Nosso desafio não é só com a gestão do caos e dos riscos, mas também com a construção de outro sistema capaz de prevenir novos desastres. Se os extremos climáticos provocam migrações forçadas; de outra parte, nos forçam a fazer mudanças substanciais e urgentes na forma de pensar e de agir.
O Rio Grande do Sul vem experimentando uma espécie de dilúvio. Parece mesmo reedição do episódio bíblico narrado no livro do Gênesis (cap. 6 a 9), com destaque para a figura de Noé e sua arca salvadora. Os elementos causadores da inundação atual são diversos. As interpretações que se fazem do fato vão desde as mais fundamentalistas e moralistas até as mais superficiais ou negacionistas. Não faltam opiniões enviesadas e descabidas, atribuindo a causa dos desastres ao ateísmo, à bruxaria, ao castigo de Deus ou à governança do demônio.
Em contrapartida, se intensificam análises científicas sobre as origens e as consequências das emergências climáticas. A rigor, não é possível simplificar o que é naturalmente complexo. Não há soluções fáceis e individuais para problemas gravíssimos e coletivos. Além de prejuízos materiais, econômicos, culturais e ambientais, as inundações também trazem danos à própria esperança e autoestima humanas. De outra parte (ainda bem), evocam inundações de solidariedade nas suas expressões mais humanitárias possíveis.
Os eventos climáticos extremos produzem também muitas migrações forçadas em todo o mundo. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), mais de 30,7 milhões de migrações foram registradas em 2020 em função de desastres relacionados ao clima. A Organização Internacional para Migrações (órgão ligado à ONU) estima que, só em 2022, mais de 700 mil brasileiros precisaram se deslocar, a maior parte em função de enchentes. Com as inundações no Rio Grande do Sul, em 2024, mais de 615 mil pessoas tiveram de deixar suas residências. Os migrantes do clima ou refugiados climáticos (por conta de enchentes, ciclones e secas) estão aumentando cada vez mais em nível mundial.
Para evitar que migrações ocorram de maneira súbita e forçada por tragédias ambientais, elas poderiam ser planejadas em conjunto com pessoas interessadas e os poderes públicos locais, estaduais e federais. No caso das inundações no Rio Grande do Sul, migrações organizadas e amparadas social e economicamente acabam sendo uma alternativa, entre outras, para famílias que tiveram perdas significativas ou totais de suas residências, de seus locais de trabalho no meio urbano ou rural.
Migrações para outros locais dentro da própria cidade ou município, dentro do mesmo estado ou para outros estados em que os habitantes estão diminuindo, podem ser pensadas como uma das formas de enfrentar a situação emergente. No Alto Uruguai gaúcho, por exemplo, dos 32 municípios que compõem a região, apenas 4 aumentaram sua população comparando o Censo do IBGE de 2010 com o de 2022. Os demais 28 municípios tiveram redução de habitantes, sobretudo da população que vive e trabalha no meio rural. Fomentar o repovoamento de zonas rurais, além de estimular a produção agrícola e agropecuária, poderia reconstituir comunidades que estão cada vez mais esvaziadas.
Entre outras medidas diante do contexto de crises atuais, é importante também o combate efetivo ao racismo ambiental e às injustiças climáticas, bem como o enfrentamento do consumismo, do desmatamento, da poluição e da exploração destrutiva da natureza. É fundamental estimular a transição energética, a produção agroecológica, a economia solidária, a educação ambiental crítica, a conservação dos ecossistemas, a pesquisa sobre as mudanças climáticas, etc.
Conferências municipais, estaduais, nacionais e mundiais de meio ambiente são espaços essenciais para discutir novas políticas e assumir compromissos conjuntos de restauração e preservação da Casa Comum.
Há uma conexão evidente entre a destruição das floretas e o aquecimento global; entre o desmonte da regulação ambiental para favorecer a mercantilização da natureza e os eventos catastróficos.
Nosso desafio não é só com a gestão do caos e dos riscos, mas também com a construção de outro sistema capaz de prevenir novos desastres. Se os extremos climáticos provocam migrações forçadas; de outra parte, nos forçam a fazer mudanças substanciais e urgentes na forma de pensar e de agir. Parafraseando o Hino do RS, poderíamos dizer: ‘Sirvam nossas tragédias de alerta a toda terra’!
Defender a educação como direito fundamental se faz no dia a dia e na compreensão de que cada ser envolvido no processo de aprendizagem está atravessado por contextos e questões que precisam ser considerados, por vulnerabilidades e precarizações dirigidas. Não é somente uma questão de querer.
Eu não comecei na Pedagogia amando o curso, pelo contrário, a decisão em cursar no primeiro momento foi pura e concretamente influenciada pelo fato de no ano anterior, ter ouvido falar que o salário de uma Pedagoga seria de 3 mil reais. Foi isso: uma menina do interior sonhando em cursar faculdade que ouviu que talvez pudesse receber uma quantia que jamais fez parte da renda da sua família.
Essa é a minha história inicial com a Pedagogia, pouco glamourosa, tampouco com pretensão de vocação mas carregado da realidade que vivia. É mais ou menos esse o sonho do pobre, uma ousadia em querer estar na academia mas nunca esquecendo do que a vida toda está presente: saco vazio não para em pé, tampouco estuda.
Me apaixonei pela Pedagogia tardiamente e acho que foi um processo de descoberta e encantamento bonito de quem começa a entender que tem voz e pode dizê-la no mundo. Acho que isso foi uma das coisas que me transformou imensamente: ser escutada e, no acolhimento da palavra, poder me fazer cidadã nesse mundo.
A minha língua pouco formal – e com poucas travas em alguns momentos – me fez ter a possibilidade de questionar o que antes era pouco nítido pra mim. De cara, já um outro fato: eu não cabia numa pedagogia de hierarquias, numa cultura escolar que não compreende o exercício da palavra, da escuta e da acolhida como fundamentais para qualquer processo educativo e, assim, nascia também alguém apaixonada pela Pedagogia Social.
Nesses anos passei por escolas, ONGs, comunidades, clínicas, prefeituras e prisões. E em cada lugar me construía um pouco mais gente. Acho que, também, um pouco mais escutadora e admiradora da vida de cada pessoa junto a possibilidade de ouvi-las ou, como disse Edivânia (uma Pedagoga social por quem tenho profunda admiração), de “pisar o solo sagrado do outro”.
Há dias que me sinto uma fraude de Pedagoga, dias que se Paulo Freire me visse só ia baixar a cabeça e a balançar negativa e levemente enquanto coçava sua barba branca e me julgava interiormente. E isso é parte do processo eu acho, poder me olhar e ver o quanto ainda preciso aprender e melhorar, dar-me conta das contradições que ainda estão presentes e como construo caminho em busca de superá-las.
