Neste 2023 não poderia deixar passar este tal de 20 de setembro. Afinal, estamos diante do caos climático, onde muitos gaúchos perderam suas pilchas para as caudalosas águas das chuvas. Haverá poucos festejos, talvez com menos fandango, menos carne assada, menos cavalgadas não sobre algum tempo a mais para reflexão.
Imaginem vocês há 188 anos atrás acordando em Porto Alegre – de 15 mil habitantes – com uma tropa de farrapos cruzando a ponte da Azenha, dando tiros.
Porto Alegre ficou tomada por eles. Mesmo que os imperiais tivessem retomado a capital já em 1836, ficou sitiada por mais de 4 anos, sob Bento, Canabarro, Netto e João Antônio da Silveira.
Havia dois governos. Porto Alegre e seu povo pouco tinham a ver com as demandas concretas dos revolucionários. Claro, havia o tema da República e dos escravos, especialmente para os primeiros farrapos que fundaram o Partido Farroupilha, como o Tenente Alpoin, que nem gaúcho era. Mas de lado a lado, mantiveram seus escravizados.
E a República virou ficção na bravura de Netto, como na Constituição nunca votada. A demanda dos farrapos tinha mais a ver com os criadores de gado, com os impostos sobre o charque, questões que não atingiam o citadino.
Logo, mesmo com o título outorgado à capital pelo Imperador, não se tratava de lealdade de fato.
A vida e a sobrevivência, como os interesses econômicos de uns e os pessoais de outro, era o que contava.
Por que não se discutem as façanhas de sobrevivência a um cerco de quatro anos? Por que não se debate a falta de alimentos na capital? Por que não se fala de gado e cavalos roubados não só de estancieiros, mas de outros bem menores?
Por que quatro famosos generais com quatro vezes ou mais soldados foram repelidos por uma minguada tropa imperial na capital? Simplesmente porque o povo ia às trincheiras para a defesa do que era seu, a cidade. Por que não se fala de Chico Pedro, o Moringue, que nem soldado era, mas formou um exército em defesa da capital, tirando-a da fome com investidas aos sitiadores?
Por que será que se esquecem dos adversários?
Chico Pedro foi, ao final da Guerra, usado pelo Duque de Caxias para dar combate em Porongos. Afinal, foi ou não foi um massacre? Nem neste infortúnio ele é lembrado.
Até hoje não se vislumbram as razões. Até porque nem aos mais sérios e empenhados historiadores chegaram documentos para deslinde de certos pontos nebulosas desta Guerra.
Aos poucos vamos encontrando alguns espaços de debate. Mas nunca vi nem ouvi num CTG onde a Guerra nem perto chegou alguém se fazer esta pergunta: aqui, a Guerra não chegou, então por que tanto alarde neste 20 de setembro? Na Guerra Civil de 1893-95 as pelejas já foram quase gerais, mas na dos Farrapos não foi assim.
Neste 2023 não poderia deixar passar este tal de 20 de setembro…Afinal, estamos diante do caos climático, onde muitos gaúchos perderam suas pilchas para as caudalosas águas das chuvas.
Haverá poucos festejos, talvez com menos fandango, menos carne assada, menos cavalgadas não sobre algum tempo a mais para reflexão.
Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?
Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?
O céu estava invernal e cinzento naquele dia funesto. O sol, porém, baixou devagar e cada vez mais avermelhado, parecendo sangrar no horizonte.
A escuridão da noite, carregada de nuvens, logo se adensou. O vento se ergueu de repente, deslocou-se para longe. Ia e voltava. Nas ruas, as rajadas eram fortes, parecendo pressagiar o que estava por acontecer. Contudo, ninguém jamais pensou que a natureza pudesse mostrar seus dentes de forma tão intensa.
A ventania, cada vez mais forte, fazia farfalhar as folhas; as árvores balançavam para frente e para trás, como se quisessem fugir de alguma coisa.
