Será que a escola repleta de tecnologias e alunos adestrados para responder textos de avaliações externas são credenciadas a promover educação de qualidade?
Educação escolarizada, em todos os tempos, sempre foi uma assunto digno de atenção, de apreço e de investimento. Por muito tempo, a educação escolar era privilégio de poucos, geralmente das elites econômicas que tinham condições de contratar e pagar tutores ou preceptores para educar seus filhos para que pudessem acessar saberes e conhecimentos das ciências, das artes, das técnicas e da cultura em geral. Quando a educação escolar se tornou pública, resultante das conquistas do pensamento moderno que se deu conta que a inteligência humana não é definida pelo sangue ou pela genética, temos um salto gigantesco que possibilitou o desenvolvimento em todas as áreas do saber e que resultou o aprimoramento técnico e a prospecção das infinitas invenções que possibilitaram a circulação gigantesca de informações e saberes.
Chegamos ao século XXI com uma infinidade monstruosa de aparatos tecnológicos, invenções científicas e possibilidades infinitas de aprimorar os processos educacionais e as formas de convivência humana.
No entanto, se olharmos atentamente para os dias atuais, percebemos que ainda estamos distante de um tão sonhado mundo educacional onde todos indistintamente possam aprender e se desenvolver como seres humanos íntegros. A educação escolar continua sendo o calcanhar de Aquiles da grande maioria dos países, principalmente, os que continuam ostentando as maiores desigualdades.
Quanto maior a desigualdade, maiores as dificuldades de avançar numa escolarização decente que possibilite, principalmente aos mais pobres, terem acesso a uma educação que promova emancipação e autonomia.
No caso do Brasil, os tecnocratas que se apossaram dos espaços políticos de decisão, passaram a difundir a ideia que a educação de qualidade será conquistada quando houver um pleno acesso as tecnologias e quando os alunos tiverem bom desempenho das avaliações de larga escala. E assim, imensos recursos públicos são destinados para aparelhar tecnologicamente escolas e treinar os alunos para responderem avaliações em larga escala, como se educação fosse sinônimo de treinamento.
Mas será que a escola repleta de tecnologias e alunos adestrados para responder textos de avaliações externas são credenciadas a promover educação de qualidade?
Quando a educação descuida da formação ética, instrumentaliza as artes e encarcera o pensamento, poderá produzir os “bárbaros digitais” que promovem a violência virtual ou física, o discurso de ódio que fortalece e dissemina as diversas formas de racismo, xenofobia, misoginia, aporofobia e tantos outros preconceitos que assistimos cotidianamente? São questionamentos e problemáticas pautadas por muitos pensadores, dentre eles Immanuel Kant (1724-1804).
Kant certamente é um dos filósofos mais conhecidos da modernidade. Nasceu em uma Königsberg, na época, uma das principais cidades do império prussiano oriental, conhecida por ser um grande local portuário, onde eram trocadas mercadorias coloniais da região por manufaturas inglesas. Sua vida não registrou qualquer incidente particular, pois teve uma trajetória serena e laboriosa quanto tantos outros filósofos. Trabalhador incansável, consagrou sua vida ao estudo e produziu uma diversas obras filosóficas amplamente mencionadas e estudas na tradição filosófica da modernidade e ainda revisitadas e reinterpretadas na contemporaneidade. Pode-se até dizer que não se estuda a fundo filosofia sem passar por Kant.
Além de ser um dos mais respeitados e lidos filósofos modernos, Kant deixou também um ligado pedagógico, menos conhecido, mas igualmente importante para compreendermos a educação para além e aquém da vala comum.
Kant tem muito a nos dizer sobre educação, pois nos oferece um painel rico e denso sobre como deve ser a educação das crianças e dos adolescente. Em sua obra Sobre a Pedagogia, discute um conjunto de temáticas incrivelmente atuais e pertinentes para pensarmos a educação de nosso tempo. Já na introdução nos diz que “o homem é a única criatura que precisa ser educada” e que “por educação entende-se o cuidado de sua infância, a disciplina e a instrução com formação”. Diferente dos animais que já possui instintivamente os recursos para se defender, as crianças precisam ser cuidadas para que “não façam uso nocivo de suas forças”.
A disciplina faz parte da educação, pois é ela que “transforma a animalidade em humanidade”, possibilita que o ser humano faça uso da razão e, com isso consiga “formar a si mesmo”. É a disciplina “que impede ao homem desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, através das suas inclinações animais”. É a disciplina que submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias leis.
Além de disciplina a educação também é “instrução com formação”, pois o homem não pode se tornar verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação fez dele”.
A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. “Cada geração”, diz Kant, “de posse de conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daqueles”. Para ele, “uma boa educação é justamente a fonte de todo bem neste mundo”.
Uma boa educação do ser humano possui para Kant os seguintes elementos: a) “ser disciplinado”, ou seja, ser capaz de impedir que animalidade prejudique o caráter humano; b) “tornar-se culto”, pois a cultura consiste na criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos; c) “cuidar que o ser humano se torne prudente”, ou seja, possibilitar que cada indivíduo se torne cortês, gentil, saber conviver de forma civilizada; d) “cuidar da moralização”, ou seja, que o ser humano tenha condições e disposição de escolher bons fins, aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.
Educação para Kant não é treinamento ou exercício mecânico. Treinam-se cães e cavalos. Mas o ser humano precisa ser educado, pois “não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar”.
Talvez esse seja o principal desafio do nosso tempo: passados mais de 200 anos dos escritos de Kant sobre educação e ainda tem-se dificuldade de compreender seus escritos, pois para muitos “educação de qualidade é medida pelo treinamento das crianças e adolescentes para responder avaliações de larga escala”.
Ainda não foram dados passos seguros no caminho do “aprender a pensar”. Talvez precisamos estar mais atentos aos formatos educativos que estão sendo postos ou vendidos em nossas escolas, com a retórica que estamos preparando as crianças para o futuro quando sua efetivação poderá produzir os bárbaros digitais que ameaçam a própria humanidade.
De tempos em tempos, surge uma nova mania na educação. Uma febre sazonal. Toda vez promete-se muito e cumpre-se pouco. E dá-lhe estripulias para render matérias na imprensa, sites e redes sociais.. As salas makers, suspeito, são a moda da vez. Assim mesmo, em inglês, para dar pompa às circunstâncias, à espetacularização do momento. (Aleixo da Rosa)Leia mais: https://www.neipies.com/o-curioso-caso-dos-alunos-que-preferiram-os-livros/
Autor: Dr. Altair Alberto Fávero
Edição: A. R.