Carrego essa a certeza que a Pedagogia não é neutra e, se a concebo assim, é por perceber os constantes ataques que sofre a educação pública.
Precarizar a educação é um projeto político muito bem situado e com intenções bastante nítidas e da educação infantil ao ensino superior, muitas vezes, o que está em jogo é o poder.
Defender a educação como direito fundamental se faz no dia a dia e na compreensão de que cada ser envolvido no processo de aprendizagem está atravessado por contextos e questões que precisam ser considerados, por vulnerabilidades e precarizações dirigidas. Não é somente uma questão de querer.
Digo com convicção que todo processo de aprendizagem não é neutro porque tento estar constantemente no furacão da práxis. De agir, refletir, avaliar, transformar. E que, para isso acontecer, preciso estar totalmente presente, atenta e sensível com o que bell hooks chama de abertura radical, essa “disposição para explorar diferentes perspectivas e mudar a mente conforme novas ideias são apresentadas”.
Muito cedo na pedagogia assumi esse compromisso político com a educação (de vários modos e em diferentes instâncias) e que depois percebi que sempre atravessou minha vida e permitiu que eu me sonhasse acadêmica e formada.
Sonhar é alimento para criança curiosa transformar o mundo.
Tenho sonhado e esperançado muitos mundos com crianças, jovens, adultos, comunidades, prisões.
De um continente a outro, da sala com estrutura de aço e cimento à sombra das mangueiras: piso firme mas gentil em todo solo e peço licença para construir junto.
A chuva que sempre foi alegria para as crianças hoje, em muitos lugares, tornou-se um trauma causando medo nos corações dos pequeninos. Não podemos permitir que crianças tenham recordações tristes de desastres de enchentes, pois a chuva é um presente dos deuses para o homem e sem ela não estaríamos aqui mesmo sendo os causadores das maiores tragédias naturais do planeta Terra.
As crianças são os amores das nossas vidas, sem elas nada seríamos, mas a infância tem as suas alegrias e traumas no pensar dos pequeninos e nos seus mundos imaginários dependendo de como lhes mostramos as coisas ao nosso redor.
Nos últimos anos, o clima tem sofrido constantes mudanças ao redor do mundo com o desflorestamento e as queimadas. O homem tem devastado o meio ambiente invadindo áreas que antes eram apenas de mata virgem com árvores e plantas lindas. O que o homem faz com a natureza chega a doer na escrita do poeta.
Sendo assim, com essa brusca mudança do clima temos visto muitos desastres naturais ocorrendo no mundo inteiro. Governantes não sabem o que fazer para ajudar seus povos. Ninguém sabe o que fazer, quando a resposta está dentro das nossas palavras transformadas em ações sérias e responsáveis.
O meio ambiente há anos pede socorro e ninguém parece ver isso, apenas quando ocorre um desastre natural é que nos preocupamos com as vítimas dos nossos esquecimentos momentâneos e das nossas responsabilidades para com a natureza.
Não basta somente falar, fazer reuniões e eventos com governantes e responsáveis pelo meio ambiente, não culpo a natureza nem os deuses do Olimpo ou de qualquer outro lugar divino, mas responsabilizo o homem pelo que está acontecendo conosco no mundo inteiro quando vemos nossos irmãos morrendo vítimas de desastres naturais que poderiam ser evitados se tivéssemos políticas públicas sérias para evitar que o homem interfira na natureza com tanta propriedade.
A chuva que sempre foi alegria para as crianças hoje, em muitos lugares, tornou-se um trauma causando medo nos corações dos pequeninos. Quantas vezes não vi uma criança brincar de tomar banho de chuva, de correr com as mãos para cima para sentir os pingos da chuva caírem na sua cabeça ou de tomar banho numa bica dessas grandes que deixa a água cair na gente com a alegria que só os deuses podem nos proporcionar.
Essa chuva querida e amada pelas criancinhas era motivo de festa e alegria nos tempos em que o homem respeitava o cordão umbilical da Terra à vida. Lembro-me bem do quanto ficava feliz na minha infância quando via a chuva cair da minha pequena janela e mamãe autorizava que eu fosse tomar um banho de chuva no meio da rua correndo pra cima e pra baixo vivendo como se não tivesse mais um amanhã para mim apenas sentindo a vida na minha criancice chegar e eternizar-se numa primavera de alegrias em tempos de soltar pipa e brincar com as poças de água formadas pela chuva na minha pequena rua onde tudo se transformava em festa no meu mundo imaginário.
Não, meu Deus, não permita que as crianças tenham traumas da chuva e fiquem com medo dela. Não permita, Senhor, que a chuva se torne algo ameaçador a alegria da infância já tão sofrida e dolorida neste mundo de ódio e violências. Que possamos mostrar para as nossas crianças um mundo de bonitezas em que a chuva é um presente que vem de algum lugar mágico e enche rios e alimenta plantas para um bem-viver.
Que toda criança possa ter a lembrança de um banho de chuva com a alegria que eu tive. As suas memórias ao se deitarem sejam belas e gigantescas diante de uma chuva que traz alegrias e sorrisos à infância que desce a ladeira num banho de chuva maravilhoso de deixar toda saudade passar sem ser percebida nos pingos de água que vêm do céu. E que cada criança possa desenhar nuvens escuras com pingos de chuvas caindo em cima das suas cabecinhas com a alegria de estar vivo e presente em meio a um mundo tóxico e cheio de irresponsáveis humanos.
Levemos às crianças do mundo inteiro que sofrem hoje com os desastres das enchentes destruindo seus lares, levando embora seus brinquedos e molhando seus corpos trazendo frio e medo uma forma de mostrar-lhes que a culpa não é da chuva, a ideia de que a chuva não é uma coisa má, mas ela é consequência da irresponsabilidade e negligência das autoridades que só sabem colocar concretos e arrancar árvores mundo a fora.
Que toda criança possa ter a lembrança da chuva como algo bom, algo que vem dos deuses e que traz benefícios grandiosos para o homem que planta milho, feijão, arroz além de toda o planeta Terra que precisa da água da chuva para sobreviver. Sem a chuva não estaríamos aqui neste lugar cheio de homens de paletó e gravata que todos os dias derrubam uma árvore e constroem prédios dentro das florestas.
Precisamos dizer às crianças que a chuva não é culpada por elas terem que ser resgatadas por bombeiros ou voluntários da defesa civil e deixarem todas as suas coisinhas para trás até mesmo os seus animais, quem é culpado de tudo isso é o homem que fala tanto em analfabetismo funcional e esquece do seu analfabetismo ambiental. Devemos e somos responsáveis a mostrarmos para as nossas crianças que a chuva quando vem é para alegrar o planeta Terra, pois sem ela não teríamos vida.