Os pinheiros, que se erguem solitários, no terreno ao lado, rangiam e giravam para todos os lados. Ora suas copas se voltavam para cima, como se pedissem clemência para um Deus qualquer.
O silêncio dentro de casa, junto com o medo, crescia. Ela foi até a cozinha e preparou uma xícara de chá.
Era tarde. Fechou toda a casa. Antes lançou, pela janela da frente que dava para a rua, vazia àquela hora, um olhar enviesado, em direção ao céu. Havia uma força enorme lá fora. “Quem sabe o que pode acontecer?”, pensou.
Tudo virou em nada naquela madrugada da noite imensa. Sentiu o piso da casa ranger e ouviu o barulho das telhas que se levantavam e voltavam a sentar-se. Elas estavam conscientes de que poderiam ser úteis.
Portas e janelas pareciam voar pelos ares. O aguaceiro tamborilava por toda parte. Os rios, “que só queriam passar”, levavam o que havia pela frente e começaram a entrar em todos os lugares. Afogaram as cidades. Vidas se perderam.
— Socorro!!! Socorro!!! — gritavam algumas pessoas já em cima dos telhados de suas casas.
Impotentes diante de eventos climáticos extremos, as pessoas se unem. Uma tragédia assim faz com que tenhamos comoção e, com isso, união.
Em circunstâncias tais, ficamos mais próximos uns dos outros. Aquele que vivenciou na pele sofre muito e precisa de solidariedade. É necessário compreender a sua dor, seu estado de choque e ajudar.
Fatos como este sugerem que nos tornemos melhores em relação ao outro e que façamos alguma coisa para aliviar seu sofrimento. São pessoas impactadas em todos os sentidos. Muitas tiveram suas vidas corrompidas; sonhos, projetos e construções foram esvaziados em segundos.
Um aniquilamento social e psíquico. São as intermitências da morte tão presentes na vida que se desumaniza dessa forma. A melancolia ocupa todo o espaço agora deixado pela destruição. Contudo, a vida segue não se sabe bem para onde. Como recomeçar neste espaço lamacento deixado pela devastação?
Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?
Palavras de esperanças precisam ser ditas. Abraços precisam ser dados. A dor e as lembranças sofridas ficarão por longo tempo. Algumas pessoas se refazem, conseguem elaborar, outras não.
O trauma vivido deixará cicatrizes profundas ali sempre em aberto. Muitas pessoas precisarão de acompanhamento psicológico. O sentimento de empatia é muito importante neste momento. Só assim, quem sabe, poderão ter forças para recomeçar.
A História do Rio Grande do Sul foi mal ensinada nas escolas, dizem meus amigos. Não posso falar, pois fiz meu ensino fundamental e médio em terras barriga verdes. E lá não foi diferente. Não lembro se me falaram de Anita Garibaldi.
Pergunta 1 – Quando você estudou História Rio-grandense na escola alguém falou de Gumercindo Saraiva?
Pergunta 2 – É Guerra ou Revolução Farroupilha? É Guerra Civil de 1893-95 ou Revolução Federalista?
Pergunta 3 – Em que “Guerra” ou “Revolução” ele perdeu a cabeça?
Pouco depois li o livro do Tabajara Ruas: “Netto perde sua alma”, mas não tinha lido até agora “A cabeça de Gumercindo Saraiva” do mesmo Tabajara Ruas e Elmar Bones.
A História do Rio Grande do Sul foi mal ensinada nas escolas, dizem meus amigos. Não posso falar, pois fiz meu ensino fundamental e médio em terras barriga verdes. E lá não foi diferente. Não lembro se me falaram de Anita Garibaldi.
Até bem recentemente, nas escolas era quase sempre uma grande decoreba de datas, nomes; mas nada muito substantivo. Temos muitos livros que falam de nossa história (do Rio Grande do Sul, pois depois de 50 anos por aqui, sou parte dela e deste Estado). Sei de muitos mitos e lendas que se sobrepujam aos fatos reais.
