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Brasil é o terceiro país com menor investimento por aluno

Educação com qualidade social é cara. O Brasil possui uma das maiores demandas por educação básica e superior do mundo por não ter investido em educação do povo ao longo de quase cinco séculos.

Bastou a Conferência Nacional de Educação (Conae) realizada em janeiro de 2024 reafirmar a necessidade do país investir 10% do PIB em educação, ao invés dos atuais 5,4%, que a elite e os representantes do capital tentaram, imediatamente, desqualificar a proposta.

Leia mais: https://www.neipies.com/conae-2024-e-conferencia-nacional-das-juventudes-reafirmam-a-educacao-como-direito/

A Folha de São Paulo foi a primeira a disparar o ataque a proposta de meta de para o financiamento do próximo Plano Nacional de Educação (PNE), para a década de 2024-2034 aprovada nesta última Conae. Esta meta já consta na Lei nº 13.005/2014, descumprida no plano decenal em vigência.

Em seu editorial de 2 de janeiro de 2024, “Educação a sério”, o jornal acusou a proposta de “farsesca” e afirmou que o dispêndio atual “é compatível com o padrão global, seja entre países desenvolvidos, seja entre emergentes”.

A própria Folha, em matéria do dia 12 de outubro de 2023, demonstra que o “Gasto por aluno no Brasil é o 3º pior entre 42 países”, conforme relatório do Education at a Glance 2023 da OCDE.

O Brasil investe o equivalente a US$ 2.981 por aluno ano, que engloba todos os investimentos públicos na educação pública. A média dos países da OCDE é de US$ 10. 510 por aluno, ou seja, quase dois terços a mais que o brasileiro.  Aliás, o Brasil só supera o México e a África do Sul, ficando abaixo da Argentina (US$ 3.367), Turquia (US$ 3.389), Colombia (US$ 3, 497), Chile (US$ 4.867), Costa Rica 9US$ 4.936) e os demais países membros da OCDE, para não comparar com Luxemburgo (US$ 23.548), Coreia (US$ 14.344) ou Finlândia (US$ 12.110).

Já sob o título “Prioridade errada”, o jornal O Estado de S. Paulo, em editorial de 14 de fevereiro de 2024, também retoma a velha discussão sobre a nefasta contraposição entre a educação básica e a educação superior, a qual até já foi revisada pelo Banco Mundial em 2000, em um documento sobre a educação superior, intitulado Higher Education in Developing Countries – Peril and Promise, em que fez a reavaliação dessa contraposição difundida pelo próprio Banco em seus documento.

O Estadão ignora que mais de 95% da pesquisa no Brasil é desenvolvida nas Universidades Públicas com um orçamento que envolve ainda o ensino e a extensão universitária, diferente de outros países que possuem altos investimentos de em pesquisas por outras fontes de países, institutos, doadores bilionários e empresas.

A própria OCDE confirma que o investimento adequado para cada realidade e necessidade histórica do país é fator determinante na qualidade da educação. O Brasil insiste em negar-se a investir o necessário segunda nossa condição histórica e realidade atual. Vejamos outro exemplo: os investimentos no Brasil foram reduzidos entre 2019 – 2020, inclusive na pandemia. Em média, nos países da OCDE, a despesa dos governos com educação cresceu 2,1% neste período e a despesa total dos governos 9,5%. No Brasil, o gasto com a educação diminuiu 10,5% no mesmo período, enquanto o gasto com todos os serviços aumento 8,9%. Isto revela qual era verdadeiramente a prioridade do Estado brasileiro.

Desonestidade intelectual e jornalística

Não é honesto do ponto de vista intelectual e jornalístico analisar o gasto e o investimento em educação abordando o percentual do PIB isoladamente e comparando com outros países. É preciso levar em conta, no mínimo, mais outros fatores, tais como: o tamanho da demanda educacional (a do Brasil é a 3ª maior do mundo), o tamanho da economia e do PIB, a carga tributária do país, os elevados níveis de pobreza e desigualdades de classe, sociais, étnicas e de gênero, entre outras. Assim fizeram países quando promoveram a revolução na educação, como Correria do Sul e Finlândia.

Para Nicolas Davis, estudioso do financiamento da educação, a discussão sobre o financiamento da educação estatal não ficaria completa se não relacionasse as responsabilidades educacionais das diferentes esferas de governo (o governo federal, o do Distrito Federal, os 26 governos estaduais e os mais de 5.568 municipais) com a sua disponibilidade de recursos. Desde a independência brasileira, em 1822, até hoje, sempre houve uma grande discrepância entre essas responsabilidades e a disponibilidade de recursos dos governos.

O governo central/federal, por exemplo, embora detentor de uma maior parcela das receitas governamentais, nunca assumiu constitucionalmente a obrigação de oferecer educação básica para toda a população, deixando-a a cargo dos estados e municípios, geralmente menos privilegiados.

No Brasil, historicamente, as elites e os donos do capital preferem subsídios para o agronegócio, a indústria, falência de empresas por má gestão, setor serviços, emendas parlamenteares, fundo eleitoral astronômico, isenção de impostos para igrejas, clubes de futebol e de tiros, entre tantos outros, do que investir seriamente em educação, ciência, tecnologia e cultura. Nosso modelo de capitalismo é financiado pelo estado e os fundos públicos são destinados prioritariamente para sua reprodução.

Manifesto contrapõe jornais

A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da educação (Fineduca) contrapôs tecnicamente estes posicionamentos representados pelos jornais a Folha e o Estadão, demonstrando que o Brasil possui uma das maiores economias do mundo e tem capacidade financeira para investir ainda mais em educação.

É necessário ter visão e fazer uma opção política do que é verdadeiramente prioridade para a nação brasileira e para as gerações presentes e futuras. “A educação pública brasileira costuma ser um terreno fértil de erros e inversão de prioridades que geram atrasos e desigualdades, impondo um horizonte sombrio para milhões de crianças e jovens”, complementa a manifestação pública da Fineduca.

Sobre os investimentos educação necessário no próximo PNE (2024 – 2034, os pesquisadores reafirmam que o “Brasil possui riqueza para realizar a aplicação de valores equivalentes a 10% do PIB em educação pública” e, como fez a Conae, indicam possíveis fontes de financiamento da educação, C&T. E, também, se posicionam dizendo que “é chegada a hora de priorizar a Educação no processo de desenvolvimento social e econômico do Brasil.

E mais, pesquisadores perguntam: até quando o Brasil terá que esperar para iniciar, seriamente, a priorização da educação de sua população? Se nada for feito nas próximas décadas, diversas gerações poderão ser consideradas perdidas educacionalmente, reproduzindo a histórica exclusão social e educacional. Por isso, a hora de virar a chave é agora, com o respaldo do PNE (2024-2034).

A geração atual será cobrada pelas gerações futuras por não ter aproveitado a Riqueza Natural brasileira, por não iniciar, já, esse processo, fundamental para o Desenvolvimento Social e Econômico brasileiro” (manifestação pública da Fineduca).

Porém, uma estratégia de desconstruir propostas e planos de educação, seja no âmbito nacional, regional ou local, é desqualificar as construções coletivas e as deliberações de conferências, os estudos, os debates como os da Conae 2024, ou utilizar algumas estatísticas de forma desvirtuada conforme interesses específicos.

Brasil da desigualdade

No país da desigualdade, a forma como os dados educacionais brasileiros são priorizados, destacados e divulgados induzem, geralmente, a conclusões imparciais, pontuais e insuficientes para produzirem uma compreensão global dos verdadeiros impactos da educação na vida das pessoas e na estrutura da sociedade brasileira.

