afeto, de demonstrar cuidado. Às vezes, são os pequenos gestos que mais marcam. Como professor, espero que associem esses momentos à leitura e, um dia, façam seu próprio chantili, enquanto saboreiam um café com um bom livro.
Talvez se lembrem do SOFIA. Talvez se lembrem de mim. Talvez aprendamos melhor quando nos sentimos seguros. Talvez a educação seja — ou deveria ser — como tomar um café com amigos. Com chantili, com afeto.
O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.
Autora de romance sobre luta ambiental, Morgana Kretzmann reivindica temas sociais e climáticos para sua literatura. Autora trata literatura como ferramenta didático- pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores.
Por Luiza Zauza
Um ecossistema ameaçado por um empreendimento predatório. Uma comunidade à mercê da ambição mesquinha e maliciosa de políticos e empresários corruptos. Um esquema de contrabando marcado por violência, heranças e prejuízos ambientais. Essas são algumas premissas do enredo de Água Turva, romance recente de Morgana Kretzmann. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A proximidade entre ficção e realidade faz parte do projeto literário da atriz e escritora gaúcha.
“Eu venho de um lugar onde quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção”, afirma. Esse lugar de que Morgana fala é onde se passa a trama de seu livro e de onde ela conversa com Radis (https://radis.ensp.fiocruz.br/ ) por chamada de vídeo: sua região natal, próxima ao Parque Estadual do Turvo, no interior rural do Rio Grande do Sul. Foram quatro anos dedicados a construir com detalhes factuais o cenário fictício ao redor dessa unidade de conservação ambiental, localizada na fronteira entre Brasil e Argentina, no Noroeste do estado.
A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com seu romance de estreia Ao pó foi atrás de se especializar em Gestão Ambiental no Instituto Federal de Santa Catarina, entrevistar profissionais da área e visitar pessoalmente o Parque do Turvo diversas vezes para contar essa história, que se desenrola em torno da ameaça de uma hidrelétrica, cuja construção irá alagar a reserva ambiental, sumindo com o Salto do Yucumã, a maior queda d’água longitudinal do mundo, e o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.
O pano de fundo turbulento movimenta as ações das três protagonistas: Chaya, guarda- florestal que vive pela proteção do Turvo; Olga, jornalista e assessora parlamentar do machista e criminoso deputado Heichma; e Preta, líder do grupo de caçadores e contrabandistas, Pies Rubros, que atuam pelo Rio Uruguai no lado argentino. O destino das três se cruza em meio a conflitos familiares e heranças geracionais, numa trama ágil que evoca a literatura policial para discutir o colapso climático e ambiental.
O que foi rotulado como thriller ecológico, hoje também integra o que tem sido considerado pelo mercado editorial de cli-fi, climate fiction, ou ficção climática, um gênero literário que se preocupa em tematizar a emergência climática e os impactos da ação humana sobre o meio ambiente. Para a autora, Água Turva é o resultado de uma realidade que é prioridade também para a ficção — “o que vejo como a maior urgência que vivemos no planeta e que não vai acabar agora”.
No bate-papo de quase uma hora, no fim de junho, Morgana conta sobre o processo de criação do seu segundo romance, o convívio da natureza com a espiritualidade e como a literatura pode ser uma ferramenta de mudança. Emocionada, ela também dá um testemunho sobre a tragédia que, poucos meses depois da publicação de Água Turva, devastou o Rio Grande do Sul exatamente por consequência do desequilíbrio ecológico. “Hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana”. Descubra na entrevista a seguir.
Conte um pouco da sua trajetória até chegar na literatura. Como a escrita se tornou cada vez mais frequente na sua vida?
Nasci no interior do Brasil, na fronteira com a Argentina, num lugar muito ermo — que é onde eu estou nesse momento, por sinal. Estudei, porém, em escolas que sempre incentivaram esse meu lado artístico. A arte surgiu na minha vida muito cedo: dança, teatro e escrita. Com 9 anos, comecei a escrever meus primeiros e pequenos livros. Inclusive, eu os fabricava: grampeava as folhas e fazia os desenhos. Era uma maneira de criar o mundo que eu queria estar.
E como você foi da carreira de atriz para a de escritora?
Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre, comecei a trabalhar como atriz. Estudei no Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre) e, depois, na Escola de Atores. Fui para o Rio de Janeiro fazer CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), uma das escolas mais conceituadas e importantes do Brasil. E foi no Rio que comecei a ter menos vergonha de mostrar o que escrevia. Nunca havia publicado nada, a não ser em blogs, onde deixava alguns textos, poemas e coisas muito loucas que não tinham nem gênero específico. Quando casei com o Paulo Scott, que também é escritor, eu já estava morando no Rio de Janeiro de novo e comecei a fazer um curso de extensão de Roteiro Cinematográfico na PUC-Rio. É nele que realmente começo a escrever e surge meu primeiro livro, Ao pó, com o qual ganhei o Prêmio São Paulo. Esse livro nasce como um roteiro, mas começa a virar um romance e eu passo sete anos escrevendo-o, tentando encontrar a linguagem, reescrevendo-o várias e várias vezes. Quando eu já era finalista do Prêmio [São Paulo de Literatura], começaram a surgir convites para editoras maiores.
E como nasceu o romance Água Turva?
Acabei optando pela Companhia das Letras, onde publiquei, então, o Água Turva, que é esse livro que fala sobre crimes ambientais e tem pinceladas do que é o aquecimento global. E os próximos livros, que já assinei com eles, também terão questões ambientais e sociais, que permeiam a minha arte. Nesse meio tempo, também me formei em Gestão Ambiental, não para trabalhar como gestora, mas para poder colocar [em Água Turva] os temas ambientais que o planeta vive, o que hoje vejo como a maior urgência que vivemos e que não vai acabar agora. Eu vou morrer e isso vai continuar sendo uma urgência. Queria estudar para poder escrever, não falar bobagem; para ter um pouco mais de domínio das coisas. E foi imprescindível, tanto que o meu trabalho de conclusão de curso era literatura e meio ambiente: a importância da literatura como ferramenta didático-pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores. O que posso dizer é que Água Turva seria a aplicação da pesquisa que fiz.
A literatura se torna então um instrumento para refletir sobre a realidade, correto?
Hoje, três meses depois do lançamento, percebo que o meu projeto de pesquisa não estava errado, já que realmente o livro está chegando em pessoas que, inclusive, diziam que não liam nada sobre meio ambiente porque parecia chato. Tem gente que na literatura compara [as discussões sobre] meio ambiente com ficção científica, como se isso estivesse longe da realidade. De repente, você começa a ver coisas reais, como o que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e pega um livro que trata de problemas ambientais e que também se passa aqui. Um livro que tem uma linguagem ágil. É um thriller que fala de assuntos afetivos, de uma saga familiar. Quando eu dizia que, através da literatura, as pessoas poderiam ter um novo tipo de afeto em relação ao planeta, percebo que, com Água Turva, isso está acontecendo.
Como foi transformar sua pesquisa acadêmica em ficção?
Eu não transformo pesquisa acadêmica em ficção. Eu faço ficção, como sempre trabalhei. Porém, os conhecimentos que adquiri durante a faculdade estão ali dentro, como as leis ambientais, sobre caça e unidades de conservação. Só para o Parque do Turvo eu viajei cinco vezes para entrevistar guardas florestais, funcionários, ribeirinhos, pessoas que moram do lado argentino e do lado brasileiro do parque. Tudo isso para entender os crimes ambientais que acontecem nessa região. Considero a geografia do Parque Estadual do Turvo perfeita para essa história, não só porque é uma unidade de conservação, mas porque está numa fronteira, dividida por um rio. Consigo tratar, então, não só de crimes ambientais, mas de toda uma gama de crimes que permeiam uma fronteira. Uma fronteira que não tem policiamento e tem as próprias leis. Quando crio os Pies Rubros, um grupo de caçadores de animais silvestres e contrabandistas que moram do lado argentino, é porque sabemos que nesse lugar há um acordo entre as pessoas do local, que vai além das leis que temos na nossa ou na constituição argentina. Queria escrever um livro policial que falasse de crimes ambientais e fronteiriços. E esse era o lugar mais propício para fazer isso.
O que a abordagem policial trouxe para o livro?