Em 1983, Tau Golin escreveu “Bento Gonçalves O Herói Ladrão”, e ele e o livro sofreram uma verdadeira caça. Em 1997, sai este “A cabeça de Gumercindo Saraiva”, com patrocínio da Copesul. Em pouco tempo, alguma coisa havia mudado.
O livro é preciso nas suas buscas e pesquisas em documentos, como ficou rico em entrevistas com parentes seus e de pessoas que sabiam algo mais concreto.
O livro tem outro mérito ao colocar as posições das facções em disputa na Guerra Civil de 1893-95, mostrando quem eram os chimangos e quem eram os maragatos.
Os autores não tomam posição, mas como leitor, pelos dados apresentados, fico cada vez mais convencido do autoritarismo dos pica paus, seguidores do castilhismo, cuja vertente política e ideológica impregna nossas vidas locais até os dias de hoje.
Ficou evidente mais uma vez nesta leitura que apesar do caudilhismo dos Saraiva, dos Tavares e de seus amigos, eles tinham como pressupostos a luta pelas liberdades herdadas de Gaspar Silveira Martins, não aceitavam a ditadura castilhista e floriana.
Alguns até poderiam questionar a República, o que não era difícil, pois não era esta República a de Benjamin Constant e de outros republicanistas. Eles acabaram tendo a simpatia de dissidentes do castilhismo, algo que se reforça nas batalhas de 1923. Não era um bando de latifundiários nem de mercenários. Mercenários havia nos dois lados. Não podemos esquecer que tiveram ao lado de Gumersindo e dos maragatos Custódio de Melo e Saldanha da Gama.
Quanto às degolas temos dados elucidativos, como aqueles citados nos estudos de Carlos Reverbel, citados pelos autores. Se do lado de Gumersindo havia um Adão Latorre, Zeca Tavares e outros homens violentos, do lado de Pinheiro Machado havia o sanguinário do Firmino de Paula e Varzulino Dutra.
Eram tempos sombrios, de matanças e crueldades, mas o mundo vivenciou a Banalidade do Mal anos depois com o nazismo. As guerras de ódio, de matanças por questões étnicas e religiosas continuam. Logo, a sobrevalorização e a forma sentimental de analisar nossa História não nos tem ajudado em nada. Como nada nos ajudou até hoje se posicionar século e tanto depois por uma facção ou outra. Recentemente, na Nicarágua, vemos Daniel Ortega virar um ditador quando estivemos anos atrás pelo mundo com ele e os sandinistas na luta para derrubar o somozismo.
Que pelo menos possamos ler autores como os citados, que possamos continuar lendo e estudando. Que a população saiba que maragatos usavam lenço vermelho e os chimangos, o branco. Nem esta coisa elementar se sabe hoje em dia.
A historiografia rio-grandense tem que ser revisitada, algo que vejo neste livro e alta qualidade.
Autor: Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito. (– no dia dos 50 anos do golpe no Chile.) Autor da crônica: Os gaúchos:https://www.neipies.com/os-gauchos/
Ser, fazer e pensar. Estes verbos exprimem o nosso modo humano de existir no mundo.
Ao mesmo tempo em que fazemos a história, constituímos nossa identidade e podemos exercitar a capacidade de refletir sobre nós mesmos e a realidade que nos circunda. Em boa medida, somos aquilo que fazemos. Porém, somos também aquilo que desejamos ser e fazer, e que, por motivos diversos, não o conseguimos.
Se o nosso ser e fazer são limitados ou impedidos, nossos pensamentos, crenças e sonhos podem nos alçar ao infinito. Nossas ações, modos de pensar e identidades individuais sempre têm incidências concretas sobre a história coletiva que construímos ou modificamos. De forma negativa ou positiva, todos deixamos marcas impressas na sociedade e no sistema cósmico do qual fazemos parte.
Observar como se processam os comportamentos das pessoas nos vários âmbitos, dimensões e contextos da vida é um exercício fundamental. Da capacidade de análise da realidade resulta também a possibilidade de interferir de forma mais apropriada na história, a fim de que ela adquira feições mais sustentáveis, justas, benfazejas e humanizadas.
