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Crianças: pequenos guardiões de uma história – Victória Holzbach

O convívio com as crianças revela a simplicidade. Nossa esperança é que o futuro destes pequenos seja num mundo onde tenham direito à ternura e alegria, à saúde e escola, ao pão e à paz, ao sonho e beleza.

O dia nem bem amanhece e a trilha sonora já começa. O repertório se resume em quatro nomes, entre eles, o meu. Assim segue a cada hora. À tarde ou a noite, os pequenos curiosos me relembram a todo instante a forma como meus pais decidiram chamar-me.

Em dois meses, já é possível saber quem está lá a gritar com tanto ardor. A primeira impressão é que precisam de algo, mas depois não é difícil compreender para que vieram. Sua missão – daquelas que a gente assume sem nem bem saber – é reafirmar em mim minha identidade, aquilo que sou, que me forma e que me trouxe até aqui. O nome, o meu nome, em sua boca, ganha novo sentido.

Lembro, no tempo da catequese, ter aprendido que um dos mandamentos avisa para não falar o nome de Deus em vão. Se Ele gosta ou não que o chamem toda hora, para coisas importantes ou nem tanto, não sei.

“Na minha humanidade, aprendi que quando estas crianças chamam meu nome não existe acaso nem vazio.”

Em casa há pouco para fazer. Não há caixa de brinquedos, carrinhos, bonecas, vídeogames, televisão ou tecnologias. Brinquedo é aquilo que se acha na rua, se (re)constrói, se (re)cria. As crianças que vão à escola são poucas e as motivações para irem menores ainda.

“A falta de habilidade para o diálogo mora em nós, adultos: deixamos de saber lidar com a infância que sobrevive dentro de nós. Mais grave ainda: temos medo de revisitar essa criança que subsiste no nosso íntimo.” (Mia Couto)

 

Assista interpretação Contos de Mia Couto:

Encontrá-los no portão ou na rua diariamente é ter a oportunidade de, na simplicidade dos gestos e dos olhares, ajudá-los a descobrir uma nova realidade. Mais que isso, este encontro é também porta para o seu mundo. Lá se brinca de correr com pau e rodas, se constroi carrinhos com palhas de milho e papagaios com sacolas velhas.

Em Moçambique, os pequenos também são guardiões dos maiores tesouros. Tratam de perpetuar a cultura e a língua makua na graça da fertilidade de suas mamás.

As meninas não precisam crescer muito para já ajudar a manusear o pilão e buscar água para a casa. Os meninos, que também não tardam a ajudar suas mães, são também responsáveis por cuidar dos rebanhos – algumas vezes de gado, mas em sua maioria, de cabritos.

No convívio com as crianças se sente a vida pulsar intensa na simplicidade. Nossa esperança é que o futuro destes pequenos seja em um mundo onde tenham direito à ternura e  alegria, à saúde e escola, ao pão e  paz, ao sonho e beleza.

Por uma cultura médica mais doce e mais generosa

J.J. Camargo, médico e escritor se diz especialista em gente, mas está mais para médico de almas. Com uma sensibilidade humana impressionante, retrata em seus textos histórias vividas por seus pacientes com um olhar que  desnuda a alma humana.

Chegamos à penúltima entrevista do ano da série Profissões Educadoras do ano de 2016 e tenho satisfação  de apresentar-lhes  o médico cirurgião,  professor e escritor: J.J.Camargo.

Ele se diz especialista em gente, porém, me atrevo a dizer que ele é um médico de almas. De uma sensibilidade humana impressionante, retrata em seus textos histórias vividas por seus pacientes com um olhar que  desnuda a alma humana,  de tal forma, que passamos a rever nossos conceitos sobre doença, vida e morte. Mais que salvar vidas, toca corações e acalenta almas. Qual a técnica? Generosidade, a virtude de quem compartilha por bondade.

Márcia Machado: Quem é J.J. Camargo?

J.J. Camargo: Jose J. Camargo é  um cirurgião de tórax, professor de cirurgia da UFCSPA, diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa, Diretor de Cirurgia Torácica da Santa Casa, pioneiro em transplante de pulmão na America Latina e responsável por dois terços dos transplantes de pulmão feitos até hoje no Brasil. Foi a primeiro a realizar transplante de pulmão com doadores vivos fora dos EUA. É membro titular da Academia Nacional de Medicina e cronista semanal de ZH.

Márcia Machado: O Sr. se diz  especialista em gente? Por quê ?

J.J. Camargo: Trabalhar com pessoas é uma requintada prática de humanismo. Se estas pessoas forem pacientes, mais ainda. Porque os médicos convivem, diariamente, com criaturas autenticadas pelo sofrimento, pois na doença, ninguém tem  tempo ou ânimo para impressionar ninguém. O paciente é, por definição uma pessoa a verdadeira, transbordando autenticidade no seu medo de morrer. Por isso é possível, nesta circunstancia, conhecer profundamente uma pessoa depois de poucos dias de convívio, e este é um trunfo para o medico se tornar o que chamo de “especialista em gente”.  Se depois de 10 anos de formado, o médico ainda não alcançou esta condição invejável, só tem uma explicação: ele não tem sensibilidade para explorar esta matéria prima maravilhosa que é o ser humano desnudado de todas as vaidades e miudezas.

“[…] na doença, ninguém tem  tempo ou ânimo para impressionar ninguém.”

Márcia Machado: A medicina avançou muito, os profissionais estão cada vez mais técnicos, porém muitas vezes o paciente só quer ser ouvido. Tá faltando humanização na medicina?

J.J. Camargo: Se os médicos sabem muito mais dos que seus antecessores, mas os pacientes idosos falam com nostalgia dos médicos de antigamente, sem dúvida em algum ponto do percurso, esta geração moderna perdeu o compasso.  Alguns equivocadamente põem a culpa no excesso de tecnologia. Isto é uma bobagem. Nós devemos querer mais e mais tecnologia, não menos, porque estas conquistas contribuem muito para qualificar imensamente a medicina moderna. O que não podemos permitir é que a tecnologia substitua o humanismo da relação medico paciente, que sempre será  uma relação entre dois seres  humanos: um que tem um problema e outro que foi treinado para ajudá-lo na solução. O afeto que surge espontaneamente deste encontro, sempre  proporcional à intensidade do sofrimento do paciente, é uma das coisas mais maravilhosas dessa profissão.

