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Autoconhecimento

Praticar o autoconhecimento implica, necessariamente, realizar mudanças de hábitos, em exercitar o bem pensar: se os pensamentos – produções próprias – são tão influentes em nossas atitudes e tomadas de decisões, devemos ter o cuidado de produzi-los com a melhor qualidade possível.

Certo dia, em um encontro, foi pedido a alguém que se apresentasse ao grupo. Ela disse: “Meu nome é X, sou profissional de tal área e…”  – quando foi apressadamente interrompida pelo interlocutor: “Foi você quem escolheu seu nome?” – perguntou-lhe, dizendo – “Você não é o nome que te deram, nem a profissão que exerce, quem é você?” .

O constrangimento por não conseguir se apresentar era evidente: sexo, idade, filiação, endereço, preferências, nada servia para justificar a tentativa de apresentação. 

A questão é milenar; o oráculo de Delphos já propunha o “conhece-te a ti mesmo”. 

Quem pode afirmar que efetivamente tem grande conhecimento de si? O autoconhecimento é algo concluso ou passamos uma vida toda nos descobrindo? Para que serve?

Há autores que afirmam ser este o maior desafio de nossa vida. Isto exige muito esforço, disciplina e maturidade para olharmos (e podermos reconhecer) em nós aquele lado que muitas vezes desconhecemos ou não gostamos de mostrar a ninguém, nem a nós mesmos.

O grande psicólogo Carl G Jung já teorizava sobre aquilo que denominou de “Sombra”, fixada nas entranhas do inconsciente, mas sempre pronta para a qualquer momento emergir, surpreendendo a todos. 

Um processo saudável de autoconhecimento implica em reconhecermos nossas sombras e em aceitarmos elas, pois, por mais absurdas que pareçam, são partes nossas!

 Nas sessões de psicoterapia, é muito comum manifestações que indiquem um sujeito que quer sair de um emprego, de um relacionamento afetivo, de uma cidade, como se isto pudesse afastar de si um mal estar que em muitas das vezes não está no ambiente, no outro, mas em si mesmo. 

Está sentenciado: para onde ir, sua essência (o Ser) irá junto. 

Quando temos a oportunidade de nos conhecermos melhor, as relações com o mundo ficam menos sofridas, o choque com a realidade não é tão ameaçador, percebemos que nossas imperfeições não são muito diferentes das dos outros.  E o que acontece? Passamos a nos sentir mais seguros, não dando muita importância aos erros, evitando com isto o medo, porta de entrada para uma série de perturbações psíquicas e emocionais.

De diversas maneiras estudos teológicos, psicológicos ou filosóficos tratam das ações do pensamento sobre o ser humano. Muitos quadros de sintomas psicopatológicos (a grosso modo chamados de doenças) referem-se sobre pensamentos, sejam delirantes, depressivos, invasivos, mágicos, de suicídios etc… 

Praticar o autoconhecimento implica, necessariamente, realizar mudanças de hábitos, em exercitar o bem pensar: se os pensamentos – produções próprias – são tão influentes em nossas atitudes e tomadas de decisões, devemos ter o cuidado de produzi-los com a melhor qualidade possível.

Assim, se pudermos considerar que um pensamento é um diálogo interno silencioso (mas muito poderoso), uma manifestação de nossa psique, quanto mais formos honestos e coerentes, maior poderá ser a garantia de que nossas atitudes nos encaminhem para um viver melhor, com menos conflitos e com maior sensatez. Mas a boa qualidade de pensamentos só será possível quando estivermos prontos para respondermos à pergunta sobre quem somos; sem embaraços.

Autor: César Augusto de Oliveira – psicólogo

Proposta de atividades pedagógicas (primeiro Ano de Ensino Médio):

Competências Gerais da BNCC: 4 – Utilizar diferentes linguagens para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos /8 – Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional/ 9 – Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação.

Sugestão de Atividades:

  1. Ler este texto em duplas e fazer anotações para, em seguida, compartilhar com o grupo da turma;
  • Construção textual com o tema: “Desafios do autoconhecimento”.

Edição: A. R.

Ministério da Cultura se destaca no primeiro ano de governo de Lula 3

Ações nas diferentes áreas e retomada de políticas públicas foram pontos fortes do órgão.

Jair Bolsonaro, ao ser eleito, anunciou a extinção do Ministério da Cultura em 2019, incorporando suas atribuições ao recém-criado Ministério da Cidadania, que também absorveu as estruturas do Ministério do Esporte e do Ministério do Desenvolvimento Social. Quatro longos anos se passaram até que, finalmente, os apelos da classe artística e dos trabalhadores da cultura fossem ouvidos por Lula, que nomeou a cantora, compositora, atriz e empresária Margareth Menezes como gestora do órgão.

O ano de 2023 foi marcado pela retomada de ações e políticas públicas que se perderam no tempo e foram desmobilizadas pelos governos anteriores. Nesse curto período de tempo e com um contingente reduzido de servidores públicos atuando na pasta, importantes iniciativas foram criadas, demonstrando a incrível capacidade do setor cultural de se reerguer, regenerar e desenvolver políticas públicas criativas. Destaco aqui algumas iniciativas louváveis:

Céus da Cultura: Edificações de uso cultural, de caráter comunitário, compostas por espaços associados à expressão corporal, educação cidadã, arte e educação, trabalho e renda, meio ambiente, entre outras atividades relacionadas à cultura.

MovCEU: Equipamento cultural itinerante, produzido por meio da adaptação de veículos e barcos para a realização de ações culturais.

Política Nacional Aldir Blanc: Com recursos previstos até 2027, a PNAB é uma oportunidade histórica de estruturar o sistema federativo de financiamento à cultura, mediante repasses da União aos demais entes federativos de forma continuada. Diferente das ações da Lei Aldir Blanc 1 e da Lei Paulo Gustavo (LPG), que tinham caráter emergencial, projetos e programas que integrem a Política Nacional Aldir Blanc receberão investimentos regulares, fomentando ações culturais por meio de editais para trabalhadoras(es) da área cultural, bem como pela execução dos recursos de maneira direta.

Editais Afirmativos: São R$ 4,2 milhões investidos em produções dirigidas por pessoas negras, indígenas, mulheres e com temática infantil.

Outra ação foi o desenvolvimento da Lei Paulo Gustavo (parada desde 2022), que injetou mais de 3,8 bilhões em todos os estados e municípios do Brasil, visando socorrer o setor audiovisual afetado gravemente pela pandemia da Covid-19 e promover o acesso de recursos a indivíduos que nunca tiveram acesso a políticas de incentivo e fomento. Seguindo nesse rumo, a retomada das conferências municipais de cultura  discutiram as ações norteadoras dos próximos dez anos na área cultural e prepararam o terreno para a realização da 4ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em março deste ano. Vale ressaltar que a última CNC foi realizada em 2013.

Outras ações, como o lançamento do Programa Territórios da Cultura e dos editais da Funarte Retomada, foram essenciais e darão frutos a partir deste ano, aquecendo o setor cultural e valorizando os profissionais do ramo.

É claro que nem tudo são flores, e as dificuldades e desafios ainda assombram o órgão. No entanto, é preciso reconhecer todo o esforço feito para reestruturar o que estava destruído. Ainda há muito a fazer, começando pela facilitação do acesso a políticas culturais ainda muito elitizadas e pela inserção de ações afirmativas em todos os níveis de governo.

Porém, isso não é trabalho para um ano apenas e sim deveria ser uma política de estado, voltada para assegurar incentivo ao setor que emprega mais de 5,4 milhões de pessoas no país e é responsável por 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB).