Esta obra, constituída de uma espécie de mosaico do pensar, transita pelos terrenos movediços da realidade humana no anseio de que ela se firme em bases sempre mais sólidas nas quais a vida floresça e prevaleça.
Reúne 85 artigos, a maioria dos quais publicados nos últimos anos em meios virtuais e impressos. “Em tempos de ebulição – leituras instáveis” apresenta perspectivas do autor sobre aspectos da realidade social, ambiental, política, econômica, religiosa e cultural.
As análises se articulam e conectam à ideia de que os cenários que nos envolvem e que também são por nós construídos ou modificados estão em profunda efervescência. Desse modo, as leituras do que se passa na tela trêmula e efêmera da história acabam por ser elas mesmas instáveis e provisórias. Uma vez que tudo está em constante mudança, requer sempre novas e criteriosas leituras.
Autor: Dirceu Benincá,Graduado em Filosofia e Teologia; especialista em Comunicação Social; mestre e doutor em Ciências Sociais; pós-doutor em Educação. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Campus Paulo Freire. Autor de diversos livros, capítulos de livros e artigos científicos.
Quando dizemos que estamos vivendo um novo obscurantismo religioso, facilitado pelos meios de comunicação e pela indústria das fake news, as ideias de Descartes se apresentam como um facho de luz para indicar caminhos que nos ajudem a enfrentar as terríveis trevas que acreditávamos ter superado.
Podemos dizer que a filosofia de René Descartes (1596-1650) inaugura de forma mais acabada o pensamento moderno propriamente dito. Tal pensamento foi longamente preparado pelo humanismo renascentista representado por Erasmo de Rotterdam e Thomas More, pelas concepções científicas de Giordano Bruno e Galileu Galilei e pela visão prática de conhecimento dos empiristas ingleses. Mas Descartes é certamente o mais lembrado quando se fala do sentido da modernidade e da forma como esse brilhante pensador rompe com uma forma de compreender o mundo e inaugura uma nova forma de fazer filosofia.
O tempo de Descartes é um tempo de profunda crise da sociedade e da cultura europeias; um tempo de transição que rompe com a tradição feudal e inaugura uma nova tradição não mais baseado na autoridade da divindade, mas na autoridade da razão. A decadência do sistema feudal e o surgimento do mercantilismo trazem uma nova ordem econômica baseada no comércio, na livre iniciativa e no individualismo. Na arte, os efeitos do renascimento possibilitam não só retomar os valores da Antiguidade clássica, mas também propor uma cultura leiga, secular e mesmo de inspiração pagã.
Descartes nasceu na França, de família pertencente à pequena nobreza, estudou no colégio jesuíta de la Flèche e onde se tornou um exímio conhecedor da matemática e das principais ciências valorizadas na época.
Homem de seu tempo, viajou por diversos países da Europa, engajou-se no exército onde foi soldado combatente, foi aliado tanto dos católicos quanto dos protestantes, foi homem da corte e habitante da província, pensador solitário e correspondente da intelectualidade europeia, autor de um manual de esgrima e de uma das mais profundas obras de metafísica da modernidade.
O projeto filosófico de Descartes constitui uma defesa do modelo de ciência inaugurado por Copérnico, Kepler e Galileu contra a concepção escolástica de inspiração aristotélica que vigorava nas escolas de formação da qual ele mesmo frequentou. Em sua obra O discurso do método, faz uma defesa desse modelo mostrando que a nova ciência se encontra no caminho certo, ao passo que a ciência antiga havia adotado concepções falsas e errôneas.
Para Descartes, o bom senso, isto é, a racionalidade, é natural em todos os homens, mas nem todos são capaz de fazer uso adequado da razão e assim aplicam de forma incorreta o conhecimento, causando inúmeros problemas e falta de discernimento sobre as escolhas melhores. Por isso, a finalidade do método é para o pensador francês a forma de colocar a razão no bom caminho, evitando o erro.
