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A manada de José Mayer e a Globo

Estamos descobrindo que Mayer e a Globo,
com seus sentimentos de poder total, têm muitas coisas em comum
(e não estou falando da relação com as mulheres,
mas das mais amplas relações humanas).

 

José Mayer frustrou muitos dos machos que o seguiam como inspiração, ao largar a nota em que admite que errou e que vinha errando há muito tempo com as mulheres.

Mayer confessou que era um assediador, mas arranjou um atenuante. É aí que ele pode ter frustrado os machos que o consideram o cara, o alfa a ser imitado. Mayer não só admitiu que era um predador, como veio com uma conversa sociológica.

 

Repercussões na própria Rede Globo em programa Vídeo Schow

 

A culpa seria dele e de toda uma geração que se sentia à vontade para assediar as mulheres do jeito que bem entendesse (ainda mais se fosse galã da Globo). Os machos que o admiram talvez não admitam, mas José Mayer acertou o diagnóstico. A nota é muito boa. Tão boa que fica muito acima da média em casos complicados como esse (se é autêntica é outra história).

Ele pede desculpas, confessa que sempre foi assim, anuncia que vai mudar e apela para que outros da sua geração também mudem. Só falta dizer que vai virar pastor. A nota tem até pretensões literárias.

Mas aí alguém pode estar pensando: eu avancei muitas vezes para além do razoável, mas nunca passei a mão nas partes íntimas de colegas de trabalho. Mayer passava. Deveria achar normal. Bonitão, insuportável, superior.

A tese de cientista social do assediador não o absolve, mas ameniza a própria culpa e talvez melhore sua situação no caso de um pedido de reparação da moça na Justiça. Mayer tenta se colocar como exemplar de uma manada. Ele é o que é porque integra uma coletividade de assediadores da mesma idade, com as mesmas cabeças atrasadas.

Pesquisei nas redes sociais sobre as repercussões e os comentários sobre o caso. Li até comentários de mulheres que parecem ver algum exagero no julgamento público, se não nesse caso, em muitos semelhantes. E muitos homens incomodados com a reação das artistas da Globo.

Elogiada por protagonizar e incentivar o debate de assuntos polêmicos em seu “Amor & Sexo”, na TV Globo, a apresentadora Fernanda Lima é uma das engajadas da campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”.
Veja mais.

 

Esses talvez não mudem, mas ele encerra a nota em tom de auto-ajuda: “O que posso assegurar é que o José Mayer, homem, ator, pai, filho, marido, colega que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor”.

O que o episódio acaba por revelar é que não só os machos, mas também alguns atores do estilo de Mayer deveriam estar em desuso, num mundo em que se disseminam as agressões às mulheres, os casos de estupro e outras formas de crueldade e desrespeito, sem falar na homofobia.

Estamos descobrindo que Mayer, o canastrão, leva para seus personagens o que de fato é. E que ele e a Globo, com seus sentimentos de poder total, têm muitas coisas em comum (e não estou falando da relação com as mulheres, mas das mais amplas relações humanas). Com a diferença de que a Globo manipuladora nunca irá pedir desculpas.

 

Uma vida dedicada à cultura

Fotos: Arquivo pessoal /Paulo Dutra

Abrimos a temporada de novas entrevistas da série “Profissões Educadoras” com um personagem que contribui para uma revolução cultural na cidade. Nosso entrevistado nasceu em Santo Antão, interior de Passo Fundo e, ainda criança, veio com a família morar na Vila Operária e mal sabia ele que iria bem mais longe, ganharia o mundo. Refiro-me a Paulo Gilberto Bilhar Dutra, o Paulo Dutra, 60 anos de idade e uma vida dedicada à cultura e ao voluntariado. Formado em economia, é funcionário público há 42 anos, mas atrevo-me a chamá-lo de “operário da cultura”. Presidente do Festival Internacional do Folclore de Passo Fundo é responsável por colocar Passo Fundo no mapa internacional dos festivais de folclore, congregando 160 voluntários em torno de uma bandeira: a paz entre os povos.

Confira a entrevista.

 

Márcia Machado: Como a cultura entrou na tua vida?

Paulo Dutra: Na década de 70, nós tínhamos um grupo de teatro no antigo Colégio Comercial, que funcionava no Colégio Joaquim Fagundes dos Reis no período noturno e ali tínhamos um grupo de teatro que desenvolveu muitas atividades. Durante três anos trabalhamos ali e depois de formado continuei por mais um ano, nós inclusive viajávamos com o grupo. Desde o antigo primário participei de atividades culturais, especialmente ligadas ao tradicionalismo. Na Vila Operária, no Grupo Escolar Anna Willig, nós tínhamos um grupo de dança, também participei do Grêmio Estudantil, Centro Cívico e do Coral. O primeiro Coral no qual cantei foi com a professora Terezinha Brás, ainda no antigo Segundo Grau. Entrei para o Coral da Universidade de Passo Fundo, antes de entrar para a Universidade, eu já estava metido lá. Ainda participei de um grupo de danças no bairro Vera Cruz, chamado Mate Amargo, após ingressei no Grupo Terra Pampeana.

Márcia Machado: Foi com o grupo Terra Pampeana que nasceu a ideia do Festival Internacional de Folclore?

Paulo Dutra: Fui patrão do grupo por um bom tempo, fizemos um trabalho diferenciado sobre a cultura gaúcha e o grupo teve muitas atividades, muitas oportunidades dentro do Estado, pelo Brasil e fora do Brasil. Realizamos um trabalho intenso e com esse trabalho surgiu o CIOFF – Conselho Internacional de Organização de Festivais Folclóricos e Artes Tradicionais, onde fomos convidados a representar o CIOFF no Rio Grande do Sul pelo trabalho realizado pelo Terra Pampeana.

Márcia Machado: A ideia do Festival não nasceu em solo passo-fundense, tão pouco brasileiro?

Paulo Dutra: A ideia surgiu na Itália, enquanto participávamos de festivais lá, achamos que nossa comunidade também mereceria a oportunidade de ter aquela troca de informações que estávamos usufruindo. Voltamos e apresentamos o projeto para o legislativo que, na época, tinha como presidente o vereador Tadeu Karczeski e para o executivo chefiado pelo prefeito Airton Dipp e também fundamos o CIOFF/RS. O grupo trabalhou durante um ano, tínhamos a experiência de festivais nos quais participamos e mobilizamos toda a cidade, através de reuniões com escolas, igrejas, CTGs, associações de bairros, entidades. Tudo depende da motivação e esse grupo estava motivado e conseguiu fazer essa articulação envolvendo toda a comunidade. E o Festival está aí até hoje, completando 25 anos, sempre com o intuito de promover a paz entre os povos. Já estamos preparando a próxima edição.

“A ideia surgiu na Itália, enquanto participávamos de festivais lá, achamos que nossa comunidade também mereceria a oportunidade de ter aquela troca de informações que estávamos usufruindo”.

 

Márcia Machado: Como você se vê no papel de articulador dessa grande festa cultural que é o Festival?

Paulo Dutra: Eu me sinto feliz em participar. Não acho que eu seja o articulador porque a articulação se dá com um grupo que trabalha junto, há muito tempo, então tem ideias, tem coisas que são realizadas dentro dos grupos e que vão para a prática e a gente não sabe de quem é, a gente nem lembra. A ideia surge, é discutida, aprofundada e executada. Dizem que eu sou idealizador do festival de Passo Fundo, mas eu não sou. O Festival surgiu dentro do Terra Pampeana e até hoje a gente não lembra como aconteceu a discussão na Itália, o que sabemos é que ela foi tomando corpo e acabou resultando no Festival, tudo a partir do empenho de um grupo.

Márcia Machado: Como atrair 160 pessoas para um trabalho totalmente voluntário?