Tenho um incômodo muito grande quando colocam livros policiais como um gênero menor. Não é de maneira nenhuma. Quando digo que é uma obra policial, não estou diminuindo a minha história. Passei quatro anos escrevendo. Ele tem quase 300 páginas, foi feita uma baita pesquisa. Entrei dentro do Parque Estadual do Turvo com o meu irmão, num lugar muito ermo, junto com um guarda-florestal, para encontrar os acampamentos desativados de caçadores, as cevas, os trepeiros [caçadores que sobem em cima das árvores para preparar armadilhas e capturar animais]. Tudo isso foi super perigoso. Os caçadores estavam lá, tivemos que fugir. Toda essa sensação de fuga e de busca está no livro. Optei por essa linguagem por acreditar que faria as pessoas se interessarem ainda mais por uma obra com uma temática ambiental. Não é um livro “chato” sobre o meio ambiente — como algumas pessoas antigamente falavam.
Seu livro apresenta aspectos fantásticos e espirituais interessantes, tendo esse misticismo ligado predominantemente à natureza. Por que combinar essas duas abordagens?
Às vezes, as pessoas falam em “Brasil profundo”, “realismo mágico ou fantástico” e vários outros termos. Acredito que elas pensam que isso está muito longe, quase algo irreal, enquanto para mim, meus irmãos, minha sobrinha, meus avós e todos que vivemos aqui, é a realidade. Quando estou dentro do Parque do Turvo e um panapaná [nuvem de borboletas] se forma ao redor de mim, como no livro Cem anos de solidão do Gabo [Gabriel García Márquez], não descrevo algo que imaginei e sonhei. Eu vivi isso. Entrei no Parque do Turvo e uma nuvem de borboletas voou ao meu redor, e elas não fogem, não vão embora, você fica tomado por elas. Quando falamos de um personagem como o Sarampião, existem várias figuras aqui no interior, nessa fronteira — e não só aqui, mas em outras regiões também — que morreram e as pessoas rezam por elas. As pessoas realmente têm fé nelas. É claro que invento: o meu Sarampião não existe, mas poderia ter existido. Existiu um guarda-parque no Turvo há muitos e muitos anos atrás, meus avós chegaram a conhecê-lo, que tinha esse apelido, chamavam-no de Sarampião de brincadeira. Achei um nome tão incrível que criei uma família inteira e um santo ao seu redor.
Essa abordagem que mistura o místico e a natureza parte, portanto, de suas próprias vivências?
Quando falamos de plantas medicinais, ontem mesmo, eu estava catando espinheira santa, quebra-pedra e funcho para fazer um chá. Meu pai quando está com pressão alta, toma os seus remédios, mas antes de dormir vai aqui fora, cata as folhinhas certas, lava, faz um chá e toma. Quando colocamos isso num livro, as pessoas, principalmente da cidade grande, veem como algo muito mágico, quando para nós é a realidade. Crescemos nesse Brasil que muitos nem acreditam existir e com o tempo vamos aprendendo com os mais velhos sobre essa medicina familiar, que está dentro do pátio da nossa casa e nunca mais esquecemos. O Sarampião nasce disso, quando ele salva as netas com os emplastos, os remédios e os chás. Eu entendo o termo realismo mágico. O livro vai ser publicado na Alemanha e, para eles, é realmente outro mundo. A palavra que eles usam é “encantados” e penso que é, em todos os sentidos da palavra: do arrebatamento e da magia. Eles não conseguem imaginar o que é o rio Uruguai, por exemplo. Eu escrevi uma crônica com uma lenda sobre esse rio para uma revista alemã e eles achavam que era tudo fantasia, e eu falo que não, o Rio Uruguai existe, gente! [risos]
Chaya, uma das personagens centrais do seu livro, delega para si o compromisso de cuidar e salvaguardar o Parque do Turvo. Que nível de poder uma sociedade pode ter sobre as questões ambientais ou das mudanças climáticas?
No livro, vemos a Chaya mais ativa, mas essa é uma luta comunitária. Existe um projeto de uma hidrelétrica no Rio Uruguai que se chama Garabi Panambi. Ele custaria 5 bilhões de dólares e existe desde a década de 1970. Se fosse construída — no livro, mudo o nome e crio a Gran-Roncador, já que faço ficção em cima de uma notícia —, essa hidrelétrica iria gerar uma quantidade de energia muito pequena para todo investimento financeiro, desgaste e crimes ambientais dispensados. O salto do Yucumã, por exemplo, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ficaria debaixo d’água. Perderíamos o último reduto da onça-pintada do Sul do Brasil, que fica entre Brasil e Argentina. A onça desce pela floresta e tem os seus filhotes no Turvo, atravessa o rio Uruguai a nado — é uma ótima nadadora. Espera a cria estar mais ou menos pronta para a caça, atravessa de volta, e ensina a oncinha a caçar dentro do Turvo. Isso tudo se perderia debaixo d’água, sem contar a região dos ribeirinhos, cidades e comunidades agrícolas ao redor.
