O pó dos castigados está nas nossas terras, alimentaram raízes. Logo, é mais do que hora de buscar estas raízes.
128 anos separam o relato do caso da escrava Páscoa, em Porto Alegre, e o lançamento do romance Lolita de Vladimir Nabokov (1955). Estávamos na capital (1827), que há cinco anos tinha virado “cidade”.
Lolita era uma ficção, em livro, ousada que virou sucesso, virou cinema, teatro, opera e ballet. E “Lolita” passa a ser um designativo de mulher jovem, bonita e sexi.
Já o caso de Páscoa, certo que ela existiu, pois seu rapto é anunciado publicamente no jornal Diário de Porto Alegre como sendo uma escrava de 13 anos raptada por um homem branco, mais velho, “oficial empregado na Pagadoria do Exército”. Dado como algo escandaloso, numa reclamação de quem era “senhor” da escrava.
O livro “Lolita” de Nabokov virou escândalo, tratado por muitos como pornográfico. O certo é que “deu o que falar” no país das hipocrisias que são os EUA.
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No Brasil acontecia de tudo nos tempos de Páscoa, com ‘lolitas” negras pegas à força nas casas grandes, muitas vezes ficando grávidas, tudo escondido da sociedade.
O dito raptor e a dita raptada teriam pego um barco nos trapiches quase junto a Igreja das Dores para sua fuga a Rio Grande. O relato que tive fala de uma “mulatinha” muito jovem, “de feições regularmente belas, trajando um grosso e mal ajeitado vestido de tecido inferior” e aí vai.
Este caso se espalhou e ficou no imaginário local, porque vivíamos duros tempos da Escravidão local, onde quase metade da cidade era negra. Sim, Porto Alegre é açoriana, mas é mais negra, é multifacetada, multiétnica.
O resgate deste caso foi feito pelo ex-vereador e exímio cronista Ary Veiga Sanhudo em 1961, tanto que é ele quem faz referência a Lolita, romance de 6 anos antes. É ele quem transcreve o jornal da época, dando conta de Páscoa.
Do que se depreende de Sanhudo é que o caso atiçou a libido tolhida de quase toda a cidade, até por ser Páscoa uma escrava, no caso, “mulatinha e até bela”; fugindo com um distinto cidadão.
Este caso hoje seria tido como pedofilia, mas pelo que se sabe de antanho era bem comum.
Aqui, como em vários casos de nossa Literatura, até nos melhores escritos, a negra era o prato da lascívia quando jovem. Era a mãe generosa a negra dama de leite. A negra era desajeitada, quando lavadeira, na beira do Guaíba, subindo a Morro da Formiga. Eram os estereótipos.
Nos dias que correm surge uma vigorosa Literatura de mulheres negras que resgatam seus corpos pretos com os seus desejos, sem a pecha do escondido, nem tapada com um vestido de qualidade inferior. É a vez e a voz da coragem. Falam verdades apagadas, sumidas, escondidas. Veja a voz de uma de nossas poetas negras, Miriam Alves:
Salve América!
Ah!
Esta América Ladina
Ainda nos roubam o fígado, os filhos
Nos roubam a sorte
A morte
O sono
Ah!
Esta América Ladina
As três caravelas pintaram destinos
Santa Maria, nada teve a ver comigo
Pinta, roubou-me o colorido natural
de ser eu mesma
Nina, enfiou-me pela goela
mamadeira de sangue, sal e urina
Até hoje me Nina em seus podres berços de miséria
Páscoa não se sabe se sabia ler ou escrever. Como suas irmãs de sangue e raça, deveria, naqueles tempos, ser analfabeta. O que a moveu a fugir calada naquele barco em tão distantes tempos nunca saberemos. Mas sabemos que, em Porto Alegre, desta “América Ladina” tinha escravos e escravas.
Daqui, temos a voz firme e decidida de Lilian Rocha, sem papas na língua:
Fêmea
Na boca
Ainda úmida
Da tua saliva
Meus lábios
Estalam
Prazer e libido
Quero repetir
A dose
Da embriaguez
Que me tonteia
Os sentidos
Tremo de cima
Abaixo
No soar
Do teu gemido
Sou tua fêmea
Faça agora
Todos os meus
Caprichos.
É hora de resgates, de lutar contra o esquecimento e o apagamento e ao mesmo tempo colocar em evidência quem escreve, como escreve, para quem escreve.
Há uma busca entre nós a partir de pesquisadores/as para recolocar os temas, acontecimentos no seu devido lugar. Temos na literatura quem nos bem representa, negros ou não, mas não só mais brancos.
Como vamos esquecer Páscoa? Como vamos esquecer Josino morto inocente no Largo da Forca?
O pó dos castigados está nas nossas terras, alimentaram raízes. Logo, é mais do que hora de buscar estas raízes.
O que está presente na Reforma é a tentativa de legitimar, no serviço público Municipal, a precariedade do emprego, fenômeno que já contaminou as relações de produção, de caráter privado, naquilo que tem se denominado de “uberização” das relações de trabalho, tanto em nível Estadual, com o governo de Eduardo Leite, quando em nível Federal, com a gestão de Bolsonaro.
É de conhecimento de todas e todos que tramitou na Câmara de Vereadores de Passo Fundo, desde o dia 11 de agosto, o Projeto de Lei Complementar 06/2023, de autoria do Poder Executivo, que trata da reforma administrativa do Plano de Cargos e Salários das e dos servidores públicos municipais. A proposição foi apresentada à Casa Legislativa sob a justificativa de contribuir com a modernização do serviço público. Porém, não é exatamente isso que está disposto no texto da Lei.
Mesmo considerando os inegáveis avanços obtidos pelas entidades sindicais e que resultaram nas mensagens retificativas 103 e 108, ainda assim entendo que a reforma administrativa, tal como proposta pelo Poder Executivo, representa a privatização dos serviços públicos e a precarização do trabalho.
Em meu entendimento, a retórica de aparência modernizadora contida no projeto objeto de análise não passa disso: de retórica.
É preciso considerar, neste caso, que entre os cargos que serão completamente extintos ou terão suas vagas reduzidas em até 70%, estão, principalmente, o de motorista, mecânico, telefonista, pedreiro, auxiliar de biblioteca, etc – cargos que, no entender da atual gestão, são “terceirizáveis” – restando claro que esta reforma atinge, de maneira substancial, os cargos com menor padrão de vencimento, ao ponto que em nada altera as condições naqueles que estão no topo da carreira pública municipal.
Está presente, portanto, a tentativa de legitimar, no âmbito do serviço público Municipal a precariedade do emprego, fenômeno que já contaminou as relações de produção, de caráter privado, naquilo que tem se denominado de “uberização” das relações de trabalho, tanto em nível Estadual, com o governo de Eduardo Leite, quando em nível Federal, com a gestão de Bolsonaro.
Nela se busca, ao invés do bem estar social, uma hegemonia da lógica financeira que, para além de sua dimensão econômica, atinge todos os âmbitos da vida social. Passa a ser sustentada a ideia da volatilidade, da efemeridade e da “descartabilidade” das servidoras e servidores públicos enquanto trabalhadoras e trabalhadores.
É preciso alertar que o presente projeto de lei é apenas o primeiro passo para a extinção de direitos conquistados pelas servidoras e servidores públicos há duras penas. Hoje se extingue vários cargos, amanhã, basta a revogação de um simples artigo para que todos os cargos em extinção deixem de possuir direito a avanços na carreira, dentre outros.
No entendimento desta Vereadora, aprovar um projeto que, ao invés de ampliar direitos e valorizar as servidoras e servidores, precariza ainda mais o serviço público, é abrir precedentes para outros tantos retrocessos naquilo que tange às relações de trabalho da categoria.
Com o devido respeito, a transformação que o Estado indubitavelmente necessita não passa pela precarização/terceirização de seus serviços públicos, sobretudo quando nosso município possui um histórico vergonhoso em relação às suas trabalhadoras e trabalhadores terceirizados. Não esqueçamos dos funcionários da empresa Nova Era, que há décadas buscam receber os créditos que lhes são devidos, ou, ainda, mais recentemente, do vexame público ocorrido com os funcionários da empresa Resiplan, que tiveram salários atrasados e ausência de depósitos em seus Fundos de Garantia.