Paulo Dutra: Para ter voluntários, e eu sempre fui dedicado a essa causa do voluntariado, precisa ter um tema que atraia as pessoas, não só pela cabeça, mas pelo coração. E a questão do tema folclore está arraigado nas pessoas, é a vida, a cultura de cada um, todo mundo quer saber de onde veio, para onde vai. É a transmissão de cultura de geração para geração, então, é um tema que atrai as pessoas. Quando você tem um tema que te motiva e que motive as pessoas a trabalhar com o coração, aí o voluntariado acontece. Então, tem que ter cabeça, motivação e coração para isso.

Para ter voluntários precisa ter um tema que atraia as pessoas, não só pela cabeça, mas pelo coração.

 

Márcia Machado: O diferencial do Festival é o envolvimento de toda a comunidade. Os grupos visitantes percebem isso?

Paulo Dutra: Esse retorno que os grupos têm nos dado, não é só em relação ao Festival e a organização, mas é em relação ao comportamento da cidade. Como as pessoas recebem bem os grupos visitantes nas ruas, nas lojas, nos mercados, seja onde for. As pessoas querem com eles e não tem idade, tanto que num dos festivais a dona Heloisa Almeida, no alto dos seus quase 90 anos, estava em todos os desfiles e você também via crianças dançando e conversando com os grupos também. A comunidade compreende que para muitos é uma oportunidade única de conhecer várias culturas e que só o Festival proporciona isso.

Esse retorno que os grupos têm nos dado, não é só em relação ao Festival e a organização, mas é em relação ao comportamento da cidade. Como as pessoas recebem bem os grupos visitantes nas ruas, nas lojas, nos mercados, seja onde for.

 

Márcia Machado: O público busca uma interação maior com os grupos a cada Festival?

Paulo Dutra: A sinergia é grande, tanto que nós fomos aumentando o número de oficinas porque as pessoas pediam mais contato com os grupos. Exemplo disso é a oficina gratuita de conversação, momento em que a comunidade pode interagir com os grupos e também aprender as danças em outra oficina oferecida. Nas praças com os espetáculos, nas ruas com os desfiles diários. Outro exemplo foi um show aberto que realizamos no Parque da Gare e impressionou pelo número de pessoas participantes. Procuramos oferecer esse contato direto com os grupos, é uma troca. Só o Festival proporciona isso.

Márcia Machado: A disseminação da cultura dos povos tem um viés educativo?

Paulo Dutra: A questão cultural ela é muito importante para a educação e esses eventos com os quais a gente trabalha, todos eles têm um cunho educativo. O Rodeio Internacional de Passo Fundo, por exemplo, valoriza a questão da nossa terra, das coisas da nossa gente, das nossas raízes. Na medida em que tu conhece, começa a valorizar mais e a discutir sobre isso, é um princípio de desenvolvimento da educação. A Jornada de Literatura, nem se fala, é a formação de leitores, porque o conhecimento é cultura, e cultura é educação. O Festival é isso, muita cultura e educação, pois no momento que tu vai receber alguém de fora e que vai trazer a sua cultura, obviamente que as pessoas vão perguntar sobre a cultura local, então, você tem que buscar, tem que ler, tem que ter o conhecimento e esse processo na comunidade está sendo natural. Quem tem o conhecimento e a informação, tem outro tipo de educação.

A questão cultural é muito importante para a educação e esses eventos com os quais a gente trabalha, todos eles têm também um cunho educativo.

 

Márcia Machado: Como resumiria essa tua dedicação à cultura?

 Paulo Dutra: Eu me sinto feliz em participar dessas oportunidades, em saber que posso contribuir com a comunidade, mas sozinho a gente não faz nada. Existe a necessidade de apoio e temos o apoio dos poderes públicos de Passo Fundo, dos patrocinadores e da comunidade. O último Festival reflete isso, mesmo diante de toda a crise econômica, Passo Fundo foi a única cidade brasileira, em 2016, a realizar um festival do CIOFF, os demais não saíram.

Márcia Machado: Você imaginou que o Festival ia tomar essa proporção e chegar ao ranking dos 10 melhores do mundo?

Paulo Dutra: Não. Ele acabou se transformando em um dos maiores festivais do mundo, nós já recebemos aqui praticamente todos aqueles que foram presidente do CIOFF mundial, como Finlândia, Canadá e França, e o conceito deles em relação ao Festival de Passo Fundo é excelente, pois já visitaram festivais no mundo todo e colocam o nosso entre os 10 melhores do mundo. Eu não imaginava que o Festival fosse tomar a proporção que tomou.

Quem tem o conhecimento e a informação sobre diferentes culturas, tem outro tipo de educação.

 

Márcia Machado: O que você espera para o Festival no futuro?

Paulo Dutra: Continuar sempre. O tempo passa e o meu grande desejo é que alguém assuma a liderança desse trabalho. Temos incentivado e pedido muito aos voluntários para alguém assumir. A aposentadoria dá um certo medo, mas um dia terá que ocorrer também.

A menina e o cajueiro

 

Eu não sei porque Deus criou cajueiros,
mas eu acho que foi para ser amigo de uma menina
que morria de medo das pessoas grandes,
porque elas só têm garfos e facas na cabeça.

 

Na minha pequena casa de dois vãos não tinha vaso em cima da mesa como decoração. O que decorava a nossa casa era um cajueiro bem grandão, no quintal. Todo o mundo que chegava a minha casa ficava espantado com o meu cajueiro.

Ele era bem grandão mesmo! Eu tinha orgulho de dizer: é meu amigo! É meu amigo! E todos riam de mim. Quem já viu árvore ser amiga de gente? Era assim que pensavam meus familiares e algumas pessoas que visitavam a nossa casa.

Eu não sei porque Deus criou cajueiros, mas eu acho que foi para ser amigo de uma menina que morria de medo das pessoas grandes, porque elas só têm garfos e facas na cabeça.

Eu e meu cajueiro éramos um só. Às vezes eu até me sentia uma cajueira. Para quem nunca teve irmãos, nem amigos de verdade e precisava conviver com pessoas de mentira era preciso ter um cajueiro como amigo.

Talvez vocês não saibam, mas os cajueiros gostam de conversar de madrugada, e quase todas as noites eu abria a porta da cozinha bem devagarzinho para não fazer barulho e ia conversar com ele, eram conversas meio assim, sei lá, assim, conversas, é, eram conversas. Aí quando o dia amanhecia eu acordava com o grito da minha mãe:

– Dormiu de novo embaixo do cajueiro?

Ela me dava umas palmadas bem fortes na bunda para eu não repetir mais aquilo. Só que eu não suportava a voz do meu cajueiro me chamando de madrugada para ir ficar perto dele, porque mais medo tinha eu dele adoecer do que de levar umas palmadas de vez em quando. Então, um fazia companhia para o outro. A gente gostava de olhar à lua. Era assim: a gente só olhava. Nada mais.

A coisa mais difícil do mundo foi quando a vovó morreu. Ela morava bem longe. Eu tive que me arrumar às pressas. Nem tive tempo de me despedir do meu cajueiro. Fiquei três dias longe dele. Eu chorava a morte da vovó e chorava também a saudade do meu cajueiro. Nunca descobri por quem mais chorei de verdade.

Quando a gente ama alguém a coisa mais difícil desse mundo é ficar um minuto longe dessa pessoa, imagine três dias. Cheguei a perguntar ao sol se ele não estava atrasado para seu crepúsculo e a lua se ela não estava com sono.

Vovó foi enterrada e eu fiquei feliz com aquilo. Enquanto todos choravam eu tinha vontade de sorrir, agora podia voltar para perto do meu cajueiro. Bem, aí meu pai inventou de ficar mais uns dias perto do meu avô.

Para acabar com a saudade do meu cajueiro comecei a desenhar cajueiros de todos os tamanhos na parede da casa da minha avó morta ou da casa do meu avô vivo, como vocês preferirem. Levei uma surra bem boa por riscar as paredes branquinhas da casa dos meus avós.