O ponto chave desta discussão é a de que o MinC, com o pouco tempo que teve para se reestruturar, as dificuldades internas e o orçamento pequeno (comparado a outras grandes áreas) desenvolveu um trabalho excelente, (senão um dos melhores) da atual gestão de Lula, consagrando Margareth Menezes como um dos maiores acertos a frente do ministério.

Fontes: Ministério da Cultura e Agência Brasil

Autor: Anthony Buqui – Jornalista, ativista, produtor cultural, videomaker, fotografo e captador de recursos.

Edição: A. R.

Por que tentam excluir filosofia e sociologia do currículo escolar?

Sociólogo, Cesar Callegari é autor do parecer de 2008 que colocou as duas disciplinas como obrigatórias nas escolas. Também critica a reforma do ensino médio e orienta para a valorização da formação docente, que deveria atuar em um modelo similar ao adotado no Itamaraty.

“Conhecimento é libertário e meio conhecimento não é liberdade, não é autonomia”, pontua Cesar Callegari (FOTO: Gustavo Morita/ Revista Educação)   

Proibidas nas escolas em 1971, na ditadura, e substituídas por educação moral e cívica, filosofia e sociologia voltaram em 1986 no Brasil como optativas, mas só em 2008, quase 40 anos depois, foram retomadas como matérias obrigatórias no ensino médio, após parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), sob a autoria de Cesar Callegari.

Recentemente, estão sendo novamente excluídas do currículo obrigatório, desta vez pelo novo ensino médio, aprovado no governo Temer e que, devido a críticas, está em processo de mudança no atual governo. Governos estaduais ajudam nesse equívoco, como o estado de SP que as tem excluídas.

Sociólogo, Cesar Callegari é presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada. Foi secretário de Educação Básica do MEC e secretário de Educação do município de São Paulo, entre outras funções que o colocam como especialista em políticas públicas. Membro por 12 anos do Conselho Nacional de Educação, presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular, contudo, deixou em 2018 o cargo por discordâncias no encaminhamento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Confira a entrevista:

Por que filosofia e sociologia são temidas, desvalorizadas e tidas como comunistas no Brasil e mundo?

Isso é uma visão atrasada do processo educacional. Nunca, em toda a história da humanidade, foi tão importante a construção de um pensamento crítico e competência criativa. Hoje há uma abundância de informações e temos de fazer um esforço em todo o processo educacional — infantil, fundamental, ensino médio, superior e educação ao longo da vida — para que as pessoas tenham consciência do contexto, origem das coisas, como se manifestam, os vários ângulos.

Em contraposição, há quem ache que a educação deve ser puramente instrumental, principalmente para as camadas populares, como se conhecimento, o aprendizado de língua portuguesa e matemática parasse em pé sozinho.

É necessário ter significado e relevância, duas categorias que devem andar juntas, e exatamente quando se aprofunda em conhecimentos de filosofia e sociologia, o aprendiz mergulha nas origens tanto do pensamento, das forças sociais, culturais, políticas, voltando-se também à contextualização das informações do conhecimento e das atitudes em relação à vida. Isso é temido porque o conhecimento é libertário e meio conhecimento não é liberdade, não é autonomia. Ou seja, forças conservadoras que querem conservar seus privilégios para continuarem a exercer dominação social e política temem que uma visão mais crítica a elas possa contestar os elementos de status quo, daí o medo, por exemplo, do pensamento crítico. 

Muitas aulas de filosofia e sociologia não eram lecionadas por professores(as) formados(as) nessas áreas — aos poucos isso vem mudando. Como fazer uma boa aplicação dessas aulas?

Todos os professores, não apenas de sociologia e filosofia, devem proporcionar que seus alunos sejam bons perguntadores: criar perguntas com fundamento, compreenderem que as dúvidas são próprias do processo de conhecimento e que não são ameaças ao próprio saber do professor, mas um caminho para a exploração.

Então, os professores de filosofia e sociologia, ao tratarem da origem do conhecimento, dos grupos sociais, origem das diferenças dos conflitos de poder, devem dar elementos para que os estudantes possam construir boas perguntas sobre tudo — sobre as disciplinas, sobre a vida, sobre aquilo que está estabelecido, inclusive as relações de poder entre professor e aluno.

Já a formação de professores é deficiente no Brasil. Temos hoje um apagão do magistério em praticamente todas as áreas — falta professor de sociologia, química, matemática e filosofia. Sabemos que a maioria dos que estão se formando hoje para serem professores frequentam licenciaturas a distância de precaríssima qualidade na maior parte dos casos. Claro que há exceções de boas universidades e faculdades, mas a regra é um sistema que está funcionando há muito tempo sob os olhos fechados do Ministério da Educação, que permite a precariedade na formação inicial de professores.

Além disso, a formação inicial e continuada precisa desenvolver não apenas propostas curriculares, mas proporcionar aos professores domínio dos métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para aí sim eles compreenderem como incentivar os estudantes a fazerem perguntas.

Você é o autor do parecer de 2008 do CNE e aprovado no Congresso que coloca filosofia e sociologia como obrigatórias no ensino médio. Quase 10 anos depois, a BNCC as altera novamente. Como avalia avanços e retrocessos das políticas públicas?

O currículo sempre é um campo de disputa política e ideológica. Não há neutralidade em qualquer tipo de formulação curricular como não há neutralidade em absolutamente nada do conhecimento, muito menos no campo da educação escolar. Sendo um campo de disputa, as forças conservadoras, que ganharam espaços de poder nos últimos anos no Brasil e mundo, têm receio desse processo livre de questionamento e criatividade, o que explica alguns retrocessos na área da educação.

Tudo bem transformar as disciplinas em áreas do conhecimento, o problema na reforma do ensino médio é que as áreas do conhecimento vieram desprovidas propositalmente do cuidado essencial de trazer ao estudante os elementos teóricos e conceituais que são próprios de cada uma dessas disciplinas, oferecendo algo apenas genérico. Então, professores de biologia foram obrigados a darem aulas de química sem conhecimento, assim como os de filosofia pegaram informática para cumprirem a grade de aulas. A reforma se transformou em um festival de improvisos.

Quando era presidente da Comissão Bicameral encarregada da Base Nacional Comum Curricular do CNE, deixou o cargo em 2018 por discordâncias. Fale mais sobre o seu posicionamento

A reforma do ensino médio foi proposta pelo governo Michel Temer e veio com a característica reducionista de direitos de aprendizagem, esse talvez seja o principal ponto que me levou à oposição da BNCC do ensino médio e da reforma. A redução de 2.400 horas de um direito do estudante de conhecimento geral para 1.800 horas significa reduzir possibilidades de aprendizagem, o que é inaceitável. Com isso vem a pergunta: quais conhecimentos ficam de fora para espremer o currículo?

Já na Base Nacional Comum Curricular do ensino médio entregue ao Conselho Nacional de Educação, os problemas foram aprofundados, conforme detalhei na resposta anterior. O terceiro ponto são os itinerários formativos completamente vazios. Quando falamos da Base Nacional Comum Curricular desde a lei do Plano Nacional de Educação, inclusive eu sou autor desse trecho da lei, a BNCC era uma necessidade, porque deveria ser a expressão, a enunciação dos direitos e objetivos de aprendizagem do desenvolvimento das crianças, jovens e adultos brasileiros. Mas os itinerários formativos vieram ausentes desses direitos de aprendizagem, se tornando uma revogação de direitos.

Também sou contra que qualquer etapa da educação básica seja feita a distância, porque é na escola, no convívio, que se desenvolve uma série de valores próprios das necessidades de um mundo contemporâneo, como o respeito à diversidade, à capacidade de construir e trabalhar de maneira colaborativa.