 “O que não podemos permitir é que a tecnologia substitua o humanismo da relação médico paciente…”

Márcia Machado: Como a  relação médico paciente pode influenciar na recuperação do doente?

JJ Camargo: A experiência  médica ensina que o medo da doença é uma forma multiplicada de se adoecer.  A segurança que o médico possa transmitir, é uma parte fundamental do tratamento. Transmitir esta segurança com mensagens confiantes e otimistas,  constitui  a nobreza da tarefa médica que deve  misturar  ciência e arte.

O exercício médico qualificado envolve a disponibilidade de ouvir, o jeito de dizer o que o paciente precisa ouvir, a oferta incondicional de parceria e a preservação da esperança.  Sem estes requisitos, o atendimento médico se confunde com uma relação interpessoal comum, o que de nenhuma maneira satisfará quem está  fragilizado pela doença e terrificado pela ameaça da morte.

Márcia Machado: O Sr. fala  em morte digna, de que forma se daria esse processo no seu entendimento?

J.J. Camargo: A ideia da morte digna passa pela noção fundamental em medicina que se chama cuidados paliativos. A propósito, a palavra palium (de paliativo)  vem do latim e quer dizer manto, cobertor, tal como o que se ofertava aos guerreiros das cruzadas para protegê-los do inverno e do medo.

Na batalha final, a primeira intempérie a ser enfrentada é o sofrimento físico, e aqui uma observação fundamental: nesta condição, toda queixa deve ser encarada como urgência. Nada mais incompreensível, por exemplo, que um paciente moribundo  gemente de dor, num hospital.

Depois, temos que aplacar o sofrimento emocional com seus desdobramentos, familiar e espiritual, e entender que nunca estamos prontos para partir e, portanto, este é também um tempo de reconquistas apressadas, de restaurações afetivas urgentes, de confissões intransferíveis e, sempre e muito, de perdão. Propiciar a alguém que está morrendo a oportunidade de perdoar e ser perdoado, é uma apoteose de humanismo e generosidade.  O médico que consegue se oferecer como parceiro neste transe, apesar da vontade natural de sair correndo, está içando a arte médica a uma dimensão superior.

Se contribuirmos para que o nosso paciente transponha este umbral, tão triste quanto inevitável,  mas  sem dor, sem falta de ar, sem remorso e sem culpa,  concluiremos que a Prof. Ana Claudia Arantes tinha razão quando ensinou que a morte pode ser um dia que valha a pena viver.

“Se contribuirmos para que o nosso paciente transponha este umbral, tão triste quanto inevitável,  mas  sem dor, sem falta de ar, sem remorso e sem culpa,  concluiremos que a Prof. Ana Claudia Arantes tinha razão quando ensinou que a morte pode ser um dia que valha a pena viver”

Márcia Machado: Enquanto professor, como o Sr. trabalha essa  humanização médico/paciente com seus alunos?

J.J. Camargo: Há muitos anos, no final de cada uma das 18 aulas que ministro a cada grupo de estudantes que passa pela cirurgia torácica na Faculdade, eu incluo um slide que relata uma situação objetiva da relação medico paciente e a partir daí discuto com JJ Camargo: a estratégia da simulação. Por exemplo, eu sou o paciente e vocês, alunos “vão me explicar o que tenho” ou “porque eu devo fazer uma biópsia” ou uma tarefa terrível, vocês “vão me contar que meu pai morreu!” Eles ficam literalmente em pânico porque ninguém ensina a arte de ser médico. O treinamento na maioria das escolas médicas é deficiente: limitado a fazer diagnóstico e prescrever tratamento, torna a medicina muito  pobre na relação com o paciente angustiado e sofrido.

“O treinamento na maioria das escolas médicas é deficiente: limitado a fazer diagnóstico e prescrever tratamento, torna a medicina muito  pobre na relação com o paciente angustiado e sofrido.”

Márcia Machado: O que o levou a escrever? Soube que no início de sua carreira o Sr. se correspondia por cartas com seu irmão em Vacaria, nas quais relatava fatos ocorridos com seus pacientes, isso procede?

J.J. Camargo: A verdade é que a gente, naquela época trocava muitas cartas, não tanto pelo prazer de escrever, mas porque era a única maneira de comunicação disponível. Mas eu sempre gostei de escrever. E escrevi irregularmente  para jornais, sempre movido por alguma ideia nova ou, mais frequentemente, por alguma indignação.

Quando fui convidado para ocupar o espaço que Moacyr Scliar manteve em Zero Hora  durante muitos anos, fiquei assustado porque nunca tinha escrito com  agenda,  e o compromisso num primeiro momento me angustiou, mas depois descobri que exatamente ter o compromisso de uma crônica semanal, me deixava muito mais atento, porque a rigor qualquer motivação original pode justificar uma crônica.

Meu entusiasmo cresceu quando vi nesta tarefa a oportunidade de tentar dar a minha modesta contribuição para humanizar a prática médica, e a julgar pelo número de convites que tenho recebido para falar em entidades médicas, faculdades e academias, ficou claro que as pessoas perceberam que este é um assunto que estava a descoberto.

Márcia Machado: O que a literatura e medicina têm em comum?

J.J. Camargo: O que aproxima a literatura da medicina é o compartilhamento de um território comum em que ambas lidam com a condição humana, a dor, o desespero, a esperança e a morte, como o fim da espera.  O escritor e o médico dependem da palavra, instrumento de criação estética  de um, e arma poderosa do outro. A mesma palavra que o escritor esculpe na busca da frase mais pura é a que expressa o sentimento sofrido do enfermo, e que dá a chance a que o médico juntando os pedaços de suas queixas construa a anamnese que, do grego, significa o antiamnésia, o que não se esquece, a recordação. E essas palavras constituirão o primeiro registro escrito de uma relação que começa com uma investigação sumária das possibilidades diagnósticas e passa a fazer parte do prontuário do paciente, um arquivo pessoal, indevassável e permanente.  Com a palavra o médico, desde sempre, ofereceu solidariedade, esperança e consolo quando mais não havia a ser oferecido. E os prontuários, como os livros, guardam palavras que se eternizam.

“O escritor e o médico dependem da palavra, instrumento de criação estética  de um, e arma poderosa do outro.”