Não podemos esquecer, ainda, que essa proposta de Lei Complementar foi construída sem qualquer diálogo ou possibilidade de participação das entidades que representam as e os Municipários, os quais somente tiveram voz quando este já se encontrava tramitando perante o Poder Legislativo. É, portanto, um projeto que contém mudanças impositivas e não negociadas, em completo desrespeito aos mais básicos princípios da democracia participativa.
Contudo, mesmo diante de todo o exposto, segui a orientação de voto dos Sindicatos que representam as servidoras e servidores municipais por acreditar que seus posicionamentos foram tomados com base na coletividade das categorias. Se as entidades sindicais que são movidas pela força democrática estão certas de que os avanços obtidos nas negociações com o Poder Executivo Municipal atendem às reivindicações, elas terão meu apoio!
Passo Fundo, 02 de outubro de 2023
Fotos: redes sociais SIMPASSO/CMP Sindicato
Autora: Eva Valéria Lorenzato, vereadora Bancada do PT
As Cirandas do Saber foram idealizadas como espaços diferentes de encontro e formação de professores e professoras da rede municipal de Passo Fundo mesclando comida, arte, poesia e música com conhecimentos.
Na noite desta quarta-feira (27 de setembro de 2023) ocorreu mais uma edição da Ciranda dos Saberes aqui na sede do CMP Sindicato. Dessa vez, o tema foi Café com Poesia!
O evento contou com a presença do pessoal da Café Estino, que apresentou diversos tipos de cafés para os professores e professoras degustarem e aprenderem um pouquinho mais sobre essa bebida tão amada por todos. O poeta, músico e animador cultural Cassio Borges Cultura também participou da noite, trazendo diversas poesias e muita música para animar a galera.
O café está presente em diversos momentos especiais das nossas vidas, por isso o evento possibilitou relembrar essas memórias com muito carinho e alegria. Os participantes puderam participar relatando sobre suas memórias e recordações em torno do café.
Cássio Borges, além de participar com execução de algumas músicas, apresentou 2 poesias inéditas, especialmente escritas para o evento e, gentilmente, cedeu as mesmas para publicação nesta matéria do site.
Café é companhia
Nas manhãs frias, o café desperta,
No bule, a magia que o sono liberta.
Com aromas dançantes, ele seduz,
É o elixir que a preguiça reduz.
No trabalho, café é o maestro,
Conduz a sinfonia do escritório metro a metro.
Cada gole é um passo na dança do expediente,
A cafeína, a musa persistente.
Na xícara, segredos sussurram baixinho,
É a fofoca do cafézinho.
Do grão ao pó, uma viagem de possibilidades,
No corpo, na alma, exala felicidade.
É o combustível do dia a dia,
Sem café, a vida seria vazia.
Espresso, americano, com leite ou puro,
O café é o riso do cotidiano seguro.
Então, erga a xícara com alegria,
Brinde ao café, fonte de energia.
Num mundo agitado, ele é o parceiro,
O líquido que torna tudo mais leve e inteiro.
(Cássio Borges)
A docência expressa no café
No quadro-negro, dança e o giz em balé
Equações e aromas se entrelaçam de pé.
Na busca do conhecimento sem igual
O café é o cúmplice, o guru leal.
Na pausa entre a teoria e a prática
A cafeteira é a máquina simpática que estende a mão
O professor, com a xícara perto do coração
Desvenda enigmas, desfaz os nós.
E ao corrigir provas com destreza
Café e caneta, a dupla de nobreza.
No canto da sala, a cafeteira sussurra
Ensine com paixão, por mais que lida seja dura.
Então, brinde ao educador destemido
Café na mão, conhecimento compartilhado.
Na sala de aula, onde o saber floresce
O café é o mestre que tudo enriquece.
No descanso merecido, entre livros e papéis
Café e professores, companheiros fiéis.
Na jornada intensa, onde o cansaço tenta pesar
O café é a poesia que faz o dia brilhar.
(Cássio Borges)
Depoimento sobre as Cirandas do Saber
Participar da Ciranda dos Saberes, promovida pelo Sindicato dos professores, foi uma experiência verdadeiramente enriquecedora que me deixou repleto de gratidão. Ao longo desse evento tão especial, tive a oportunidade de compartilhar duas poesias autorais, criadas especialmente para esse momento. Essas poesias foram mais do que palavras; foram expressões do meu profundo respeito e admiração pela dedicação incansável dos professores e a sua relação com o café.
Ao declamar essas poesias, senti uma conexão única com a plateia, composta por educadores que moldam mentes e inspiram sonhos diariamente. Cada palavra ecoou como um tributo às suas jornadas e ao impacto transformador que exercem na sociedade. A Ciranda dos Saberes tornou-se, assim, o palco para celebrar, em versos, a grandiosidade da missão educacional.
Além das poesias, tive a honra de levar minha voz e meu violão para entoar canções inspiradoras. A música, como linguagem universal, sempre busca seu lugar nas mentes e corações de quem ouve.
Agradeço profundamente ao Sindicato dos professores por proporcionar esse espaço significativo. Participar da Ciranda dos Saberes não foi apenas uma apresentação, mas uma oportunidade de contribuir para a valorização da educação e expressar minha admiração por aqueles que dedicam suas vidas ao ensino.
No entrelaçar de poesias e melodias, experimentei a magia de um evento que celebra não apenas o conhecimento, mas a paixão que impulsiona os educadores. Que essa ciranda continue a girar, inspirando e fortalecendo a comunidade educacional, pois, como todos sabemos, é nos corações dos professores que o futuro encontra seu lar.
(Por Cássio Borges)
SABERES EM CIRANDA
As Cirandas do Saber foram idealizadas como espaços diferentes de encontro e formação de professores e professoras da rede municipal de Passo Fundo mesclando comida, arte, poesia e música com conhecimentos. A dinâmica é envolvente e participativa, intercalando espaços de fala com espaços de integração, arte, música, comida. Já foram realizadas em torno de 40 Cirandas de Saberes, que duram em torno de 2 horas.
A primeira Ciranda de Saberes foi realizada no dia 06 de novembro de 2014, com a participação da Cirandeira Sueli Ghelen Frosi. O tema foi o Cuidado: A pergunta: Por que cuidar?
Eventos mais dialógicos, menores, em pequenos grupos e que tratem de questões da vida pessoal e social dos professores, dos cuidados com a saúde, de cultura e literatura, de temas complementares aos desafios docentes, devem estar no horizonte das necessidades contemporâneas da formação de professores no atual momento histórico.
O papel do Sindicato de professores é promover e propor iniciativas que promovam mudanças nas concepções de formação que são oferecidas pelas redes de ensino, como também aquelas oferecidas por universidades ou organizações sociais que atuam na formação docente.
O Sindicato, por sua natureza de representação e organização, é um laboratório de permanente formação de professores e professoras. No Sindicato se ensina e se aprende muito, através dos desafios permanentes de comunicação, organização e mobilização pelas demandas profissionais específicas do magistério. As habilidades e as competências que estão sendo gestadas e testadas no cotidiano da atividade sindical também são parte da formação docente de uma rede municipal de ensino.
Como saber? Não foi a mesma Mão quem nos criou a todos e que em nós soprou vida? E a beleza intensa que habita ao seu redor, não poderia ser cantada em noites de verão, quando os humanos já não pisoteiam suas gramas…
A plantinha, da obra “A planta, suas folhas e um sino” fora rejeitada pelo Frei, em um pátio farto de plantas e abundância de verdes, muito escolhidos, em vertigem de tons que não se sabe como, combinam e se complementam.
Mas era um bom Frei, cansado de cuidar da grama e suas calçadas, sabe-se lá, achou melhor não a plantar ali. Passados dias e noites, voltou atrás e, sem que ninguém percebesse, acolheu-a, às escondidas, tratou-a, entregando-a aos seus aliados neste pátio de tantas belezas, nuances e solidões, que são os jardins das Igrejas.
Sim, porque estes espaços são o depositório de tantos que por ali passam, às pressas, com seus passos corredios e seus pecados perdoados. Alegres, por ora, reabilitados por seus pares e por Deus, o Deus de todos os esquecimentos, até que seus bancos se completem novamente, de pecadores e podadores de árvores, todos inconsolados em sua dor, sem saber que o mal que os sustenta está na mesma raiz: a indiferença.