O método se constitui num conjunto de regras e princípios que possibilitam garantir o sucesso do conhecimento e a elaboração de uma teoria científica que nos ajude a vencer o mundo das sombras.
“Penso, logo existo”, do latim “Cogito, ergo sum” é uma das mais importantes e célebres expressões filosóficas ditas por Descartes, pois representa para ele o fundamento seguro para a construção do “edifício do conhecimento”.
Em tempo de notícias falsas, da manipulação realizada pelos grandes meios de comunicação, do fanatismo religioso e político, da forma como as pessoas são facilmente enganadas por falsas ideologias, a indicação do “pensar” cartesiano se torna um antídoto poderoso para neutralizar o falso pensamento que se anunciam em todos os lugares.
Quando dizemos que estamos vivendo um novo obscurantismo religioso, facilitado pelos meios de comunicação e pela indústria das fake news, as ideias de Descartes se apresentam como um facho de luz para indicar caminhos que nos ajudem a enfrentar as terríveis trevas que acreditávamos ter superado.
A educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles.
Nossa sociedade, imersa na tecnologia e na informação, se constitui na/pela racionalidade neoliberal. As modificações vertiginosas e incisivas na vida humana fazem com que o trabalhador seja regido pela lógica da produção e do consumo, o que repercute no afastamento dele em relação aos princípios necessários ao bem viver. O capitalismo hegemônico tem esfacelado os princípios morais e éticos, estabelecendo como premissa nuclear das relações a competição em torno da lógica de mercado.
O exemplo de fragilidade dos princípios que regem a convivência humana que trouxemos é recente, do contexto pandêmico recém superado, e trata do sentimento de ressentimento que brota no ser quando está em sofrimento.
Conforme com o conceito de Kehl (2020), ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo próprio sofrimento, uma vez que o outro tem o poder de decidir algo sobre a vida do sujeito e, por essa razão, pode culpá-lo se houver algum insucesso. O sentimento retratado por Kehl (2020) parece ter eclodido durante a pandemia, com trabalhadores (potencialmente ressentidos) atacando outros trabalhadores, por meio de discursos depreciativos, principalmente nas redes sociais – espaço de expressão privilegiado no período da pandemia.
A Covid-19, deflagrada no final de 2019 e com continuidade nos anos seguintes, expôs a fragilidade da organização do trabalho no capitalismo, denotando a suscetibilidade dos sujeitos neste período particular e evidenciando a vulnerabilidade do próprio modo de produção. Por mais que seja organizado de forma a sustentar uma racionalidade em que os interesses privados estão acima de perspectivas humanas e sociais inclusivas e em que empresários são tidos como mártires por proverem empregos, contraditoriamente foram os homens e as mulheres – trabalhadores e trabalhadoras – nas relações de classe, que provaram sustentar a ordem social vigente.
A consciência acerca desse processo, contudo, não se mostrou assimilada por parte substantiva dos trabalhadores, principalmente daqueles em funções mais precárias que, ao invés de lutarem pela manutenção dos direitos básicos deles enquanto preservavam as próprias vidas, foram mobilizados a descumprir regras de distanciamento social a fim de manterem os empregos deles e as (insuficientes) condições de sobrevivência.
Empresários e agentes governamentais, inclusive, protagonizaram campanhas menosprezando os efeitos da pandemia e exigindo protocolos menos rígidos. Nos ambientes virtuais, movimentos em prol do retorno às atividades presenciais, principalmente por parte do funcionalismo público, ganharam notoriedade.
Os professores, de forma específica, passaram a ser referenciados como privilegiados e receberam adjetivos pejorativos enquanto categoria. Apesar de continuarem a desempenhar as funções de professores, mas de modo remoto, sofreram investidas diversas (inclusive com o impetramento de ações jurídicas) para garantir o retorno presencial das aulas e, assim, do exercício docente no ambiente específico da escola.