Por isso que hoje os profissionais educacionais mais avançados são aqueles que trabalham com a educação baseada em projetos e colaborativa: fazer perguntas, construir hipóteses, buscar respostas em torno dessas hipóteses. É na educação básica que se deve aprender que nada se constrói sozinho e que há contradições nesse coletivo, porque as pessoas são diferentes. A educação mais avançada considera todas essas variáveis não como um problema, mas como uma grande vantagem e é isso que, às vezes, aqueles detentores do poder não querem, uma vez que aspiram por pessoas que consumam pequenos pacotinhos prontos de informação sem que processem isso na forma de conhecimento. Nós aprendemos quando criamos.

Enem deveria se chamar Exame Nacional da Educação Básica, porque é ela inteira que precisa ser avaliada. (FOTO: Gustavo Morita/ Revista Educação)

Filosofia, sociologia e artes foram reduzidas do currículo escolar 2024 do estado de SP e colocadas em itinerários formativos. Já português e matemática tiveram aumento de carga horária. Essa mudança tem ligação com as notas do Saeb e Ideb devido a uma preocupação com rankings ou é um olhar para a aprendizagem?

É uma visão rasa e pobre do processo educacional se o governo e gestores do estado de São Paulo estiverem guiados para ir bem na nota; rankings não podem de jeito nenhum nos guiar a respeito do compromisso do gestor público de proporcionar o direito a uma educação de qualidade consistente. Mas, aqui vejo uma concepção mais grave e perigosa: transformar a formação da educação básica jovem paulista numa educação pobre para os pobres, achando de maneira equivocada que apenas língua portuguesa e matemática são suficientes — já que a gente não consegue assegurar o conhecimento mais amplo, então para os pobres basta isso.

Mas se continuar proporcionando educação pobre, o estado está condenando uma parcela significativa da população a uma cidadania precária em uma contemporaneidade que em qualquer tipo de ocupação se exige conhecimento cada vez mais profundo e crítico. É um projeto de dominação de poder das elites hegemônicas no Brasil, não todas as elites, mas as hegemônicas sempre se valeram da sonegação do direito à educação de qualidade como o direito de todos, com uma forma de controle social e de dominação política e de opressão. Temos de combater esse projeto.

Entre os reflexos das desigualdades brasileiras está o desestímulo e/ou impossibilidade do estudante de concluir o ensino médio. Em que tipo de política pública para a juventude acredita e como implantá-la?

Primeiro ponto é reconhecer que temos não uma juventude, mas juventudes, com muitas características, condições, anseios diferentes. Reconhecer essa diversidade entre os diferentes segmentos das juventudes é fundamental para a construção não de uma política, mas políticas que digam e que sejam significativas para essas várias juventudes. O segundo ponto é que o ensino médio tem de se tornar relevante para o estudante não na perspectiva de proporcionar acesso à educação superior e a um bom emprego. Tem de ser relevante para que o estudante se torne relevante, que ele se encontre, que tenha compreensão mais completa da sua origem e possibilidades, inclusive participação na sociedade e também na política, não partidária, mas de exercício do poder, condições e direitos ainda desiguais no Brasil.

Para ter relevância, o ensino médio precisa ter, volto a dizer, uma estratégia de currículo que preconize a produção autoral e colaborativa desse estudante com base no experimentalismo, numa educação baseada em projetos e, claro, proporcionando condições de acordo com as necessidades de cada grupo social dessas juventudes.

Muitos jovens brasileiros precisam de suporte para poder estudar no ensino médio, só que apenas dar uma bolsa é importante, mas não suficiente. A suficiência vem da construção e implementação de um currículo que proporcione essa relevância coletiva dos diferentes segmentos da educação dos jovens brasileiros.

E a nova proposta do atual MEC para o novo ensino médio? Merece ser aprovada?

Merece, ainda que eu defenda alguns ajustes. O mais importante é que o governo se empodere da condição de liderança necessária para que os governos estaduais, que são os principais responsáveis pelo ensino médio, possam implementar essas mudanças com responsabilidade. Tem de ter força democrática.

O segundo ponto é investir, tem de dar condições materiais para que os estados avancem. Contudo, nenhuma educação de qualidade, do ensino infantil ao superior, vai progredir no Brasil se continuarmos a admitir a precarização da formação inicial dos professores brasileiros.

O Brasil precisa tomar uma decisão corajosa e política de formar uma nova geração de professores. Temos condições para isso e essa nova geração precisa de um programa federal, com carreira federal, salários diferenciados, ou seja, criar na sociedade a condição de uma profissão que encante os melhores entre os melhores, é disso que o Brasil precisa. Mas qual é a coragem política de a gente se valer dos talentos que temos nas universidades? Seria algo parecido com a entrada no Itamaraty, que necessita de um concurso no Instituto Rio Branco, em que há um salário e visão a respeito do seu desenvolvimento. O Brasil precisa tomar essa decisão porque todo o resto é importante, mas é paliativo se não tomarmos a decisão estratégica e politicamente corajosa de construir já uma nova geração de professores no Brasil. Nós precisamos nesses próximos 10 anos formar 300 mil professores para a educação básica.

Camilo Santana afirmou que o Enem não mudará este ano. Nisso, há quem defenda uma entrada para o ensino superior similar à dos EUA, com nota pela soma da trajetória e não mais o atual modelo do Enem. O que acha?

O ideal é uma avaliação em processo durante todo o ensino médio. Aliás, ele deveria começar já no último ano do ensino fundamental, servindo de um ‘filme’ do processo evolutivo e de desenvolvimento do jovem que vai se submeter a um exame nacional no final da educação básica. Não deveria se chamar Exame Nacional do Ensino Médio, mas Exame Nacional da Educação Básica, porque é ela inteira que precisa ser avaliada. E é claro que um novo Enem precisa estar baseado na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio.

O Enem exerceu até hoje posições positivas em sua essência. Ele é um farol, um ponto de chegada. A própria maneira como o Enem tem se organizado, proporcionando, exigindo ou cobrando dos alunos um processo cada vez mais de interligação de áreas do conhecimento acaba induzindo mudanças no processo de ensino e aprendizagem. Com isso, espera-se que a educação básica ofereça uma visão mais crítica, interpretativa e questionadora e essa etapa precisa proporcionar que as crianças e jovens sejam rebeldes com causa, porque é na causa que existe o conhecimento necessário para projetos coletivos.

FONTE: https://revistaeducacao.com.br/2024/02/27/tentam-excluir-filosofia-e-sociologia-do-curriculo-escolar/

Publicado em 27/02/2024

por Laura Rachid

Revista Educação: referência há 28 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica

Edição: A. R.

Bibliotecas escolares: sinal de alerta no país

Dados dos últimos censos revelam que o atendimento na rede pública é oferecido com precariedade. Por vezes, falta local para consulta ou empréstimo, não tem profissional para o serviço ou, ainda, carece de conservação ou acervo. Muitas bibliotecas escolares têm espaço e acervo, mas faltam profissionais para incentivo, atividades ou empréstimos regulares. Muitas bibliotecas escolares têm espaço e acervo, mas faltam profissionais para incentivo, atividades ou empréstimos regulares.

Importante ferramenta de acesso e ampliação do conhecimento, o livro e a leitura são questões a serem lembradas e valorizadas, especialmente neste período de volta às aulas. Um dos desafios a serem enfrentados no ensino é a qualificação das bibliotecas escolares no país. Estudo realizado pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), com base no Censo Escolar 2022, mostra que somente 31% das escolas públicas brasileiras possuem biblioteca.