Aos jardins, poucos param e olham. Ali mesmo deveriam se arrepender, confessar seus males à sombra de árvores solitárias, que nunca são abraçadas. Seu choro e arrependimento poderiam ser depositados aos seus pés, porque o Deus que os ouvirá no piso frio de um Templo é o mesmo que está no meio de todos estes arbustos, flores e folhas, e que dali nunca saiu.
E, então, as mesmas plantas que quase não viram a novata chegar, falavam entre si:
-Quem será a intrusa? Quem deu a ela água e esperança?
Mas a mudinha virou planta, virou árvore e em se tornando vistosa, abraçou um sino solitário e triste, devolvendo a sua vida, seu canto, sua essência. Amizade e paixão em empatia singular.
Enquanto eu explicava este pequeno milagre, a Coordenadora da escola falou que até gostou da história, mas que árvores não conversam, sinos não falam, e que nada mais e em quaisquer jardins ouve-se conversas. Pela sua doutrina, claro.
-Porque somos de uma crença em que acreditamos que somente humanos falam.
Que triste meu Deus! Como isso pode ser permitido de modo que as religiões continuem a prosperar?
Tentei argumentar que, falando ou não, jamais poderemos saber. Somente nossa vã suposição pode acreditar que somos os únicos que bedelham. Como saber se não transmutamos em outra matéria viva, e que, pelo pressuposto de nossa linguagem ser única, destruímos a possibilidade de todas as falas, em todas as florestas, jardins, e, até mesmo junto às plantinhas que crescem em nossas sacadas?
Como saber? Não foi a mesma Mão que nos criou a todos e que em nós soprou vida? E a beleza intensa que habita ao seu redor, não poderia ser cantada em noites de verão, quando os humanos já não estão pisoteiam suas gramas…
Como ficarão as crianças e suas árvores imaginárias que habitam seus livros e quartos? Seus ursinhos em suas camas, testemunhas, fazendo-as dormir? Como ficarão seus diálogos, justamente com tudo a que dão vida e a tudo que fazem renascer? E não era para nos tornarmos crianças…
Quanta crueldade nestes adultos insanos, que tomaram para si as palavras de Deus tornando-as torniquetes para os jardins. Imaginem quando seus filhos, ao apagarem as luzes não poderão dar boa noite aos seus brinquedos, suas bonecas e seus heróis. Não poderão pedir a sua proteção porque alguém ao seu lado lhes diz que ninguém fala ou ouve, senão os humanos. Serão proibidos de falar com eles? É o limite da negação do imaginário humano.
Não há agressão maior ao crescimento e liberdade das crianças do que as impedir em falar e trocar suas conversas com os meios de vida a que veem e sentem, todos eles, sejam em quartos de dormir, em jardins floridos, em bosques ou sacadinhas.
Porque um herói sentado ao lado da cama de um menino, tem vida, é amigo, companheiro de todas as batalhas, que juntos, travaram durante o dia. E agora irão dormir porque a vida se dá na imaginação, igualmente, senão que nos tornaríamos os dementes da criação. Aliás, foi na criação que um animalzinho falou aos recém-criados, tentando-os é verdade. Mas como deveria ser lindo este paraíso, com todos os bichos falantes…menos o homem!
Tristes adultos, vivendo em suas assombrações, sua incapacidade de imaginar, escravos que são, dominam livros e preceitos sobre a sua crença de equívocos, sabe-se lá por quais razões.
E limitam a todas as crianças, em preceitos de superstição, esquecendo eles mesmos que não há criança ou adolescente, que possa crescer dissociado da mais louca aventura que Deus colocou ao seu dispor: a imaginação. Razão, aliás, pela qual nos diferenciamos de tantos outros reinos.
-Fale com a sua plantinha, Coordenadora! Abrace-a, comente sobre os seus dias, suas dores e o quanto você gostaria, muitas vezes, de estar ao seu lado na escuridão da razão, em um vaso qualquer. Ouça um sino bater e levante seus olhos. Sinos batem para as solidões e convicções partirem.
As árvores gemem as dores de seu corte, o vento uiva e canta para se fazer presente, os animais namoram livres, se os deixarem, as plantas e suas folhas não dormem cedo. Não estamos a sós na linguagem do Criador.
Enfim, não era sobre plantas que falam, não este texto. Era sobre compaixão!
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Sobre colocar-se no lugar de uma plantinha que queria crescer e pouco espaço lhe restava. Como que colocar-se no lugar de uma criança que precisa descobrir-se em um mundo de indiferenças e rejeições contínuas.
Porque a um jovem que deve crescer e seu espaço é negado, de igual maneira, precisa de uma presença, uma proteção, uma gota de empatia, uma faísca de esperança, um ínfimo olhar, que seja.
Não permita à sua mente que se torne prisioneira de um dogma, que ainda não compreende sobre o mais nobre dos sentimentos, essencialmente humano, que ainda podemos recriar: a empatia.
E sobre ela mesma, a planta que fala e quer crescer, poderíamos lembrar de nossos primeiros passos. Isso mesmo, qualquer um de nós, em quaisquer jardins, ambos à espera de uma minguada de água, uma mão amiga ou um simples e poderoso olhar protetor, de um sino abandonado…
A intolerância produz ódio, autoritarismo, obscurantismo, perseguição, estreiteza de pensamento. O pensamento de Locke nos alerta para prestarmos atenção às intolerâncias que estão em curso no nosso tempo e ameaçam a sobrevivência de nossa frágil democracia.
A intolerância é a atitude típica de que se considera melhor que os outros, dos conservadores reacionários que acreditam que o presente e o futuro devem imitar o passado, que seus costumes ou valores são os melhores para a espécie humana.
Historicamente a intolerância sempre se fez presente no campo religioso, político, filosófico, ideológico cultural. A intolerância motivou e mobilizou perseguições, guerras, extermínios, genocídios e tantas maldades que estão registrados nos livros de história, na literatura, nas obras de arte, nos documentários e nas peças teatrais e em tantas outras expressões culturais. A intolerância provoca medo, ódio, ressentimento, violência, morte.
O avanço civilizacional dependeu e depende do enfrentamento da intolerância. Um dos pensadores que se debruçou para enfrentar o problema da intolerância foi o britânico John Locke.
John Locke (1632-1704), um dos mais importantes e significativos pensadores ingleses da segunda metade do século XVII, viveu numa época muito turbulenta da história da Inglaterra. Descendente da pequena burguesia mercantil e filho de defensores do parlamentarismo, dividiu seu tempo e sua atenção a diversos campos do saber e da atividade humana: da administração pública às polêmicas religiosas; do exercício à medicina à pedagogia e à política. No campo da filosofia, escreveu diversas obras que o tornaram um dos mais importante filósofos modernos da língua inglesa no campo do conhecimento e da política.
Considerado o pai do liberalismo moderno, Locke entrou na história como alguém que sempre lutou por um espírito de tolerância que representasse a liberdade de crença e permitisse a fecunda convivência das pessoas com ideias diferentes.
Escreveu durante 20 anos a obra intitulada Ensaio sobre o entendimento humano, na qual compreende a filosofia como tendo a tarefa crítica e preparatória para a construção da ciência.
“Meu trabalho”, diz Locke, “é como o de um ajudante de jardinagem, preparando o terreno e removendo o entulho que atrapalha o caminho do conhecimento”. Os entulhos são para Locke os preconceitos, as crenças errôneas, as falsas noções, as compreensões equivocadas das ideias, o modo deturpado de ver o mundo. Todos estes entulhos provocam prejuízo no processo de apropriação e construção do conhecimento. E são estes entulhos que nos tornam ignorantes, autoritários e intolerantes.
A Carta acerca da Tolerância é um dos escritos de Locke mais conhecidos no mundo todo. Neste texto o pensador inglês aborda o problema das questões religiosas que, conforme sua interpretação, em sua época provocavam os principais conflitos na Europa e em todo mundo. Esses conflitos se tornam mais perigosos quando a religião passa a interferir nas decisões do Estado e da sociedade.