A literatura sempre encantou aos médicos porque eles, que trafegam na emoção, perceberam que sublimar um sentimento através da palavra é um dom dos curadores de espírito, aqueles artistas que com sutileza dão graça à vida, enternecem os que sofrem, emocionam os rígidos e dão esperança aos desvalidos.

Márcia Machado: Seus livros oferecem crônicas sobre  os dramas, as dores, mas também alegrias e esperanças em relação aos seus pacientes. Qual o objetivo de relatar  tais histórias?

J.J. Camargo: Mostrar o quanto somos desatentos com o sofrimento dos outros e o quanto a atitude alienada funciona como um poderoso instrumento de aversão. Não há nada que afaste mais duas pessoas do que a desconsideração no sofrimento. Podemos esquecer um favor, mas uma desconsideração, jamais.

As histórias cuidadosamente narradas, de modo a preservar a identidade dos pacientes, e a confidencialidade do atendimento, que é um direito intransferível de todos, são exemplos vivos que ajudam a construir uma cultura médica mais doce e mais generosa. Num tempo em que a mídia inunda, diariamente, as nossas casas com enxurradas de desamor, o relato de histórias doces e generosas, é um contraponto merecido. Se não, caímos no risco de acreditar que a sociedade está em degeneração, e isto é impossível, porque sempre que a curva comportamental começa a se inclinar para o mal, nasce uma geração nova que nos resgata porque nós todos nascemos bons. E  verdade  que quando começamos a piorar, não paramos mais, mas nascemos bons. E este recomeços é que nos preservam como seres sociáveis  intrinsecamente bons.

“Num tempo em que a mídia inunda, diariamente, as nossas casas com enxurradas de desamor, o relato de histórias doces e generosas, é um contraponto merecido.”

Márcia Machado: O Sr. esteve na Feira do Livro em Passo Fundo, onde contou um pouco sobre seu novo livro. Como é ter esse contato direto com o leitor?

J.J. Camargo: Ouvir o que as pessoas pensam e como se expressam em relação ao que escrevemos é uma  delícia, especialmente pela riqueza dos tipos que atraídos pelo fascínio da leitura viajam pelo imaginário, e constroem versões inacreditáveis a partir da ideia que passamos. É sempre muito divertido e didático, além de mostrar a grande responsabilidade que temos como formadores de opinião.

Márcia Machado: O Sr.  lançou mais um livro. Pode nos falar sobre a obra?

J.J. Camargo: Este é meu quarto livro de crônicas e o  terceiro livro de crônicas  desde que comecei a escrever regularmente no Caderno Vida de ZH, em dezembro de 2011.  Uma parte das crônicas foram publicadas no Jornal, outras são inéditas. Este livro não tem a pretensão da autoajuda, nem a fantasia  de ensinar ninguém a viver melhor. Ele tem sim a esperança de despertar nos leitores a percepção do quanto é egoísta o nosso modelo de convívio com as necessidades dos outros. Esta consciência nos tornará  pessoas socialmente mais solidárias  e eticamente mais generosas. Porque, como ensinou Kant, a moralidade não é a doutrina de como fazer  para ser feliz. É antes a doutrina do que você deve fazer para merecer a felicidade.

“Ele tem sim a esperança de despertar nos leitores a percepção do quanto é egoísta o nosso modelo de convívio com as necessidades dos outros.”

Márcia Machado: Para encerrarmos, o que cabe no seu abraço?

J.J. Camargo: O QUE CABE EM UM ABRAÇO é  um livro de crônicas centrado  no exercício da medicina, mas não é um manual de sofrimento,  não pode ser. É antes uma mistura densa  dos nossos sentimentos mais  reveladores do que de fato somos.  Como ninguém tem chance de se preparar  para sofrer,  é também um festival de improvisações,  em que se misturam dignidade, covardia, coragem, hipocrisia, sinceridade,  desprendimento, resiliência,  pureza, doçura,  fingimento e  afeto, nesta grande salada de gestos e atitudes  que chamamos natureza humana.

O abraço é reconhecido com a mais simples e completa oferta de carinho e generosidade. Quando abrimos os braços para afagar alguém estamos trazendo-o para mais perto do nosso coração.

Os intocáveis do mundo intelectual: quem os protege?

Boa parte do público dos intocáveis do mundo intelectual diz que a “a mídia manipula”, e é este mesmo público que usa do critério da mídia para achar quer os intocáveis são mesmo bons intelectuais. Sacaram?

 

“Os intocáveis” foi uma série de TV sobre o gangsterismo americano durante a Lei Seca, baseada em livro de 1947. A série foi exibida na TV americana entre o final dos anos de 1950 e o início dos anos 60. Vi na TV brasileira, não muito depois. Incrível aquilo. Por mais que o agente Eliot Ness cercasse os bandidos, eles sempre escapavam. Tinham protetores em baixos e altos escalões.

Eram de uma violência inaudita no trabalho de arrebanhar adeptos. Fora isso, corrompiam até o mais tenaz policial ou a mais pudica dona de casa. Em determinados momentos, o telespectador realmente ficava angustiado, pois a forma de serem ajudados chegava a dar a impressão de que nos Estados Unidos houve uma época em que os policiais haviam se tornado algozes de boa gente.

“Os intocáveis” marcou minha infância. Quando vejo coisas como “foro privilegiado” ou “palestrantes acima do bem e do mal”, quando vejo idolatrias, sinto calafrios. É como se Eliot Ness, o policial incorruptível, estivesse patinando novamente.

No mundo intelectual, ou quase isso, a intocabilidade não é só um mal moral, mas um erro fundamental do intelecto contra ele mesmo.

Toda blindagem intelectual contra alguém que fala, principalmente se feita pela claque de alguém, leva ao gangsterismo.

Não tínhamos tanto isso nos oitenta. Havia um certo gosto pela crítica e pela resposta. Nos anos noventa, isso da blindagem começou a aparecer. Agora, virou prática no Brasil.

Há palestrantes, piadistas, falando coisa conceitualmente errada, mas ninguém pode criticá-los. Eles são “os queridinhos da mídia”. A claque que os segue se agarra a eles para poder se ver como culta, já que estudar, esse pessoal não vai mesmo.