A situação é ainda mais grave na Educação Infantil – quando esse despertar para o mundo dos livros e o prazer pela leitura deveria ser impulsionado –, em que só 18% dos estabelecimentos educativos têm espaço para consulta, atividades e empréstimo de livros. Também se verifica que 52% dos alunos matriculados em escolas públicas brasileiras estudam em estabelecimentos sem bibliotecas. Neste quesito, os ensinos Infantil e Fundamental destacam-se negativamente: com 78% dos alunos da Educação Infantil (cerca de 5,2 milhões); e 51%, do Fundamental (11 milhões de crianças) não possuem bibliotecas à disposição no ambiente escolar.

Já no Ensino Médio, essa falta afeta 31% dos estudantes (2 milhões). A análise regionalizada do problema indica que os estados com menor percentual de alunos matriculados em estabelecimentos de ensino com bibliotecas são Acre (13%), São Paulo (16%), Maranhão (29%) e Distrito Federal (31%). E os que contam com mais estudantes em escolas com bibliotecas são Minas Gerais (82%), Rio Grande do Sul (76%), Paraná (73%) e Goiás (69%). Por rede de ensino, 98% das escolas federais têm biblioteca, nas redes estaduais são 61% e nas municipais ficam em 23%. E entre as escolas públicas com bibliotecas, apenas 45% possuem bibliotecário.

Nos estabelecimentos estaduais, 51% têm bibliotecários e nos municipais 39%.

Legislação

O atual cenário das bibliotecas não reflete a determinação legal, preconizada pela Lei Federal 12.244/2010, determinando que as instituições públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do Brasil tenham bibliotecas. Além disso, concede prazo de 10 anos, já esgotado, para a universalização destes espaços. Na mesma ótica, temos o Plano Nacional de Educação (PNE), instituído pela Lei Federal 13.005/2014, que reconhece a oferta de escolas com ambientes adequados como condição básica para o desenvolvimento da ação educativa.

Controle

Cezar Miola, presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) assinala a relevância da leitura para o desenvolvimento das crianças. “Como deixa claro a obra ‘Faça-os Ler!’, de Michel Desmurget, o livro é o meio de aprendizado mais adequado para o funcionamento cerebral, sendo que todas as evidências demonstram inequivocamente o impacto positivo da leitura no desenvolvimento das crianças”, destaca. E ainda cita Desmurget, quando ressalta que o formato em papel, dos livros, favorece a concentração e a sensação de imersão do leitor.

O conselheiro Miola relembra que recente pesquisa realizada no Brasil demonstra que, em um nível socioeconômico mais baixo, a existência e a utilização de espaços de leitura trazem melhores resultados de aprendizagem aos estudantes. “Segundo os autores do estudo, em contextos de grandes desigualdades, melhorias na infraestrutura escolar, tais como nos espaços de leitura, tendem a incidir de maneira mais significativa sobre os resultados escolares.”

E o desafio de disponibilizar e garantir o pleno funcionamento e serviço das bibliotecas escolares, com acesso e atendimento especializado, é reafirmado pelo dirigente da Atricon. “Ao darmos visibilidade aos números, pretendemos, essencialmente, estimular a adoção de medidas capazes de resolver os problemas detectados”, assegura Miola. Em 2023, baseado no Censo 2022, técnicos dos 32 Tribunais de Contas brasileiros auditaram, em abril, 1.088 escolas de 537 cidades brasileiras com a Operação Educação – Fiscalização Ordenada Nacional. Detalhes: http://tinyurl.com/ycxvrnat.

Autoria: Maria José Vasconcelos

FONTE: https://atricon.org.br/correio-do-povo-bibliotecas-escolares-sinal-de-alerta-no-pais/

Edição: A. R.

Há cinquenta países que leem mais do que nós. O que nos atrasa?

Sim, o prazer, o deleite em ler, a calma preciosa da leitura degustada, sem pressa, sem cobrança, que nos emociona e nos transforma.

“E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se.  A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso…

E o curioso é que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas.  Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes…” (do livro O cortiço, Aluísio Azevedo)

Seria impensável, como exigência aos nossos alunos e alunas, que descrevessem sobre texto acima, sem consultar, claro, quaisquer fontes.

Não tem problema.

Compreende-se o trauma em se exigir a um público letrado ou desconhecido, em relação a este escrito, realizado em 1890; um clássico, um livro indispensável a qualquer brasileiro, aos que estão à boca do vestibular, aos que já passaram e aos que jamais passarão. Não importa.

E por qual razão destacamos o artigo?

Porque mesmo que a história estivesse à disposição de todas as pessoas, em praças ou em quaisquer locais públicos, escolas ou empresas, hoje, o seu interesse seria mediano; quem sabe, nenhum!

E a razão é simples: há prazer nessa leitura. As suas páginas nos remetem há uma época que ficou no passado, mas nem tanto. Seus personagens, todos do século XIX, parecem retirados de nossos arrabaldes de hoje, em periferias esquecidas, onde as pessoas muitas vezes vivem amontoadas, em espaços ultrajantes.

Aluísio Azevedo escreveu seu livro e o destinou para os próximos séculos, pelo menos dois. Suas palavras, muitas delas incompreensíveis para o escasso vocabular que nos contorna, soa um país que não mais existe. Portanto, não há motivos para ler o que não nos diz respeito.

Eis o engano!

Lemos o Cortiço por puro prazer. Como tantos outros. Não se precisa de mais nada.

Apenas os derivados do livro: encantamento, satisfação.  Deleite, como uma professora, recentemente, em Mogi das Cruzes, referindo-se à leitura de um livro em sala de aula, destacou:

Fizemos a leitura deleite, eu e um aluno.  Depois a reflexão sobre a história.

 O que é uma declaração feita um oásis, no deserto da leitura.

Quem lê O Cortiço não quer parar; tem os seus sentidos aguçados, por uma época, em que se pensa, já passou, e, em seguida, vê-la na esquina.  Está logo ali. Por que diz respeito a nós, como país, que mesmo após 100 anos não encontra soluções dignas que prevaleçam.

Suas palavras obtusas e deliciosas, presas ao seu século, fazem parar seus leitores em todas as páginas. Seus personagens formam um convite para que entremos na história, no seu dia a dia, o que para um leitor mais eufórico, pode escolher o que mais lhe parece familiar, e com ele conviver até o seu final.

Não seria exatamente o que nos falta nestes dias sombrios, de escassa e frívola leitura?  Para deixarmos o índice ao qual fazemos parte, o dos países mais iletrados do mundo?

Sim, o prazer, o deleite em ler, a calma preciosa da leitura degustada, sem pressa, sem cobrança, que nos emociona e nos transforma.

Leia também a crônica Ler: um prazer pouco valorizado: https://www.neipies.com/ler-prazer-pouco-explorado/

Estamos todos correndo, muito ocupados, tentando ser felizes, como nos diz Matthew Kelly.

Sejamos francos, é uma guerra quase perdida, a da leitura, da curiosidade por livros e mais livros. Novos e antigos, os que falam de outras épocas ou de época nenhuma, e que induzem a um pensamento abstrato e desprovido de qualquer conforto.

Vivemos o tempo dos livros esquecidos.

Haverá solução ao vermos a mudança, nesta geração de péssimo vocabulário, da comunicação truncada e das redações zeradas? Há tempo de parar essa corrida insana de nossas crianças, em sua busca por aplicativos que vendem imagens, em prazeres furtivos, trocando-as para outras imagens, imaginárias, as do prazer do silêncio em uma leitura contemplativa?

Pensem:  quem irá se interessar por leitura, observando seus pais em casa, que não leem, seus irmãos, que não leem, professores sobrecarregados, muitas vezes, que não leem…que motivação as fará mudar?  Vamos esperar que tomem a sua própria iniciativa? E se lerem, que níveis de prazer e fruição buscarão?