No início da Carta, Locke ressalta que os homens que se dizem religiosos estão mais preocupados em galgar cargos, dentro das distintas organizações sociais e políticas, do que cumprir os verdadeiros dogmas da religião cristão, que consiste em praticar caridade, brandura e amor com os crentes e os não crentes; sem essas qualidades, um homem não pode ser chamado de religioso, mesmo que diga ser um fervoroso devoto.
Locke defende que Estado e Religião deveriam sempre estar separados, pois enquanto o primeiro deve elaborar leis imparciais que possibilitam punir quem ameaça a harmonia social, privando-o da liberdade ou dos bens, a segunda (a religião) deve primar pela persuasão, convencer pelo argumento que leva o esclarecimento que nos conduz a um mundo melhor, de tolerância ao diferente e de convivência pacífica, enfim um mundo que seja promotor de vida para todos. Esse deveriam ser para Locke o legado de todas as religiões e a forma mais adequada de organizar uma sociedade. Para isso, Religião e Poder do Estado não podem estar misturados.
Quando a Religião e Poder do Estado se misturam, temos o início da intolerância, as formas autoritárias e despóticas de governar e o rompimento das possibilidades de uma sociedade liberal democrática.
Mais de 300 anos nos separam da época em que Locke escreveu a Carta acerca da Tolerância. Parece que em alguns aspectos aprendemos pouco dos seus sábios ensinamentos. Se prestarmos atenção aos acontecimentos políticos da atualidade, vemos que a intolerância se tornou ordem do dia, religião e poder do estado estão intimamente ligados e o caos social se faz sentir em todas as partes.
Muitos que se intitulam “liberais” estão muito longe de entender os pressupostos fundamentais do liberalismo que possibilitaram as democracias modernas. Quem não é capaz de compreender e praticar a tolerância não pode se dizer liberal e muito menos democrático.
A intolerância produz ódio, autoritarismo, obscurantismo, perseguição, estreiteza de pensamento. O pensamento de Locke nos alerta para prestarmos atenção às intolerâncias que estão em curso no nosso tempo e ameaçam a sobrevivência de nossa frágil democracia.
O novo livro do jornalista Odilon Rios, chamado “Bode pendurado no sino & outras crônicas”, é uma obra que reúne histórias curiosas, divertidas e surpreendentes.
O título faz referência a um certo bode que acordou toda uma cidade do interior alagoano, os tantos “bodes” na história e acontecimentos envolvendo personagens como Calabar, Zumbi, Deodoro, Floriano, Vargas, PC Farias e outros.
Os textos mesclam abordagens jornalísticas da história alagoana, levantando detalhes esquecidos, personagens que ajudaram a construir nosso imaginário social e econômico mas também religioso e político.
É uma obra direcionada ao público geral, aos mais curiosos pesquisadores da história e quem está interessado em compreender os meandros das nossas relações.
O bode berrou no sino, outro bode morreu envenenado. Havia o plano do general esperto para dar um golpe, o general-menino que levantou um exército de almas e assustou os holandeses, o padre revolucionário que montou numa jangada na praia de Pajuçara para libertar o Brasil de Portugal.
O livro tem prefácio do jornalista Bob Fernandes e apresentação do vice-reitor do Cesmac Douglas Apratto Tenório. A capa é de Fernando Lucas.
Este é o quarto livro do escritor que mostra sua habilidade em contar casos pitorescos. O bode também faz parte da cultura nordestina e brasileira, e representa a força, a inteligência e a adaptabilidade do povo, além da luta pela liberdade, democracia, diversidade e preservação da memória. Uma leitura leve, divertida e instigante.
Quem é Odilon Rios?
Odilon Rios é um jornalista e escritor alagoano, que se destaca por suas reportagens investigativas, suas crônicas e seus livros sobre a história e a cultura de sua região.
É formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e tem mais de 20 anos de experiência na imprensa escrita, no rádio, na TV e em sites de notícias. Recebeu vários prêmios de jornalismo, como o Esso, o Dom Helder Câmara, o Embratel e o Banco do Brasil, além de passagens pelo portal Terra, jornal O Globo, Gazeta de Alagoas, TV Gazeta. Duas de suas reportagens foram eleitas as 90 melhores do O Globo, nos 90 anos do impresso.
É editor do site Repórter Nordeste, escreve sobre política para o EXTRA e também assina a coluna Memórias de Alagoas.
É um jornalista que usa sua profissão para informar, denunciar e questionar a realidade que o cerca. Também é um escritor que narra histórias que divertem, emocionam e provocam o leitor. E um cronista que usa sua sensibilidade para retratar o cotidiano com graça e ironia. Ele é um alagoano que usa sua identidade para valorizar sua terra e sua gente. Ele é um brasileiro que usa sua voz para contribuir com sua nação.
É autor dos livros Bastidores da Violência e dos Violentos em Alagoas (em parceria com Ana Cláudia Laurindo), Alagoas, 200 e Alagoas, Poder e Sangue.
Fotos: divulgação/arquivo pessoal do autor Odilon Rios
É verão, bom sinal, já é tempo de abrir o coração e sonhar…
(Canção de Verão, Roupa Nova)
“O passado faz parte de mim”, pensa ela, ao lembrar do amor que teve. O único amor. De todas lembranças, este amor é o que ela mais ama lembrar.
O dia estava nublado. O mar agitava as ondas e ventava muito na praia tranquila dos Açores, ao Sul da ilha de Florianópolis. Caminhava na areia de faixa larga. Afundava e voltava dos bancos de areia.
Pensava em contorná-la e seguir até a praia da solidão. Estava a sós consigo, solidão e solitude ao mesmo tempo. Não tinha tristeza na alma; aliás, pensava sempre que sua alma era leve. Sentia um vazio que não sabia explicar com o que preencher.
Num dado momento, seu coração se descompassou. Ele caminhava tranquilo, tinha um sorriso nos lábios. Um sorriso discreto trocaram. A proximidade das luzes vivas que vinham do olhar dele ofuscaram seus olhos. Por um momento ela se perdeu. As pernas afrouxaram, já não sabia caminhar, parecia afundar nos buracos de areia e não voltar mais. Ele a segurou gentilmente pela mão. Deu-lhe a outra mão e seguiram juntos…
Barreira nenhuma teve o poder de impedir o encontro. Um pássaro que ali estava cantou um amor que sentia e se juntou a outro pássaro que passava. Eis que isso refrescou o ardor.
De mãos dadas, soltos e livres, seguiram falando sobre coisas que tinham em comum. Uma sincronia perfeita. Ela sempre soube que o amor parte da admiração pelo outro. Nenhuma outra qualidade importa mais que esta, de sentir orgulho de se estar com quem encanta.
Não, ela não estava pensando em príncipes não. Não havia o que inventar – estava tudo ali.
O momento que viviam lhes dava subsídios o tempo todo. Tinham o verão pela frente, como se as árvores fossem ficar cheias de flores no ano todo. Era o tempo dos Ipês Amarelos, e estes luziam ao sol de verão.
De mãos dadas, apaixonados, chutavam água gelada à beira mar. Flutuavam em meio às ondas e ao vento falando palavras de amor.
O mar serenou…
As ondas não se agitavam mais.
O coração estava aquecido. Foi naquele entardecer sereno e colorido por trás do morro onde o sol ia se escondendo que ela conhecera o que é o amor de verdade. Molhada da praia, com a roupa grudada no corpo, deixando transparecer que eles se amaram pela primeira vez.
Sorrindo por entre as lágrimas e sentindo o gosto de sal nos lábios dele.
Por horas ficaram assim, abraçados, contemplando as ondas do mar. Absortos, preenchidos de si e de amor.
Na praia, ensombrecidos por esse verão, esqueceram do tempo. As gaivotas que ali passavam bicavam alguns restos de alimentos de que, por ventura, alguém deixara cair de seu lanche da tarde.
Veio o fim do veraneio. Cada um tomou seu rumo. Tanta coisa aconteceu…
Hoje, a tristeza e a saudade são quem lhe fazem companhia por onde quer que vá.
Várias vezes voltou a mesma praia. Tudo em vão. Onde tenha mar, areia e sol ela contém as lágrimas…
Segue assim, buscando este amor na vida, ou alguém que possa fazê-la sentir-se novamente amada. Ela sempre soube que na vida “vai um amor e vem outro”, mas sabe também, que nem Kairós, nem Chronos irão fazer com que ela esqueça quem um dia amou.