Voltei para casa e a primeira coisa que fiz foi abraçar meu cajueiro. Quer dizer abraçar parte do tronco dele. Era um tronco bem grosso. Ele parecia com raiva de mim, não aceitou minhas desculpas, e eu como sabia fazê-lo sorrir comecei a fazer cócegas nas suas folhas. Então, ele sorriu muito pedindo para eu parar.

O cajueiro (Anacardium occidentale) é originário da região nordeste do Brasil. Existem dois tipos: o comum (ou gigante), que pode atingir entre 5 e 12 metros de altura, e o anão, com altura média de 4 metros.
O fruto do cajueiro, a castanha de caju, possui em seu interior uma amêndoa que, quando seca e torrada, é popularmente conhecida como castanha-de-caju. Além do fruto, a casca da árvore é também utilizada como adstringente e tônico. O tronco do cajueiro produz uma resina amarela, conhecida por goma do cajueiro, usada na indústria do papel até a indústria farmacêutica. Sua madeira, durável e de coloração rosada é também apreciada.
Veja mais.

Certa manhã, mamãe inventou de fazer uma faxina no meu quarto. Ela pegou meus sapatos pretos que tinham me acompanhado durante anos para jogar no lixo. Lixo?! Sim, iam para o lixo. Deixei que ela os colocasse na lata do lixo, mas de noitinha fui lá e tirei meus velhos sapatos pretos. Cavei um buraco embaixo do meu cajueiro e os enterrei lá.

Nesse dia, eu descobri que podia enterrar tudo embaixo do meu cajueiro e comecei a enterrar a minha tristeza de me achar diferente das outras crianças. Diziam que eu era uma menina muito esquisita: não falava quase nada, não brincava com ninguém, não comia direito e ainda passava horas a conversar com um cajueiro. Podia ser doença? As pessoas grandes inventam doença para tudo.

No outono, as folhas do meu cajueiro caíam bastante. Daí, eu pegava um saco de estopa e apanhava uma a uma. Depois escondia tudo no porão da nossa casa. Nunca contei isso para ninguém só para vocês estou contando agora, e não contem para mais ninguém. Já pensou se descobrem que no porão da minha casa está cheio de folhas secas de um cajueiro? Vão dizer que eu sou doida. E se doido não fosse chamado de doido, queria ser doida.

A gente aprende a gostar das coisas e nem sabe o motivo, só sabe que gosta.

Foi assim que aconteceu comigo. Eu gostava daquele cajueiro por demais. Gostava tanto que ficava feliz de verdade nos dias sem sol e sem chuva, aqueles dias que os meteorologistas não conseguem acertar como o tempo vai ficar. Era mais ou menos assim: gostava um tanto de mim, um tanto do papai, um tanto da mamãe e um tantão do meu cajueiro. Eu acho que ele sabia que eu gostava muito dele, não que eu tenha falado, sempre tive vergonha de falar o que sentia para as pessoas.

No dia do aniversário do meu cajueiro pendurei bolinhas de encher nos seus galhos, convidei os passarinhos para festa de aniversário e me vesti de palhaço. Mas eu não sabia que ele tinha medo de palhaços e o pobrezinho tomou um susto enorme de mim, um susto tão grande que começou a tossir sem parar. Os pássaros e eu ficamos preocupados, não sabíamos o que fazer. Um pardal, desesperado, me pediu para eu limpar o rosto e tirar a peruca. Quando meu cajueiro viu que era eu foi ficando calmo e a tosse diminuindo.

O medo é uma coisa meio desconhecida. Quem já viu ter medo de palhaço vocês podem pensar. Mas tem gente que tem medo de muita coisa, eu conheci uma pessoa que tinha muito medo de comer.

O meu cajueiro tinha medo de palhaços e pronto. Era preciso aceitar.

Em tempos de cajus eu só de propósito não chegava perto do meu cajueiro. Morria de inveja daqueles cajus bonitos, cheirosos, enormes. Eu queria ser uma castanha, ser filha do meu cajueiro.

As castanhas que cresciam rapidamente pareciam donas do mundo. Ah! Eu nem ligo! Não ligo mesmo! Você não tem seus cajus e suas castanhas então fique com eles. E eu me trancava no quarto a querer ler todos os livros do mundo numa só noite, de raiva e inveja.

Frutos do cajueiro.

Pedi ao papai para fazer um balanço de madeira pendurado no meu cajueiro e passei todas as tardes a me balançar pra lá e pra cá cantando músicas para ele. Eu me sentia uma cantora famosa!

Um dia, ele me pediu para parar de cantar, não aguentava mais a minha voz gasguita! Eu fiquei tão zangada que abandonei balanço, sandálias e tudo o mais. Saí andando apressada e tranquei a porta da cozinha na sua cara: praft!

Fiquei de mal do meu cajueiro. Como ele podia dizer aquilo de mim? Como ele ousava reclamar da minha voz? Ele também tinha um tronco tão horrível e eu nunca reclamei, tinha raízes tão feias e eu nunca reclamei. Ele era incompreensível ou sincero demais, seja como for isso não se faz com um amigo, pensei.

Para compensar sua falta diante de mim meu cajueiro começou a chorar todas as madrugadas, um choro que iniciou baixinho, depois foi aumentando, ficando alto por demais. Eu cobria minha cabeça com o travesseiro, mas aí era que ele gritava pra valer. Não aguentei mais. A saudade também já tinha comido parte do meu pé direito e se eu continuasse daquele jeito ia desaparecer em breve. Abri a porta devagarzinho e lá estava ele no meio do quintal, lindo, parecia o dono do mundo. Sorrimos um para o outro e eu corri para abraçá-lo diante do olhar da cerca do meu quintal.

Quando se tem um amigo de verdade não precisamos fazer muitas perguntas sobre a vida. Não sei se isso é bom ou ruim, porque a única coisa que me intrigava no mundo inteiro era essa história de que criança não sabe de nada.

Eu me sentia a menina mais sabida do mundo. Eu sabia onde moravam as estrelas e onde o sol dormia. Eu sabia onde os vaga-lumes brincavam e onde os pássaros escreviam poesias. Ninguém sabia que eu e meu cajueiro brincávamos de escolinha todas as tardes e que eu sempre ganhava dele nas contas de matemática.

“O mar é enorme.”, diziam as pessoas para mim. Mas, eu sabia que a maior coisa do mundo era o meu cajueiro! As pessoas não dão muita importância para um cajueiro, só quando ele dá muitos cajus gostosos para elas chuparem. Fora isso, um cajueiro é apenas um cajueiro. Uma árvore como outra qualquer. Mas, assim como as pessoas não são iguais, eu sabia que as plantas tinham cada uma algo que as diferenciava das outras. O meu cajueiro tinha a mania de dormir à tardinha e acordar no meio da madrugada com medo do escuro. A mamãe costumava apagar a luz do quintal para economizar energia. Isso era horrível nas noites sem lua cheia! O meu cajueiro entrava em pânico na escuridão. Sorte dele que, de vez em quando, apareciam bons vaga-lumes e iluminavam tudo.

Eu gostava muito de desenhar gatos sorrindo. Meus gatos eram todos pintados de preto. O meu cajueiro não entendia por que eu só tinha gatos pretos nos meus desenhos e me criticava. Mas, eu continuei sempre a desenhar gatos pretos. O meu cajueiro dizia também que gosto não se discute, se eu queria desenhar gatos pretos que desenhasse. A gente faz melhor quando faz o que gosta, dizia ele.

Tem planta que a gente compra para plantar e ficar bonita, tem planta que a gente ganha e tem outras que nascem no nosso quintal assim do nada.