Em um minuto apenas, uma criança pode assistir 12 vídeos em qualquer um dos aplicativos que recheiam seus celulares. E se forem desinteressantes ao seu campo imediato de prazer, até mais. Façam as contas.

Aos meninos e meninas que tem um alcance tão grande de acessos pelas redes, mal sabem eles, que sem leitura e interpretação, sem debate e orientação, serão as próprias redes que os tornarão idiotizados.

Penso que o incentivo à prática e à vivência da leitura terá de ser resgatado pelo prazer de se ler, antes de qualquer oferta mercadológica que feiras de livros ofereçam; ou de qualquer estante exposta em um supermercado, passando a falsa impressão de que há incentivo e interesse à leitura nestes dias.

Ler, aquietar-se, tem de vir de dentro. Mas passa pela opção familiar em desacelerar, apagar as luzes que as tornam vigilantes o tempo todo, libertar-se do poder inebriante e inútil da televisão.  Aliás, ler em família, debater temas e livros se tornou tão raro que, quem o fizer e falar, levará escândalo a vizinhos e amigos.

Em tempos de resgate e compreensão da empatia, quem não perceber que ela pode nascer justamente da leitura, perderá o seu tempo na sua insistência.

Foram nas primeiras leituras que todos nós, vivendo as suas histórias, fomos colocados no lugar de vilões e heróis, assumindo papéis que a realidade nos impedia. E como leitores, fomos transformados em atores, assumindo roupagens distintas, em personagens improváveis.

E continua sendo dessa forma! Na leitura, mergulhamos em uma realidade que não vemos, sentimos.  E, sentindo, terminamos por nos tornar naquilo em que lemos. Daí que a leitura é a primeira geradora da empatia, e somente por ela, torna nossos instintos controláveis e mais previsíveis, podendo administrar nossos próprios ódios, e os alheios, a partir de nossos sofás. Porque um livro à mão é um julgamento a menos.

Quem quer mergulhar na leitura do Cortiço, mesmo que nesse tempo histórico nem queira viver? É uma viagem, vendo as palavras terem vida, sentido e prazer.

Pois será como no título deste livro, que vamos nos transformar como nação, pensando, que somente em oferecer mais livros será o suficiente para despertar a sua sedução.

Na magia da leitura somos enfeitiçados.  É o que nos liberta!

Autor: Nelceu Zanatta. Também publicou no site a crônica “O fim da empatia é o fim da civilização”: https://www.neipies.com/o-fim-da-empatia-e-o-fim-da-civilizacao/

Edição: A. R.

A luta contra o Totalitarismo

O aspecto mais perigoso do totalitarismo é que ele trata os indivíduos como se fossem supérfluos. Os indivíduos já não são mais singulares e contribuintes importantes para a cultura e para a política, mas sim criaturas que podem ser facilmente sacrificadas para a ideologia ou condicionadas a agir de maneira previsível e obediente.

Hannah Arendt (1906-1975) é uma importante e controversa pensadora política cujas opiniões não podem ser facilmente rotuladas. Diferente de muitos outros pensadores famosos de seu tempo, que usavam a erudição como forma de se destacar no cenário intelectual, Arendt é uma escritora clara, concisa, pois escreveu para o público em geral, não para plateias meramente acadêmicas. Seus escritos são extremamente férteis para pensar o mundo atual, pois ocupou-se de diversos temas e diversos assuntos polêmicos e instigantes.

Nasceu na Alemanha, filha de uma família de judeus assimilados, estudou em boas escolas na alemãs, doutorou-se em filosofia com uma tese orientada pelo grande filósofo existencialista Karl Jaspers, que teve por título “O conceito de amor em Santo Agostinho”. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, refugiou-se na França e depois nos Estados Unidos, onde obteve a condição de cidadão americana em 1951 e onde viveu até o final de sua vida.

Uma das tantas obras escritas por Arendt, e que a tornou famosa no mundo todo, foi As Origens do Totalitarismo. Escrito entre 1945 a 1949 e publicada em 1951, o livro trata dos três pilares que cristalizaram o totalitarismo reinantes na primeira metade do século XX: antissemitismo, o imperialismo e o racismo. Ao tratar do antissemitismo moderno (primeiro pilar do totalitarismo) Arendt explica que não se trata do antigo “ódio aos judeus”, de inspiração religiosa. Trata-se de uma “ideologia laica”, ligada as condições da sociedade europeia do século XIX que redefiniu o papel dos judeus. A velha hostilidade cristão contra o povo que tinha matado o Filho de Deus, não é a mesma que Hitler mais tarde expressou e mobilizou para perseguir e condenar aos campos de extermínio.

Para Arendt, a Totalitarismo é a mais horrível forma de governo, pois não se limita a destruir o espaço público, como faz qualquer tirania que se preze, acrescentando ao isolamento a experiência de sentir-se desamparado, solitário, não pertencente ao mundo. Por isso o totalitarismo é comparado por Arendt como sendo um furação que derruba tudo o que se acha em seu caminho.

O totalitarismo não é deliberadamente planejado ou estruturado, mas se torna um movimento de destruição caótico, não utilitário, insanamente dinâmico, que ataca todos os atributos da natureza humana e do mundo humano que possam tornar possível a política.

No totalitarismo, diz Arendt, a polícia secreta e as várias organizações de espionagem contribuem para a atmosfera de paranoia na qual não se pode confiar em ninguém e ninguém sabe o que as outras partes do governo estão fazendo, à exceção daqueles que se acham nos mais altos níveis de comando.

Para explicar as estruturas do totalitarismo, Arendt utiliza a metáfora de um cebola: cada camada protege o líder no centro que detém o controle definitivo; cada camada conhece apenas seu próprio negócio e tem grande dificuldade em compreender a completeza da cebola como um todo. Por isso, os governos totalitários são piores que os governos tirânicos. Estes procuram eliminar os críticos ativos mediante violência; os totalitários suprimem todos os meios que possam ajudar as pessoas a pensarem, questionarem e desafiarem o Estado.

O aspecto mais perigoso do totalitarismo é que ele trata os indivíduos como se fossem supérfluos. Os indivíduos já não são mais singulares e contribuintes importantes para a cultura e para a política, mas sim criaturas que podem ser facilmente sacrificadas para a ideologia ou condicionadas a agir de maneira previsível e obediente. Com o totalitarismo temos o “mal radical”, ou seja, a crença de que humanos são supérfluos e descartáveis. Alguma semelhança com os dias atuais?

Para os que tiverem interessem e se aprofundar disponibilizo a seguir o link para o acesso gratuito de uma Coletânea Leituras sobre Hanna Harent: Educação, Filosofia e Política, organizada por mim e pelo professor Edison Alencar Casagrande, atual Pró-Reitor Acadêmico da UPF. Nos 13 capítulos da coletânea, diversos pesquisadores discorrem sobre diversos aspectos em relação a Hannah Arendt.

Vale a pena a leitura.

Segue o link de acesso: https://www.researchgate.net/publication/358923482_Leituras_sobre_Hannah_Arendt_-_educacao_filosofia_e_politica_1

Autor: Altair Fávero. Também publicou no site “Um contrato social em defesa do bem comum”: https://www.neipies.com/um-contrato-social-em-defesa-do-bem-comum/

Edição: A. R.

É bagunça!

Praticando o “vaivém” somos mais bem quistos pelas pessoas pelos cuidados que conseguimos ter nas relações com elas. Somos inteligentes.

Há alguns anos, publiquei o livro “Vaivém” junto com Pablo Moreno e Adelmir Sciessere.

Se da janela observamos a praça, veremos, por exemplo, em um bebedouro pássaros azuis. Só sabemos isso dos pássaros, são azuis.