São os típicos filisteus da cultura, apontados por Hannah Arendt. Protegem seus palestrantes para se protegerem, para terem conforto diante do espelho. E isso leva à propagação e perpetuação do erro.

As pérolas dos novos intocáveis começa a se solidificar. Exemplo? Um deles inventou de cocoricar a tese dogmática, aparentemente democrática, de que não se deve criticar a democracia de modo radical, não se pode sair dela, é necessário sempre aperfeiçoá-la.

Os intocáveis não gostam de se confrontar com as teorias filosóficas

Nessa hora, não é possível levantar o dedo e pedir a palavra para dizer algo simples: quer dizer, professor intocável, que eu devo ler Platão para, logo em seguida, ficar contra ele? Ou nem devo ler Platão? Afinal, democrata ele não era. Aliás, sua cidade ideal, justa, era exatamente a cidade contrária àquela democracia que matou Sócrates. Ou seja, se eu puder pensar Platão a sério, estarei então defendendo um estado autoritário?

Desse modo, não posso estudar filosofia, não é? Pois tenho de ler posicionado, dogmaticamente a favor da democracia! No limite, esse tipo de professor, fica mesmo irritado quando outros, tão dogmáticos que ele, colocam no seu focinho a tese da “escola sem partido”.

O problema não é só os das questões do exemplo acima, o problema é que no Brasil de hoje querer criticar esses intocáveis é atrair para si, como Eliot Ness atraía, o ódio da claque dos G&S (Gângsters e Simpatizantes).

Não se pode falar deles, não se pode dizer que estão errados. Eles mesmos se calam, fingem não escutar. Sorrateiramente, inflam a claque contra os que criticam.

Os da claque gritam, batem pé, atacam de modo que não exista reação, por exemplo, dizendo que toda crítica ao intocável da vez é inveja. Assim fazem a blindagem. A regra deles é a seguinte: se qualquer expert em um assunto criticar o palestrante de sucesso na mídia, voltamos nossas baterias de canhões para a falta de sucesso na mídia do crítico.

Novo anti-intelectualismo

Assim, surge o velho anti-intelectualismo, que fez escola nos anos da Ditadura Militar: os professores pesquisadores, os professores de sala de aula, os professores que falam coisas complexas para um público específico, não são nada, são gente “sem sucesso”.

O sucesso não é obter mais o resultado da pesquisa, mas é o de não obter resultado nenhum e ficar conhecido. O filósofo Peter Sloterdijk tem falado sobre esse fenômeno de nossos tempos, no terceiro volume da Trilogia das Esferas, o Schäume (Espumas), que é da emergência do autor sem obra. Claro que há também o autor com meia obra. Ou o autor com obra fingida, aquele livro que é simplesmente a auto-ajuda produzida nas palestras – sendo que a tese inicial, acadêmica, ficou no passado, e talvez nem seja grande coisa.
Isso tudo tem um reflexo claro e ruim na juventude. O aluno que invade uma escola apoiado pelo palestrante dele, ou o aluno que vai lá bloquear a invasão, também apoiado pelo palestrante dele, são os considerados estudantes. Os alunos que ganharam as olimpíadas (inclusive internacionais) de matemática ou física, ou os alunos regulares que estão produzindo textos interessantes e não faltam em aula, não são nada.

O modelo de intelectual não é o daquele que estuda e, no silêncio dos laboratórios ou no silêncio dos grupos de pesquisa, resolve problemas ou equaciona novos problemas, mas é o do que não lê nada e fala muito. A mídia acaba dizendo o que é um professor, um intelectual. A boneca de Stand Up!

O outro, o professor mesmo, ganha pouco, rala o dia todo, cumpre seu horário (o palestrante nunca está na universidade, quando é professor, claro!), corrige provas, vira um chato por corrigir o aluno. Ora, isso não pode. Aluno é facilmente seduzido pelo palestrante da mídia, que ensina errado, ensina o fácil, e pede em troca a condição de intocável. E a obtém. Há nisso um tipo de pacto de mediocridade, entre seguidor e seguido.

Conheça mais ideias de Paulo Ghiraldelli (Programa do Jô)

Auto-ajuda e discursos de religiosos

Qual a diferença desse palestrante de auto-ajuda e o Padre Fábio ou o Padre Marcelo ou o Bispo Macedo? Um discurso racional? Errado. Há pouca diferença. Um discurso vazio, de senso comum, perto de um discurso aparentemente racional, não gera nenhuma diferença quando os dois são dogmáticos. Discurso dogmático é errado sempre, o que ele cria é sempre o não-pensante, o voluntário da gang de proteção dos intocáveis.

Os palestrantes tocam o pau: um que virou até ministro da Educação chegou a dizer que Lolita é um livro sobre estupro! Ora, falou de um livro famoso sem ter lido. Um outro, com freudiano cachimbo na boca, disse que Sócrates era “politicamente incorreto”, talvez nunca tenha visto o discurso do ateniense, no Críton, falando em favor das leis da cidade, mesmo após sua condenação.

Sem contar aquele com cara da hiena Hardy (de Lyppi & Hardy), que fala do eterno retorno de Nietzsche como se fosse a ideia de que a história é cíclica, um erro quase infantil. É o império do “falo qualquer coisa”.

Acha que estou errado nisso que escrevi? Calma! Espere! Antes de responder, comece a prestar a atenção então nos intocáveis. Comece a perceber como que na cozinha da casa deles, eles preparam seus blindadores.

Repare como que certa mídia, bem específica, os utiliza. Veja como eles transitam com facilidade onde forças bem conhecidas e organizadas estão em vigência.

Reparem que uma boa parte do público dos intocáveis diz que a “a mídia manipula”, e é este mesmo público que usa do critério da mídia para achar quer os intocáveis são mesmo bons intelectuais. Sacaram?
Algumas reações a este texto apenas o confirmarão. Querem ver?

A ditadura da fala não pode “desgraçar ninguém”: a gagueira é um problema social!

Conviver com a gagueira fez-me ser quem sou. Descobri que falar é uma forma de libertação dos sofrimentos da gente e que gagueira é um problema social!

Vivemos a ditadura da fala. Quem não fala bem, compromete suas possibilidades de inserção social e seu desenvolvimento humano. A sociedade brasileira ainda não assiste de forma correta e suficiente todas as pessoas que tem dificuldades de comunicação através da fala.