Cabe relembrar que, a educação, é um processo complexo que requer análises e evidências ancoradas em processos e séries históricas de médio e longo prazo.

Nesta perspectiva, sugiro o clássico livro intitulado Como mentir com estatística, escrito por Darrell Huff, publicado em 1954 nos Estados Unidos. Nele, o autor demonstra de forma muito direta como números que parecem tão fortes são na realidade frágeis, quando não totalmente falsos, formando castelos de areia que ruirão após uma análise mais detalhada, ampliada e desprovida de ideias preconcebidas.

Por fim, em artigo resposta ao editorial da folha no dia 12 de fevereiro de 2024, os pesquisadores Miriam Fábia Alves (Presidente da Anped) e Nelson Cardoso do Amaral (presidente da Fineduca), entendem que está em jogo na Conae a construção de um projeto de país com propostas robustas e ambiciosas que coloquem a educação como protagonista no desenvolvimento social e político brasileiro, com justiça social, ambiental e equidade.

Assim, o texto-base ao PNE 2024 – 2034 avança em aspectos como a transição ecológica e o desenvolvimento sustentável. Complementam ainda os pesquisadores – considerando que este texto subsidiará o projeto de lei do governo federal a ser apreciado por um Congresso Nacional conservador –, ser essencial que ele expresse tudo o que a sociedade brasileira de fato almeja e precisa para o desenvolvimento educacional e democrático do país.

Precisamos fazer uma opção agora: investir mais em um projeto de educação de qualidade no Brasil ou será a barbárie social. A opção e decisão é nossa, agora, já!

FONTE: https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2024/03/brasil-e-o-terceiro-pais-com-menor-investimento-po

Autor Gabriel Grabowski, professor, pesquisador. Também publicou no site Juventudes dispensadas: https://www.neipies.com/juventudes-dispensadas/

Edição: A. R.

Censura e perseguição ideológica na terra gaudéria

Mais uma vez, o nosso Estado frequenta, com destaque, a cena nacional em ataques à cultura. Mas como nos diz Charles Bukowski, “não há problema que a leitura não possa solucionar”.

No dia em que o TCU divulgou relatório que o Exército concedeu registros de CACs a 5.235 pessoas condenadas por tráfico de drogas, homicídio e lesão corporal; na terra dos preadores de gado selvagem, para tirar o couro e vender, o debate era a censura do livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório.

Para os desocupados da pampa moderna 1,5 mil pessoas com processos de execução penal e 2,6 mil foragidos da Justiça com registros de armas dados pelo Exército Brasileiro são assunto de menor impacto e poder ofensivo. O que é “ofensivo” na terra da escravidão contemporânea é uma passagem “erótica” de um já clássico livro de nossa Literatura, um livro norteador em narrativa romanceada do racismo estrutural.

Nosso autor tem razão quando diz que alguns palavrões chamaram mais atenção do que o racismo, foco da sua narrativa. Ou melhor, muitos que brandiram armas contra o romance de Jeferson Tenório nem leram este ou outro romance nos últimos tempos. Se acharam passagem erótica no texto é porque nunca leram Jorge Amado e Nelson Rodrigues.

Como uma professora e uma diretora de Literatura Brasileira de Santa Cruz do Sul, cidade que tem uma Universidade de primeira grandeza, numa região de forte e arraigada formação cultural podem cair a tão baixa apreciação de uma obra. Pior do que elas foi o coordenador da 6ª Coordenadora de Educação mandar recolher os livros. Em boa hora, a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul decidiu que o livro deve circular e ser lido.

Como já disse no dia em que as atenções deveriam estar voltadas para o descalabro do desserviço do Exército Brasileiro em liberar armas para marginais, o tempo precioso foi ocupado em atacar um livro que esta gente que critica nunca leu.

Por isso, louvo que o autor, sua editora, o MEC e o governo federal expressaram repúdio à atitude da diretora em tentar proibir a leitura desta obra magistral.

Pude contraditar colega na Câmara, lancei nota pública de repúdio a esta escumalha intelectual e falei em emissora de TV: “Censura Nunca Mais”! Não podemos nos calar. Temos que falar, temos que lutar pela leitura.

Esperamos que este lamentável episódio faça com que mais e mais pessoas se interessem pela obra do autor, que isto leve a mais leituras, criando leitores/as ativos/as, conscientes da importância da LITERATURA.

Dias atrás já tínhamos tido na Serra gaúcha a perseguição à indicação de Boca Migotto para patrono da Feira do Livro de Carlos Barbosa.

Vale a pena buscar nas mídias sociais deste autor e cineasta suas razões para, depois da perseguição, voltar as costas aos seus perseguidores.

E foi mais uma vez na Serra, onde tivemos, no ano passado, os lastimáveis casos de Escravidão Contemporânea, que gerou um livro homônimo meu. Neste ano, além desta perseguição, novos casos de escravidão surgiram na região.

Mais uma vez, o nosso Estado frequenta, com destaque, a cena nacional em ataques à cultura. Ninguém esqueceu a censura a obras no Santander Cultural, no episódio chamado “Queermuseu”. Sempre por aqui….

Por isso, estou cada vez mais convencido do necessário Movimento pela Leitura, qualquer leitura, em qualquer espaço e lugar.

Jovens, qualquer pessoa na verdade, devem ser instigados a ler. Tudo indica que a Câmara Rio-grandense do Livro vai adotar a partir da Feira do Livro de Porto Alegre – 2024-25 como o Ano da Leitura.

As Frentes Parlamentares do Livro e da Leitura devem existir em todas as Câmaras.

Que se criem mais Academias, Clubes de Leitura, bibliotecas comunitárias, que a biblioteca seja um espaço privilegiado nas escolas.

Que mais e mais feiras de trocas sejam feitas. Que surjam novas feiras do livro.

Que este triste episódio sirva para um grande debate sobre a literatura rio-grandense que retoma com força e vigor lançamentos de primeira grandeza como é este livro de Jeferson Tenório e os de José Falero, para citar dois autores de projeção nacional.

No atual estágio de nossa literatura é grande o número de mulheres publicando, na cabeça das entidades, como a AGES – Associação Gaúcha de Escritores – que fará encontro estadual em maio na capital do livro que é a pequena cidade de Morro Reuter.

Um exemplo posso dar a partir de minha experiência: em Porto Alegre, a cada mês aos sábados se realiza uma Feira no icônico Chalé da Praça XV em pleno Centro Histórico com um estrondoso sucesso.

Não há problema que a leitura não possa solucionar” nos diz Charles Bukowski. E é mesmo.

Censura Nunca Mais!

Autor: Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito. Também publicou no site crônica Ler, escrever e publicar: https://www.neipies.com/ler-escrever-e-publicar/

Expectativas e Perspectivas

Ao refletirmos sobre expectativas e perspectivas precisamos circundar os conceitos.

As expectativas se apresentam em um cotidiano contínuo, como parte das nossas intenções e necessidades. Fazem parte da nossa condição humana. Somos seres de desejos, desejantes e desejados. Nossa vontade, escolhas e circunstâncias condicionam nossas ações e alimentam nossas expectativas.

As perspectivas, em uma outra dinâmica, abrem horizontes ou, estreitam caminhos, com base nas contingências, uma vez que nem tudo se realiza conforme nossa vontade e desejos, porque nem todos os nossos projetos dependem exclusivamente de nós.

Essa dinâmica, experimentada em nossa condição humana, é substantiva e necessária na vivência de todos os momentos, ressignificando acordos que fizemos conosco mesmos. Tudo isso desenha novas expectativas e perspectivas.

Se somos sujeitos de desejos, expectativas e perspectivas, somos seres em movimento de pensamento e de ação. Desse modo, podemos agir compreensivamente com a outras pessoas, em situações de cuidado e acolhida.