Se nos alegra um pouco e não sabemos como mostrar para as nossas crianças vítimas de enchentes o quanto a chuva é importante para o homem, mostremos-lhes um pouco do sofrimento do sertanejo nordestino que toma sopa de pedra e corre atrás de bichos os mais diversos num chão rachado de tão seco e com suas vacas mortas no quintal de casa porque a chuva não vem, mostremos para as nossas crianças a alegria do sertanejo no inverno e quando a chuva vai enchendo açudes e lagos.
É nosso dever dizermos às crianças vítimas de enchentes que a chuva nunca fará mal a nenhuma delas, que a chuva quando cai é para alimentar plantas e animais, é para não deixar que os homens, as florestas e os bichos morram de sede. A chuva enche os rios e os nossos corações de alegrias e isso as crianças precisam saber.
As crianças não podem e não devem ter traumas da chuva assim como conheço muitas que estão sofrendo ao verem o tempo nublar e lembrarem do que passaram ontem. Não podemos permitir que as crianças tenham recordações de desastres de enchentes, pois a chuva é um presente dos deuses para o homem e sem ela não estaríamos aqui mesmo sendo os causadores das maiores tragédias naturais do planeta Terra.
Digamos às crianças que continuem desenhando nuvens escuras, árvores sorrindo com a chuva caindo e que elas continuem com a alegria de tomar um banho de chuva sempre e sempre, pois o maior responsável pelas memórias eternizadas na alma dos nossos pequeninos somos nós, homens e mulheres imperfeitos que todos os dias matam e destroem um pouco o meio ambiente.
Ademais, peço que os pais e responsáveis nunca coloquem a culpa das enchentes na chuva, pois ela é preciosa e rara em alguns lugares do mundo e muita gente morre com a sua falta. O que acontece, criancinha, meu amor, é que o homem maltrata tanto o planeta que ele chora lágrimas de pedra e faz com que responsabilizemos uma coisa tão linda em uma bruxa do mal. A chuva é uma princesa que vem nos salvar quando as vaquinhas estão morrendo no terreiro de sede e fome. O homem é esse bruxo mau que destrói tudo o que encontra pela frente e é ele o responsável por você ter que sair de casa correndo para não se afogar com a enchente.
Peço aos professores, pais e responsáveis que mostrem para as suas crianças a bondade e grandiosidade da chuva, tirando dela qualquer lembrança maldosa ou sofrida. Em lugares onde o homem já saiu da Idade da Pedra e se tornou um aliado da natureza tomar banho de chuva continua sendo a maior alegria de uma criança e ver a chuva pela primeira vez é coisa para se registrar na memória afetiva de cada coração pequenino. Amemos a chuva!
Para terminar deixo vocês com os versos da canção do nosso amado cantor Tom Jobim onde ele nos diz
“É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã/ É um resto de mato na luz da manhã / São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração…”
Seja março, dezembro ou junho o importante é que a criança reflita e imagine que a chuva é uma promessa de vida no seu coração sempre e sempre, cada vez mais.
Enquanto as águas subiam, me disse meu amigo: “Fui me transformando em gaúcho. Precisava”. E completou: “Façamos, pois, cara feia para os males, companheiro”.
Acabo de falar com um colega diretamente atingido pela terrível enchente que nos assola. Me disse ele que nunca participou de Centros de Tradições Gaúchas, nem botas, alpargatas e bombacha tem. No entanto, para sua surpresa, quanto mais a água subia, mais recordava da vez que leu Martin Fierro de José Hernandez. Foi atrás do livro e recitou-me a passagem: “Por dura que seja a sorte, nem há que pensar na morte, senão em vencer a vida…”
Acabou se preocupando em salvar das águas não só o poema de José Hernandez mas também um texto que tinha de Richard Llewellyn, escritor inglês. Texto antigo de quando o inglês esteve por aqui e se impressionou com o povo gaúcho.
Sabemos, vou ser breve, é tema bem conhecido, que o gaúcho nasce onde havia europeu, índio e gado sem dono, solto em grande quantidade. O homem europeu começa a se acasalar com a índia e nasce dessa mistura um povo com mentalidade europeia e habilidade indígena. O europeu não sabe fazer nem se dispõe ao rude trabalho de reunir o gado silvestre. O índio, que tem habilidade para isso, não se interessa, não vê necessidade disso. O filho do europeu e do índio, este, sim, reúne as condições. E nessa lide vão se construindo gaúchos e vai se formando, aos poucos, um povo.
Esse gaúcho, é claro, não existe mais: as cercas, as cidades, as mudanças nos meios de produção fizeram com que ele descesse do cavalo. A ficção de Cyro Martins bem descreve esse “gaúcho a pé”. Mas seu lado “super-homem” permanece vivo.
Quem mora em outras paragens tem certamente outros modelos. O gaúcho é o nosso. Modelo no sentido de que se ele fez é sinal que é possível de ser feito. Se ele superou o que superou, também podemos.
E lembrando dele, podemos fazer crescer qualidades tão necessárias: honestidade, franqueza, coragem, destemor frente à morte, tomada imediata de decisão, aceitar qualquer empreitada e fazer o que tem de ser feito!
Enquanto as águas subiam, me disse meu amigo: “Fui me transformando em gaúcho. Precisava”. E completou: “Façamos, pois, cara feia para os males, companheiro”.
As lições que podem nos ajudar a aprender do acontecimento são aquelas que transformam e, sobretudo, que mobilizam a transformações profundas e duradouras, sustentáveis, produzindo uma virada!
A catástrofe climática é um fato. É vivida, desta vez, por milhões de gaúchos e gaúchas, particularmente e com maior impacto por aqueles e aquelas dos locais mais afetados e que estão em situação de maior precariedade e menor proteção. Chegou dramática. Mas, a situação somente poderá gerar algum tipo aprendizagem, para que não seja “só mais uma”, se for capaz de ser transformada efetivamente numa “experiência”, ou seja, num acontecimento do qual se aprende e que, o que dele se aprende, seja duradouro e capaz de transformar a vida!
Há muitos nomes para designar o que está acontecendo. Chamamos “catástrofe” intencionalmente para recuperar a ideia do teatro dramático antigo que significava o momento no qual os acontecimentos da representação se voltavam contra a personagem principal. Etimologicamente significa: Kata “para baixo” e strophein “virar”, virar para baixo. Tudo isso há de ajudar a “virar”, a “dar uma virada”, esperamos. É, portanto, mais do que um desastre, uma tragédia, um acidente, uma calamidade… ainda que todas estas sejam, de alguma forma, e também, sinônimo daquela.
A questão é saber, no sentido de Bruno Latour, se o fenômeno é “acontecimento”.