Toda discriminação, além de ser um problema pessoal para quem a sofre, é também um problema social. A gagueira, como outros tantos limites humanos, deixa marcas e imprime jeitos de resistir, para sobreviver socialmente. Os gagos ainda sofrem muito por falta de apoio e compreensão.

Gagueira é um problema social

Como eu, pelo menos 2 milhões de pessoas em todo o nosso país gaguejam de forma crônica (há anos ou décadas), conforme dados do Instituto Brasileiro de Fluência. Este dado corresponde a 1% da população, que, além de apresentar alguma forma de gagueira, sofre com o preconceito e desvantagens econômicas e sociais.

A gagueira, por ser um problema social importante, ganhou também um dia internacional: dia 22 de outubro.

Veja vídeo “Gagueira não tem graça, tem tratamento”.

Acesse também: http://www.abragagueira.org.br/

A fala é o meio mais eficaz e mais utilizado para a nossa comunicação e interação social, porém não a única. Esta é a descoberta para alcançarmos reconhecimento social, através da comunicação.

Os gagos do Brasil precisam de apoio especializado e reconhecimento social

Se não falamos fluentemente ou temos algum grau de timidez para nos expressar, arranjamos jeitos de ser reconhecidos e valorizados socialmente por alguma outra habilidade ou virtude humana. O reconhecimento social é uma das maiores necessidades humanas.

Especialistas em compensar

Se não somos “experts” na fala, podemos ser bons na escrita, no canto, na música, na representação, no estudo, na convivência ou nas relações. A qualidade da nossa comunicação depende da interação de todos, inclusive do apoio e compreensão que temos de dar àqueles que sofrem para se comunicar.

Os problemas de comunicação, em especial dos que sofrem com gagueira, constituem-se um problema social, uma vez que interessa a todos.

O ser humano é especialista em compensar. Sem compensar não sobreviveria, porque se não é possível ser bom em tudo, é necessário ser bom e útil em alguma coisa. Por isso a gente se faz gente “agarrando-se” ao que tem de bom, em coisas que tem facilidade e que nos rendam reconhecimento dos outros.

Todos precisam ser queridos, amados e promovidos através dos outros. O reconhecimento social é uma das maiores necessidades humanas, pois ninguém sobrevive se não comprovar para si mesmo o quanto é útil, importante, querido e estimado pelos outros.

Veja vídeo de pessoas famosas e líderes gagos que demonstraram sua superação:

A autoestima e autoaceitação são preponderantes para a cura ou convivência com a gagueira. A gagueira é influenciada por fatores neurobiológicos ou emocionais. Conhecer-se, estudar o seu problema, procurar auxílio e terapias, aumenta as possibilidades de conviver socialmente, sem maiores traumas.

É fundamental, ainda, assumir publicamente os limites da fala e da comunicação sempre que se puder. Assumir os limites da fala propicia discernimento e tranquilidade interior para lidar com os desafios de se comunicar melhor. Quem fala se liberta.

Dilma, Brizola e Getúlio: perseguidos políticos na história brasileira – Moisés Mendes

Perseguidos políticos são tentadores. O que penso mesmo não é nem no que um perseguido tem a dizer sobre o que determinou sua queda e sobre o que pode provocar sua redenção.

Brizola e eu entramos no quarto e logo percebemos que não havia cadeiras ou poltronas. Ele resolveu na hora:

– Vamos nos sentar na cama.

E nos sentamos. Liguei o gravador e Brizola começou a falar sobre a campanha da Legalidade. Eu era correspondente da Caldas júnior em Ijuí e recebera uma missão: deveria ouvir o ex-governador para um programa da Rádio Guaíba sobre o movimento por ele liderado contra a tentativa de golpe de 1961.

Sim, eu entrevistei Brizola na cama do quarto do casal Vanderley e Ivone Burmann, em Ijuí, em uma noite da primavera de 1979.

Burmann, líder trabalhista e ex-prefeito, enchera a casa de gente para um jantar com Brizola, que retornara ao país com a anistia, 15 anos depois do golpe. Era uma alegre barulheira pela volta da maior figura das esquerdas.

Tentamos conversar na sala, depois na cozinha. Não era possível caminhar pela casa. Muito menos no pátio. Dona Ivone nos socorreu:

– O quarto, o quarto.

Entramos e fechamos a porta. Mas, volta e meia, abriam e espiavam para saber se ele não queria que me mandassem embora. Brizola fazia um sinal de que estava tudo bem. Abriram e fecharam a porta umas 10 vezes.

Todos queriam vê-lo na mesa, e o grande líder trabalhista continuava sentado na cama. Em algum momento, cheguei a pensar em pedir: levem o Brizola de volta, porque o homem vai começar um novo levante no quarto, e eu vim apenas entrevistá-lo.

Me recordo desse encontro de meia hora com Brizola e penso como seria hoje uma outra entrevista. Uma conversa com Dilma Rousseff. Histórias, personagens e circunstâncias são distintas. Brizola estava encerrando um exílio. Dilma está começando o seu, mesmo que fique aqui.

Perseguidos políticos são tentadores. O que penso mesmo não é nem no que um perseguido tem a dizer sobre o que determinou sua queda e sobre o que pode provocar sua redenção.

Nem penso numa conversa intimista com Dilma, porque não estou habilitado para tanto e porque falas com o coração, logo depois de um episódio traumático, estão condenadas a serem revisadas alguns dias depois.

>>Leia também: Impeachment: coisa de homens

Também não teria a pretensão de querer obter de Dilma um balanço racional de seus últimos atos, dos erros e de coisas das quais se arrepende.

Nem perguntaria sobre as apostas furadas no próprio Temer, no Padilha, no Joaquim Levy, nas alianças, no PMDB que a traiu. Não falaria nada da sua relação tumultuada com o PT, das coisas não ditas a Lula. Nem tocaria no pato da Fiesp e nas pedaladas.

Estou destreinado como repórter. Evitaria a armadilha das perguntas erradas, da pressa que come pausas e silêncios, da tentativa de ser mais esperto do que o entrevistado. Nem levaria uma pauta de assuntos.

Eu não levaria nem mesmo gravador, como levei para o quarto com Brizola. Não faria indagações ditas objetivas. Levaria apenas um mate e uma rapadura.