Porém se em imaginação “vamos” até eles, nos colocamos no lugar deles, observamos mais. “Voltamos” sabendo que eles tomam um gole e olham para todos os lados, tomam outro e repetem o comportamento. Um som qualquer os faz voar.

Os pássaros agora não só são azuis, tem também uma vida cheia de perigos, precisam estar sempre alertas.

Se antes de ir para o quarto o marido “vai” até ele em imaginação, pode assim deduzir que a mulher está dormindo. Então, quando chega não acende a luz.

Praticando o “vaivém” somos mais bem quistos pelas pessoas pelos cuidados que conseguimos ter nas relações com elas. Somos inteligentes.

O vaivém empático depende do bom funcionamento dos chamados neurônios espelho que estão esparramados em algumas regiões do cérebro, entre elas o córtex pré-frontal.

Há crianças que já demonstram essa capacidade de forma até surpreendente. Repito sempre o caso da mãe que trouxe consigo na consulta a filha de cinco anos. Menininha de olhos atentos. Quando houve um silêncio na conversa da mãe dela comigo, ela:

– Mãe, ele tá procurando alguma coisa ou é bagunça? – perguntou apontando para minha mesa cheia de papéis esparramados, livros, amostras grátis.

Nós rimos, eu respondi:

– É bagunça.

Ela ficou pensativa e tentou me consolar:

– Doutor, o meu quarto também é assim.

Ela já aplicava o vaivém empático. Foi até mim em imaginação e retornou a ela deduzindo que eu havia ficado chateado. Em ato contínuo, tentou aliviar meu possível desconforto.

Autor: Jorge Alberto Salton. Também publicou outros 29 crônicas de sua autoria no site, dentre as quais “Quando um filho se sacrifica pela sua mãe”: https://www.neipies.com/quando-um-filho-se-sacrifica-pela-sua-mae/

Edição: A. R.

Liberdade de ensinar e de aprender

Amordaçar docentes e discentes com restrições é impedir a aprendizagem e negar aos educandos e às educandas o acesso ilimitado e irrestrito a tudo o que de mais significativo a humanidade acumulou sob o nome de conhecimento, expresso nas suas mais diversas formas e nos mais diversos assuntos.

A aprendizagem é prática da liberdade. Não se aprende (e nem se ensina) em ambientes nos quais cada sujeito não dispõe de condições para que leia criticamente o que já sabe, perceba o quanto ainda precisa aprender e se coloque em posição de buscar o novo, sem medo. O medo e imobilizador e, sem movimento, não há aprendizagem. Basta recuperar a história para ver que assim é que o conhecimento produziu inovações, assim é que se enfrentou os “idola” e se criou… assim segue sendo nas melhores escolas e nas mais recomendadas práticas pedagógicas.

Amordaçar docentes e discentes com restrições injustificadas como as que vêm sendo proposta por parlamentares de extrema direita – o que, aliás, é típico e próprio de quem se posiciona neste espectro político – é impedir a aprendizagem e negar aos educandos e às educandas o acesso ilimitado e irrestrito a tudo o que de mais significativo a humanidade acumulou sob o nome de conhecimento, expresso nas suas mais diversas formas e nos mais diversos assuntos.

E a educação é um direito de todas e todos, particularmente das crianças e dos adolescentes, cabendo o seu exercício no mais amplo das possibilidades, contanto que não afronte a Constituição e os Tratados de Direitos Humanos aos quais o Brasil e signatário. Como tudo, tem limites, mas eles são estabelecidos em normativas própria e previstas na legislação educacional e suas normativas.

A educação é responsabilidade compartilhada entre a família, a sociedade e a escola.

Instalar a supremacia dos pais sobre os demais agentes é dar-lhes um poder desproporcional. A responsabilidade que têm com o que seus filhos e suas filhas aprendem sempre poderá e deverá ser exercida, fazendo acompanhamento, em diálogo com docentes e Escola. Mas exigir que docentes submetam aos pais temas previstos para serem desenvolvidos pelas normativas educacionais, pelos parâmetros curriculares e outras orientações públicas é suspeitar que docentes cumpram suas obrigações e sejam responsáveis no tratamento dos temas para os quais foram formados e estão habilitados.

Reascender fogueiras e reinstalar tribunais de exceção é inaceitável, na escola, então, mais ainda! Pela liberdade de ensinar e de aprender!

Autor: Paulo César Carbonari, doutor em filosofia, professor e militante de direitos humanos. Também publicou no site a reflexão “O pensamento tornou-se cego”: https://www.neipies.com/o-pensamento-tornou-se-cego/

Edição: A. R.

A Mordaça ao Livro O Avesso da Pele

O Index, o Índice dos Livros Proibidos, era uma lista de publicações consideradas heréticas, anticlericais ou lascivas e proibidas pela Igreja Católica.[1] A primeira versão do Index foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 e uma versão revista dessa foi autorizada pelo Concílio de Trento. A última edição do índice foi publicada em 1948 e o Index só foi abolido pela Igreja Católica em 1966 pelo Papa Paulo VI.[2][3] Nessa lista estavam livros que iam contra os dogmas da Igreja e que continham conteúdos tidos como impróprios.

Face à polêmica causada pela obra ficcional O Avesso da Pele, de autoria do jovem escritor Jefferson Tenório, vimos estabelecer algumas considerações sobre as mordaças (censuras) aplicadas contra as múltiplas manifestações culturais e contra os próprios artistas, os quais, em um passado muito recente foram “queimados” pelas obras que produziram. Sob essa perspectiva trataremos algumas questões sobre o livro citado e os reais motivos de retirá-lo de circulação e das bibliotecas escolares, hoje sob ordem de alguns Governadores, Secretários de Educação, diretores de escolas, pastores, vereadores, dentre outros, pelo simples motivo da linguagem ser inadequada aos estudantes do Ensino Médio. Duvido que tenham lido o romance na íntegra.   

Mal sabem os falsos moralistas de cuecas e calcinhas borradas que o romance O Avesso da Pele, publicado em 2020 pela Companhia das Letras, recebeu o maior prêmio literário brasileiro: o Prêmio Jabuti/2021. O livro aborda temas como racismo e violência policial. Escolhido pelo Programa Nacional do Livro Didático, a obra está sendo alvo de críticas ferozes pelos setores conservadores da sociedade brasileira que, mobilizada, busca retirar o livro das bibliotecas escolares e da própria circulação nas livrarias. Tanto é que o autor e a editora já entraram com Mandado de Segurança para garantir a reedição e a circulação do livro, impedindo sua circulação e leitura nas escolas. É a legítima mordaça contra a obra ficcional.  

Voltando aos múltiplos conceitos de literatura, em síntese, pode-se afirmar com segurança que literatura é a arte da palavra escrita na forma de conto, crônica, poesia, teatro e romance. Ela pode ser um dos reflexos, invertidos ou não, das múltiplas faces da sociedade. Nunca a pura realidade, pois personagens, enredo, tempo, espaço e linguagem são meras semelhanças, embora tudo seja fictício, isto é, inventado de tal forma que parece que é, mas não é. 

Assim concebida, tomamos como exemplo três obras de autores gaúchos: Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; O Analista de Bagé, de L F Veríssimo; Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto.  Antares não existe, muito menos seus sete mortos falantes e insepultos em protesto no coreto da praça; o heterodoxo e quixotesco Analista de Bagé é apenas uma caricatura do convencional método do joelhaço à solução dos problemas sexuais do gaúcho típico. Por sua vez, o velho e digno Blau Nunes é o narrador dos contos, lendas e mitos do tempo do gaúcho a cavalo. Retirá-los das bibliotecas e livrarias pelo fato de ter uma “linguagem imprópria”, deixando livros inacessíveis e os alunos impedidos ao direito à leitura. Seria um grande paradoxo à literatura e cultura sul-rio-grandense. Tenho certeza de que tais falsos moralistas não leram Bocage, Rubem Fonseca, Deonísio da Silva, Drummond, dentre tantos outros bons escritores.  A propósito, os deputados de MS que assinaram o documento para recolher o livro, assumem que não leram a obra. O Deputado Caravina assim se manifestou:  

Eu não li o livro, então não posso dizer sobre o livro. […] Tenho que discordar com os termos descritos. Sem polemizar, mas pelo nível das palavras colocadas ali para os alunos do ensino médio, não podemos estimular. Não é livro para ser disponibilizado pelo Ministério da Educação.