Para que seja, precisa levar a uma escuta profunda que transforme o fenômeno, de simples objeto externo a ser descrito funcionalmente, a ser justificado existencialmente, e leve a entender seu sentido, suas razões, motivadoras de reflexões e ações capazes de modificar a própria maneira de pensar e agir, o mais amplo e profundamente possível. Trata-se de superar a simples ocorrência, para problematizar e gerar outras formas de ser, de desejar, de julgar, de agir… e produzir uma ruptura com o modo normalizado e normalizador, gerar impossíveis, mundos totalmente diferentes, outros mundos…
Transformar ocorrências em acontecimento exige que haja reflexão, não somente reação.
Sim, o momento é de socorro, de salvamento, de solidariedade, exercida de forma tão intensa e forte, mas é também de fazê-lo com o desejo de que não se precise voltar a fazer, logo, de novo, uns dias depois. Há que trabalhar a reconstrução, que não pode ser um simples retorno ao mesmo, um refazer no mesmo lugar, posto que, para um bom número de situações, seria insistir em esperar novos eventos traumáticos. Há um processo de responsabilização daqueles que agiram ou que deixaram de agir para prevenir, para proteger, e não são poucas as ausências e as faltas. Há que construir condições para a reparação das vítimas da catástrofe climática e são milhares, aqui e em tantas outras emergências climáticas pelo mundo.
Enfrentar a complexidade das exigências postas pelo acontecimento requer tomar a circunstâncias a fundo, mas não ficarmos presos elas, hão de ser transpassadas, transfluidas… trans… A travessia que se exige neste momento é mais do que simplesmente encontrar alguma margem, ainda que numa enchente, uma margem física é “salvação”. Há que se fazer a travessia para buscar novas margens, margens portadoras potenciais de novas formas de relação que denunciem o intolerável, que travem e freiem a destruição do progresso infinito e abram à criação que fecunda transformações profundas, novas relações, novas existências.
Há uma compreensão a ser construída… um acontecimento não é uma simples casualidade, por mais que o componham. Há antecedentes, há consequências, há causalidades, diretas, indiretas, há agentes, há relações… uma complexidade a ser, não somente esquadrinhada, explicada, mas particularmente, compreendida, interpretada, sentida, refletida. E para tal não se pode dispensar qualquer tipo de saber, de sabedoria, de conhecimento. Todos eles estão convidados à roda dialógica. Mas não dá para acolher a desinformação massiva, a produção de informações falsas, a disseminação de ódio. Uma emergência climática é piorada com o uso das tecnologias da informação para desinformar e para desmobilizar.
É uma catástrofe que tem uma qualidade substantiva: é “climática”. Mas, dizê-la assim, pode sugerir carregar a separação entre ser “climática” e ser “humana”, reproduzindo a cisão entre natureza e cultura, tão cara ao “antropoceno”.
Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2020), alerta que “[…] passamos a pensar que ele [o planeta] é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade”. Davi Kopenawa, em A queda do céu (2015), diz que “[os brancos] pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então di¬zem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear as casas, os ca¬minhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem!”.
A insistência em submeter, no sentido mais duro que esta palavra pode significar, a natureza à cultura, fazendo dela um “recurso” a serviço dos humanos, faz com que as águas sejam tratadas como inimigas da humanidade: deveriam ser recolhidas e enviadas para longe… sobretudo nas cidades… esta é a lógica das “drenagens”. Ao mesmo tempo, operações imensas para trazer água, de longe, do fundo, para abastecer a sede de milhões. E as águas voltam… desta vez voltaram com força! Voltaram para dizer que precisamos conviver com elas. Nos ensinam que não há humanidade sem natureza.
Uma catástrofe climática é uma catástrofe humana, inclusive porque mais produto da ação humana na natureza do que o contrário… longe de que seja uma simples “vingança” da natureza. O desafio de retomar a interdependência entre o humano e o natural é a mensagem mais dura que a “enchente” deixa, além de muita lama, destruição e morte.
O quilombola Antônio Bispo dos Santos, em A terra dá, a terra quer (2023), que há pouco encantou, chama a atenção para a necessidade de entender o movimento das águas: vão e voltam. Ele lembra que “a água não reflui, ela transflui e, por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”. Simbólico e exigente entender o que ele diz quando o desejo imediato é que as águas simplesmente “refluam”, se afastem, rápido, para longe…
Bispo dos Santos propõe que, assim como as águas, o movimento humano seja de “transfluência”, porque, “transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. […] Na transfluência não há volta, porque ela é circular. Ao mesmo tempo que algo vai, fica; ao mesmo tempo que fica, vai – sem se desconectar”.
As lições que podem nos ajudar a aprender do acontecimento são aquelas que transformam e, sobretudo, que mobilizam a transformações profundas e duradouras, sustentáveis, produzindo uma virada!
Autor: Paulo César Carbonari. Doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil) e associado da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF). Também escreveu e publicou no site a reflexão “Liberdade de ensinar e de aprender”:https://www.neipies.com/liberdade-de-ensinar-e-de-aprender/
Outro caminho de oração consiste em rezar pelas necessidades da humanidade que são preocupação comum. E temos muitas. São João Paulo II ensinou isto ao convocar as lideranças religiosas para rezar pela paz na cidade de Assis, como já mencionamos anteriormente, que tem motivado vários outros encontros. Neste caminho olhamos um pouco além dos nossos processos reiterando o papel das religiões no mundo.
Nesta semana a Igreja Católica propõe a Semana de Oração pela Unidade Cristã, tradicionalmente proposta no hemisfério sul na semana que antecede a Solenidade de Pentecostes. Já no hemisfério norte acontece na semana que antecede a festa da conversão do Apóstolo Paulo. Neste ano tem como lema: “Amarás o Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10, 27).
A proposta de uma semana de oração acolhe a iluminação e o desígnio do Espírito Santo que suscita a unidade de todos os cristãos. Na força e inspiração do Espírito os cristãos se aproximam, superam as diferenças e rezam juntos como rezaram Pedro e Cornélio (At 10,25-48). A oração é uma forma de se viver o amor enquanto acolhida da iniciativa divina, enquanto proposta de relacionamento humano e enquanto preocupação com o bem comum da humanidade.
Segundo Luciano Pacomio na apresentação da obra do cardeal Carlo Maria Martini, “orações do cardeal Martini” a oração cristã consiste em repetir a Deus com grande confiança as Palavras de Deus; é suplicar, interceder, oferecer em união com Jesus e seu Santo Espírito; é louvar e adorar ao Pai graças à ação do mesmo Jesus e do Espírito Santo.
As diferentes denominações religiosas têm grande apreço e valor à oração. A experiência orante lhes garante uma identidade. Podem também ser uma ponte com as outras denominações.