De uma forma ou de outra, partilhamos os mesmos limites existenciais, como as formas de alegria e de tristeza, que podem ter motivos diferentes, ainda que a experiência desses sentimentos afete a todos os humanos, no tempo de suas vidas.

Diante disso, delineiam-se expectativas e perspectivas de avanços em vários aspectos de nossa história de vida. Se forem realizadas, nos sentiremos agraciados, se ocorrer o contrário, o sentimento de frustração aparece, diante da reversão do esperado.

Ortega y Gasset tem uma frase lapidar: Eu sou eu e as minhas circunstâncias. Ou seja: as esferas da vida, nas quais estamos envolvidos, evidenciam nossas escolhas, condicionadas às circunstâncias. Não se trata de nenhuma espécie de determinismo, mas revela os limites da nossa condição humana. Tais circunstâncias influenciam nossas expectativas e perspectivas, que orientam nossos projetos. Redefine-se a consigna de Hegel, de que tudo está ligado a tudo, na totalidade do processo da história humana.

Diante de tais evidências, nossas expectativas e perspectivas necessitam de uma certa dose de bom senso, para que as frustrações não aumentem. Afinal, não buscamos a felicidade absoluta. A busca humana é de uma felicidade possível e de uma serenidade inteligente, como desafio do tempo em que vivemos.

Em uma longa jornada, nas continuadas décadas vividas, entre mudanças de costumes e fatos diversos, os que vivem há mais tempo apresentam alguma dificuldade a respeito da continuidade da própria vida e dos que com eles convivem. As dificuldades surgem desde os monitoramentos diários da saúde até o acompanhamento das novas tecnologias, tal como a identificada IA, inteligência artificial.

Podemos ter uma certa reserva com essa denominação, porque se formos à origem do termo latino intus legere – ler dentro, compreender a realidade por dentro, podemos observar que se a IA não for alimentada pelo cérebro humano, não fará leitura nenhuma do real. Logo, a IA necessita da inteligência natural para ser eficaz. Desse modo, torna-se importante entendermos as coisas do tamanho que elas são, sem superdimensionamentos.

Enfim, digressões à parte, falemos de expectativas e perspectivas.

Os idosos, no movimento do saber e do envelhecer se envolvem mais com expectativas do que perspectivas. Adultos, jovens, crianças vivem simultaneamente as duas dimensões, esperam e projetam desejos, sonhos, futuros indecifráveis. Isso não significa dizer que os idosos não sonham e não têm projetos. Apenas, sublinhar que o tempo deles é menor para viver, face ao já vivido.

Trata-se de observar que, na velhice, as perspectivas se estreitam e as expectativas nem sempre se realizam. Desencontros ocorrem. Há vários fatores inesperados que produzem reversão de expectativas.

Expectativa diz respeito a um tempo de espera, que pode ser associada à dimensão de esperança, de promessa, de probabilidade. Perspectiva dimensiona novos cenários e novos alinhamentos. Refere-se a pontos de vista, desenvolvimento e crescimento. Alargam-se espaços.

Ao refletirmos sobre expectativas e perspectivas precisamos circundar os conceitos. Na experiência da vida prática, em que a retórica ocupa um lugar menor, podemos alinhar expectativa relacionada às questões singulares, ocasionais, sejam traduzidas em acontecimentos, ou em comportamentos advindos de pessoas, concretamente. A perspectiva tem um grau de amplitude, no horizonte do tempo, modulando-se em várias dobras, que se desenrolam à medida em que se realizam.

Ambas estão presentes em nossas vidas.

Autora: Cecilia Pires. Também publicou no site Direitos humanos: porque são imprescindíveis: https://www.neipies.com/direitos-humanos-porque-sao-imprescindiveis/

Edição: A. R.

Por que (não) contar histórias!?

As bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com as vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções e danças entremeadas às narrativas (Cecília Meireles).

Nesse breve texto, vamos nos concentrar aos que se dedicam a contar histórias, à viva voz, a uma pessoa e/ou a um grupo, buscando estimular a fantasia criativa, a emoção e o conhecimento. A partir dos livros, os contadores e as contadeiras de histórias dão vida sonora aos textos narrativos e poéticos, introduzindo, de forma sutil, os ouvintes ao maravilhoso mundo da leitura.

A arte de contar histórias é uma das mais antigas, assim como a dança e a música. Os primeiros cenários lembram as civilizações que viviam nas cavernas. Era comum crianças, jovens, adultos e idosos participarem de rituais noturnos em torno de fogueiras, onde todos ouviam histórias contadas por sábios e comunicativos feiticeiros da palavra falada.

Os dramas narrados possuíam geralmente a marca do mítico, tendo-se em vista que buscavam dar sentido aos mistérios insondáveis da natureza, como a criação do universo e dos humanos, o casamento entre o céu e a terra, o surgimento do dia e da noite, o aparecimento e o desaparecimento do sol e da lua, dentre tantos outros enigmas até então. Esses antigos contadores de histórias, chamados Aedos, arrastavam multidões, pois elas tinham suas expectativas atendidas, dando sentido à vida que levavam. Pelo menos havia uma explicação razoável ao mundo das trevas daqueles tempos.

No entanto, o tempo agora é outro. Temos aviões a jato, foguetes interplanetários, computadores, celulares, NET, Internet, IA, dentre outros recursos tecnológicos. Mesmo assim, as histórias narradas e os poemas recitados pelos Aedos modernos ainda continuam encantando crianças, jovens e adultos e idosos, quer no berço das famílias, nas escolas, nas enfermarias dos hospitais, nas Academias de Letras, nos clubes de serviços, nas fábricas, dentre tantos outros espaços culturais.

Na verdade, tais cenários de encantamento constituem as portas de entradas ao maravilhoso mundo das fábulas, das histórias de quadrinhos, dos contos, das crônicas, das lendas e poemas, das parlendas e dos trava-línguas. Nesta perspectiva, os Aedos modernos comunicam, de forma prazerosa, três fontes de histórias: as vivenciadas, as ouvidas e as lidas a partir dos textos literários.

Para a Profa. Eliana Nunes, as histórias chamam outras histórias e nos marcam existencialmente:

As histórias, as de ficção mais que outras, quando passam de boca aos ouvidos, vão deixando em nós o gosto por mais histórias. Histórias dos homens, histórias da vida e história do mundo. Por isso, há milênios de anos, quando não havia a escrita impressa e os códigos alfabéticos estavam nas mãos de poucos, a experiência e a reflexão ganharam caminhos nas vozes dos contadores de histórias. Foi assim que não perdemos a memória e, até hoje, o que entra pelo coração não se perde mais. (São Paulo: Scipione, 2000, p.47.)

Crianças, jovens, adultos e idosos, quando ouvem histórias, tendem a se introduzir no enredo, incorporando a figura do herói, do vilão, da princesa, da fada e da bruxa feiticeira, dentre outros. Assim, usando a imaginação, os Aedos tornam-se agentes da ação e passam a interpretar mentalmente o que ouvem.

Nessa ótica, cada história narrada passa a oferecer a possibilidade de trocas de vivências e saberes de forma lúdica, transformando num jogo que, no fundo, constitui aprendizado, visto que a arte de contar histórias leva os ouvintes a encararem seus erros, a lidarem com a experiência antecipada da traição, do amor, dos sofrimentos e das realizações. Por isso é que se diz: – o Então viveram felizes para sempre!

Para BETTELHEIM, na tradicional obra A Psicanálise do Conto de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 191, revela:

Os contos de fada constituem experiências antecipadas dos fatos da vida real, cujos sujeitos leitores/ouvintes aprendem bem, com segurança e auto-respeito.