A literatura pode ajudar a sociedade a reagir contra interesses que ameaçam a preservação ambiental?
Em vários lugares falam a mesma coisa: “Vou construir uma hidrelétrica, e daí trazer universidade, empresas, asfalto, isso e aquilo”. É a mesma desculpa do investimento. Só que com 5 bilhões de dólares, constroem-se quantas universidades, empresas e asfalto? Quantas cidades podem se reerguer? O quanto se pode girar a economia desses municípios com 5 bilhões sem precisar colocar em risco o Salto do Yucumã, a Reserva do Turvo, o último reduto da onça-pintada? E não é dinheiro só de instituição privada. Na medida em que as comunidades se unem e entendem as discussões econômicas, sem serem enganadas, elas vão dizer ‘não’ para tudo isso. É o que tento colocar no livro, especialmente na cena da primeira reunião sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Tento colocar isso na boca de alguns personagens. É por isso que precisamos lutar social e politicamente no Brasil: pelo conhecimento.
“Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos.”
O conhecimento liberta, não é mesmo?
Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos. E a literatura entra nessa questão. Quando entregamos um livro que trata de questões ambientais, raça ou colorismo, como o Água Turva, o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e o Avesso da Pele, do Jefferson Tenório, e alguém lê e estabelece uma relação afetiva com esses temas, sabemos que essa pessoa constrói outro pensamento. Para conseguir dominá-la, sejam políticos, igrejas ou patrões, será mais difícil. Quando essas pessoas começam a pensar por si, seja por meio da literatura ou dos estudos, elas vão reivindicar o que elas querem. Precisamos lutar pelo estudo e pela leitura para que as pessoas pensem por si e não deixem uma meia dúzia de poderosos que mandam no nosso continente decidirem por nós. A gente pode decidir. No Água Turva, quando todos se levantam e vão embora com a Chaya, é uma comunidade inteira lutando contra meia dúzia de poderosos. E eles vão vencer. Nem sempre isso acontece na realidade, mas a minha esperança é que cada vez mais essas coisas aconteçam.
“Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção.”
Você acha, então, que a literatura pode servir a um propósito?
Acho muito complicado colocarmos o artista num lugar de imposição. O artista não deve nada, deve à sua própria arte. Ele faz aquilo que acredita, seja qual for o caminho. Eu, por exemplo, estou num momento da minha vida que cheguei a estudar gestão ambiental porque quero continuar falando sobre assuntos ambientais e sociais. São questões caras para mim. Eu venho de uma cidade muito pobre, de uma região paupérrima do Rio Grande do Sul. Aqui, nesse momento, por causa das enchentes, está faltando tudo. Falta comida, remédio, gasolina. As pessoas estão realmente passando fome e necessidade. Estou vendo isso agora, mas já vi tantas outras vezes. Venho de uma família de agricultores, muito pobres. Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção. É o que eu posso fazer. Mas você pode escrever um livro por puro entretenimento, e isso abrir as portas para quem nunca leu na vida ler outros livros.
E como a sua literatura dialoga com o protagonismo feminino?
Quero continuar falando sobre questões sociais, ambientais e, também, femininas. Me perguntam, mas você só vai escrever livros com protagonistas mulheres? Gente, tem milhares de livros com protagonistas homens. A porcentagem de livros com protagonistas mulheres é infinitamente menor do que com protagonistas homens. Por que vou escrever mais um livro com um protagonista homem? Quero escrever sobre mulheres. Em matéria de ficção, o meu prazer é muito maior em criar personagens femininas fortes, que lutam, que estão com um facão na mão, estão defendendo a sua comunidade e as suas famílias. Eu me sinto muito mais à vontade fazendo isso.
Suas personagens são complexas, não são maniqueístas. Elas também têm relações complicadas e têm seus lados imperfeitos, como todos nós temos.