Atividade reuniu diferentes denominações religiosas na Catedral em ato inter-religioso tendo presente a dramática situação que assola o Estado do Rio Grande do Sul. Centenas de pessoas, de diversas comunidades e tradições religiosas responderam ao convite e se uniram em oração em favor das vítimas das enchentes.
Entre os católicos a tradição de rezar pela unidade cristã é secular e aos poucos foi encontrando sustentação no magistério eclesial.
Em 1865, o Papa Leão XIII fez a recomendação da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Em 1897, na Encíclica Divinun Illud Munus, sobre o Espírito Santo, destacou o valor da oração pediu que se rezasse pelo bem e o crescimento da unidade dos Cristãos. Em 1909, o Papa Pio X concedeu a bênção oficial à Semana de Oração. Durante o seu pontificado, o Papa Bento XV introduziu a Semana de Oração definitivamente como ação da Igreja Católica. Em um gesto expressivo São João Paulo II em 1986 se reuniu em Assis com irmãos de outras experiências religiosas para rezar pela paz, uma atitude de simbolismo profundo.
A crescente preocupação com a unidade cristã foi assumida com preocupação da Igreja Católica com especial atenção para a construção de uma espiritualidade da unidade que tem como um dos pilares a dimensão orante. Citamos alguns documentos do magistério eclesial que salientam a importância e recomendam a oração pela unidade.
Durante o concílio Vaticano II (1962-1965) foi aprovado Decreto conciliar Unitatis Redintegratio, sobre a reintegração da unidade cristã, que descreve a importância da oração como movimento para a unidade cristã. Assinala a oração e sua importância para os cristãos católicos, como alma do ecumenismo e como expressão de um coração convertido. Sobre a oração afirma: “esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o movimento ecumênico, e com razão podem ser chamadas ecumenismo espiritual” (UR 8). Assegura que a prática orante é um pedido de Jesus Cristo: “é coisa habitual entre os católicos reunirem-se frequentemente para aquela oração pela unidade da Igreja que o próprio Salvador pediu ardentemente ao Pai, na vigília de sua morte: que todos sejam um” (UR 8). Também aprova o encontro com os demais cristãos de outras denominações para a oração: “é lícito e até desejável que os católicos se associem aos irmãos separados na oração. Tais preces comuns são certamente um meio muito eficaz para impetrar a unidade” (UR 8). É um vínculo de unidade entre os cristãos e com o redentor.
Em 1994 o Pontifício Conselho para a Promoção e Unidade dos Cristãos publicou o Diretório para a aplicação dos princípios e normas do ecumenismo. Ali também destaca o valor da oração. Recomenda a oração em comum considerando um meio eficaz de pedir a graça da unidade e constituem expressão autêntica dos laços que unem os católicos aos outros cristãos (Diretório 108).
São João Paulo II, em 1995, publicou a carta Encíclica Ut Unum Sint tratando sobre o caminho do ecumenismo. No documento, afirma a primazia da oração no diálogo ecumênico: “no caminho ecumênico para a unidade, a primazia pertence, sem dúvida, à oração comum, à união orante daqueles que se congregam à volta do próprio Cristo.
Se os cristãos, apesar das suas divisões, souberem unir-se cada vez mais em oração comum ao redor de Cristo, crescerá a sua consciência de como é reduzido o que os divide em comparação com aquilo que os une. Se se encontrarem sempre mais assiduamente diante de Cristo na oração, os cristãos poderão ganhar coragem para enfrentar toda a dolorosa realidade humana das divisões, e reencontrar-se-ão juntos naquela comunidade da Igreja, que Cristo forma incessantemente no Espírito Santo, apesar de todas as debilidades e limitações humanas” (UUS 22).
A prece pela unidade é um caminho potente para os cristãos das diferentes denominações, porque a oração é dizer, fazer silêncio e escutar a voz do Criador a partir das diferentes contingências da vida. Aprende-se a exercitar a confiança e o abandono ao desígnio divino e então não são as nossas vontades que prevalecem, mas a vontade de Deus mesmo. Na perspectiva do diálogo vai prevalecer sobre as instituições religiosas a vontade daquele que deseja que todos sejam um (Jo 17,21).
A oração pela unidade cristã compreende um coração convertido a Deus e ao outro compreendendo que as diferenças não podem ser motivo de afastamento. Então, é possível rezar na intenção do outro que não professa a mesma trajetória de fé, mas que está aberto à proximidade e ao diálogo. É um gesto de abertura amplo segundo o princípio de que não se prioriza a particularidade, mas a necessidade do outro.
Também é possível rezar com o outro, o diferente, segundo o princípio de que é possível o entendimento via espírito orante. Na oração em comum e junto com o outro, de uma índole religiosa diferente abrimos espaço para a ação de Deus via Espírito Santo guiando nossas mentes e corações. Nas experiências de oração em comum nos enriquecemos e fortalecemos a fidelidade a Jesus e a perspectiva da construção da unidade.
Outro caminho de oração consiste em rezar pelas necessidades da humanidade que são preocupação comum. E temos muitas. São João Paulo II ensinou isto ao convocar as lideranças religiosas para rezar pela paz na cidade de Assis, como já mencionamos anteriormente, que tem motivado vários outros encontros. Neste caminho olhamos um pouco além dos nossos processos reiterando o papel das religiões no mundo.
A Semana de Oração pela Unidade Cristã assinala o compromisso com a unidade. A prece comum é um caminho fértil. Possamos exercitar este princípio que une todos nós e nos une com o Criador porque rezar é compromisso de fé, mas antes é dom vocação e graça.
Quando se trata de amizade, a conversa fica mais séria, não é mesmo? Ter bons amigos, que não faltem às promessas, é uma dádiva. A lisura é uma capacidade tão difícil de encontrar nas pessoas. Amigos confiáveis são raros.
Como sempre, nestes dias menos luminosos de outono, costumo recolher-me. Fico enrodilhada em uma poltrona, como faz minha gatinha Rita Lee. Introspectiva, me ponho a pensar em tudo. No sentido da vida. Gosto de me voltar para dentro. É um exercício intrincado, nesta época em que tudo é compartilhado nas redes, lotadas de oba-oba.
Ao fim da tarde de um sábado chuvoso, que fez com que escurecesse mais cedo, resolvi pedir uma pizza. Coloquei o desejo em ação. Na hora da entrega rolava muita água. Os carros passavam na rua, levantando e esparramando água para todos os lados. Os faróis ficavam ofuscados. Saí no avarandado de sombrinha em punho e fui em direção ao portão, já acionando o controle. Então, escutei:
— Não venha, Elenir! Você vai se molhar… Eu vou até aí.