Foram muitos os ataques sofridos pelos professores, principalmente de escolas públicas – ressaltando que os professores de escolas privadas, necessitam manter o silenciamento para garantir o emprego.
As ofensivas dirigidas por parte de outros trabalhadores, revela um processo de precarização do trabalho que, neste período particular do capitalismo, potencializa a constituição subjetiva do ressentimento. A probabilidade torna-se latente no trabalhador precarizado hodiernamente, fazendo com que, em sua condição de indiferença, não consiga perceber a própria opressão e, assim, ressinta-se.
A incursão capitalista e neoliberal não é recente e a pandemia tornou-a ainda mais recrudescida, com o trabalhador tornando-se cada vez menos humano e transformando-se em objeto. Na condição de objeto ou coisa, o trabalhador se torna um ser de negócios, ao mesmo tempo em que “negocia o seu ser”, em um empreendedorismo de si, como problematizado por Dardot e Laval (2016). Transformado em coisa de transação comercial, o ser humano convive com o impedimento das experiências cotidianas, das vivências que sustentam a subjetividade e a dignidade dele (ADORNO; HORKHEIMER, 2012).
Nesse cenário, o ser humano, inserido nas diferentes profissões, acaba enredado pelas situações precarizadas de trabalho, com o receio de perder o emprego e de deixar de subsidiar as próprias necessidades básicas, o que o torna refém da sociabilidade em curso. Impotente frente à condição objetificada/coisificada pela qual é submetido, o trabalhador angustia-se, inquieta-se e aquieta-se, cultivando o ressentimento contra si e contra os outros (especialmente em embate aos que insistem em se debater na tentativa de superar as intempéries).
O imperativo era para que os professores retornassem ao trabalho presencial (mesmo sem haver vacinação e diante de graves riscos de contaminação pelo vírus da Covid19). O que estimulava tais movimentos era o fato de que outras categorias haviam retornado anteriormente aos espaços laborais deles, como se os direitos de parte do coletivo de trabalhadores não devessem ser ampliados, mas sustados.
Ocorreram ataques entre iguais (todos trabalhadores), exigindo-se que um fragmento deles abandonasse seus direitos ao invés de haver a união entre as classes para conquistar ou preservar direitos para todos. Esse processo de precarização do trabalho gera sofrimento e favorece e intensifica a constituição do ressentimento!
O trabalho, transformado em atividade individual, hierárquica e competitiva, não deixa espaço para o potencial criativo, muito menos para a realização pessoal.
Sem tempo livre, não consegue reverter a situação que vive, restando somente o lamento e, consequentemente, o “ressentimento”. Este sentimento tende a se intensificar quando discurso se volta contra si e contra os outros – em favor do próprio apedrejamento e do apedrejamento de seus pares –, o ser humano omite e se ressente com o que inevitavelmente deseja e sente: ele quer uma vida com qualidade e garantia de direitos. Esforça-se para afastar de si a ideia de que está sendo subjugado e oprimido, mas acaba expressando o ressentimento em algum momento. Pode-se dizer que acaba por viver uma vida ressentida, em que aproveita as oportunidades não para mudar a própria condição, mas para infundir o que ressente contra o semelhante KEHL (2020).
É imprescindível questionar o papel da educação no reconhecimento e na constituição de ferramentas de luta contra a subordinação do sujeito a um formato de trabalho que o entende como mercadoria, como um instrumento a ser descartado e substituído por outro à revelia do empregador. A docilização do trabalhador para que ele, passivamente, produza e consuma, aceitando ser subjugado não pode figurar, mesmo que subliminarmente, no cotidiano pedagógico.
Com a Reforma do Ensino Médio, implementada a partir da Lei nº 13.415/2017 e atualmente com revogação exigida por entidades estudantis, docentes e sindicais, há um esvaziamento das disciplinas tradicionalmente referenciadas – e responsáveis pelo conhecimento historicamente produzido – nessa etapa da educação básica, uma vez que as disciplinas são substituídas por componentes e percursos formativos voltados para temáticas como o empreendedorismo e a construção de projetos de vida. Mesmo reconhecendo que a escola brasileira precisa de muitas mudanças, esse processo denota o desfavorecimento de um processo reflexivo e crítico.