O maior cajueiro do mundo está localizado no Rio Grande do Norte, na Praia de Pirangi do Norte, no município de Parnamirim, a cerca de doze quilômetros ao sul de Natal.
Foi plantado em 1888 pelo pescador Luís Inácio de Oliveira, sem nenhuma técnica ou cuidado especial. O cajueiro possui aproximadamente 8.500 metros quadrados de copa e foi registrado em 1994 no “Guiness Book: o livro dos recordes” como o maior do mundo.
Por que o cajueiro cresceu tanto? É incomum uma árvore ter proporções tão grandes. A conclusão que se chegou foi que o crescimento do cajueiro de Pirangi se deve a duas anomalias genéticas, que são: (1) os galhos crescem para os lados ao invés de para cima, como normalmente ocorre; (2) ao se curvar para o chão, pelo peso, os galhos começam a criar raízes e crescem novamente, de forma semelhante a novos troncos. Por isso, o cajueiro não é tão alto.
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Essa é a história do meu cajueiro. Ele não foi comprado, não foi presenteado, simplesmente nasceu ali. Mas e se ele tivesse vontade de conhecer outros locais, outras meninas, viajar, nadar? Eu tinha meus pés e minhas pernas que me levavam para conhecer o mundo todos os dias, mas meu cajueiro não podia andar. Perguntei a ele se tinha vontade de conhecer alguma coisa e fiquei espantada com a sua resposta: quero conhecer-me. Ora essa, e você não se conhece? Perguntei-lhe. Ele me disse que não muito. Achei aquilo tão estranho que toquei nele para ver se estava com febre foi quando encontrei o primeiro cupim dos milhões que estavam tomando conta do meu cajueiro.

Chamei papai e mamãe. Pedi pelo amor de Deus que eles chamassem o médico para tirar aqueles cupins do meu cajueiro. Mamãe disse que não era médico, mas biólogo. Seja como for médico ou biólogo chamem alguém para tirar esses cupins do meu cajueiro, por favor!

Vou lhes contar um segredo. Até hoje penso que aquilo foi invenção de papai e mamãe porque eles nunca chamaram ninguém para matar os cupins que estavam comendo meu cajueiro por dentro.

Coitado! Estava ficando oco! Por sorte, ainda não tinham chegado ao seu coração. Mas já tinham comido seu cérebro e ele nem me reconhecia mais. Para ele eu não passava de uma estranha.

Fui vestida de tristeza naquele dia. Meu cajueiro esqueceu de mim. Chorei todas as minhas lágrimas e depois as que me emprestaram os pássaros. Eu olhava para o meu cajueiro e ele olhava para mim, quieto, sem nem balançar um galho sequer.

Todas as noites, rezei a Deus para curar meu cajueiro. E todos os dias, pedia ao papai e a mamãe para salvarem meu cajueiro. E todos os dias eles me prometiam que iam fazer alguma coisa. Nunca faziam, nunca fizeram.

Eu ia à escola e ficava contando as horas para voltar pra casa rapidamente. Só queria ficar perto do meu cajueiro.

Naquela manhã, eu completava dez anos de idade, estava ficando uma mocinha, disseram. A aula terminou e corri para ver meu cajueiro. Abri a porta da cozinha da minha casa e encontrei um machado encostado à cerca de lenha, pedaços do tronco do meu cajueiro arrumados de um lado e suas folhas verdes e secas espalhadas por todo o quintal.

Morri? Não! Não!

A gente pensa que vai morrer quando perde alguém que ama, mas não morremos. A gente nasce para outro sol. Vivo à espera de um novo amigo e a única coisa que faço é pintar cajueiros para meninos e meninas há quase cinquenta anos.

O amor no tempo eterno do agora

 

A pressa nos trai, nos incomoda,
nos atormenta, nos persegue, nos escraviza.
A oportunidade de amar liberta do tempo e também do espaço.
Viva o amor no tempo do agora e se eternize no agora permanente.

 

Um dia, há alguns anos atrás, escrevi em algum lugar assim, nalgum tempo e espaço, sobre o amor no tempo presente:

“Nosso amor não está apenas no espaço, devendo estender-se a todos os seres humanos, como tarefa de realização, mas também está no tempo. Nosso tempo caracteriza-se pelo amor: leva a amar. Por isso São Paulo nos garante que ele tem um peso de eternidade. O amor que agora conseguirmos vivenciar será o que marcará nossa vida eterna.

O tempo, visto na perspectiva do amor, torna-se extraordinariamente precioso. Por ele construímos nossa eternidade. Trata-se, pois, de um dom de Deus: o talento que recebemos, para trabalhar com ele.

Nosso amor tem a dimensão do nosso tempo e o tempo adquire o valor do nosso amor: quando o amor cresce e se exerce, o tempo ganha em importância; quando, ao invés, não se ama ou até se odeia, perde-se o tempo. Não importa o que se faça, se for sem amor, será tempo perdido”.

“Nossa civilização “encaixotou” o afeto. Sim, logo o afeto que estimula a criarmos as condições para nossa plena realização humana. O ser humano é um ser em construção e, por isso mesmo, demanda e exige investimentos afetivos a vida toda. O cuidado, como algo essencial e que constitui a nossa condição humana, deve ser resgatado se quisermos devolver à humanidade o verdadeiro sentido de sua existência”.
Nei Alberto Pies, professor e escritor

 

Não lembro em que contexto e por meio de que fonte escrevia esses pensamentos. De fato, resgato esse tema, essas ideias, para reafirmar de que quem ama não morre e de fato se eterniza. O momento presente se torna perene no amor vivido e celebrado a cada momento como único e irrepetível.

O tempo é perene para quem ama de verdade e na verdade. “Foi o tempo que dedicaste a tua rosa que fez a tua rosa tão importante”, escreve Antoine de Saint-Exupéry, na obra clássica “O Pequeno Príncipe”. Percebemos que o mundo não nos dá mais tempo para amar.

Fabricamos a pressa, a velocidade das coisas, do tempo, perdendo-nos no espaço onde habitamos. Não nos permitimos mais perder tempo para celebrar o amor verdadeiro, para parar no tempo. Não queremos mais perder tempo nas pequenas coisas mais simples e cotidianas. Temos grandes negócios a resolver, a decidir, e precisamos correr atrás de uma máquina. Somos robôs de uma engrenagem que nós mesmos criamos.

Gosto de uma música de minha terra gaúcha, de João Chagas Leite que canta assim: “Só temos pressa, e mais pressa pra ter pressa, receita louca que inventamos pra morrer, de neuroses e calmantes pesticidas, matando a vida que esta doida pra viver”.

 

 

A nossa neurose inventou a pressa, parecendo que estamos perdendo grandes coisas quando diminuímos a marcha ou não fazemos absolutamente nada. Curto muito a frase de outra canção, agora sertaneja, de autoria dos compositores Almir Sater e Renato Teixeira:

“Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já chorei demais, hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei, conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs, é preciso amor pra poder pulsar, é preciso paz, pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir”.

 

 

O problema é que o ontem não volta mais, verdade. Mas o amanhã não chegou ainda. Por que me preocupar (pré-ocupar) tanto com o que não chegou e ainda não veio ou naquilo que já passou?

O momento presente é o melhor e posso vivê-lo na intensidade, celebrando o hoje com projeção para que o futuro seja melhor do que o passado e o já vivido.

 

 

O que passou me ajuda a viver o agora para pode eternizar meu presente para um futuro melhor que virá se celebrar com amor o agora precioso. Vou parar aqui esse artigo, porque você talvez já pense perder algo que está na pauta do dia. A nossa pressa nos trai, nos incomoda, nos atormenta, nos persegue, nos escraviza. A oportunidade de amar nos liberta do tempo e também do espaço. Viva o agora no amor e se eternize no agora permanente.

 

De Moçambique, mulheres nutrem esperança de dias melhores

Foto: Victória Holzbach

Ventre, braço, cabeça, corpo,
coração de mulher que carrega a vida
que brota do amor e da esperança de
dias melhores em Moçambique e em todo o mundo.