Além de resgatar a memória e estimular o imaginário, a contação de histórias exige poucos recursos materiais para sua aplicação: leitura literária, indo-se às fontes, voz, boa memória, domínios faciais e corporais.

Há que se reconhecer também que as ações de contar histórias, quer memorizadas, quer lidas, estimulam o senso de humanização entre o narrador, os receptores e o universo labiríntico dos textos literários. No entanto, não se pode minimizar a força dos modernos meios de comunicação de como suportes importantes no processo de transmissão de prazer, emoção e sabedoria.

A exemplo da princesa e contadeira de histórias Sherazade, das Mil e Uma Noites, que se salvou da fúria assassina do Rei Sharyar por contar histórias a ponto dele ficar tão encantado com a moça e não matar mais ninguém, os pais, professores e animadores também podem salvar-se e salvar seus interlocutores, contando histórias que os conduzam ao bom caminho da leitura, do discernimento e da sabedoria.

Assim, haverá um encantamento recíproco a favor da comunicação humanitária. Ademais, os novos e atualizados Aedos, ao contarem histórias e recitarem poemas, continuarão encantando multidões com frases mágicas do tipo “Abre-te, Sésamo”! E a porta se abre. E a bruxa continuará a recitar abracadices do tipo “Abracadua no meio da lua, transforma a bruxa numa perua”! Contarão a história do Reizinho Mandão e do Pirilampo, “aquele que entrou por uma porta, saiu pela outra, quem quiser que conte outra”.

Então, senhores e senhores e estimável público! Por que (não) contar histórias e recitar poemas se foram escritas para serem ditas, benditas e repetidas mil e uma vezes com absoluto encantamento?

– Conta outra vez, pedem crianças, jovens e idosos.

A seguir, algumas dicas para ser um bom contador ou boa contadeira de histórias:

1- O ato de contar histórias pressupõe amor a quem se conta;

2- o contador e/ou contadeira de histórias e poemas é antes de tudo um(a) leitor;

3- para memorizar uma história, ou um poema, é necessário que passem pelo caminho dos olhos e ouvidos para guardá-las na porta do coração;

4- selecionar as histórias do seu gosto, acreditando agradar também os ouvintes;

5- isolado(a) da agitação das pessoas, repetir as histórias e os poemas muitas vezes, falando ao espelho e às paredes;

6- durante os ensaios convidar alguém para ouvir e avaliar seu desempenho;

7- quando contar a história, ou recitar um poema, buscar o máximo de naturalidade, tal como se estivesse contando um caso que aconteceu de verdade;

8- ao contar uma história, dar entonação à voz de acordo com o clima da narrativa: se for alegre, tonalidade alegre; se for triste, tonalidade tristonha; se for suspense, faça suspense;

9- olhar sempre para os olhos dos ouvintes. Assim, a história sairá dos lábios e entrará pelos olhos, ouvidos e pele, buscando sempre concentrar os ouvintes interessados no tempo da contação ou recitação;

10- como panelas velhas, quanto mais contarmos histórias e recitarmos poemas, mais melhoradas ficarão.

Era uma vez… Naquele tempo…

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também publicou crônica Lenda São Sepé Tiaraju: https://www.neipies.com/lenda-de-sao-sepe-tiaraju/

Edição: A. R.

Por que Dia Internacional da Mulher?

O Dia Internacional da Mulher não surgiu por causa de uma tragédia, mas pela luta, mobilização e engajamento político das mulheres trabalhadoras e a relevância das causas feministas que foram acontecendo ao longo dos anos, sobretudo do século XX.

O Dia Internacional da Mulher é um dia de luta histórica e mobilização das mulheres para terem seus direitos garantidos e contra todo tipo de violência, preconceito, desigualdade e discriminação de gênero. Está relacionado ao dia 8 de março de 1857, pela importância e construção política, relacionada à sequência de acontecimentos como momento de reflexão e de luta.

A data remonta a dois acontecimentos que macularam a cultura ocidental. O primeiro em 1857, com um trágico martírio de 132 operárias de uma fábrica têxtil, que foram assassinadas por um incêndio covarde e criminoso, praticado pelos donos dessa fábrica, da cidade de Nova York, EUA, onde elas trabalhavam. O segundo acontecimento, um incêndio intencional, no dia 25 de março de 1911, na Triangle Shirtwaist Company, em Nova York, vitimando 146 pessoas (125 mulheres e 21 homens), que no momento em que a Triangle pegou fogo, as portas estavam trancadas e as mulheres morreram carbonizadas. Evidenciou a precariedade do trabalho e a luta operária de movimentos organizados pelas mulheres.

Esta data só foi reconhecida, definitivamente, como um acontecimento negativo para a vida das mulheres que lutam por direitos humanos fundamentais, em 1975, quando foi oficializada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

A escolha do calendário se deu antes do ano de 1975, e remonta ao dia 8 de março de 1917, com a greve geral das operárias russas.

O que comemorar nesta data?

Essa pergunta não é retórica, mas exige uma reflexão, porque o dia 8 de março é um dia de memória às vítimas da lógica perversa do capital, que não suportou as reivindicações dessas operárias por redução de horas de trabalho e por uma relação de trabalho digno. Essas tecelãs queriam dignificar o trabalho, como garantia da vida, gerando mais vida. Os donos dos meios de produção das fábricas estavam cobertos por um mantra ideológico, ao afirmarem que o trabalho dignifica o ser humano. O grito das tecelãs contrariou esse mantra liberal: como poderia ser digno esse trabalho da fábrica têxtil, que exigia delas 16 horas de trabalhos diários? A resposta dos donos da fábrica não foi de diálogo e muitos menos de escuta, mas foi pôr fim à fábrica e às operárias, ateando fogo na indústria têxtil.

É importante salientar que o Dia Internacional da Mulher não surgiu por causa de uma tragédia, mas pela luta, mobilização e engajamento político das mulheres trabalhadoras e a relevância das causas feministas que foram acontecendo ao longo dos anos, sobretudo do século XX. Todo este movimento feminista continua dando importância ao “8 de março”, agregando outras agendas, tornando um dia de reflexão, de luta e de reinvindicações, em prol das causas das mulheres.

É muito oportuno perguntar: dar flores para as mulheres, no dia 8 de março, é reconhecê-las como sujeito ético de direito?

Fazer festa e dar presentes, nesta data, para mulheres, esquecendo de fazer a memória histórica das suas lutas, pode ser um ato alienador que encobre a vida e a luta dessas operárias que foram queimadas vivas.

Neste dia 8 de março de 2024, é um momento histórico desafiador. Reforçamos o convite à reflexão de como as lutas das mulheres se ampliaram e, ao mesmo tempo, sofrem entraves quanto: a presença e a relação das mulheres no mercado de trabalho; como a nossa sociedade as trata e como as políticas são discriminatórias; como são as relações no campo do convívio afetivo, familiar e social; como se reproduz a violência de gênero e o silenciamento que normaliza desigualdades e injustiças sofridas pelas mulheres.

Juntemo-nos à luta de tantas mulheres, que no mundo todo, através de seu ativismo crítico, seja na arte, na cultura, na ciência, na literatura, nos sindicatos, nos movimentos sociais populares etc., continuam impulsionando a luta de tantas mulheres hoje, instaurando processos de transformações socioculturais.

Para nomear algumas mulheres que protagonizaram com seus discursos e práticas potentes iniciativas para a emancipação das mulheres, são elas: Angela Davis, Dandara, Malala, Frida Kahlo, Maria da Penha, Simone de Beauvoir, Margarida Alves, entre tantas outras. Eis o convite para ampliarmos esta lista de nomes que podem nos subsidiar com suas ferramentas de inclusão e apressar a justiça social e a construção de relações horizontais e equitativas de poder entre mulheres e homens.