Poderíamos sentar no chão, em pedras ou em cadeiras de praia, na enseada do Veludo, em Belém Novo, na beira do Guaíba.

Mas eu gostaria de conversar com Dilma logo depois do golpe. Alguns analistas já anunciaram sua morte política. É apenas uma torcida, porque não se abrevia a vida de um político ou de um centroavante muito antes do tempo.

Dilma tem Getúlio Vargas como referência. Getúlio caiu em 1945 aos 63 anos. Foi eleito senador logo depois, passou a fazer articulações e voltou como presidente em janeiro de 1951. Tinha 69 anos.

60 anos sem Getúlio

Dilma foi derrubada aos 68 anos. Se a política fizesse os movimentos que costuma fazer, e Dilma inventasse de disputar e vencer a eleição de 2018, voltaria ao poder com apenas dois anos acima da idade de Getúlio em 1951. Em 1951, um homem de 69 anos era considerado velho. Hoje, não.

A direita dirá que Dilma talvez esteja hoje além da idade para aspirar alguma coisa, mesmo no curto prazo. Um certo jornalismo diz a mesma coisa. Ela terá 71 anos em janeiro de 2019.

Alguns coronéis que derrubaram Dilma, dentro e fora do Congresso, estão perto dos cem anos. Mas 71 anos talvez seja, dizem os detratores, demais para Dilma. Até porque irão encontrar outros defeitos.

Penso na sua vitalidade e imagino a conversa com Dilma à beira do Guaíba, mesmo sabendo que tal encontro é improvável. Porque todos querem, claro, conversar com Dilma.

Eu não perguntaria nada. Para puxar conversa, apenas começaria contando que já entrei nas águas do Guaíba ali na volta do Veludo. Ela, se quisesse, poderia me dizer o que fazia em Brasília nas horas de folga. Eu levaria o mate e a rapadura.

Artigo originalmente publicado em 2 de setembro de 2016 no Jornal Extra-classe.

Contos de Eduardo Albuquerque: a literatura conta parte da história da educação, a partir do cotidiano da escola

Professor Eduardo Albuquerque, com sutileza, ironia e sarcasmo que caracteriza a literatura, aborda temas do cotidiano da escola, nem sempre abordados ou refletidos nos ambientes escolares, em seus 24 contos.

Com alegria, quero apresentar a obra É para copiar? do professor Eduardo Albuquerque, pela Editora Saluz, selo da Editora do IFIBE, lançada na 30ª Feira do Livro de Passo Fundo, no mês de novembro de 2016.

Eduardo Albuquerque, como todo autor iniciante (que torna públicas suas construções literárias), fez consultas a um pequeno grupo de pessoas antes de sua decisão de publicar um livro. Felizmente, fui das poucas pessoas consultadas por Eduardo antes da publicação e sempre tratei de estimulá-lo e encorajá-lo, pois vi em seus textos um grande potencial literário e uma corajosa vontade de contar, literariamente, um pouco de suas experiências na profissão docente e no cotidiano da escola.

Fico feliz quando vejo que a literatura conta parte da história da educação, a partir de professores que se desafiam a escrever crônicas, contos, histórias e fábulas, romances.

>>Acesse também: A função da literatura e as crianças

Professor Eduardo Albuquerque tem um texto narrativo leve e bem estruturado na forma de conto. Eduardo consegue distanciar-se dos contextos vividos e presenciados no cotidiano das escolas, para dar aos acontecimentos novos significados e contornos envolvendo sua criatividade e imaginação.

Os textos narrativos (contos, crônicas, romances, parábolas, lendas) têm duas finalidades: contar um fato e tornar este fato informação, aprendizado ou entretenimento.

Os textos narrativos que mais se aproximam, e se confundem, são os contos e as crônicas. Neste específico, “a diferença básica entre os dois é que a crônica narra fatos do dia a dia, relata o cotidiano das pessoas, situações que presenciamos e já até prevemos o desenrolar dos fatos. A crônica também se utiliza da ironia e às vezes até do sarcasmo. Não necessariamente precisa se passar em um intervalo de tempo, quando o tempo é utilizado, é um tempo curto, de minutos ou horas normalmente”. (Confira mais informações em InfoEscola)

Professor Eduardo, com sutileza, ironia e sarcasmo que caracteriza a literatura, aborda temas do cotidiano da escola, nem sempre abordados ou refletidos nos ambientes escolares, em seus 24 contos.

Muitas vezes, no cotidiano da escola, prefere-se o esquecimento e o silêncio diante das situações colocadas, ao invés do enfrentamento sério, responsável e coerente diante dos desafios contemporâneos da educação.

Citamos algumas temáticas como: a ausência de sensibilidade política e pedagógica de muitos gestores (em “A nova Coordenadora” e “O retiro espiritual” e “Assédio”), as engenhosas eleições para diretores de escolas (em “A eleição para diretor), as tensas e controversas reuniões com os pais (em “Reunião de Pais”), as dificuldades da matemática (em “Sistema de recompensa”), o potencial dos deficientes (em Senta Levanta), os difíceis conselhos de classe (em “O Conselho de Classe” e “A terceira lei de Newton), a perversidade da prática do bullying (em “A turma do Fernandinho”),as dificuldades de uma greve de professores (em “A greve”), os descontextualizados exames para avaliação da aprendizagem dos alunos (em “A avaliação nacional), as mudanças recentes do mundo, dos alunos, dos professores e do conhecimento (em “Gort”), dentre outros temas.

Em sua obra, É para copiar?, lê-se na contracapa breve análise da obra feita por Marta Borba, professora da rede municipal de Passo Fundo. Leia mais sobre Marta Borba.

A educação como possibilidade de humanização

Finalmente, tenho a dizer que a educação pública, de qualidade social, será mais valorizada quando professores e professoras ousarem contar, a partir da literatura ou da reflexão, os desafios que a ela se apresentam nos dias atuais.

Enquanto a educação continuar sendo avaliada e conduzida por quem não é protagonista dela, rumará por caminhos tortuosos e incertos. Enquanto o cotidiano da escola não for a base e a referência para as discussões sobre educação, não teremos avanços significativos na educação.

Nós, professores e professoras que fazemos educação, sabemos muito sobre como valorizar e promover uma educação que valorize e promova a humanidade que existe em cada um de nós e que pulsa por mais dignidade.