O entregador era meu amigo e desejava me proteger.
— Imagina… Quanta gentileza. Te cuida. Não corra! — eu quis protegê-lo, também.
O delicioso cheirinho de pizza à portuguesa, minha preferida, exalava pela casa toda.
Naquele instante, dei-me conta de que faltava algo.
— Oh! Meu Deus! — o refrigerante não fora entregue.
— Bah! Não estou com vontade de tomar vinho hoje, embora a noite seja propícia.
A primeira coisa que pensei é que não iria reclamar. Não prejudicaria meu amigo com uma queixa. Já sofrem tanto com esse trabalho, indo até tarde da noite.
Quarenta e cinco minutos depois, ele estava no portão, pedindo desculpas e entregando o litro de Coca-Cola.
A chuva tinha diminuído um pouco. A pizza já havia sido devorada. O motoboy estava mais calmo. Desejando um bom final de semana, perguntou:
— Por acaso você ligou lá para a pizzaria, reclamando?
— Não, imagina se faria isso com você — respondi, colocando nas mãos dele o valor de uma nova tele-entrega.
Pondo o capacete, dando sinal de arranque na motocicleta, falou bem alto que eu era uma amiga de verdade.
Essa profissão humanizante e humanizadora que percorreu os séculos, em nosso tempo é frequentemente maltratada, perseguida, injuriada, precarizada. Apesar de tudo isso, milhares de homens e mulheres persistem a acreditam no valor de educar.
A motivação principal deste escrito é divulgar a belíssima coletânea Ética e Docência, organizada pelos professores Angelo Vitório Cenci, Andrei Luiz Lodéa, Bruna de Oliveira Bortolini e Patrícia Carlesso Marcelino (2024) que acaba de sair pela Editora da UPF. Trata-se de uma publicação que trata de um tema central para os desafios educacionais contemporâneos. Conforme os organizadores escrevem na apresentação, “a docência é uma profissão, mas também é um ofício. Ela necessita de uma esmerada formação intelectual, pedagógica e metodológica, mas também de saberes práticos adquiridos mediante experiência, tato pedagógico e criatividade” (p.7).
I
Essa profissão humanizante e humanizadora que percorreu os séculos, em nosso tempo é frequentemente maltratada, perseguida, injuriada, precarizada. Não por todos, certamente, e nem sempre de forma pública, mas na sutileza das sombras, no anonimato das ações tácitas, no submundo das redes sociais, nos discursos de ódio de uma extrema direita ressentida, na idolatria dos que colocaram o deus mercado no altar dos sacrifícios da vida humana e no uso instrumental da natureza; por estes a profissão docente é frequentemente hostilizada.
Professores e professoras, principalmente os que advogam um pensamento crítico e reflexivo em suas práticas docentes, são frequentemente acusados de serem doutrinadores, comunistas, insolentes, perturbadores do progresso econômico e responsáveis pelo fracasso da educação. Apesar de tudo isso, milhares de homens e mulheres persistem a acreditam no valor de educar.
Em seu belo livro O valor de educar, o filósofo e educador espanhol, Fernando Savater, diz que “[…] em qualquer educação, por pior que seja, há suficientes aspectos positivos para despertar em quem a recebeu o desejo de fazer melhor com aqueles pelos quais depois será responsável” (Savater, 2000, p. 17). Tal perspectiva nos tutela, acompanhando as reflexões anteriores, o desafio de pensarmos e estruturarmos processos educativos para que as futuras gerações possam ser melhores que a nossa geração ou a geração que nos precedeu. Mas como realizar tal façanha? De que forma é possível pensar e projetar um processo educativo que seja suficientemente eficaz para dar conta das crises e demandas educacionais atuais?
A educação deve preparar pessoas para competir na sociedade do mercado ou deve formar seres humanos completos? Deve doutrinar ou educar para a autonomia? Deve focar-se e concentrar suas energias no repasse de informações e na instrução eficiente ou no árduo e complexo processo de produção de conhecimentos e na construção de cidadãos? Deve preparar para um emprego ou preparar para a vida? Deve manter uma “neutralidade aparente” diante da pluralidade de opções ideológicas, religiosas, políticas e tantas outras formas de vida, ou deve inclinar-se por debater sobre o preferível e propor modos de vida mais confiáveis?
No bojo de todas essas questões e tantas outras que poderiam ser apresentadas, ainda cabe perguntar: é obrigatório educar todo mundo da mesma maneira ou deve haver tipos diferentes de educação, isto é, conforme a clientela a que sejam dirigidos? A obrigação de educar é assunto público ou questão privada de cada um? Por que a educação carrega em si, no seu modo de ser planejada e exercida, uma dimensão existencial, antropológica, ontológica, epistemológica, política e ética?
“Ninguém escapa da educação”, afirmava o saudoso Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 7), em seu consagrado livro introdutório O que é educação. Em qualquer lugar que estamos, na rua, em casa, na escola, nas situações mais inusitadas, diante da televisão, quando conversamos com outras pessoas, lemos um jornal, um livro ou qualquer outro tipo de informativo, ou quando compartilhamos nas redes sociais informações ou curiosidades: todos nós estamos envolvidos com a educação para aprender, ensinar, socializar, construir, dinamizar, fazer, conviver, revitalizar nossa própria existência. “A educação invade nossa vida e nossa vida é misturada com a educação”, ressaltam Fávero e Tonieto (2010, p. 14), pois “[…] não há uma forma única de educação e ela não se realiza apenas em locais formais”.
Em cada cultura, em cada época, em cada espaço, há traços educativos que se traduzem em formas de vida de indivíduos, grupos e comunidades inteiras e é por isso que “ninguém escapa da educação”. Mas essa condição se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais seres vivos?
Nas pesquisas e escritos de diversos cientistas e pensadores contemporâneos, não há dúvida de que em todos os seres vivos existe uma relação entre o viver e o conhecer. As teorias atuais que tratam dos sistemas complexos auto-organizativos e autopoiéticos indicam o profundo vínculo que existe entre o viver e o conhecer. Para essas teorias, as interações de um organismo vivo com o seu meio ambiente são vistas como interações cognitivas, de modo que há, portanto, uma identificação entre o processo de vida e o processo do conhecer. Humberto Maturana e Francisco Varela (2001, p. 194), em seu livro A árvore do conhecimento, destacam que “[…] toda interação de um organismo, toda conduta observada, pode ser avaliada por um observador como um ato cognitivo”. Sendo assim, “[…] o fato de viver – de conservar ininterruptamente o acoplamento estrutural como ser vivo – corresponde a conhecer no âmbito do existir”.