Foi um enorme prazer remexer em meus arquivos (pessoais, do Imaco, da AEC/SP, do Vereda, do Libertad), manuscritos, textos publicados, agendas, dialogar com amigos que também viveram esse tempo tão especial, verdadeiro Kairós! Paulo Freire vive!
Neste ano de 2023, Paulo Freire, nascido em Recife, em 19 de setembro de 1921, faria 102 anos. Temos muito a comemorar!!![1]
I- Minha Relação com Paulo Freire
Minha relação com Paulo Freire[2] tem várias e complementares facetas: leitor de sua obra, aluno, participante de encontros e palestras com ele, “interlocutor” em minhas práticas escolares e de formação docente, “vizinho”, secretário de educação, amigo de amigos dele, parceiro em algumas atividades e, depois de seu falecimento, “autoconvocado” a reinventar sua obra, além de ser convidado a falar e a escrever sobre seu legado. Faço, a seguir, um breve depoimento de alguns destes diversos momentos.
1-Contato com a Obra
Meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire deu-se, não no âmbito da academia, mas dos movimentos sociais, mais precisamente em 1977[3], com a leitura de um trecho da “Pedagogia do Oprimido”, num papel mimeografado que ainda cheirava a álcool, numa noite de sábado, na sede da OAF-Organização de Auxílio Fraterno, antes de sairmos[4] para a ronda no centro de São Paulo (onde eram distribuídos chá, lanche e cobertor, se fosse o caso, para os moradores de rua).
Eu, com 21 anos, era aluno do 1º ano do curso de Engenharia Eletrônica da Escola Politécnica da USP, e já tinha sido professor na Escola Técnica Industrial Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo, onde me formara no curso Técnico em Eletrônica, em 1974. Estava num processo de metanoia, de “viragem à esquerda”, de um desvelamento de uma realidade que, até então, como um produto do “milagre brasileiro” (técnico eletrônico, iniciando engenharia)[5] e participando de um movimento católico de jovens bastante elitista, tinha sido poupado.
Mais tarde um pouco, com um grupo de amigos que faziam o curso de Teologia para Leigos no CEVAM-Centro de Evangelização Missionária, na Vila Carioca, em São Paulo, voltamos a ler “Pedagogia do Oprimido”.[6]
2-Curso “Ciço”
No ano de 1983, depois de ter deixado a engenharia, ter ido para o seminário franciscano em Guaratinguetá, deixado o seminário depois de pouco tempo e voltado para São Paulo, eu cursava as últimas disciplinas do curso de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira. Trabalhava, pela manhã, como coordenador pedagógico no Instituto de Ensino Imaculada Conceição-Imaco e, à noite, como orientador educacional e professor no Colégio São Luís. Fazia uma disciplina optativa, no curso de Pedagogia, com a Profa. Selma Garrido. Numa das aulas, ela trouxe a divulgação de um curso com o Prof. Paulo Freire (e professores convidados): “Dimensões Políticas, Sociais, Econômicas e Culturais da Educação através da leitura do Ciço”. Fiquei muito interessado!
O curso ocorreu de 03 de maio a 14 de junho.
Conhecer pessoalmente Paulo Freire foi uma grande emoção. Os encontros foram fantásticos! Íamos lendo o texto “Ciço”, de Carlos Rodrigues Brandão, e a cada trecho, parávamos para dialogar. Às vezes, passávamos a noite toda dialogando sobre um único parágrafo. Numa das noites, a grande surpresa foi a presença do próprio Brandão. Imaginem a magia de um curso como este!
Pois bem, num dos dias do curso, Paulo Freire falou que estava precisando de um lugar para o CEEd-Centro de Estudos em Educação (logo em seguida denominado Vereda) que ele e alguns amigos tinham fundado recentemente. Falei como o diretor do Imaco[7], Prof. Luiz Pierre, que cedeu uma sala no 1º andar do colégio para o Vereda.
3-“Vizinho”
O período de minha maior proximidade com Paulo Freire foi justamente quando a sede do Vereda foi instalada Imaco, onde eu era coordenador pedagógico (e depois diretor), e lá ficou de meados de 1983 até final de 1988[8]. Tornou-se, assim, nosso “vizinho”, já que, de quando em quando, cruzávamos com ele pelos corredores. Participei de diversas atividades de estudos no Vereda, com intelectuais[9] de muitas áreas do saber[10] (o que revela, mais uma vez, a forte curiosidade que animava Paulo Freire). Ele nos brindou com vários encontros com nossos alunos do Ensino Médio (aos quais ia com muito gosto), bem como com nossos professores e comunidade educativa.
A foto abaixo foi de um destes maravilhosos encontros, eu já como diretor do colégio, na noite de 8 de outubro de 1985, com a temática “Educação enquanto Ato de Conhecimento”, na Semana de Educação, em comemoração ao aniversário do Imaco e ao dia de São Francisco de Assis (os Frades Capuchinhos eram os mantenedores do colégio).[11]
4-Falecimento de Elza
Em 1986, no dia 24 de outubro, faleceu Elza, primeira esposa de Freire. Eu era aluno de Dermeval Saviani no mestrado em História e Filosofia da Educação na PUC/SP e, ao mesmo tempo tinha, como disse, encontros com Paulo Freire nos corredores do Imaco. Eram dois educadores por quem eu tinha (e tenho) grande admiração e profundo respeito.
Naquele momento, todavia, era ainda forte no meio acadêmico o embate entre “competência técnica” e “compromisso político” do educador, e a maneira enviesada como era conduzido em alguns círculos, se extrapolava e dava-se a entender que Saviani e Freire seriam “inimigos mortais”.[12]
Tenho pra mim que a polêmica, embora fosse originalmente no campo teórico mais relacionado a Saviani[13], acabou sendo usada para atacar Paulo Freire, insinuando que pregava o “educador-político”, mas não dava muito valor para a escola, para o conhecimento. Este viés, carece totalmente de fundamento.[14] Basta ver, por exemplo, a obra “Extensão ou Comunicação?”, que comento em seguida.
Pois bem, para minha surpresa e alegria, quem vi no cemitério? Dermeval Saviani, solidário à dor de Paulo Freire, desmascarando todo aquele construto artificial de “briga irreconciliável”!
Minha intenção ao fazer este registro, algo totalmente subjetivo (minha surpresa e alegria no cemitério ao ver Saviani), é ajudar a superar picuinhas que, eventualmente, perdurem até hoje e, para além das saudáveis divergências, apontar para o que interessa e nos une no campo progressista: Um Outro Mundo e Uma Outra Educação Possíveis!
5-Extensão ou Comunicação?
Uma das coisas que sempre me encantou foi a paixão constante de Paulo Freire pelo conhecimento, que é também minha temática de paixão maior. Em seus diálogos, frequentemente, partia da política (que pronunciava com “boca cheia”, com muita ênfase e gosto), ia para a ética, para as grandes questões mundiais, etc. mas sem perder a referência epistemológica, ou gnosiológica, como preferia dizer; o conhecimento como instrumento de libertação.
No ano de 1987, no período de 17 a 22 de agosto, fiz um curso de extensão em “Filosofia para Criança”, na PUC/SP, ministrado pelo Prof. Marcos Lorieri, em que uma das referências básicas foi o livro “Extensão ou Comunicação?”.
Neste livro, depois de fazer a crítica à tradição educativa de “transformar o sujeito em objeto para receber pacientemente um conteúdo de outro”, Paulo Freire vai nos brindar com os fundamentos epistemológicos da atividade pedagógica, apresentando a sua leitura da teoria dialética do conhecimento, bem como o seu desdobramento didático-metodológico, em especial o diálogo problematizador, uma vez que “sem a relação comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível desapareceria o ato cognoscitivo.(…) A educação é comunicação, é diálogo”.[15]
“Extensão ou Comunicação?” marcou muito a minha formação, na medida em que aliou a reflexão gnosiológica, normalmente um tanto hermética e sisuda, à práxis da educação libertadora. Nos dias atuais, com tantos modismos e solicitações, esta obra, infelizmente pouco conhecida, torna-se indispensável[16] para ajudar o professor a ressignificar sua atividade a partir do seu núcleo mais profundo, possibilitando a articulação consistente entre a prática cotidiana de sala de aula, as contraditórias demandas sociais e o horizonte de um novo histórico-viável.