Assim, libertar as forças produtivas é fazer um recorte de gênero, de raça e de classes para protocolar definitivamente a emancipação das mulheres que ainda reivindicam por justiça, respeito a sua dignidade humana. E fica o imperativo: enquanto as mulheres não forem emancipadas, os homens não serão livres!

Autora: Nilva Rosin [1] e autor: José André da Costa [2]

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[1] Professora de Filosofia e Musicoterapeuta. Tem atuação, estudos e pesquisas em Envelhecimento Humano, Feminismo, Direitos Humanos e Educação Popular. É membro da Congregação das Irmãs de São José.

[2] Professor de Ciências Sociais e Filosofia do Direito nas Faculdades Integradas da América do Sul (Integra), de Caldas Novas, GO. É membro dos Missionários da Sagrada Família.

Edição: A. R.

A ponte entre os terreiros de matriz africana e o Sistema Único de Saúde (SUS)

Pouco se fala, mas os diferentes espaços, comunidades, templos religiosos de matriz africana e indígena, no Brasil, sempre estiveram no lugar de um primeiro degrau para a cura de problemas não só espirituais, mas também emocionais.

Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) reconheceu os terreiros como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do Sistema Único de Saúde, o SUS. Essa decisão ressalta o papel histórico dos diferentes espaços, comunidades e templos religiosos de matriz africana e indígena no Brasil.

Dentro desses espaços, pais e mães de santo oferecem um ombro amigo para dores que podem levar ao adoecimento físico e mental. “Se a cabeça não está em sintonia com a vida, com as relações afetivas, o corpo adoece”, destaca Maria Heloísa de Oxum, Ialorixá e técnica de enfermagem do Ile Axé Alaketu Oju Oxum, na Zona Leste de São Paulo. A falta de suporte afetivo e espiritual, enfatiza, frequentemente leva a doenças e, às vezes, até a morte.

Contudo, como o terreiro é um corpo-território-negro, o racismo e a falta de divulgação de seu papel biopsicossocial têm impedido o reconhecimento pleno de seu poder de cura.

A Resolução 715 do CNS, de 20 de julho de 2023, destaca a importância das religiões afro como complementares ao SUS. Em alinhamento com a Constituição Federal de 88 e a Lei Federal nº 8.080/1990, a Resolução estabelece a saúde como um direito universal, ressoando com as políticas de saúde dos terreiros de diversas religiões irmãs.

A resolução aborda a ideia de que locais como terreiros têm sido portas de acesso para os mais necessitados, e define os terreiros como equipamentos promotores de saúde. Além disso, os itens 47 e 48 fortalecem o protagonismo popular nos territórios do SUS, combatem o idadismo estrutural e promovem a intergeracionalidade.

Para a cultura de terreiro, o adoecimento é uma consequência de fatores biopsicossociais. Daniel Pereira, Babalorixá da CREIA Oxaguiã, celebra a resolução como um reconhecimento das práticas terapêuticas já existentes nas comunidades de terreiro. Ele aponta que os terreiros muitas vezes preenchem lacunas deixadas pelo poder público, funcionando como verdadeiros prontos-socorros. “Seja [atendendo] filhos e filhas de santo ou pessoas que buscam o terreiro esporadicamente.”

Ialorixá Nádia Ominodô de Ologunedé, historiadora, palestrante, ativista e funcionária pública, concorda com Pereira, afirmando que o reconhecimento faz justiça ao trabalho de cura promovido pelos terreiros, especialmente no campo emocional e espiritual.
A decisão do CNS representa um passo significativo no reconhecimento e inclusão das práticas de cura desenvolvidas silenciosa e respeitosamente pelas comunidades e pelos povos tradicionais de terreiro. É uma afirmação poderosa de uma saúde verdadeiramente inclusiva que leva em consideração a rica tapeçaria cultural e espiritual do Brasil.

Para Ipácio Carolino, Babalorixá e Cacique de Umbanda, o reconhecimento dos terreiros como espaços de cura representa reafirmar, dar visibilidade, tornar de conhecimento público aquilo que nós, povos de terreiro, sabemos desde sempre, que a saúde deve ser considerada em três dimensões: corpo, mente e espírito.

A fé (espiritualidade) é uma ciência ancestral e não pode ser desconsiderada ou descartada, muito pelo contrário, deve somar-se à ciência médica atual no processo de promoção e manutenção da saúde, assim como numa possível cura de doenças.

Nós, adeptos das religiões de matriz africana ou afro-indígena brasileira, adoecemos e procuramos médicos, hospitais, psicólogos… Assim como esses profissionais da área de saúde, quando afetados, também recorrem aos nossos terreiros.

Proposta de atividade pedagógica

Sugerimos que, após leitura deste texto, os estudantespodem fazer uma pesquisa sobre como outras tradições religiosas desenvolvem práticas de espiritualidade em situações como vida, gratidão, alegria, tristeza, acidentes, doenças, fenômenos da natureza, de forma individual ou coletiva.

Os estudantes podem ser divididos em grupos, conforme relação de religiões ou tradições a serem pesquisadas. 

Esta atividade contempla as habilidades (EF07ER02RS-01) Identificar práticas de espiritualidade vivenciadas em situações, tais como: vida, gratidão, alegria, tristeza, acidentes, doenças, fenômenos da natureza de individual ou coletivas e EF07ER02:  Identificar práticas de espiritualidade utilizadas pelas pessoas em determinadas situações (acidentes, doenças, fenômenos climáticos).

FONTE: Revista Radis: https://radis.ensp.fiocruz.br/opiniao/pos-tudo/a-ponte-entre-os-terreiros-de-matriz-africana-e-o-sistema-unico-de-saude/

Autor: Sinei Nogueira, Babalorixá da CCRIAS — Comunidade da Compreensão e da Restauração Ilê Axé Xangô (CCRIAS), doutor em Semiótica e Linguística Geral (FFLCH/USP), escritor e finalista do Prêmio Jabuti, em 2020, com o livro Intolerância Religiosa. Texto originalmente publicado no site de Carta Capital (15/08).

Edição: A. R.

Rio morto

(Dedicado ao Rio Passo Fundo)

Marulhas

mas não enganas:

estás morto!

Rio de todas as águas,

profundidade comezinha

de quem atulhado

mal consegue ver o caminho,

através das águas turvas

nas curvas que faz.

Juntas todo o rebotalho

que o trabalho

– a faina inútil de todos os dias –

acumula e faz de ti lixeira.

Tuas pedras

se confundem com latas;

tuas margens incertas

têm capim

– até demais.

Sobre as quais

às vezes avança,

ponta de lança,

a alcançar quem o maltrata

o malbarata

com túneis, canais e desvios

enquanto o que há de bom nos rios

– peixes e água limpa –

ninguém consegue ver.

Pescar de tuas margens,

namorar molhando os pés,

lavar em ti a roupa

que de tão pouca

não consiga te poluir,

antes nos faça cheirar a natureza,

das profundezas de onde vens,

cantando desde as fontes

“habitando a distância de ermos montes

onde os momentos

são a Deus chegados.

E como criança avança

cidade adentro.

Vais de todos recebendo o que há de pior

– incurável desamor de quem até os filhos

sabe desamar.

Nos longes da cidade

por onde sais e te vejo passar

já não vais mais cantando

nem marulhando.

Vais embora a chorar.