Revendo a história da censura aos livros e escritores brasileiros, pode-se tecer um rosário de mordaças estabelecidas contra livros e escritores no período do Estado Novo e da Ditadura Militar (1964-1984) com apoio da igreja sob alegação da defesa da pátria, da moral e dos bons costumes. Amparados por leis, foram criadas formas de mordaça contra autores e obras, traduzidas em exílio, tortura, prisão, caça às obras e autores.

Na era Vargas as vítimas da insanidade foram Monteiro Lobato e Graciliano Ramos. Na vigência da ditadura militar, sob a vigência do IA-5, foram proibidos no Brasil cerca de 500 filmes, 540 peças teatrais e duzentas obras literárias, dentre as quais, Eu sou uma lésbica, de Cassandra Rios; Laranja Mecânica, deAnthony Burgess; Roque Santeiro, de Dias Gomes; O Casamento, de Nelson Rodrigues; Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.  Isso sem contar os autores como Salim Miguel, Ziraldo, Frei Betto, Renato Tapajós, Ignácio de Loyola Brandão, Joel Rufino dos Santos, Caio Fernando de Abreu, dentre tantos outros que foram calados pela força bruta da mordaça moralista. Também os poetas árcades da Inconfidência Mineira: Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga pagaram alto preço por terem se engajado na luta pela independência do Brasil contra o jugo do império português.

Também há que se lembrar o poeta barroco Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno que, com sua poesia satírica e erótica, estabeleceu   críticas à sociedade baiana do período colonial:

Que falta nesta cidade?

Que mais por sua desonra…

Honra.

Falta mais que se lhe ponha…

Vergonha!

Voltando ao polêmico romance O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, há que se dizer que a obra que retrata a vida de personagens que vivem à margem da sociedade. Aborda temas como identidade, pertencimento e racismo institucional. A história se passa na periferia de Porto Alegre e outros espaços marginais onde diversos personagens resilientes enfrentam e superam desafios de toda ordem.

A linguagem não é de língua culta padrão, chegando ao coloquial e vulgar, refletindo exatamente o espaço onde vivem as personagens que enfrentam múltiplas formas de violência social e familiar.

O jovem negro Raimundo é o protagonista da história. Ele batalha para sobreviver num ambiente extremamente hostil, buscando a dignidade humana num espaço social marcado pela violência e pelo racismo estrutural. O autor usa uma linguagem poética e crua para retratar a dura vida das personagens, mostrando coerência entre a linguagem e suas personagens. É assim que se expressam. Certamente é essa marca que impacta os analfabetos funcionais em leitura, pois acastelados em suas torres elitizadas de marfim e guiados por falsos moralistas, creem que seja a linguagem dos demônios.

Assim, desde que uma diretora de um colégio de Santa Cruz do Sul/RS, Janaína Venzon, publicou um vídeo criticando a obra O Avesso da Pele por conter “Vocabulários de baixo nível. Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio”.  

Tomada pelo poder da mordaça, a professora/diretora, no alto da torre de sua autoridade, escreveu na legenda do vídeo: “Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados para a escola. Prezamos pela educação de nossos estudantes e não pela vulgaridade. Os professores da escola não “escolheu” nenhuma obra literária”. O vereador Rodrigo Rabuske fez coro à clarinetada moralista da diretora: “Absurdo o uso de O Avesso da Pele em escolas”!  

Em contrapartida, a editora Companhia das Letras divulgou uma nota na qual manifesta “indignação diante da repercussão do vídeo feito pela diretora da escola de Santa Cruz do Sul, que acusa o livro de conter palavras de baixo nível”. E complementa que “a retirada de exemplares de um livro, baseada numa interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”.

Pode-se deduzir que a Igreja fez a “mea culpa” abolindo o Index em 1966, dando-se conta do estrago que causou, queimando e proibindo milhares de livros em defesa da moralidade. Por sua vez, os militares, por força da Constituição, ao invés da censura nociva contra obras e escritores, passados os anos de mordaça aos livros, filmes, jornais e peças teatrais buscam cumprir suas missões em defesa das fronteiras e das riquezas naturais do Brasil.

Pena que ainda restam ilhas de falso moralismo contra obras ficcionais, tipo O Avesso da Pele, do jovem escritor Jeferson Tenório por parte de entes não-leitores, inclusive professores que avaliam a qualidade literária pelo nível de linguagem, ao invés de considerarem o contexto, o tema e a estrutura profunda que abordam. Os alunos da escola estão órfãs livro pela ação consciente do livro sequestrado. É uma escola em os professores não escolhem obras literárias, preferindo a escuridão.  Nela a censura é por conta da diretora e do vereador de cuecas e calcinhas borradas em pleno início do Terceiro Milênio.

A propósito, o poeta Mário Quintana já tinha alertado que “o pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê”, por força da falta de bibliotecas e de livros e por falta de gosto pela leitura.

Muitos estão sendo barrados e devolvidos pelos diretores de escolas com apoio de vereadores, prefeitos, secretários de educação e até governadores, tanto é que os Estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso anunciaram a retirada do livro O Avesso da Pele das escolas sob o argumento de que o romance teria usado uma “linguagem imprópria”, repetindo as justificativas do ultrapassado e abolido Index.

Enfim, esqueçamos os novos arautos a favor da mordaça aos livros. Há que se incentivar o gosto pela leitura, estejam os livros onde estiverem: nas bibliotecas escolares, nas livrarias, nas estantes dos lares, nas sacolas, malas de livros, nos presentes de aniversário e em todos os lugares. O tiro já saiu pela culatra contra os falsos moralistas, posto que a procura de O Avesso da Pele cresceu mais de 1400% após seu recolhimento nas escolas.  

Não ao racismo estrutural, não aos genocídios e não às mordaças aplicada aos livros!

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também já publicou no site a crônica “Pretexto para falar de cavalos”: https://www.neipies.com/pretexto-para-falar-de-cavalos/

Edição: A. R.

BURNOUT – uma tortura chamada trabalho

E no final, continuou Helena, as mudanças que são inevitáveis, tornam-se menos assustadoras, quando planejamos elas em sintonia com o que somos e com o que buscamos para a nossa vida!

A palavra trabalho curiosamente deriva do latim tripalium, um instrumento de tortura usado em escravos, que originou o verbo tripaliare, cujo primeiro significado era torturar. Sabe o que mais me assusta? Que depois de milhares de anos, a palavra ainda carrega o mesmo camuflado significado.

– Mas, Helena! É o trabalho que dignifica o homem.

– Eu diria que é o trabalho digno que dignifica o ser humano, meu caro. E dignidade não tem a ver com dinheiro, tem a ver com valores, diferencia que precisamos deixar muito evidente nos dias atuais.

– Sabe o que eu mais atendo em consultório, disse Helena? São pessoas com a chamada síndrome de Burnout que pode ser traduzida por algo como “ser consumido pelo fogo”, o fogo é o seu trabalho, junto com o inferno. Em outras palavras, essa síndrome trata de um estado de exaustão tamanho, que o próprio ego do indivíduo começa a se voltar contra aquilo que lhe prejudica, ou seja, o trabalho excessivo e abusivo. É curioso observar que, às vezes, a pessoa não tem consciência disso, mas, o seu corpo tem!