 

Sabemos que em 1975 a ONU reconheceu 08 de março Dia Internacional da Mulher. Em Moçambique, a grande celebração para elas acontece quase um mês depois, em 07 de abril. A data marca o Dia da Mulher Moçambicana e o aniversário da morte de Josina Machel segunda esposa do primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel. Josina, que é considerada um ícone da emancipação da mulher moçambicana, se juntou ainda muito jovem à luta armada pela libertação nacional.

Em Moçambique, a busca das mulheres por igualdade em suas famílias, profissões e comunidades é ainda mais intensa do que a que vivemos no Brasil.

As moçambicanas, especialmente as moradoras de áreas rurais e de periferias urbanas, ainda estão distantes das conquistas dos movimentos ocorridos ao redor do mundo nas últimas décadas. A dupla jornada de trabalho, o acesso precário a informação e a ausência de documentação são verdadeiras barreiras que as impedem de alcançar sua autonomia.

 

Vídeo que apresenta as diferenças das realidades africanas, particularmente do papel da educação como forma de superação das desigualdades e a forma com que as mesmas vivem a sexualidade.

 

Essa desigualdade significa que elas têm menos dinheiro, quase nenhuma proteção contra a violência e o mínimo acesso à educação e à saúde. Este processo faz com que continuem sendo cada vez mais discriminadas e oprimidas por uma sociedade que insiste na desigualdade de gênero como forma de dominar.

 

Gerar a vida é resistir

Por outro lado, a vida das mulheres aqui ganha ainda mais valor e se torna sinal de resistência perante as poucas possibilidades que têm. O esforço necessário para dar a luz não é o mesmo que conhecemos, com nossos exames pré natais, dietas específicas para grávidas e todo o descanso necessário.

Nas poucas condições que têm, nas incertezas da gravidez e do parto, se esforçam não só pelo filho que levam na barriga, mas também para garantir vida aos que já trocaram o ventre pela terra.

Além disso, na cultura de Moçambique, 80% da população vive das machambas (pequenas plantações familiares), as mulheres são responsáveis pelo trabalho com a terra. São elas que acordam antes mesmo do sol nascer e partem para semear, regar e colher o alimento.

De lata na cabeça atravessam a fronteira entre o céu e a terra.
A mulher não transporta água, ela carrega os rios todos dentro.
Mia Couto

 

Das mãos femininas na enxada saem os alimentos e em cima de sua cabeça, outras vidas vão de lá para cá. Armazenada em baldes e galões, a água chega às casas e sacia os sedentos. No caminho de ida e volta até o poço, o suor nascido do esforço vai alimentando a terra para, no destino, dar de beber aos que têm sede.

Ventre, braço, cabeça, corpo, coração de mulher que carrega a vida que brota do amor e da esperança de dias melhores em Moçambique e em todo o mundo.

 

Escolas desencantadas

Escolas estão desencantadas porque falta arte. Com pouca arte,
há pouco humanismo nas escolas, há pouco afeto, há pouca ternura.
Este desencanto resulta de uma visão da educação “para vencer”, para ter sucesso.
Escolas são lugares para a gente se humanizar.

 

Bartolomeu Campos de Queirós é um escritor da ternura e das metáforas. Estou lendo a conta-gotas o livro com seu nome, feito de inéditos selecionados por Ninfa Parreiras. Nos primeiros textos do livro, derrama-se de encantamento por sua infância e, na infância, a escola, a professora.

A gente lê Bartolomeu e vai montado em seu cavalo de palavras. Sentimos o perfume das flores de mato, levadas pelos alunos, sobre a mesa da professora. E acompanhamos o ditado, as “composições” corrigidas, a sua saudade da escola nos finais de semana.

Bartolomeu me leva de volta para perto da minha escola, das histórias, dos poucos livros, da paixão pela professora, das tarefas feitas à luz do lampião de querosene.

Nem eu, nem Bartolomeu, conseguiríamos entender o debate sobre o parecer do Conselho Estadual de Educação que pretende proibir a expulsão dos alunos da escola. Acho que toda a nossa geração, já longe dos bancos escolares, também não conseguirá entender. Também não conseguimos entender a violência contra os professores, a violência contra os alunos, os muros que rodeiam as escolas, policiais rondando os pátios escolares.

 

O que aconteceu com a escola que perdeu o encantamento?

Uma pergunta difícil de responder.

O que eu posso dizer é que não agredimos o que amamos. E os alunos, em geral, não amam a escola. A pergunta poderia ser refeita. Por qual razão se detesta tanto a escola a ponto de se precisar ser expulso dela? De se precisar ir obrigado.

Eu sempre vi a escola como espaço de criatividade, de arte, de liberdade, de sonho. Parece que as escolas de hoje se tornaram apenas espaço para se cumprir obrigações. O professor, com a obrigação de cumprir uma carga horária, de estar lá para cumprir o programa. O aluno com a obrigação de demonstrar o que aprendeu de modo quantitativo.

Nas escolas públicas, o foco passou a ser o desenvolvimento de conteúdo. Nas escolas privadas, a preparação para a aprovação no vestibular.

Falta sensibilidade nas escolas porque falta arte. E quando a arte está presente, é mais como conteúdo, não como fruição. Com pouca arte, há pouco humanismo nas escolas, há pouco afeto, há pouca ternura. E isso é resultado de uma visão da educação “para vencer”, para ter sucesso. Isso acontece desde a família, que espera de seu filho ser bem s sucedido socialmente.

A escola, então, vê-se obrigada a corresponder ás expectativas dos pais. E o que dizer da reforma do Ensino Médio, contrária ao que sempre se pensou sobre educação, focada na (de)formação para o mercado e não para ser pessoa?

O professor e escritor Nei Alberto Pies pensa que “muito antes de escolher sua profissão, o jovem estudante deveria ter o direito de conhecer o mundo do trabalho e as oportunidades profissionais que o mesmo poderá buscar para si. Deveria, também, ter o direito de direcionar os seus estudos a partir de suas habilidades e necessidades, sem abrir mão dos conhecimentos universais e fundantes da nossa civilização”. Veja mais.

Professores e alunos, em geral, parecem estar em campos opostos. Já não são parceiros, já não são companheiros de propostas. E de outro lado, temos uma sociedade que não valoriza o conhecimento estético, mas apenas o conhecimento funcional, para se ter resultados.

Falta afeto na escola e fora dela. Não acho que a escola deva expulsar um aluno. Se o aluno precisa ser educado dentro da escola, retirar da escola é uma punição que deseduca. Temos que repensar a escola destes tempos e para onde ela está indo.

Com certeza, os adolescentes não estão errados. Estão errados os adultos que inventaram uma escola que já não encanta mais.

Pablo Moreno fala da importância de Passo Fundo, Capital Nacional de Literatura. Veja.

Sobre o autor

Pablo Morenno vive em Passo Fundo, RS. Graduou-se em Filosofia e Direito. É servidor público do Tribunal Regional do Trabalho. Escreve literatura para crianças e jovens, com dez livros publicados. Escreve para jornais, revistas e páginas da internet.

Recebeu o Prêmio Mário Quintana em Crônica/2006 e Poesia/2007. Seu livro Flor de Guernica foi finalista do Prêmio Açorianos de 2010 e recebeu o Prêmio Livro do Ano de 2010 da Associação Gaúcha de Escritores. O mesmo livro, em nova edição, foi selecionado para o Catálogo da Feira do Livro de Bolonha de 2017, entre os 30 melhores livros para jovens publicados no Brasil em 2016.

 

Das trevas para a luz

A humanidade se salva,
graças a um Deus que não
abandonou o homem em suas noites.
Deus disse: “Faça-se a luz” (Gn 1,3).
Tudo se transformou em plenitude de vida e amor.

 

A humanidade não era. Tudo era um caos, vazio, não existência, um nada. Só Deus havia. Só Deus era, existia. Deus disse: “Faça-se a luz”(Gn 1,3). E houve luz, estrelas, firmamento, natureza… Pelo poder de Deus, tudo se fez. A primeira noite da existência se fez dia. O vazio se fez preenchimento… no ar, na água, na terra.