Teve uma pessoa na rede social que disse: “mas em Água Turva as personagens femininas são todas boas e os masculinos são todos maus”. Um cara que tinha feito uma ótima resenha respondeu: “Querido, você não leu o livro” [risos]. Quando as mulheres [do livro] têm que ser más, elas são muito más. O livro começa com a Chaya matando um homem sem pensar duas vezes.
Exato. A Preta também é uma personagem interessante nesse sentido. Ela tem uma raiva vinda de herança da avó, uma angústia muito grande por conta da família. Ela também é uma caçadora, então, de certa forma, ela prejudica o parque. Porém, é a sua maneira de sobreviver. É difícil julgar completamente esses personagens, não é?
A minha ideia era essa, principalmente a Preta, que é a minha personagem favorita. Ela surge por último durante o processo de criação. Eu defendo a Preta, inclusive. Ela faz o que tem que ser feito para defender aquilo que ela acredita. Agora, é correta a maneira que ela faz as coisas que ela precisa fazer? Não, não é.
O que podemos fazer para quebrar o ciclo trágico que acompanha a crise climática?
Veja o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Estamos em ano de eleições municipais e precisamos pensar em pessoas que amem as suas cidades. Estamos cheios de prefeitos em cidades grandes e do interior, de todas as vertentes políticas, que parecem odiá-las. Se começássemos a votar em pessoas que amam o seu chão, o seu território, elas estariam hoje pensando em soluções ambientais para manter esses lugares. Vemos o que aconteceu em Porto Alegre. É um absurdo que o prefeito tenha colocado sacos de areia em cima de bueiros para que não abrissem as tampas e a água voltasse a alagar a cidade. Alguém precisa odiar demais a sua cidade para pensar nesse tipo de solução. Sinceramente, não tenho resposta para essa pergunta. Mas continuo achando que agora as coisas vão ser pautadas pela crise climática, e se tornar questões econômicas e, assim, mobilizar um número maior de pessoas. Quando digo um número maior de pessoas, são os poderosos, as pessoas que realmente mandam no mundo. Quem sabe, [a emergência climática] comece a ser vista de outra maneira.
Como tem sido vivenciar o cotidiano após as enchentes no Rio Grande do Sul?
Cheguei aqui no Rio Grande do Sul na terça-feira [em junho], e hoje é o primeiro dia que parou de chover desde que cheguei. Tive que descer de avião em Chapecó [SC]. Não tem voo mais para o estado. As estradas estão horrorosas. Além da chuva, são estradas que não foram construídas para aguentar esse volume tão grande de caminhões. Você vê que está tudo muito destruído. Tem uma tristeza tão grande no ar que só estando aqui para entender. Tenho vontade de chorar. O Mário Quintana tem uma frase maravilhosa que diz que a gente sempre está voltando para casa, mesmo que ela não exista mais. Você vê o seu lar destruído, mas, ao mesmo tempo, é o seu lar. É uma tristeza muito grande ver tudo debaixo d’água: as estradas destruídas, os morros caídos e a tristeza das pessoas. Então, hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana.
“Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também.”
Que tipo de herança você quer que seus personagens e seu livro deixem para as gerações futuras?
Somos responsáveis pelas próximas gerações. É aquele ditado africano, que diz que quando uma criança nasce, a comunidade toda é responsável por ela. Precisamos pensar que mundo vamos deixar e como eles vão sobreviver nele. Se esse livro for lido daqui a 20, 30 anos, espero que ele leve a mensagem de que nem todos foram negligentes no Brasil e no mundo de hoje. Tivemos comunidades e indivíduos que tentaram lutar com
as armas que tinham para melhorar e deixar o mundo habitável para as próximas gerações. Como disse Chico Mendes, ecologia sem luta de classes é jardinagem. Penso que não adianta lutarmos só pelas questões ambientais sem pensar nas sociais. É o que acontece no Rio Grande do Sul. As pessoas mais pobres estão vivendo um sofrimento que não conseguimos imaginar. No frio, na chuva, sem comida, muitos ainda sem lar. Perderam absolutamente tudo, ainda não conseguiram ajuda governamental para comprar o básico. Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também. Espero realmente que as próximas gerações entendam a história de Água Turva, da região de Dourado, da família Sarampião e de como a comunidade que vive ao redor do Parque do Turvo lutou para barrar essa construção que permeia o livro.