6-Secretário de Educação
Paulo Freire foi secretário de educação[17] da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, onde meus três filhos foram estudar, na E.M. Padre Manoel de Paiva[18], durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992), e onde fui membro do Conselho de Escola (na condição de pai de aluno). Foram anos de uma muito fértil convivência democrática, de aprendizagens riquíssimas para o Tiago, o Bruno e a Maíra, assim como para minha esposa e para mim.
Na perspectiva pedagógica, um ponto alto foi o Conselho de Escola ter aprovado a participação da escola no “Projeto da Interdisciplinaridade”[19] que propiciou, entre outras coisas, o trabalho coletivo constante, as reuniões pedagógicas semanais na escola, fato bastante raro naquele momento tanto nas escolas públicas quanto particulares.
No primeiro semestre de 1990, como membro do Conselho Editorial da Revista de Educação AEC, entrevistei a Profa. Ana Maria Saul, que era diretora da Diretoria de Orientação Técnica-DOT da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
7-Itaici
Um aspecto da personalidade de Paulo Freire que propiciava sentir-me muito acolhido era a união, algumas vezes um tanto tensa é certo, que ele fazia entre sua visão cristã do mundo e a postura dialética diante da realidade que clama por transformação[20]. “Meu encontro com Marx jamais me sugeriu deixar de me encontrar com Cristo nas esquinas da rua!”[21]
Em 1992, participei, como assessor pedagógico da AEC/SP, da Assembleia Geral da Regional Sul I-CNBB, no Convento de Itaici, no município de Indaiatuba/SP, que refletia sobre educação. No dia 24 de junho, tive o privilégio de presenciar o rico diálogo de Paulo Freire com os bispos sobre a problemática da educação no Brasil. Fiquei tão impactado pela força da justa raiva e indignação de Paulo Freire que, logo em seguida, publiquei um artigo na Revista Dois Pontos:
“Como afirma Paulo Freire, uma das coisas que a academia (e a sociedade) ensina ao professor é detestar o cheiro do pobre, é considerá-lo incompetente, incapaz, indolente por natureza. Ora, a educação tem como fundamento justamente a esperança na possibilidade de mudança do outro; se não há esta esperança por parte do professor, como pode educar (vejam-se as “profecias autorrealizantes” de fracasso). (Vasconcellos, 1992)
8-Falecimento
No dia 2 de maio de 1997, quando de Paulo Freire me despedi, no hall do TUCA-Teatro da PUC/SP, onde seu corpo estava sendo velado[22], lembro de ter conversado rapidamente com sua filha Madalena sobre a responsabilidade de todos aqueles que o admiravam em relação à continuidade de sua obra.
9-Reinvenção
Paulo Freire continua muito vivo e presente em minha existência, lembrando o que ele dizia “Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como gente”. Alguns elementos de sua obra estão tão incorporados, que me faz lembrar e parafrasear a música “seu sangue errou de veia”… Só dois sinais externos: o centro de formação que criei, em 1989, chama-se “Libertad”[23], e a denominação que dei à concepção de educação que procuro sintetizar é “Dialética-Libertadora”![24] Não quero, absolutamente, dizer com isto que eu seja um ser humano da densidade que ele é, mas que ele continua me provocando a viver minha “histórica e ontológica vocação de Ser Mais”, como tanto insistia. Gosto muito daquela pergunta: “Menino, quem foram teus mestres?” Paulo Freire, sem sombra de dúvidas, foi/vem sendo um deles!
Ao sentir, pensar e intervir no mundo, algumas formulações de Paulo Freire, sejam conceitos ou neologismos próprios, sejam conceitos ou ainda palavras já conhecidas, mas que ganharam um novo vigor em suas falas, estão em mim sempre presentes:
A humanização do homem, que é sua libertação permanente, não se opera no interior de sua consciência, mas na história que eles devem constantemente fazer e refazer[25];
Alegria;
Amor/Amorosidade;
Boniteza;
Consciência do Inacabamento/Incompletude/Humildade;
Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio. (…) Desde logo, qualquer busca implica, necessariamente, numa opção (tomada de posição, a favor de quem, contra quem)[27];
Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro a tarde…;
Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo…;
O mundo não é. O mundo está sendo;
Oprimido hospeda o opressor;
Política;
Práxis;
Problematização;
Rigor/Rigorosidade/Seriedade;
Saberes Necessários;
Tema Gerador;
Teoria do Conhecimento/Gnosiologia/Ciclo Gnosiológico;
Transformação, etc.
II-Algumas Preocupações
Para além das comemorações, temos também algumas preocupações. Uma, que tem me intrigado e preocupado, é verificar quantas vezes, nas redes sociais e mesmo em dissertações e teses, Paulo Freire é citado de maneira inautêntica, já que as frases a ele atribuídas não foram por ele escritas, qual seja, não se encontram em suas obras publicadas em vida ou posteriormente. Como podemos esperar as mudanças profundas necessárias na Educação que Paulo Freire nos aponta, se ele está sendo lembrado na base de slogans(!) e não no conhecimento de suas obras?
A frase “Não há saber mais ou saber menos; há saberes diferentes” é uma das mais citadas e referenciada como estando na “Pedagogia do Oprimido, p.68”. Pois bem, não está lá, nem se encontra em seus escritos; pode ter sido dita por ele, entretanto, não está nos seus livros.[28]
Analisando seu conteúdo, se não há saber mais ou saber menos, então o estudo do cientista sobre a vacina vale a mesma coisa que a opinião do tio do ZAP!
Quando consideramos os territórios de produção do conhecimento e suas epistemologias, podemos afirmar que não há saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes, no sentido do valor, digamos assim, da dignidade dos conhecimentos. Neste contexto, podemos lembrar de citações de Paulo Freire (mesmo!): “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa” (A importância do ato de ler, p.78); “Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (Pedagogia do Oprimido, p. 95).
Todavia, num dado referencial epistemológico, isto não se aplica, visto que diferentes sujeitos ou grupos têm diferentes domínios de saberes em termos de abrangência e complexidade. Tenho, por exemplo, um grande amigo, profundo conhecedor da História da Matemática: sim, ele sabe muito mais do que eu neste campo. Porém, isto não significa que o conhecimento dele seja verdadeiro, nem completo, nem que eu não possa vir a ter este conhecimento maior também. Na minha pesquisa, o máximo que encontrei foi um texto do Prof. Pedrinho Guareschi em que afirma ter ouvido isto de Paulo Freire, na década de 70, quando conviveu com ele na Suíça. Valeria, portanto, como citação oral, porém não como tem sido feita de forma até falseada, ainda que não haja intenção, mas com falta de rigor por não verificar a fonte.
Uma outra citação bastante comum é a que diz respeito ao Esperançar: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
As pessoas associam ao livro Pedagogia da Esperança, chegam a citá-lo, citar a página (que um dia alguém citou numa postagem provavelmente numa rede social e que passa a ser reproduzida, até em epígrafe de teses de doutoramento!), sendo que na Pedagogia da Esperança simplesmente não há a palavra esperançar! Aliás, em nenhuma outra obra publicada de Paulo Freire!
Na verdade, o uso da palavra Esperançar é introduzido por Mário Sérgio Cortella, em vários de seus textos, desde sua tese de doutorado (PUCSP, 1997), artigo para o jornal Folha de São Paulo (2001), e mais recentemente no Educação, convivência e ética: audácia e esperança! (Cortez Editora, 2015), sempre se referindo ter ouvido isto de Paulo Freire. De fato, é uma ideia perfeitamente freireana, embora não escrita por Paulo Freire.
Não se trata de um “purismo”, mas de um cuidado, para que Paulo Freire não seja reduzido a uma espécie de autoajuda pedagógica! O que angustia, como disse, é o desconhecimento da sua obra! Pode parecer um detalhe, mas nosso mestre prezava pela rigorosidade, não é mesmo?
Meninos, eu vi! Mais do que isto, eu vivi (e procuro viver)! Paulo Freire vive naqueles que buscam radicalmente fazer da Educação uma Prática da Liberdade!