E o homem se fez pela potência do Criador. Perdendo o homem a luz, o reflexo e a semelhança de Deus, o Criador quis aniquilar sua criatura disforme. Fez-se segunda noite na humanidade: houve tempestade, chuva por 40 dias e noites, um dilúvio…voltou o caos primordial. Tudo vendaval, morte, trevas.

Uma pomba e um arco-íris anunciava o porvir de um novo dia da trégua de Deus aos parcos sobreviventes que restaram. A família de Noé eram oito na Arca. Deus prometeu nunca mais destruir o ser humano pelas águas. As águas seriam então instrumentos de salvação, promessas que se cumprirão no decorrer dos dias e das noites da humanidade.

Aquele peregrino Abraão contemplava outra noite dessa história humana.

Deus prometera a ele uma posteridade maior que as estrelas do céu que admirava, incontável como os grãos de areia na praia que pisava. Seria pai de um povo infindável. Preencheria o Criador seu vazio, esterilidade e fracasso com inúmeros filhos. Não tinha nenhum. Confiou no hálito de Deus.

O Deus da esperança disse e cumpriu. E assim a luz de novo se fez. E Abraão riu o seu riso, contemplando, no seu filho, a promessa do Messias, que um dia haveria de chegar.

Uma terceira noite a humanidade atravessou. A vida era trevas no Egito. Tudo morte, choro e escravidão por 400 anos. Deus ouviu o clamor e grito do povo escolhido e oprimido. Convocou o gago Moisés para tirar o povo desse inferno, desde vazio e caos. Foi numa noite que o povo saiu de lá…num grande triunfo da mão operosa de Deus. A travessia noturna do mar vermelho foi assombrosa.

Foi uma verdadeira Páscoa da morte para a vida, da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz. Jamais esse povo hebreu se esqueceria dessa narrativa, transmitida de pai para filho, a cada liturgia solene do cordeiro pascal, que rememorava essa noite solene. Na grande noite que se transformou em dia, celebrariam no dia 14 de Nissan, como memorial perpétuo.

 

História da Páscoa na versão das crianças.

 

Mas a mão de Deus não secou a não parou de se manifestar como sol da justiça. Haveria uma outra noite a ser vencida: as trevas do coração do homem. Não conseguindo sucesso no envio de profetas para arrumar a casa, endireitar o ser humano, Deus mandaria o seu ungido (do grego: Cristós). Ele mesmo viria pessoalmente resgatar nosso duro coração. E assim se fez.

O Verbo Eterno de Deus se fez carne, humanidade, e fez cabana em nosso meio (cf. Jo 1,14). Mas não foi aceito pelo coração malvado, vazio e sem piedade. Foi morto no madeiro de uma cruz, no lugar do crânio. A humanidade matou a vida, a luz, a promessa da alegria. Fez-se noite e treva novamente. O homem aniquilava quem proclamava ser Deus. O caos voltou novamente ao planeta.

Mas Deus não morreu e não está morto. Nunca estará. Houve uma noite definitiva que se transformou em dia sem ocaso. Na noite das noites, o Verbo ressuscitou, numa manhã radiosa. E a Páscoa Judaica se transformou em Páscoa cristã.

O Cristo ressurgiu dos infernos, do sheol, da morte, dos abismos das sombras. Tudo ressurge com nova cor e luz. A vitória de Deus foi vitória do homem, porque Deus se fez gente, carne e se fez humano. Então no planeta se fez claridade perfeita, verdadeira e multiforme, mais que na criação, quando a noite se fez dia, mais que em qualquer outra treva-luz da história. Tudo se transformou em plenitude de vida e amor.

A humanidade se salva, graças a um Deus que não abandonou o homem em suas noites. No coração humano reinou a esperança diante do abismo da morte. Ainda podemos crer no amor. Cristo Ressuscitou em nós, aleluia. Celebremos, pois, a Páscoa!

 

Crenças do estudante de filosofia

O mais difícil para o estudante de filosofia é esse passo:
saber que só vai poder ser filósofo se puder se perder
e se reconstruir de modo tão incansável que corre
o risco de ver sua vida entrar em pane.

 

Há uma esperança matreira na cabeça de muitos estudantes de filosofia. Eles imaginam que podem entrar num curso de filosofia e saírem sabendo mais e, no entanto, com a mesma identidade. Ora, até podem, mas se isso acontece, não entraram num curso de filosofia, mas em um bacharelado de um algum saber de ordem não filosófica.

A filosofia obriga à troca de identidade.

A filosofia, disse Platão, é um saber morrer. Entrar no curso de filosofia e realmente cursá-lo, é um aprendizado para a morte que, enfim, em algum nível deve ocorrer realmente. A pessoa que efetivamente faz o curso de filosofia sai como outro. O anterior, o que entrou, realmente morre. A filosofia obriga a essa passagem, a essa troca de identidade, a essa, digamos, conversão. Conversão à doutrina dos homens e mulheres sem guardas.

O trabalho do filosofar não se faz sem o trabalho de adentrar o pensamento de alguns filósofos. Essa entrada é uma armadilha. Entramos no pensamento de filósofos consagrados, mas então percebemos que só podemos assim realmente fazer se deixarmos as coisas se inverterem: é o filósofo que adentra em nós e nos utiliza para voltar a pensar. Perdemos nossa identidade nisso.

Quando voltamos a nós mesmos, não temos mais nenhuma garantia de que somos nós mesmos. O processo de quatro anos de filosofia em uma boa escola é desse tipo, uma contínua abertura de alma de modo que, ao final, não fazemos mais ideia de quem éramos quando demos os primeiros passos.

Acreditamos e desacreditamos. Utilizamos pensamentos que execrávamos. Viemos a amar filósofos que não conhecíamos, e outros que arrependemos amargamente de amar. Em geral, estes que nos deram arrependimento, são os que ainda amamos.

“Só tem rumo o jovem filósofo que não é filósofo […]”

Ao final de quatro anos, somos alguma coisa suada, cansada, renascida. Alguma coisa sem rumo. Só tem rumo o jovem filósofo que não é filósofo, mas apenas um filisteu da cultura procurando bolsa de estudos. O que realmente fez o curso de filosofia pode procurar o mestrado, mas está de pernas bambas, atordoado por excesso de consciência.

Por isso o curso de filosofia implica em inteligência e certa ingenuidade. Não coragem, e sim ingenuidade. Devemos ser suficientemente tolos para nele estar e nos deixar levar por seres de outro mundo que querem adentrar nosso cérebro. Temos de ser suficientemente tolos, talvez volúveis, para na hora em que estamos já casados com um filósofo, o deixemos de lado para traí-lo com outro.

A filosofia é, em seu aprendizado básico, um jogo de traições, de amores desfeitos e de busca do sangue da virgem. A filosofia tem algo de vampirismo. Não se faz filosofia com militância e juras de amor eterno que podem ser confiáveis. Militantes eternos são energúmenos eternos.

“No máximo será bolsista.”

O mais difícil para o estudante de filosofia é esse passo: saber que só vai poder ser filósofo se puder se perder e se reconstruir de modo tão incansável que corre o risco de ver sua vida entrar em pane. Por isso, quando algum aluno diz que pode entender a aula, mas continua com as suas crenças, eu sei que ele não será filósofo. No máximo será bolsista.

Ética, alimentação e espiritualidade

A comensalidade, comer juntos, é um ato humano ético e espiritual.
Não basta comer e comer sem vítimas, é bom comer com o outro, festejar,
banquetear, conversar, reunir e pacificar os espíritos ao redor da mesa.

 

Apresento-vos temas em forma de teses. Progressivas, traçam conexões entre si, como num grande mosaico que envolve os desafios da ética, alimentação e espiritualidade.