(do poema Meu pensamento é um rio subterrâneo, de Fernando Pessoa)

Sobre as fotos: as imagens que ilustram esta poesia foram gentilmente cedidas pelo fotógrafo de nossa cidade, Diogo Zanatta. Foram captadas por suas lentes em setembro de 2011, revelando a situação dramática que o Rio Passo Fundo estava passando, sobretudo pelo acúmulo de toneladas de lixo nele depositados ao longo de seu percurso pela cidade. À época, esta triste realidade foi retratada por diferentes formas e meios de comunicação, através de reportagens, o que gerou grande comoção e engajamento para a retirada deste lixo acumulado. O Rio Passo Fundo, hoje, continua recebendo resíduos e esgoto em seu leito, gerando preocupações ambientais e sociais. Muito longe ainda de ser um rio que é bem tratado e conservado pela população passofundense.

Autor: Júlio Perez. Autor da poesia “Eu e os da minha geração”: https://www.neipies.com/eu-e-os-da-minha-geracao/

Resultados de site apresentados a gestores públicos

Em recente visita ao prefeito municipal do município de Marau, Iura Kurtz, norte do RS, foram apresentados números de acessos às publicações do site, projeções e projetos futuros, bem como foram reafirmados os compromissos desta ferramenta digital a serviço da humanização da educação.

Orgulhamo-nos pela trajetória de 09 anos projetando, construindo e publicando este site, através de muitas parcerias. Nos constituímos uma referência, uma ponte ou uma forma de conectar aqueles e aquelas que desejam publicar com aqueles/as que desejam ler e refletir sobre temas que abordam sobre educação, cidadania e espiritualidade.

Já são mais de um milhão e 10 mil acessos no site, construído com muita dedicação e responsabilidade e, com especial atenção, servindo aos interesses daqueles que lutam pela qualidade da educação e fazem de sua profissão uma missão de vida: os professores e professoras. As publicações também buscam despertar consciência cidadã e responsável junto aos estudantes (ensino médio e ensino superior), bem como junto às diferentes lideranças sociais, culturais e religiosas.

Escolhemos como símbolo do nosso trabalho um cata-ventos, pois acreditamos que devemos estar abertos à possibilidades de interação e integração dos saberes e sabores que vem da vida e da natureza, permanentemente. Cumprimos função de irradiar diferentes conhecimentos, respeitando a diversidade dos pensamentos, a riqueza das diferentes formas e abordagens, o protagonismo de cada Convidado e Convidada que escreve no site.

Na oportunidade, Iura Kurtz, prefeito de Marau em seu segundo mandato, destacou a importância de estar realizando uma gestão pública focada na resolução de problemas, no atendimento às demandas da comunidade marauense e na melhoria de condições de vida e bem-estar de toda população. Destacou a importância da Prefeitura Municipal como uma aliada da comunidade para a melhoria das condições do desenvolvimento econômico e social de cada município.

Reforçamos, também, a importância de uma educação capaz de humanizar, através dos conhecimentos críticos e reflexivos, as futuras e as atuais gerações.

Seguiremos visitando outros gestores municipais e divulgando os resultados e os impactos deste site como uma ferramenta importante para a melhoria da qualidade da educação a partir dos sujeitos envolvidos: os professores e professoras, os estudantes e as comunidades.

Edição: A. R.

Educação como conversação e redescrição do mundo

Ao invés de uma sociedade competitiva, individualista, consumista, xenofóbica, misógina e racista, na perspectiva de Rorty é possível esperançar uma sociedade solidária, inclusiva, tolerante e dialógica. Talvez assim tenhamos chances de não sucumbir enquanto civilização.

Richard Rorty (1931-2007) é reconhecido como um dos filósofos mais brilhantes e polêmicos da tradição americana do final do século XX e início do século XXI. Sua obra Filosofia e o espelho da natureza, publicado em 1979, vislumbrou o mundo acadêmico e foi amplamente traduzida em diversas línguas. Desde então até sua morte em 2007, desenvolveu um intenso debate em revistas especializadas em filosofia, ciências sociais e políticas, educação e teoria literária.

Para além dos trabalhos especializados, Rorty se transformou também em um dos melhores escritores dos chamados filósofo-literários dos maiores jornais do mundo, inclusive no Brasil, onde foram publicados diversos textos de sua autoria na Folha de São Paulo.

O interesse por esse autor se dá pelo fato que seus escritos revelam uma profunda e intensa capacidade de dialogar tecnicamente com as duas grandes escolas do pensamento ocidental atual: a filosofia analítica e a filosofia continental. Em suas diversas conferências, publicadas posteriormente em diversos livros, é possível ver um autor que passa com facilidade da terminologia de um filósofo como Hegel, para outros filósofos com pensamentos completamente diferentes como Nietzsche ou Sartre, Bertrand Russell ou Wittgenstein.

Ao mesmo tempo, Rorty lembra que os ideais de democracia e de justiça social, que foram sonhados por Marx e Mill no século XIX, chegaram até o século XX com John Dewey e Jürgen Habermas, e continuam sendo ideias potentes para pensar a organização da sociedade e a relação entre as pessoas.

Uma das ideias mais importante do pensamento de Rorty e a forma como ele compreende o papel da filosofia no mundo contemporâneo está focada no conceito de Conversação e na ideia de redescrição do mundo. Para ele, antes de perseguirmos a Verdade, a Razão e a Ciência (todas com letra maiúscula), devemos perseguir a liberdade, a esperança e a solidariedade, por meio da conversação a da redescrição da forma como percebemos o mundo.

Seu pensamento nas ajuda a compreender que a raça humana poderá enfrentar todos os seus desafios e desastres (a peste, a guerra, a ditadura, a fome, a miséria, a injustiça social, a violência, o mal) se se mantiver a liberdade, as esperanças e a solidariedade.

Quando defende a democracia liberal, tornada possível graças a conversação e a capacidade de redescrição do mundo, Rorty está sinalizando para um modo de pensar que deve nutrir-se da liberdade de expressão e de imaginação.

Não encontramos em Rorty uma fórmula infalível, uma plataforma doutrinal ou um sistema filosófico que indique um percurso prescritivo de como deve ser as normas pedagógicas para construir uma sociedade livre, esperançosa e solidária. Se ele fizesse isso, estaria cometendo os mesmos erros que as religiões fundamentalistas fazem quando indicam o caminho único da salvação e com isso acabam se tornando uma das principais formas de alienação das pessoas.

Em Rorty encontramos um convite à invenção de novas interpretações e descrições do mundo, a possibilidade de construir utopias de um futuro melhor, o apelo à conversação que se torna exercício de encontro com o outro, com o diferente, com o controverso. Será no interior desta conversação que podemos compreender que o que somos, o que é o real, o que foi o passado e o que será o futuro, depende da forma como nos relacionamos uns aos outros. Por isso que a liberdade, a esperança e a solidariedade são tão importantes e deveriam ser parte constitutiva central dos processos educacionais.

Ao invés de uma sociedade competitiva, individualista, consumista, xenofóbica, misógina e racista, na perspectiva de Rorty é possível esperançar uma sociedade solidária, inclusiva, tolerante e dialógica. Talvez assim tenhamos chances de não sucumbir enquanto civilização.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com

Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Também publicou no site “A intolerância fragiliza a democracia”:  https://www.neipies.com/a-intolerancia-fragiliza-a-democracia/

Edição: A. R.

LAUDATE DEUM: um guia de leitura em dez pontos

A exortação é clara, objetiva, suficientemente autoexplicativa e dispensaria um guia de leitura. Contudo, nem todos leram ou lerão a exortação. Para estes, esse guia pretende sinalizar seus pontos essenciais e, quem sabe, despertar o desejo de encontro direto com o texto.