Nosso maior desafio é a humanização (possibilidade de nos tornarmos seres humanos melhores).

Para conhecer mais obras publicadas pela Editora acesse o site da Editora do IFIBE.

Jornalismo e democracia: tempos difíceis

Primeiramente, apesar do sobrenome e da longínqua herança genética do ditador, não tenho idade para ter presenciado a ditadura militar. Muito menos, como jornalista. Faço esse adendo (minhas amigas dizem que esse é meu vício de linguagem, maldito!) porque quando digo tempos difíceis, falo isso usando como referência a minha pouca vivência de um quarto de século de vida, sendo menos de uma década de vivências jornalísticas.

Retomando o assunto, deixo de lado as referências históricas, sem medir quem sofreu mais ou menos e dizer que as coisas não andam fáceis para os colegas com quem divido a profissão. Desde o ano passado os grandes veículos anunciavam o aumento do número de desempregados no país. Mas não noticiaram, obviamente, que foram eles próprios que deram início a esse processo.

Jornalistas demitidos, perseguidos e sofrendo violência no trabalho

Segundo o portal Comunique-se no ano passado mais de 1400 jornalistas foram pra rua. Isso sem contar os que têm a carteira assinada com outras profissões nada a ver com a desempenhada nas redações.

A jornalista que foi assediada pelo cantor Biel durante uma entrevista e não se calou, foi demitida dias depois de fazer BO contra o cantor. Ela fez o que muitas de nós, jornalistas mulheres, já quisemos fazer: escrachar homem que acha que mulher é objeto.

Quando o colega de profissão homem faz entrevistas, porque o entrevistado não diz que só dá tal informação numa exclusiva? Porque com jornalistas homens não tem piadinha dizendo que ele está onde está porque é “jovem e bonito”? Porque o entrevistado se acha no direito de fazer comentários constrangedores sobre a vida pessoal de quem está somente desenvolvendo seu trabalho? Sem contar os colegas de trabalho, mas nem vamos falar disso que esse não é o assunto da vez.

Assista vídeo sobre perseguição à jornalistas no Brasil:

Em seguida, com o processo de impeachment da presidenta Dilma sabemos que o nosso trabalho só aumentou. Independente das ideologias políticas, para nós jornalistas, protesto significa trabalho. E muito trabalho.

Como se não bastasse as horas a mais, o texto que tem que ser entregue na pressa, ainda temos que contar com a truculência da polícia que não sabe tratar nem de manifestante e nem de trabalhador.

Mais de dez colegas de profissão escreveram relatos sobre a violência que sofreram enquanto realizavam a cobertura dos atos, ou seja, trabalhavam. Apanharam, tiveram seus equipamentos destruídos e foram humilhados pura e simplesmente por estarem realizando seu trabalho. “Sai lixo!”, é o que o cara tem que ouvir enquanto apanha, depois de trabalhar durante horas.

Pesquise o piso salarial do jornalista que, diga-se de passagem, quase ninguém ganha (tendo que trabalhar mais horas do que diz a lei e receber muito menos) e pense que baita prejuízo é ele perder sua câmera, por exemplo.

Leia tambémO jornalismo e seus interesses – Nei Alberto Pies

Jornalistas agredidos e sem liberdade de expressão

Como se não fosse suficiente, há pouco fico sabendo que dois jornalistas foram agredidos por manifestantes contrários ao governo Michel Temer, ao entrevistarem um grupo que defendia uma intervenção militar no Brasil. Quem bateu ou não gostava deles ou da linha editorial que representavam. Ou ainda, em tempos de coxinhas e petralhas, quem sabe pensaram que eles eram do lado oposto e mereciam a agressão, como se agressões fossem justificáveis.

A perseguição a um jornalista é um ataque à liberdade de expressão, que é fundamental na construção de uma democracia

Confira vídeo sobre Mídia e liberdade de expressão:

Nesses tempos malucos ainda presenciamos colegas que, assim como eu, são formadores de opinião e que não agridem diretamente, mas emitem comentários que resultam em atos violentos contra profissionais de imprensa (seja dos grandes veículos ou independentes). Estamos muito distantes de uma realidade de plena democracia no jornalismo.

É tanta porrada, de tanto lado, que cada vez mais colegas estão largando a profissão para (aqui cabe bem a piadinha de humanas) vender a sua arte na praia. E sem profissionais qualificados para informar, meus amigos, o que lhes resta é a verdade que venderem para você.

Boas compras.

Palavras adultas, crianças imaginárias e mundo real

Carta à menina do vestido vermelho

Querida menininha,

Como tem passado? Sinto-me melhor nestes últimos dias. Há um mês você veio me ver, mas parece que faz anos, pois hoje a saudade sua me bateu fortemente.

Gosto de conversar com você e do seu olhar de borboleta quando me observa atentamente a falar as minhas palavras de velha que já não tem mais paciência para as pessoas sem corações desse mundo cruel.

Menininha, ontem queimei a minha mãe com água fervente. Aprontava-me para fazer uma xícara de café quando tomei um susto ao ver, ao longe, um pássaro azul cantar no meu jardim florido. O pássaro fez-me lembrar do azul dos seus olhos, desse olhar assustado que só você tem, desse olhar que carrega o mar dentro de si sem ondas bravas. Os meus dias têm sido tranquilos, sem novidades.

A mesma solidão de sempre, a ausência de um não-sei-o-quê dentro de mim, a dúvida em relação à existência de pessoas de bom coração e aquela vontade de retomar a costura da colcha de retalhos largada no fundo do baú há mais de dez anos. Parece até que estou perdida dentro da minha morada, não falo da minha casa de tijolos, mas da minha morada-ser, existência fugaz em mim, que me toma de arrebatamentos e me enche o peito de angústias a pensar nas criaturas que viraram pedras e esqueceram a bondade, a caridade, o amor. Quero salvar o pássaro azul que brinca em meu jardim do medo de ser esquecido em lugares que habitam a existência.

O bolo de chocolate que me trouxe na sua última visita estava gostoso e comi quase todo quando você partiu.

Gosto de bolos com café. O café me faz parecer mais gente fora de mim, pois tenho sentido a presença de monstros ao meu redor.