 

Ética e moral

Primeiramente faz-se necessário uma distinção importante entre Ética e moral. Ética e moral não são sinônimos. Moral é o que uma cultura, uma tradição, um povo considera correto e bom. Moral é relativa e particular, ancorando-se e expressando-se nos hábitos e nos costumes. Ética pretende ser imparcial, universal e crítica. Crítica no sentido de ser ciência da moral e, enquanto tal, capaz de legitimar e fundamentar normas morais vigentes em uma determinada comunidade histórica, ou deslegitimá-las. Enquanto universal não depende de hábitos e costumes particulares das culturas, mas se sustenta com pretensão de validade para todos.

A moral é, portanto, do âmbito do ser, a ética é do âmbito do dever ser.

O que é bom, eticamente falando, é bom sempre e em todos os lugares e o que não é bom o é da mesma forma. Exemplificando: mesmo que dependa de contextos, torturar nunca será bom, muito menos torturar crianças por exemplo. A moral é, portanto, do âmbito do ser, a ética é do âmbito do dever ser. Enquanto imparcial a ética não depende do grau de poder político, religioso e econômico do agente moral. Isso também vale para os hábitos e costumes alimentares, como veremos.

 

O outro no face a face

A necessidade não conhece lei, nem positiva nem ética.

A ética começa lá onde o outro se apresenta e reclama reconhecimento, respeito, ou simplesmente nos convoca a justiça e direitos com a sua face e olhar. Onde houver o face a face e olhar, aí entra a ética. O outro, por si só, lança-me um apelo ético de justiça e de trato igual ao que considero bom para mim. Não devo fazer ao outro, mesmo que possa, o que não gostaria que me fizesse. A ética se faz urgente e ainda mais pertinente quanto o outro, no face a face e olhar, torna-se vítima contra sua vontade. Sem vítimas não há problema ético. E mais, são as vítimas que julgam se uma ação é ou não ética.

Os usurpadores, os corruptos e os violentadores sempre encontrarão justificativas para suas ações. Aliado a isso associa-se a ideia de consciência e liberdade como condições da ética. Onde impera a necessidade, não há certo ou errado, bom ou mau. A necessidade não conhece lei, nem positiva nem ética.

A ética pressupõe consciência e liberdade. Só há uma questão ética quando estamos diante de possibilidades e condições de dizer não. Ética é, pois, opção. Podemos ser ou não ser éticos; não somos obrigados a ser. Ninguém é obrigado a ser ético. Mas para o nosso bem e dos outros, melhor seria que o fôssemos.

 

Evolução moral e a ética

A ética colabora na evolução da moral. O nosso senso do certo e do errado evolui. O nosso senso de valor e de juízo ético evolui também. Nós evoluímos, por exemplo, no reconhecimento e na ampliação do círculo de inclusão do outro e no reconhecimento do outro como vítima e, por consequência, no reconhecimento da impossibilidade de justificação ética de práticas que historicamente foram consideradas como morais. Escravidão, submissão da mulher pelo homem são exemplo disso.

A consciência moral, também, precisa passar por revisão.

Perdemos a inocência em relação ao mal que causamos aos negros e às mulheres na tradição. Se o racismo e o sexismo já foram aceitos e moralmente tolerados, já não podem mais ser. Se, por acaso ainda houver gente que acha que há superioridade e inferioridade natural por conta da cor da pele e do sexo, precisa passar urgentemente por uma revisão intelectual e moral. Na prática, sabemos que não há só carros e motos que precisam passar por revisão. A consciência moral, também, precisa passar por revisão. E quando fazemos isso, estamos fazendo ética, ciência da moral.

 

Ética na alimentação

Estamos, agora, a um passo de perder a inocência alimentar, inocência no prato. O prato e o que entra nele é algo tão natural que, raramente, e poucos se interrogam, seriamente, quanto à necessidade de pensar e escolher consciente e responsavelmente o que se come. O ato de comer é um ato ético, ou anti-ético. É um ato ético sempre que nele entra o outro reconhecido como outro, respeitado como outro em seus direitos, e anti-ético quando negamos a alteridade do outro enquanto outro.

 

Os animais como “os outros”

De forma direta e sem rodeios, pressupondo já conhecimento de vocês, a comida, a alimentação que inclui dieta animalizada (ovos, leite, carnes e seus derivados) precisa ser confrontada com o juízo de valor: é certo, é justo, é bom?

Não se pergunta se é agradável, se é prazeroso, se é delicioso. A questão não é de gosto, ou de estética, é de ética.

A pergunta que pode ser feita é: é possível se alimentar bem, sem vítimas inocentes como são os animais? Se sim, então por que não?

A decisão ancorada na consciência livre é uma decisão, não somente do âmbito da saúde física, mas da saúde mental, psíquica, espiritual e ética. Aqui a conversa poderia ir longe, evidentemente. Tanto do lado do reconhecimento da enorme crueldade que nós humanos cometemos, imponto sofrimentos bárbaros aos animais no processo de produção, no manejo e na morte, quanto da já plena condição de vivermos muito bem de saúde e até melhor, sem a dieta animalizada. Além da questão ecológica propriamente dita. Quanto a isso, parece não haver contestação teórica, mas tão somente hesitação e resistência a mudar de hábitos.

 

Peter Albert David Singer (Melbourne, 6 de julho de 1946) é um filósofo e professor australiano. É professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Neste vídeo, faz uma grande reflexão sobre a relação humana e os demais seres vivos.

 

 

Alimentação e comensalidade

De passagem, mas não sem importância, é bom lembrar que deveríamos sempre associar a alimentação à comensalidade. Alimentar-se tem um caráter ético pelo que vai no prato, o que comemos e o que não deveríamos comer, mas também é um ato ético e espiritual pela forma como comemos. Alimentar-se é um ato biológico solitário, ninguém mastiga por você, ninguém faz a digestão por você etc.

A comensalidade, comer juntos, por sua vez é um ato humano ético e espiritual. Não basta comer e comer sem vítimas, é bom comer com o outro, festejar, banquetear, conversar, reunir e pacificar os espíritos ao redor da mesa.

A vida nos separa, nos faz competitivos, nos faz até violentos, mas na mesa nos reunimos na paz. Que só é tal se for fruto da justiça, claro. A questão a ser pensada aqui seria a quantas anda a nossa comensalidade. Comemos ao redor da mesa? Com a família, com os amigos, ou sozinhos e com estranhos? Quanto tempo reservamos para a comensalidade diária? O que falamos à mesa? Como espiritualizamos esse ato? Ou fazemos tudo mecanicamente e sem peso e importância?

 

Espiritualidade e alimentação

Talvez seja oportuno acrescentar à ideia da comensalidade que, em si mesma já porta uma dimensão espiritual, a ideia de que alimentar-se sob um horizonte espiritual do bem significará, no mínimo, prestar atenção para três atitudes básicas espirituais: a gratidão, o perdão e a solidariedade.

 

Gratidão

Raramente, somos os produtores do que comemos e nos alimentamos. A fase industrial da produção de bens de consumo, inclusive a alimentar, na sua divisão social do trabalho, nos faz a todos devedores e gratos uns dos outros. Temos alimentos na mesa, fruto do trabalho coletivo da humanidade. A gratidão é o reconhecimento da graça em ação. Não há mérito, ou pouco mérito. Há graça pela ação de Deus, quem acredita, ou pela ação da natureza generosa misturada com a ação de incontáveis mãos que possibilitam o alimento chegar até o nosso prato.

Deveríamos fazer uma profunda genuflexão e uma reverência diante de um prato de comida. O arroz, o feijão, o soja, as verduras, os legumes, as frutas, os grãos, as raízes, o pão… tudo o que comemos passou por mãos generosas e pelo suor do outro. Reconhecer a graça e o dom generoso dos outros e da natureza é sinal de saúde mental e espiritual.