Depois daquela conversa, Helena se lembrou de sua sessão com Bruno:

– Estou incomodado. Meu chefe entrou em contato comigo no sábado para pedir que eu retorne um cliente. O cliente não podia esperar. Sábado era meu dia de descanso! O problema é que se eu disser não, ele pode me demitir ou no mínimo, me considerar um vagabundo que não gosta de trabalhar (Bruno conhecia bem o seu chefe).

– O que você fez?

– Respondi contra a minha vontade. Parei de brincar com a minha filha e foi atender o cliente que não podia esperar. Sabe o que anda me matando? Que tudo parece estar pegando fogo. Tudo é urgente, nada pode esperar. Aquele cliente podia sim, até segunda, inclusive. Eu deixei de brincar com a minha filha!!!

Bruno estava agitado. A raiva é uma das primeiras emoções que surgem quando nos damos conta dos danos que um trabalho nocivo causa em nosso corpo, nas nossas relações, na nossa vida.

O mais paradoxal de pensar é que Bruno havia aceitado aquele emprego justamente para poder dar uma condição melhor à filha. Ele mesmo já havia se dado conta, que não poderia existir uma condição melhor sem a sua presença, que nenhum, dinheiro no mundo compraria a sua atenção, os seus exemplos. Isso estava lhe matando!

– Importantes constatações Bruno. Perceba que o que você está me dizendo é que existem questões muito importantes que nem sempre se relacionam diretamente com o seu trabalho.

– Sim

– E você consegue tirar um tempo para você?

– Helena, se não tenho tempo nem para minha filha, imagine para mim!

– Compreendo. Mas, vamos avaliar uma questão. Quando você faz algo para você, como por exemplo, descansar, escolher ficar só na companhia de um bom livro ou algo parecido, como você se sente?

– A última vez que lembro, mas que já faz tempo, eu me sentia incomodado, sentia que não devia estar fazendo o que estou com…

– Tanta coisa pegando fogo (interrompeu Helena).

– É, isso mesmo!

– Sabe, Bruno! Vou lhe contar uma história, sobre Napoleão Bonaparte, já ouviu falar?

Quando ele era general, Napoleão adquiriu o hábito de adiar as respostas as cartas. Seu secretário foi instruído a esperar três semanas, antes de abrir qualquer correspondência. Quando enfim lia o que estava na carta, Napoleão gostava de apontar quantas questões supostamente “importantes” já tinham se resolvido sozinhas, e não mais precisavam de respostas.

Embora fosse um líder excêntrico, Napoleão não era negligente em suas obrigações, ou desconectado de seu governo ou soldados. Porém, para ser ativo e consciente do que realmente importava, ele precisava ser seletivo com relação a quem e a que tipo de informação seria exposto (História retirada do livro “A Quietude é a Chave de Holiday).

– A não ser que você seja um Bombeiro, Bruno. Não é seu papel viver apagando incêndio. Os incêndios deveriam ser eventos, portanto, eventuais, principalmente, porque eles demandam muito de nós e precisamos de um bom tempo para se reestabelecer.

– Mas, Helena! Como vou dizer para o meu chefe um não?

– Bruno, quando você foi contratado, ficou bem claro os seus horários e obrigações?

– Sim

– E nelas, existia algo que falasse que além de seu turno habitual, você deveria responder sempre que solicitado, independente do horário? Estava explicito que deveria trabalhar também no final de semana?

– Bruno ficou pensativo. Ele parecia não ter se dado conta, que responder alguém no whats sobre assunto de trabalho, também era trabalho.

– Pois então, Bruno. O essencial é deixarmos claro os seus limites, inclusive, para o seu chefe, que aparentemente, não parece estar compreendendo eles com clareza.

– Mas, Helena! E se eu for demitido? E se eu tiver que encontrar um emprego pior que esse? E se…? E se…?

Helena conhecia bem aquele medo da mudança.

– Bruno, se você for relevante para a empresa, eles irão lhe ouvir e poderão inclusive se aperfeiçoar com isso, transformando o ambiente de trabalho em um local mais saudável, além de que descansar com qualidade aumenta a produtividade. Existe também a possibilidade de você ser muito relevante, mas, eles só perceberem isso com a sua ausência. E existe a possibilidade de você não ser mesmo tão relevante.

– Como assim, relevante? Questionou Bruno.

– Relevante pode ser compreendido como o quanto de diferencial você tem. O quanto você faz bem feito o que faz. O quanto procura se aperfeiçoar com constância. O quanto a sua falta é sentida.

– Bruno, existem empresas que estão tão aprisionadas ao jogo do lucro, que venderiam a própria mãe, se aquilo garantisse efetividade nos negócios. A essas, não lhe cabe tentar mudar ou fazer ver nada. Cabe-lhe compreender que o seu lugar não é aí. Você está se dando conta de algumas questões importantes, que algumas pessoas preferem inclusive evitar perceber, porque percebe-las é um caminho sem volta.

– A mudança pode parecer assustadora, mas ela não precisa acontecer do nada. Você pode procurar outro emprego, ao mesmo tempo que persiste, tentando verificar se existe a possibilidade de dialogar com o seu chefe. A gente pode trabalhar essas questões de tal modo que você passe a se sentir mais confortável e seguro. Ou você pode escolher não fazer absolutamente nada do que conversamos e se encaminhar para um Burnout.

– Assim você pegará um atestado e passará um bom tempo livre do seu chefe. E mesmo que você quiser responder ele, você não vai conseguir, porque o seu corpo não vai ter energia suficiente nem para isso. A proposta pode parecer tentadora, mas você também não vai ter energia para brincar com a sua filha. Acrescido dos transtornos gerados pelo sentimento de inutilidade e incapacidade. Lembrando que, quando tudo isso passar, se você não for demitido, você vai voltar para o incêndio!

– Sabe, Bruno! Eu ainda acredito que o melhor caminho seja escolher as nossas prioridades. E uma delas, deveria ser você. Perceba, ao se aperfeiçoar, ao ter consciência de si, de seus valores, de seus objetivos, ao investir em si, você investe também em se tornar uma pessoa de valor para outras pessoas, relevante. Às vezes, você pode ganhar até menos dinheiro, em troca de mais tempo com as pessoas que ama, e sentir que o vazio que lhe corrói dia após dia pode ser preenchido. Sabe, por vezes eu considero que ter dinheiro mas não ter tempo, parece ser uma pobreza muito pior.

Bruno só “fazia sim” com a cabeça. Helena sabia que aquele mal-estar demoraria um tempo para ser digerido. Por isso ponderou se devia fazer mais uma observação.

– Há também a outra questão, Bruno. O excesso de informações causa uma pobreza de atenção. E com a falta de atenção os nossos erros tendenciam a se tornar recorrentes, isso aumenta os riscos de desempenharmos um trabalho que não nos cause prazer, além de aumentar os riscos de sermos demitidos. A notícia boa é que a busca por um novo emprego ou até mesmo a proposição de alterações no seu emprego atual, pode nos reportar a rever as nossas habilidades e investir em aprimoramento. Pois, acredite, há sempre algo que possa ser melhorado em nós mesmos.

– E no final, continuou Helena, as mudanças que são inevitáveis, tornam-se menos assustadoras, quando planejamos elas em sintonia com o que somos e com o que buscamos para a nossa vida!

Autora: Ana P. Scheffer. Também publicou no site “A Valentina não irá fazer medicina”: https://www.neipies.com/a-valentina-nao-vai-fazer-medicina/

Edição: A. R.

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