Dizendo de modo aforístico: “viver é conhecer” (viver é ação efetiva no existir como ser vivo). É com base nessa relação autopoiética da vida e com conhecimento que podemos responder à pergunta: como surge a ética? De acordo com Maturana e Varela (1995, p. 262), a ética surge da consciência da estrutura biológica e social dos seres humanos, que brota da reflexão humana e a coloca no centro como fenômeno social constitutivo. E como toda a ação humana sempre acontece na linguagem, assim, também, todo ato linguístico produz o mundo que criamos com os outros nos atos de convivência que dão origem ao humano: por isso, todo ato humano traz consigo um sentido ético. Esse vínculo entre humanos é o fundamento de toda ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro.
Em Sem fins lucrativos (2019), a filósofa Martha Nussbaum argumenta que se tornou urgente nos preocuparmos com a diferença de perspectiva de uma educação baseada no modelo utilitarista — que aceita e propaga a ideia do crescimento econômico e que impõe, também, ao sistema escolar e universitário, um sistema de avaliação quantitativa de produtividade —, e uma formação que se oriente pelo modelo do desenvolvimento humano, no qual são fomentadas e preservadas as condições para a criação de capacidades que permitam a constituição de uma sociedade democrática e de uma cidadania global.
Mais recentemente, Nussbaum (2022) também dedicou um livro à questão da ética para com os animais, indicando a necessidade de incluir, na mudança paradigmática necessária à educação do nosso tempo, a consideração da nossa responsabilidade em relação às diferentes formas de vida. Estamos aqui, portanto, no centro de nossas indagações sobre as relações entre os pressupostos éticos e epistemológicos da atividade docente, para a qual é preciso ter sempre presente o caráter relacional que nos vincula aos outros e ao mundo.
É notório, a partir das posições defendidas por essas teorias e por esses autores, que “viver é conhecer” e que “[…] o processo de cognição tem a ver com a conduta efetiva ou adequada de um organismo vivo em um contexto relacional” (Fávero; Tonieto, 2010, p.15). No entanto, permanece a questão anteriormente formulada: a inevitabilidade do processo educativo se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais seres vivos?
Ou ainda, qual é a forma especificamente humana de cognição que diferencia o ser humano de outros animais superiores? Em seu livro Educar para reencantar a vida, o teólogo e economista Jung Mo Sung (2006, p. 27-28) responde a essa segunda pergunta da seguinte maneira: “[…] o único mecanismo biológico capaz de gerar esse tipo de mudança no comportamento e na cognição […] é a transmissão social ou cultural que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da evolução orgânica”.
A resposta formulada por Jung Mo Sung está ancorada em diversos autores os quais defendem a tese de que, na espécie humana, há um processo de transmissão e de aprendizagem cultural que se diferencia de outras espécies.
Baseado em seus estudos Sung (2006) identifica três tipos básicos de aprendizagem cultural humana: a) aprendizagem por imitação; b) aprendizagem por instrução; c) aprendizagem por colaboração. Esses três tipos de aprendizagem só são possíveis na espécie humana porque possuímos a “cognição social” que possibilita perceber e compreender os indivíduos pertencentes à mesma espécie como sendo iguais a nós.
Apesar de sermos biologicamente muito semelhantes aos primatas, por exemplo, é o ato de nos identificarmos com outros membros da nossa espécie que possibilita os três tipos de aprendizagem acima indicados. É nesse aspecto que a aprendizagem da linguagem simbólica se torna um divisor de água entre a espécie humana e os outros animais superiores. “O que dá à cognição humana o seu poder único e impressionante em relação aos outros animais”, ressalta Jung Mo Sung (2006, p. 29), “[…] é o fato de usarmos os símbolos linguísticos em interações discursivas onde as diferentes perspectivas de apreensão e compreensão de algum fenômeno possibilitadas por esses símbolos são explicitamente contrastadas e compartilhadas”.
Em seu instigante livro Ensaio sobre o homem, o filósofo contemporâneo Ernst Cassirer (2001, p.50-51) define o ser humano como sendo um animal symbolicum, pois, para ele, a razão é um termo muito inadequado para compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. “É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico estão entre os traços mais característicos da vida humana, e que todo o progresso da cultura humana está baseado nessas condições”.
Os animais também são suscetíveis de comportamentos simbólicos e os cientistas estão convencidos de que o problema da linguagem animal é algo que merece nossa atenção e cuidado. No entanto, ressalta Cassirer (2001, p. 54-59), é necessário distinguir “[…] as camadas geológicas da fala” que possibilitam distinguir a linguagem humana da linguagem animal, ou seja, “[…] a diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emocional é a verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo animal” (grifos do autor). A linguagem proposicional é o grande distintivo da linguagem humana. Da mesma forma, há uma distinção entre sinais e símbolos: “[…] um sinal faz parte do mundo físico; um símbolo é parte do mundo humano do significado” (Cassirer, 2001, p. 54-59).
As reflexões de Cassirer nos ajudam a retomar a pergunta que foi indicada anteriormente: a educação se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais animais superiores?
Acreditamos que as considerações acima expostas são, provisoriamente, suficientes para respondermos afirmativamente: a educação é uma particularidade humana e nos tornamos humanos pelos processos educativos que acontecem em nossa vida. Isso implica em dizer que a humanização não é um processo natural, mas que nos tornamos humanos na medida que participamos de uma comunidade que possui regras, linguagem e cultura. É neste sentido que Jung Mo Sung (2006, p. 35) diz que “[…] nós seres humanos somos de certa maneira ‘animais desnaturados’”, pois, mesmo sendo nosso ponto de partida natural, “[…] nossa espécie foi enxertada de certos processos biológicos” que foram se adaptando pelas necessidades (a posição do pé, o dedo polegar oposto a outros quatro dedos, o deslocamento do cérebro etc.) e “[…] de processos históricos e sociais que nos possibilitaram a habitar o universo da cultura”. Sendo assim, nós “[…] não habitamos mais apenas o mundo dos fatos, mas o mundo dos signos e dos sentidos” (Sung, 2006, p. 35).
O fato do ser humano habitar o mundo dos signos e dos sentidos requer um constante processo educativo e é por isso que a escola surge como uma das mais importantes instituições historicamente criadas para socializar os saberes culturais e, com isso, possibilitar o processo de humanização das futuras gerações.
Certamente, a escola foi uma das principais invenções que contribuiu de forma singular para o aprimoramento cultural da espécie humana e para o avanço do conhecimento. Não teríamos evoluído, em termos de civilização, e não teríamos atingido o estágio atual das modernas tecnologias sem a presença marcante da escola. No entanto, em um cenário de transformações rápidas e profundas, ocasionadas pelas tecnologias da informação e comunicação, associamo-nos às reflexões de Charlot (2019, p.161), quando diz que hoje, observa-se “[…] uma indeterminação crescente quanto à definição do que é um ser humano” e, por isso, um dos desafios fundamentais à educação diz respeito à questão antropolítica. Nesse cenário, a própria escola pública vê-se atacada, de todas as formas, com acusações, demandas e questionamentos que abalam suas estruturas e sua própria identidade, que fragilizam seus sujeitos (professores, alunos e gestores), de modo a confundir suas funções e sua relevância social em um mundo cada vez tecnificado e mercantilizado.