A exortação apostólica Laudate Deum do Papa Francisco foi lançada, oficialmente, no dia 04 de outubro de 2023, por ocasião da festa de São Francisco e do término do “Tempo da criação”. A exortação é clara, objetiva, suficientemente autoexplicativa e dispensaria um guia de leitura. Contudo, nem todos leram ou lerão a exortação. Para estes, esse guia pretende sinalizar seus pontos essenciais e, quem sabe, despertar o desejo de encontro direto com o texto. Para os que leram, o guia pode ser uma ocasião de reavivar a memória de algo que não pode cair no esquecimento.

Decálogo orientativo:

1. Laudato Si’ 2. Tema. Problema. Destinatários. Inspiração. Laudate Deum (Louvai a Deus) pressupõe a Laudato Si’ que continua sendo a Encíclica insuperável em se tratando do cuidado da casa comum numa perspectiva sistêmica de ecologia integral. A exortação é mais modesta e trata do tema e do problema específico da crise climática. Laudato Si’, de 2015, havia tratado do problema da mudança climática, contudo, apenas como um dos problemas ecológicos atuais ao lado de outros. Agora, na exortação, esse é o tema único, pois o Papa percebeu que apesar dos alertas que vêm da ciência e que ele mesmo fez na Laudato Si’, não “estamos reagindo de modo satisfatório” para não chegarmos ao “ponto de ruptura”.

Os destinatários não são os bispos ou os fiéis católicos mas, como diz o subtítulo, a exortação é dirigida “a todas as pessoas de boa vontade”. Afinal, a situação é grave e os efeitos serão sentidos por todos em termos de “saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e em outros âmbitos” (n. 2). A exortação tem, novamente, São Francisco como inspirador que continua nos convidando a louvar a Deus por todas as suas criaturas.

3. Método e estrutura. A Laudato Si’ incorporou a forma latino-americana de pensar a partir do método ver-julgar-agir. O ver-julgar-agir reaparece, mesmo que de uma forma menos didática e clara que na Laudato Si’. Laudate Deum é elaborada em forma mais circular, misturando, às vezes, os momentos do método.

Contudo, os três momentos estão aí e na estrutura da exortação o método aparece nas seis partes que a compõe: 1) A crise climática global (Ver); 2) O crescente paradigma tecnológico (ver-julgar); 3) A fragilidade da política internacional (Agir); 4) As conferências sobre o clima (Agir); 5) O que se espera da cop-28 em Dubai? (Agir); 6) As motivações espirituais (Julgar). A seguir destacaremos o que nos parece ser essencial em cada uma das partes da exortação em cada momento do método.

4. Crise Climática. “Por mais que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática se impõem a nós de forma cada vez mais evidente. Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenômenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, à seca e a outros gemidos da terra, os quais são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que afeta a todos nós” (n. 5).

Assim o Papa descreve o que chama de crise climática, não como fenômeno natural, mas como fenômeno diretamente associado à atividade humana, de origem “antrópica”, que potencializa o aumento da temperatura global. Cada vez que a temperatura média global aumenta 0,5 graus centrígrados os fenômenos extremos também mostram sua cara feia. Se ultrapassarmos os 2 graus centígrados, então “as calotas glaciares da Groenlândia e de grande parte da Antártida se derreterão completamente, com consequências muito graves para todos” (n. 5).

Alguns negacionistas tentam minimizar esses fenômenos e as causas humanas dele. Dizem que o planeta alterna períodos de resfriamento e aquecimento e que não há nada que se possa fazer. Alguns até apelam para o fato que frios extremos também acontecem a todo instante e que, portanto, a narrativa do aquecimento global seria apenas isso, uma narrativa. Não se dão conta, diz o Papa, que os eventos extremos, inclusive de frios extremos, ao lado de secas, ou excesso de chuvas, são expressões da mesma causa: o desequilíbrio global causado pelo aquecimento do planeta. Só a falta de informação pode igualar tempo e clima. O tempo descreve as previsões meteorológicas de uma região em determinado momento, ao passo que o clima é a tendência duradora das condições meteorológicas a nível local e global que só se alteram em longos períodos do tempo. Outros culpam os pobres por “terem filhos demais”.

Contudo, diz o Papa, isso é um simplismo diversionista justamente porque quem mais polui são os ricos no interno dos países e os países ricos ao redor do globo. Ou a África, onde reside mais da metade dos pobres do mundo, será responsável pelo aquecimento global? É evidente que não. Outros ainda dizem ser preciso pensar nos postos de trabalho que se perderiam caso se passasse da atual matriz energética para energias limpas. No entanto, verdadeiro é o contrário. Postos de trabalho estão sendo perdidos exatamente dentro do sistema atual agravado pelo aquecimento global. A transição para formas renováveis de energia seria, inclusive, uma esperança de mais trabalho. É preciso pois, diz o Papa, acabar com as resistências e confusões. A origem “antrópica” da crise climática já não pode ser posta em dúvida. Há evidências científicas e os cientistas atestam que a mudança climática global coincide com “crescimento acelerado das emissões de gases de efeito estufa, especialmente a partir de meados do século XX” (n. 13).

Por fim o Papa diz, meio indignado, que se vê obrigado a dizer essas coisas óbvias “por causa de certas opiniões ridicularizantes e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica” (n.14). Não é prudente continuar duvidando nem do fenômeno da crise e nem da causa humana dela. Está na hora de assumirmos como definitivo que os danos do aquecimento já são realidade e que há risco evidentes de piorar. Assim, é urgente uma visão ampla, séria e responsável, pois os fenômenos não são isolados. E o Papa arremata com duas convicções que o tem acompanhado: “tudo está interligado” e “ninguém se salva sozinho” (n. 19).

5. O crescente paradigma tecnocrático. Na base da degradação ambiental, diríamos nós leigos, está o capitalismo e sua lógica de lucro e de tudo tornar mercadoria mas, o Papa, mais sutil e sofisticado, diz que na base está o “paradigma tecnocrático”. E o que ele entende por paradigma tecnocrático?

O Papa cita a Laudato Si´, que diz que se trata de “modo desordenado de conceber a vida e ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar” (LS n.101). E acrescenta dizendo que consiste em pensar “como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia (LS n. 105). A isso se soma a ideia de progresso infinito e ilimitado que tanto entusiasma os economistas e teóricos do mercado.

O problema, diz o Papa, é que os recursos naturais não são ilimitados. E o mais grave é o excesso de poder econômico e tecnológico nas mãos de alguns que tratam tudo e a todos como “meros recursos ao seu serviço”. Por conta disso é necessário repensar a utilização do poder para que dele advenha progressos para a humanidade e não apenas para alguns. Aumento de poder não acompanhado de valores, consciência ética sólida e uma espiritualidade não egocentrada, são um perigo para a vida humana e para o planeta (n. 24).

Contrariamente à postura do mercado, há de se reafirmar que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites” (n. 25) e uma mudança de mentalidade em que se pense o humano e a natureza “numa relação saudável e harmoniosa” (n. 27), superando o utilitarismo antropocêntrico desordenado que a tudo torna objeto descartável, é o que a humanidade precisa conquistar para não corrermos o risco de sermos aquilo que Soloviev, ironicamente, sentenciou: “Um século tão avançado que teve a sorte de ser o último”.

6. Fragilidade da Política internacional. Neste ponto o Papa apela para que as lideranças mundiais despertem do sono dogmático da inércia e mobilizem energias, recurso e estratégia para “reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais, sociais e sobretudo para consolidar o respeito aos direitos humanos fundamentais, dos direitos sociais e do cuidado da Casa Comum” (n. 42). A ONU e os mecanismos atuais já não dão conta. Para tanto é urgente uma nova política internacional que o Papa chama de “multilateralismo”.