Sou profundamente grato pelas marcas (insignare – marcar com sinal, dar a conhecer) que Paulo Freire deixou em minha formação! Estes registros, que espero sejam vistos como um convite, provocam muitas saudades, alegria e esperança de “um novo mundo em que seja menos difícil amar”!
AUTOR: Celso dos S. Vasconcellos
Prof. Celso dos Santos Vasconcellos é Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista, professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação. Foi Professor (Educação Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação), Orientador Educacional, Coordenador Pedagógico e Diretor de Escola. É consultor de secretarias de educação, responsável pelo Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. celsovasconcellos@uol.com.brwww.celsovasconcellos.com.br
__________ Extensão ou Comunicação, 5a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
__________ Pedagogia do Oprimido, 9a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
__________ Educação como Prática da Liberdade, 14a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
__________ A importância do ato de ler, 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1983.
__________ Professora Sim, Tia Não – cartas a quem ousa ensinar, 4a ed. São Paulo: Olho d’Água, 1994.
__________ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
__________ Pedagogia da Tolerância. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
NOSELLA, Paolo. Compromisso político e competência técnica: 20 anos depois. Educação & Sociedade (90). São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Cedes, 2005.
SAUL, Ana Maria. Planejamento Participativo como Instrumento de Construção dos Direitos Humanos na Rede Municipal de Ensino de São Paulo – entrevista a Celso dos S. Vasconcellos. In: Revista de Educação AEC: Direitos Humanos e Educação (ano 19, n. 77 out-dez). Brasília: Associação de Educação Católica do Brasil, 1990.
SAVIANI, Dermeval. O pensamento da esquerda e a educação na República brasileira. In: Pro-Posições, revista quadrimestral da Faculdade de Educação – UNICAMP. Campinas, vol. 3, n° 10.
VASCONCELLOS, Celso dos S. A Participação do Professor na Distorção da Avaliação. Revista Dois Pontos – Teoria e Prática em Educação. Belo Horizonte: agosto de 1992 (n. 13).
__________ Discurso e Prática na Educação Libertadora: o desafio da mudança de postura. Revista de Educação AEC. Brasília: out/dez. de 1997 (n. 105).
__________ Para trabalhar com o conhecimento. In: RevistaNova Escola. Uma biblioteca essencial para o bom educador. São Paulo: Fundação Victor Civita, out. 2001.
__________ Competência Docente na Perspectiva de Paulo Freire. Revista de Educação AEC. Brasília: abril/junho de 2007 (n. 143).
__________ Liberdade. In: GADOTTI, Moacir (org.). 40 Olhares sobre os 40 Anos da Pedagogia do Oprimido (Série Cadernos de Formação – Nº 1). São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008.
__________ Paulo Freire e o Amor: a identidade docente em questão. Revista Direcional Educador. São Paulo: maio de 2013 (n. 100).
__________ Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação, 14a ed. São Paulo: Libertad, 2018.
__________ Paulo Freire: patrono da minha educação. Coletivo Paulo Freire. Cem Anos de Paulo Freire, Cem Vozes de Corações e Mentes. São Paulo: Coletivo Paulo Freire, 2021
__________ Amorosidade Freireana na Atividade Docente. In: CHARLOT, Bernard (org.). Por uma Educação Democrática e Humanizadora. São Paulo: UniProsa, 2021.
__________ Carinhoso Abraço, Querido Mestre! In: AGUIAR, João J. Ferreira de e POLI, José Renato (orgs.).Um grande abraço em Paulo Freire. Campinas/SP: Editora Brasílica, 2021 (no prelo)
[1].Temos também algumas preocupações, como veremos no final.
[2].Não consigo chamá-lo simplesmente de Paulo, uma vez que não tive tanta intimidade assim com ele.
[3].Não consegui, até agora, localizar em meus arquivos exatamente o dia e o mês.
[4].Ivete, Nenuca, Fortunata, Regina Manoel, Regina Soares, Luiz Kohara, Gema, Paco, Rogério, Maria do Carmo, entre outros.
[5].Depois de seis meses de trabalho como professor da escola técnica, tive condições de financiar um Chevette, sedan da General Motors, zero quilometro!
[6].A amiga Gina, de Osasco, pediu emprestado a “Pedagogia do Oprimido” e até hoje não devolveu! Coisa comum entre amigos, não é mesmo? Comprei um novo exemplar em julho de 1981.
[7].Colégio dos Frades Capuchinhos, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, e que tinha direção leiga.
[8].Há pouco tempo, através da Profa. Andreia Queiroga Barreto, filha de José Carlos e Vera Barreto, grandes companheiros de Paulo Freire no Vereda, tive acesso à cópia da carta, datada de 28 de novembro de 1988, a mim dirigida como diretor do Imaco, em agradecimento pelo empréstimo do espaço para a sede do Vereda, assinada por Paulo Freire. Foi uma grande emoção!
[9].Foi ali que conheci o Prof. Moacir Gadotti, de quem fui aluno especial na disciplina “Filosofia da Educação”, no Programa de Pós-graduação em Supervisão e Currículo, na PUC/SP, durante o 1º semestre de 1984. É um professor que me marcou muito. Nas primeiras edições do texto “Boniteza de um Sonho”, para minha grande satisfação, embora sabendo que era algo sem pertinência, além de um total exagero, Gadotti referia-se a mim como “um dos melhores alunos de Paulo Freire”. Quando o texto foi transformado em livro, esta referência desapareceu. Há pouco tempo, numa conversa, brinquei dizendo que ele tinha se arrependido, ao que argumentou que deve ter sido coisa do editor. Na verdade, o que importa mesmo é o privilégio de ter sido aluno de Paulo Freire; isto sim é algo maravilhoso!
[10].Educação Popular, Sociologia, Física, Teologia da Libertação, etc.
[11].Neste período, tivemos também no Imaco a sede provisória da Associação de Educação Cristã de São Paulo-AEC/SP, numa sala do térreo. Através da AEC/SP, tive contato com o Movimento de Educação Popular Fé e Alegria, e com educadores como Paulo Englert, Cecília Cardoso Alves, Margot Bertoluci Ott, Luiz Augusto Passos, etc., todos de inspiração e práticas freireanas! O projeto educativo inovador do Imaco possibilitou também o encontro com Anna Regina Lenner de Moura, Antonio Faundez, Frei Betto, Frei Ismael Martignago, Ismar de Oliveira Soares, Waldemar Rossi, entre outros.
[12].Daquela época e até hoje, parece-me que boa parte da “oposição” entre Saviani e Freire era muito mais entre “savianetes” e “freirenetes” do que propriamente entre eles! Era uma maneira de simplificar o mundo, dicotomizando-o, e dispensando-se de lidar com sua complexidade e contradições.
[13].A partir de diferentes interpretações de Antonio Gramsci, especialmente entre Guiomar Namo de Mello e Paolo Nosella.
[14].Paulo Freire sofreu críticas praticamente a vida toda. Para a direita, ele seria comunista, ateu, marxista, subversivo, um perigo à nação, etc. Para a(s) esquerda(s), ele seria cristão, liberal, hegeliano, idealista, não-diretivo, espontaneísta, escolanovista, só preocupado com a educação popular, etc.
[15] Trabalha também temáticas centrais de sua obra: tomada de consciência, relação pensamento-linguagem, teoria-prática, tema gerador, esperança crítica, busca do ser mais, processo de libertação do homem, etc.
[16].Considero este livro de Paulo Freire fundamental na formação do professor por tratar, com profundo rigor, de um dos pilares básicos da prática docente: o trabalho com o conhecimento. Como pode o educador desenvolver uma prática emancipatória se sequer compreende como se dá o processo de conhecimento?
[17].Atuou como secretário de educação de janeiro de 1989 a maio de 1991.
[18].Esta escola me foi sugerida pela querida amiga Olgair Gomes Garcia, na época Diretora de Educação Infantil da SMESP, que em função de sua proximidade com Nita (Ana Maria Araújo, que veio a se tornar a segunda esposa de Paulo Freire), tornou-se muito amiga de Freire.