São imensos os desafios do tempo presente, pois envolvem situações complexas, problemas profundos, dilemas gigantescos, ações coletivas que ultrapassam as particularidades locais ou regionais. Tais desafios não podem ser enfrentados apenas com discursos ou com decretos, não serão contornados se não existir uma consciência coletiva cidadã que seja capaz de produzir uma responsabilidade solidária e ética que nos ajude a ver para além dos interesses imediatos econômicos. Tal consciência requer uma atitude ética educacional do conjunto da sociedade. Teremos coragem de dar esse passo?
Parte das ideias que foram esboçadas acima estão também desenvolvidas no capítulo que escrevi com grande amigo Luiz Carlos Bombassaro (Professor da UFRGS). A coletânea completa onde está publicado o capítulo pode ser acessada no seguinte link: https://www.researchgate.net/publication/380404922_Etica_e_docencia_VI_ebook_2024
Referências:
BECKER, Fernando. A epistemologia do professor😮 cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 1993.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da Epistemologia. Como se produz o conhecimento. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CENCI, Angelo Vitório; LODÉA, Andrei Luiz; BORTOLINI, Bruna de Oliveira; MARCELINO, Patrícia Carlesso (orgs.). Ética e Docência. Passo Fundo: Editora UPF, 2024.
CHARLOT, Bernard. A questão antropológica na educação quando o tempo da barbárie está de volta. Educar em Revista, Curitiba, v. 35, n. 73, p. 161-180, jan./fev., 2019.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. Educar o educador:reflexões sobre docente. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. O lugar da teoria na pesquisa sobre a docência no Ensino Superior. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina (Orgs.). Epistemologias da docência universitária. Curitiba: CRV, 2016. pp. 31-49.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; POSSEL, Bianca. A resolução de problemas como prática interdisciplinar: uma proposta epistemetodológica. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (Orgs.). Interdisciplinaridade e formação docente.Curitiba: CRV, 2018. pp. 89-102.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon (Orgs.) Leituras sobre Martha Nussbaum e a Educação. Curitiba: CRV, 2021.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento:as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
NUSSBAUM, Martha. Justice for animals. Our Collective Responsibility. New York: Simon & Schuster, 2022.
SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida. Petrópolis: Vozes, 2006.
Repercutimos, neste site educacional, o trabalho de uma Escola da Rede Municipal de Passo Fundo, A EMEF Zeferino Demétrio Costi. A partir do trabalho da Coordenadora Pedagógica (que também já atuou na escola como Orientadora Educacional) Adriana Severo dos Santos, este educandário vem trabalhando diuturnamente para enfrentar o bullying, uma prática bastante comum em ambientes escolares e que deve ser enfrentada a partir de estratégias educativas permanentes.
Uma das temáticas mais debatidas na sociedade hoje, principalmente nos espaços escolares, é o Bullying, tornando-se um desafio a nós educadores e educadoras. O desafio é pensar e desenvolver um trabalho preventivo junto aos estudantes e toda a comunidade escolar.
Esse trabalho de sensibilização, conscientização, permeado de atividades pedagógicas preventivas, busca fortalecer e tornar a escola um ambiente escolar emocionalmente saudável, produtivo e positivo. Por este motivo, escolas tem se preocupado cada vez mais, não só com o desenvolvimento acadêmico, mas também com o desenvolvimento social e emocional dos estudantes.
Cabe ressaltar que, o bullying influencia e contribui diretamente no processo ensino aprendizagem, sendo um dos fatores determinantes ao sucesso ou fracasso escolar, por isso é tão determinante seu debate e medidas de prevenção.
A escola é um espaço de vivencias coletivas, por isso, é preciso oferecer meios para se encontrar novas soluções no combate a estes tipos de constrangimentos e, mostrar para as pessoas que bullying não é brincadeira, mas, sim, um ato de crueldade e violência contra estas crianças e adolescentes. Além disso, projetos de prevenção, essenciais no âmbito escolar, visam discutir formas de convivência, valorizando a amizade, os valores humanos, a integração, empatia, solidariedade, sentindo-se feliz, seguro e respeitado.
É importante destacar também, que os efeitos do bullying podem ser devastadores, traumáticos e irreversíveis, se não combatidos e denunciados, por isso partindo deste pressuposto, apresentamos algumas sugestões… que nos últimos quatro anos a Escola Municipal Zeferino Demétrio Costi tem trabalhado com os estudantes e toda comunidade escolar, em vários momentos educativos, refletindo e avaliando, buscando amenizar e instalar uma cultura da paz, pela harmonia e boa convivência de todos.
Coordenadora da EMEF Zeferino Demétrio Costi em seu ambiente de trabalho.
Seguem sugestões de materiais educativos que podem ser trabalhados junto a estudantes das séries iniciais do Ensino Fundamental.
LIVROS:
ERNESTO: 3º,4º,5º ANOS
– Os direitos das Crianças – Ruth Rocha
– Adaptação Declaração Universal dos Direitos Humanos – Ruth Rocha e Otávio Roth.
Materiais Audiovisuais como sugestões para trabalhos com estudantes:
Seguem, também, sugestões de materiais audiovisuais (vídeos) que podem ser trabalhados junto a estudantes das séries finais do Ensino Fundamental.
1.O filme CURTA DIFERENÇAS foi realizado com financiamento da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Tem o patrocínio exclusivo das Empresas RANDON, a realização da Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo e do Governo Federal. A ideia nasceu com a música DIFERENÇAS de Rodrigo Munari. Da música surgiu o livro DIFERENÇAS do mesmo autor, com ilustrações de Felipe Munari. Do livro as palavras e ilustrações ganham vida, voz e movimento no filme CURTA DIFERENÇAS!!!
2.Time espanhol lançou vídeo promocional aderindo à campanha do Dia Internacional contra o Bullying Escolar. No comercial, com o tema “Contra o bullying, coragem e coração”, uma criança é vítima de bullying no pátio de uma escola e outras duas crianças a defendem, uma delas vestida com a camisa do zagueiro Stefan Savic, defensor do time de Diego Simeone. O vídeo é encerrado com a legenda: “Às vezes os verdadeiros craques são os que defendem, não os que atacam”. A campanha é realizada no dia 2 de maio e visa conscientizar crianças e adultos sobre o bullying em escolas.