O que seria o multilateralismo? Primeiro, pela via negativa: “não é conveniente confundir o multilateralismo com uma autoridade mundial concentrada em uma só pessoa ou em uma elite com excessivo poder” (n. 29). Pela via positiva: trata-se de pensar ‘organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais’ (n. 35).

Não há tempo a perder. Os desafios atuais requerem esforços para superar os interesses imediatos e individuais para garantir “a realização de alguns objetivos irrenunciáveis” como é o caso da erradicação da fome e do enfrentamento da crise climática. Para tanto, o multilateralismo proposto pelo Papa conta com a sociedade civil e as organizações não governamentais para que, dentro do “princípio de subsidiariedade”, junto com organismos internacionais de real autoridade e democratizados, se enfrentem os desafios globais e locais com colaboração e eficácia.

A velha diplomacia poderá ter sua relevância, mas será necessário unir esforços multipolares para dar conta da complexa realidade contemporânea. O Papa não tem a preocupação de dizer exatamente quem comporia e como seria o organismo multilateral, mas insiste na necessidade que surja. Provoca a sua criação e apresenta critérios para sua realização. O que importa é que o organismo multilateral seja dotado de real autoridade e represente o conjunto da humanidade para que se efetive uma maior ‘democratização’ na esfera global. Num tom crítico conclui dizendo que os velhos organismos precisam ser revistos e “deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes sem cuidar dos direitos de todos” (n. 43).

7. As conferências sobre o clima: avanços e retrocessos. Há décadas que os representantes de mais de 190 países se reúnem para tratar da questão climática. O documentário Uma verdade Inconveniente, de 2006, é uma boa síntese do debate para quem se interessar. O Papa não o cita, mas cita a história recente das conferências do clima e seus resultados. Tudo começou na conferência do Rio de janeiro em 1992. Foi a partir da Eco-92 que começaram a tomar corpo as conferências das partes (COP), o mais alto organismo mundial de decisões em torno à crise climática. De lá para cá, todos os anos, os 197 países membros, reúnem-se exclusivamente para tratar do clima. Algumas conferências foram um fracasso. Outras avançaram na consciência e em propostas para o enfrentamento do problema.

O Papa destaca a COP-3 de Quioto (1997) como uma conferência bem-sucedida. Dela surgiu o protocolo de Quioto que fixou como objetivo a redução das emissões de gases de efeito estufa. Além disso as partes se comprometeram a implementar políticas de redução dos efeitos da alteração climática, com investimentos por partes dos países mais ricos, pois são os que mais poluem. A COP-21 de Paris (2015) também foi um momento significativo pois estabeleceu “manter o aumento de 2 graus centígrados relativamente aos níveis pré-industriais, apostando em toda caso a ficar abaixo de 1,5 grau” (n. 48). Em linhas gerais o Papa diz que a questão fundamental é que os acordos não são efetivados porque os países ricos pensam mais em si do que no globo e, também, porque falta mecanismo “de controle, revisão periódica e sansão das violações” (n. 52).

8. O que se espera da COP-28 em Dubai? A bem da verdade, o Papa escreveu a exortação como uma profética e dramática sensibilização para a COP-28 (realizada em DUBAI de 30/11 a 12 de dezembro de 2023). De alguma forma ele queria convocar, motivar e exortar para a necessidade da COP-28 dar certo. Diz o texto: “Adotar uma atitude de renúncia a respeito da COP-28 seria auto-lesivo, porque seria expor toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos da mudança climática” (n. 53). A história das COP tem sido de pouco avanço real e o Papa se mostra preocupado pois, bem ou mal, é a instância internacional que pode dizer e fazer algo e propor estratégias que a sociedade civil e os governos possam levar a diante.

O Papa apela para que os líderes e estrategistas mundiais presentes na COP-28 tenham “coragem de efetuar mudanças substanciais” (n. 55), e que não confiem somente em “remédios técnicos” superficiais, que podem se reduzir à lógica “do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração que continuamos a alimentar” (n. 57).

O Papa provoca a mudança de mentalidade: “De uma vez por todas, acabemos com a atitude irresponsável que apresenta essa questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses econômicos. Admitamos, finalmente, que se tata de um problema humano e social em sentido amplo e em diversos âmbitos” (n. 57). E finaliza dizendo aos dirigentes da COP-28 que sejam responsáveis e eficazes: “Se há sincero interesse em fazer com que a COP-28 seja histórica, que nos honre e enobreça enquanto seres humanos, então só podemos esperar por fórmulas vinculantes de transição energética e facilmente monitoráveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso, e que se possa contar com o empenho de todos” (n. 59). Só na medida em que se pense mais no bem comum do que nos interesses contingentes de alguns países e empresas é que se pode restaurar a credibilidade da política internacional.

9. As motivações espirituais. Aos fiéis católicos, a exortação recorda as motivações espirituais que brotam da fé. E encoraja que outras religiões façam o mesmo.A fé, quando autêntica, não é fuga do mundo, mas imersão no mundo, comprometida em transformá-lo.

Do ponto de vista da fé o Papa destaca cinco pontos:

a) A criação é obra de Deus e a terra é Dele e “tudo o que nela há (Gn 1, 31). “A terra não será vendida definitivamente, porque a terra é minha, e vós sois moradores migrantes junto de mim” (Lv 25, 23). Disso brota a responsabilidade do humano inteligente para que respeite as leis da natureza e os “delicados equilíbrios entres os seres deste mundo” (LS, n. 68).

b) O conjunto do universo com suas múltiplas relações mostra a riqueza inesgotável de Deus. Preservar os indivíduos e espécies é, então, mostrar-se sábios, responsáveis e respeitosos com o Criador.

c) Jesus viveu plenamente o encontro com a natureza e a todo instante “detinha-se para contemplar a beleza semeada por seu Pai”. As criaturas não são apenas natureza, são antes sinais do amor do Criador que no filho Ressuscitado suscita em nós uma mudança de percepção, envolvendo misteriosamente cada um dos seres criados. “As próprias flores do campo e as aves que ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa […] O mundo canta um Amor infinito, como não cuidar dele?” (n. 65).

d) Superar o antropocentrismo desordenado que compreende o humano isolado do restante da criação e pensar um “antropocentrismo situado”, reconhecendo que estamos todos “unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal […] Assim, acabamos com a ideia de um ser humano autônomo, onipotente e ilimitado (n. 67, 68).

e) Não é sem importância a mudança de hábitos pessoais, familiares e comunitários, mesmo sabendo que os grandes e principais responsáveis pela crise climática são as empresas, os setores políticos e administrativos dos Estados e as grandes corporações. Os exemplos que “vêm de baixo”, podem criar um processo de mudança que transforme nossa relação com os outros, com a natureza e com os animais (n. 69, 70, 71).

10. Apreciação. A exortação do Papa é um alerta e apelo para que a humanidade acorde. A acomodação e os interesses imediatos dos agentes econômicos, sociais e eclesiais têm feito ouvidos moucos à voz profética do Papa Francisco. Ele tem feito a sua parte. Tem falado e insistido e com isso ele salva a sua alma. Não basta, contudo, que o Papa “salve sua alma”, pois “ninguém se salva sozinho”, além do que, é preciso salvarmos os corpos de todos, enquanto estivermos vivos. Para tanto, o que podemos e devemos fazer?

Autor: Gilmar Zampieri. Também publicou no site “Fratelli Tutti: as religiões a serviço da fraternidade no mundo”: https://www.neipies.com/fratelli-tutti-as-religioes-a-servico-da-fraternidade-no-mundo/

Edição: A. R.

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