[19].Sobre o projeto, ver “Série Inovações Educacionais-3”, publicação do INEP dedicada ao estudo de caso do “Projeto Interdisciplinar no Município de São Paulo”: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001617.pdf acesso em 07 de dezembro de 2021
[20].Esta tensão também era vivida nos setores da igreja ligados tanto à Educação Libertadora quanto à Teologia da Libertação.
[21].Encontro de Paulo Freire com educadores, promovido pela AEC/SP, no dia 8 de outubro de 1984, no Imaco.
[22].Faleceu na manhã do dia 2 de maio, de ataque cardíaco, aos 75 anos, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
[23].Libertad-Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica, em São Paulo.
[24].Muito sinteticamente, a Concepção Dialética-Libertadora de Educação procura articular, de forma concreta, a Epistemologia (campo do conhecimento) de uma Filosofia Dialética com a Ontologia (campo da existência como um todo) de uma Concepção Libertadora de Educação
[25].L’humanisation des hommes, qui est leur libération permanente, ne s’opère pas à l’intérieur de leur conscience, mais dans 1’histolre qu’ils doivent constamment faire et refaire (Freire, 1971: 36).
[26].A primeira produção de Paulo Freire de maior repercussão foi “Educação como Prática da Liberdade”. Sua grande obra, “Pedagogia do Oprimido”, trata da luta dos oprimidos para a superação da negação da liberdade. Sua última obra, “Pedagogia da Autonomia”, tem como referência a autonomia que é um outro nome para a liberdade. Por aí podemos perceber um dos motivos da vitalidade de sua obra, uma vez que a liberdade se confunde com o próprio processo de humanização.
[27].Uma das grandes riquezas de Paulo Freire é que jamais reduziu ou dicotomizou o Pedagógico, o Epistemológico, o Ontológico do Político! Este texto está logo no começo da obra “Educação como Prática da Liberdade”, escrita em 1965 (anterior à “Pedagogia do Oprimido”, escrita em 1968).
[28]. Eu costumava dizer que esta era uma das únicas frases com que não concordava com Paulo Freire, e acabei descobrindo que a frase não é dele.
Como é bom e saudável para a gente conhecer outras culturas, viajar, conhecer pessoas. A vida se expande e, ao retornar, se sente mais vontade de trabalhar, tem-se mais ânimo para tudo.
Quando deixei para trás a capital de Portugal, numa manhã dourada pelo sol da primavera, lá ficou um pedacinho de meu coração. A distância que nos separa é de aproximadamente 8904 km milhas marítimas, com o tempo de voo de 11 horas.
Lisboa é tudo o que há de bom em uma cidade. O centro histórico é lugar de querer entrar e ficar por horas e horas. Tanta coisa para apreciar. Tem cultura, lazer, tradição, belas paisagens. Até o ar que se respira purifica os pulmões. Também, chama muita atenção a gastronomia, bacalhau, vinho, sempre ao som do fado, é claro. Os lisboetas sabem o que é bom.
Na rua, ladeada por bares e sombrinhas coloridas, experimentei a melhor azeitona, cultivo próprio, são imensas as áreas de produção. Até trouxe uma pequena embalagem de vidro, que enrolei, protegi com roupas e coloquei no fundo da mala. Aqui, hoje, colocada em um recuerdo, degusto com um bom vinho português.
Como é bom e saudável para a gente conhecer outras culturas, viajar, conhecer pessoas. A vida se expande e, ao retornar, se sente mais vontade de trabalhar, tem-se mais ânimo para tudo.
Pelo menos, por uma semana, ainda quero voltar a ficar em Lisboa. Passear, andar com calma pelas ruas da capital. Fazer uns “bate-volta” em lugares próximos, como Sintra e Cascais. Quero trazer os segredos da produção de azeitonas, talvez, quem sabe, produzir aqui, E por que não?
Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!
Esta é uma das crônicas que surgiram a partir de minha atuação na Pastoral Carcerária da Igreja Católica. Durante os últimos 4 anos nosso pequeno grupo (com o hiato causado pela pandemia de covid), alicerçado pelos princípios do Evangelho de Jesus Cristo, volta seu olhar para os privados de liberdade e os visita uma vez na semana.
Nosso objetivo a priori é a escuta. O que eles têm a dizer? O que suas vidas têm a dizer? Como podemos estar presentes, a partir dessas falas?
A expressão “sistema prisional” faz parte do rol de assuntos de que muitas pessoas (boas cristãs, inclusive!) passam ao largo ou abertamente se posicionam por deplorar!
Parto do princípio de que o silenciamento pode significar aquiescência, por isso estou aqui, a escrever. O silenciamento pode nos colocar num menear de cabeça afirmativo, quando nossa vontade é gritar “não”. Além de, se de um lado, falar sobre prisão, assunto que a sociedade como um todo torna invisível e mudo, numa indiferença coletiva que é capaz de amordaçar qualquer fala, pode se tornar mesmo uma árdua tarefa, de outro, sabemos que levantarem-se questões acerca de uma chaga social, como os sistemas prisionais, ainda que sob o manto de um texto literário, pode colaborar para que a invisibilidade e o silenciamento se tornem mais do que manchetes sensacionalistas de programas de tv. Dito isso, segue o olhar:
Não era uma tarde das mais agradáveis. Fazia muito frio e caía uma chuvinha fina, comum por aqui em qualquer junho. É quando a paisagem e os prédios adquirem tons de cinza. Não era a primeira vez que lá estávamos. Demoramos para entrar, que tudo é demorado na prisão. Em tudo há pontos finais, as vírgulas foram esquecidas lá fora.
Passados pelo escâner, pela segunda segurança, e eis-nos, enfim, sob o mesmo teto que nossos irmãos privados de liberdade – teto cinza, de fala cinza. Caminhamos pelo corredor num curto caminho cinza e, depois de passarmos por duas grades, esperamos a última porta se abrir, sugada por um segurança, lá em cima.
Por fim, já dentro de uma mistura de salão com pátio – parte com teto, parte sem teto, porém com grades em cima, e dos lados, como grandes gaiolas, encontramos aqueles que já nos esperavam. Quase sessenta pessoas! A maioria dos olhares se voltaram para nós, nesta chegada, e os cumprimentos, os apertos de mão, os parcos sorrisos, nos receberam.
Tratava-se de uma visita, tratava-se de um encontro.
Caminho mais para o fundo, na parte coberta e sento no banco de metal gelado, que se estende ao longo de grandes mesas de igual material. A princípio tudo parece igualmente gelado; mas, de repente, atraio a atenção de um jovem, que se senta em frente, e entabulamos uma conversa. Observo seu rosto.
– A senhora pode falar com minha mãe e dizer que eu tô aqui. Ela não tá sabendo.
Os olhos me fitavam com uma mistura de possibilidade e a angústia de um não.
Pensei por um instante na gaiola. Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!
– Claro, posso sim. Sabe o telefone?
Pensei ver um sorriso tímido.
– Sei.
Ao contrário do que se imagina, a conversa é monossilábica e, de tão lenta, parece levar horas até que uma nova frase seja dita. E ele me diz o número, que anoto na agenda. Estou escrevendo, mas sinto seu olhar atento, certamente torcendo pra eu não errar o número, porque essa é a última chance pontifícia para uma comunicação quase pública, sem privacidade nenhuma… depois, só dali a uma semana, quando volto. Ele repete o número. Releio. Está certo. Que bom que temos memória!
– A senhora vai ligar, então? – insiste.
– Vou.
Neste momento, olho definitivamente para ele: suas parcas roupas, camiseta, que um dia fora branca no corpo de outro, uma bermuda (meu Deus do céu, devia estar fazendo uns 15 graus!), uma coberta – de algodão prensado – sobre os ombros que, de noite, o cobre no sono talvez sem sonhos. E então, me lembro que estou agasalhada, meu corpo marcado pelo calor, enquanto o jovem à minha frente sela com o seu corpo a marca da tortura pela qual passa, e não consigo parar de pensar em Michel Foucault, quando nos mostra que todo poder busca colocar sua marca no corpo ou, inversamente, o corpo é o receptáculo privilegiado da vontade de poder.
Mais alguns minutos e nós, os “livres”, transpomos as grades, no sentido da saída. Vão comigo um número de telefone e o aprisionamento de uma vergonha humana espetacular pelo corpos marcados.