Monstros da ignorância e da insensatez humana que descobriram a estrada da minha morada. Menininha, a casa está cheia de poeira e há num porta-retratos a nossa foto juntas. Estou abraçada a ele neste momento. Tenho o seu sorriso nos meus braços. Você que gosta de sorrir e dá bom dia à vida.

Você que não se assusta com os monstros das madrugadas, porque no seu quarto de dormir vivem anjos que a protegem. Como eu queria ter um anjo protetor! Sabe, menininha, chega uma hora na vida que é melhor pintar telas com os dedos e rabiscar a areia com pincéis de madeira. Faz dias que tenho procurado, em vão, pintar o seu sorriso. Você que é doce igual ao mel.

Preciso parar de escrever. A noite vem caindo e tenho que tirar a roupa do varal. Lavei roupa hoje cedo. As roupas gostam de sabão que cicatrizam a sujeira de dizer-se não à solidão de serem largadas ao léu, quando já não servem mais para vestirem o corpo, pois têm o cheiro de cansaço. Ninguém quer cansar-se. Todos querem fôlego para descobrirem novas ruas dentro e fora de si. Vou indo, menininha. Fique com Deus. Venha me visitar sempre que puder.

Um abraço,

Rosângela Trajano.

Observação: Gosto de escrever cartas para pessoas imaginárias. Criei esse personagem e tenho escrito cartas filosóficas para ela. “Menina do vestido vermelho” representa todas as crianças deste querido Brasil.

Crise da ética e ausência de justiça: reflexões de 20 anos

Antonio Mesquita Galvão sempre foi um autor referência em moral e ética na perspectiva que aprendi na minha formação crítica-humanística: não haverá paz sem que haja justiça.

Em 1997, escreve livro com o título “A crise da ética: o neoliberalismo como causa da exclusão social”. Tenho este livro e reli o mesmo para escrever esta reflexão.

antonio-mesquita-galvaoEm seus 90 livros escritos, Antônio Mesquita Galvão revela-se profundo conhecedor dos temas que relacionam ética, moral e cristianismo.

Assim se revela: “enganem-se ao me imaginar cristão de sacristia: sou atuante, trabalho em comunidades (…), ministro da esperança, dou aulas em casas de formação, assessoro workshops de teologia, coordeno círculos bíblicos e animo retiro de padres, religiosos e leigos. Inscrevam-se! Se querem currículo, deixei de dizer “Mestre em escatologia”. Desculpem por eu ter estudado. Ok?”

Em 97 escreveu: “A falta de ética pode ser encontrada no fim de muitos raciocínios indagadores a respeito da desordem social que há em nosso país”. Naquele contexto, o Brasil sofria as consequências nefastas das ideias neoliberais que eram aqui implantadas.

Crise da ética e ausência de justiça hoje

Vinte anos depois, o Brasil descobre-se corrupto. A corrupção, embora reconhecida problema grave, está longe de ser um problema suficientemente sério para ser levada a sério por todos os brasileiros.

>> Veja mais sobre em: Combate à corrupção

Prossegue Galvão: “A ética, como ethos (bom comportamento moral vivido à luz do direito natural), não é vivida nem buscada, e, por configurar-se uma situação de injustiça, não há paz.

“A justiça produzirá a paz!” (Is 32,17), ensinou o profeta.

“a falta de paz numa sociedade é indicador da ausência de justiça. E, nesse particular, ética e moral funcionam como colunas de justiça”.

Redescubro Galvão agora em setembro de 2016, afirmando seu histórico de estudos e reflexões na área: (eu lecionei Ética na universidade e escrevi dois livros sobre o tema, Crise da ética e Ética cristã e compromisso político) publicando um artigo no Zero Hora.

Neste artigo, o autor afirma que no Brasil acontecem coisas curiosas se não fossem trágicas e imorais, que vistas com olhos da ética formal chegam a revoltar e nos levar a duvidar da instauração de um Estado decente.

Questiona o uso indiscriminado e abusivo do Instituto da Lei Penal, a delação premiada: “Não é porque o bandido “entrega” o resto da quadrilha que ele mereça credibilidade para tomar parte ativa no processo, ou se torna menos bandido”.

Escreve também: “nos subterrâneos da ética constata-se a prática pragmática dos fins que justificam os meios. O cara é criminoso, corrupto ou calaveira, mas para ajudar a justiça ele recebe o placet, como se testemunha honesta fosse”.

Incentiva-se os jovens às atitudes morais, mas ensinamos a delação premiada, que é uma ruptura ética”.

No final do livro, em 1997, Antônio Mesquita Galvão apresenta a reforma da consciência política como solução para o resgate da justiça, da equidade e da vida abundante para o povo, o que parece ser uma exigência contemporânea.

Assim escreveu: “a sociedade cristã tem na conscientização e responsabilidade política quem sabe o único caminho para estabelecer a maior revolução de todos os tempos: transformar a sociedade pelo amor, pela reconciliação e pelo entendimento”.

Concordo e retomo as sugestões de Galvão. Perspectivas de ação cidadã e da ética e da moral, com novos desdobramentos para as novas gerações. Enquanto não praticarmos a justiça, não haverá possibilidades de paz!

Obras de Antônio Mesquita Galvão na Estante Virtual.

Crises

A crise assola o país
como a crase aflige a escrita.
O kraquen não está nos mares,
mas o craque está em campo,
o crack está na rua!
Por trás das cortinas do teatro abandonado
mofa um espetáculo que nunca foi censurado.
A vida só ganha um pouco de graça
quando de graça é a cachaça.
Os dias estão cada vez mais longos
e o dinheiro diário já não quita as 24 horas.
A vida passa feito um curta-metragem
girando eternamente no rolo da rotina…
A TV não te vê, mas te hipnotiza!
É o espelho da beleza
que não reflete o que agoniza.
O céu escuro não leva chuva para o sertão.
E o ser, tão frágil, acha que fumaça é nuvem.
Nu vem o saldo,
nu vem o prato…
Talvez uma prece
ou o apreço de um deputado.
Talvez um desvio
ou um dinheirinho roubado…
A fé,
a febre do ouro.
O suor frio que escorre no couro
e desejo de ter
que supera o de ser
Lutamos com espadas cegas,
sem fio.
Como esses olhos que já não enxergam,
mas que tapam os buracos
de um crânio
vazio…

 

 

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