 

Documentário “A carne é fraca”, do Instituto Nina Rosa, sobre o impacto do consumo de carnes nas pessoas e na natureza. O Trivial Gourmet é um programa de televisão sobre reeducação alimentar, que trabalha estes conceitos de forma lúdica durante o preparo de receitas lacto-vegetarianas ou vegetarianas restritas (veganas).

 

 

Perdão

A experiência do perdão é algo da essência mesma da religião. Mas não só, é da essência do próprio humano, falível que é. O mal, que a narrativa bíblica chama de pecado, atinge a todos, mesmo que em níveis e proporções desiguais. Diante do prato, somos todos pecadores, devedores.

Mesmo os que não se alimentam de produtos animalizados, todos participamos de um mal, mesmo que sutil.

Se comemos soja, arroz, feijão, frutas em geral, legumes, verduras, raízes, de onde vêm esses produtos? Quem os produziu? Em que condições? Quanta exploração humana e, até animal, há nos produtos que nos alimentamos?

Às vezes, sem saber, podemos consumir produtos, fruto de escravidão e, se forem alimentos animalizados, imagine o processo de criação-produção, manejo e morte dos animais implicados nesse processo, inclusive dos animais humanos que são submetidos a processos de insensibilização diante do sofrimento e mortandade permanentes.

Em qualquer produto de consumo, imagine a deterioração da natureza, o uso de agrotóxicos, pesticidas que degradam e deterioram a natureza. Não há inocentes diante de um prato.

A atitude de perdão-penitência só pode ser efetiva se, acompanhada de informação, conhecimento e compreensão da dinâmica do sistema de produção, transporte e comercialização-distribuição da qual participamos e colaboramos na reprodução sempre que, na ponta da cadeia, compramos e consumimos. Sem pensar na saúde-doença por causa das escolhas erradas na alimentação. Somos culpados, em parte, pelas próprias doenças que contraímos no consumo de alimentação errada… Ao lado de famintos, há muitos obesos!

 

Solidariedade

A espiritualidade se une à alimentação e à comensalidade, porque é bom que todos tenham de comer. E nem todos têm o que comer! A seguridade alimentar de qualidade é privilégio de alguns, não é ainda direito de fato a todos. É necessário continuar insistindo que a paz e um mundo não-violento só é possível e efetivo com justiça. Justiça é uma das palavras mais pronunciadas e menos realizada. Mas, nem por isso, devemos baixar a guarda na busca da Justiça.

Até que a justiça não se concretize, pelo menos, pratiquemos a solidariedade com os desafortunados e injustiçados.

Mas, não só. Penso que também podemos estender a solidariedade como nota da espiritualidade para os produtores de produtos orgânicos e com sustentabilidade comprovada. A toda forma cooperativada de produção e distribuição menos agressiva e não-violenta. E a toda forma de produção ecologicamente correta, por que não? Para isso, um longo caminho de educação e informação terá que ser percorrido.

 

 

Papa Francisco na Laudato Si’ nos recorda que pensar ecologicamente é pensar integralmente. Tudo está conectado e interligado. Ele dizia em relação à crise social e à crise ambiental. Se há uma crise ambiental essa crise não está dissociada da crise maior que afeta os pobres por um sistema de produção e consumo desumano de exclusão e de morte. Nós, aqui, poderíamos dizer que tudo está interligado na tríplice relação ética, alimentação e espiritualidade.

E o que une e unifica essas três dimensões, ética, alimentação e espiritualidade é uma atitude redentora que nós chamamos de cuidado.

O cuidado é uma dimensão unificadora. Há de haver uma ética do cuidado, uma alimentação cuidadosa e uma espiritualidade do cuidado.

Então, gostaria de encerrar evocando um mito antigo, uma lenda, que dá o que pensar. O filósofo Heidegger resgatou esse mito no seu clássico livro o Ser e o Tempo e Leonardo Boff muito bem o tratou no livro “Saber Cuidar”. O mito diz:

“Um dia, quando Cuidado pensativamente atravessava um rio, ela resolveu apanhar um pouco de barro e começar a moldar um ser, que ao final apresentou a forma humana. Enquanto olhava para sua obra e avaliava o que tinha feito, Júpiter se aproximou. Cuidado pediu então a ele, para dar o espírito da vida para aquele ser, no que Júpiter prontamente a atendeu. Cuidado, satisfeita, quis dar um nome àquele ser, mas Júpiter, orgulhoso, disse que o seu nome é que deveria ser dado a ele. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam, Terra surge e lembra que ela é quem deveria dar um nome àquele ser, já que ele tinha sido feito da matéria de seu próprio corpo—o barro. Finalmente, para resolver a questão os três disputantes aceitaram Saturno como juiz. Saturno decidiu, em seu senso de justiça, que Júpiter, quem deu o espírito ao ser, receberia de volta sua alma depois da morte; Terra, como havia dado a própria substância para o corpo dele, o receberia de volta quando morresse. Mas, ainda disse Saturno, “já que Cuidado antecedeu a Júpiter e à Terra e lhe deu a forma humana, que ela lhe dê assistência: que o acompanhe, conserve sua vida e lhe dê o apoio enquanto ele viver. Quanto ao nome, ele será chamado Homo (o nome em latim para Homem), já que ele foi feito do humus da terra”.

O tatu filosofante

Quando o tatu acordou,
descobriu que podia viver sem tudo,
menos sem os sonhos.
Pois um homem sem sonhos não existe.
Foi a partir daquele sonho que o tatu reiniciou a sua vida.

 

O tatu resolveu mudar de casa, mudar de nome, mudar de emprego, mudar de cor, mudar de raça, mudar os sonhos, mudar de roupa, e mudar de problemas. Juntou tudo e colocou na lata do lixo. Lá se foi o tatu sem endereço, sem nome, sem cor, sem raça, sem sonhos, sem roupa e sem problemas. No começo foi bom, mas depois a coisa começou a complicar.

O tatu não sabia contar dinheiro, pois tinha jogado no lixo tudo o que sabia. Para comprar um pão pagou um milhão.

O tatu não sabia do seu nome, pois o tinha jogado no lixo. No lugar de assinar o nome colocou: “Não sei meu nome, não.”

O tatu não sabia o que fazer, pois tinha esquecido a sua profissão. E sem profissão seu dinheiro logo acabou, pois também não sabia contar dinheiro e o desperdiçava de montão.

O tatu não sabia pra onde ir, pois tinha jogado no lixo o endereço da sua casa. Ficou vagando nas ruas, perdido, no meio do tempo.

O tatu sem cor passava despercebido por toda gente. E aquilo não o agradava coisa nenhuma.

O tatu sem raça não sabia sua origem e como contar ao povo de onde tinha vindo?

Ainda bem que o tatu não tinha cor, pois andava nu, envergonhado.

O melhor de tudo foi esquecer dos problemas! Tirou um peso das suas costas. Não precisava mais se preocupar com nada. Mas por isso mesmo com o tempo o tatu descobriu que não se preocupar com nada era um problema e tanto. Começou a inventar problemas: como fazer uma casa para morar, comprar roupas para vestir, aprender a assinar o nome, saber contar dinheiro e descobrir sua raça.

O tatu há muito não dormia, pois não queria mais sonhos. Mas descobriu que a vida sem sonhos não tem graça. Era um sujeito sem casa, sem nome, sem roupa, sem problemas, sem saber. Mas sem sonhos, para que viver?

Certo dia, o tatu resolveu dormir e sonhou que era um tatu chamado Janibal, morava numa casa amarela perto do rio, vestia camisas e calçava botas de couro, era sapateiro e tinha muitos problemas. Mas aquele não era ele! Era um outro tatu.

Quando o tatu acordou, descobriu que podia viver sem tudo, menos sem os sonhos. Pois um homem sem sonhos não existe. Foi a partir daquele sonho que o tatu reiniciou a sua vida.

 

Causo de caça de um tatu canastra no Rio Grande do Sul.

 

 

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