Entendemos que sem tais características não teremos uma educação emancipadora, tampouco a formação de consciência, tão necessária aos trabalhadores oprimidos e ressentidos que precisam se dar conta da condição de subordinação em que se encontram. Sem isso, não há desestabilização desse sistema que corrompe o ser humano, insere a competitividade e a individualização como orientadoras dos modos de vida e que, em momentos extremos como o de uma pandemia, consegue desestruturar ainda mais as relações e favorecer as rivalidades entre os iguais, como no caso em questão.
Apesar dessa aposta ser a qualificação da formação sabemos, também, que a educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles. Sabemos, ainda, que os docentes podem se tornar ressentidos ao viverem as consequências de processos de precarização que atingem a categoria profissional e o trabalho deles.
Assim, um movimento formativo pautado em princípios humanos e sociais, sensível às vivências cotidianas da realidade de subjugação, de fragilidade e de insegurança da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2000) precisa acolher também essa parcela de trabalhadores. Com isso e a partir disso, a dinâmica social precisa ser reconstruída, com a valorização dos trabalhadores e dos direitos deles e com a recuperação do espaço de fala e de luta de cada um, constituindo-se (mesmo que árdua e lentamente) em novos modos de vida.
Autoras:
Ana Lúcia Vieira
Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora da rede municipal de ensino de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos Formação Humana (UPF), do Núcleo de Pesquisas em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Sociedade (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS).
Renata Cecilia Estormovski
Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ensino Médio e Juventudes (GEPCEM Unisinos/CNPq).
Novas exigências educacionais pedem às universidades e cursos de formação para o magistério um professor capaz de ajustar sua didática às novas realidades da sociedade, do conhecimento, do aluno, dos diversos universos culturais, dos meios de comunicação”. (Ildeu Coelho, Professor)
Como formar um professor com as capacidades requeridas acima através de uma educação à distância (EaD) de baixa qualidade, para uma carreira profissional de remuneração inferior às similares e relações de trabalho por meio de contratos temporários emergenciais? Essa tem sido a realidade cada vez mais intensa e frequente no Brasil e no Rio Grande do Sul, onde ampliam-se as ofertas de formação inicial e continuada na modalidade EaD e aumento progressivo de contratos emergenciais temporários em detrimentos de concursos públicos.
Enquanto a União, estados e municípios descumprem várias políticas nacionais de educação, planos de educação (PNE, PEE e PME), diretrizes nacionais e leis – como a lei do piso do magistério –, gestores se sucedem anunciando medidas pontuais e ações eleitoreiras de irrisório impacto na educação pública, na formação inicial docente e na carreira dos professores.
O caso do RS, que é similar ao de São Paulo, e outros entes da federação, é uma evidência dessa realidade. Em agosto, a Assembleia Legislativa (ALRS) aprovou por unanimidade (52 votos a zero) projeto de lei enviado pelo governador para a contratação de professores, especialistas de educação e servidores de escola em caráter emergencial e temporário nas seguintes áreas:
– até 5 mil professores temporários para atuar na regência de classe ou na educação especial e no atendimento educacional especializado (AEE); – até 1.195 especialistas de educação temporários para a supervisão escolar; – até 596 especialistas de educação temporários para atuarem como orientadores educacionais; – até 1.150 agentes educacionais temporários para atuarem na interação com educandos; – até 1.075 agentes educacionais temporários para a administração escolar.
Os contratos terão validade de até cinco anos, podendo ser rescindidos a qualquer momento, seja pelo estado ou mesmo pelo servidor. Porém, esses 9.016 contratos temporários se somam aos 36.020 vigentes, pois o projeto aprovado, também, traz a previsão de estender, por mais cinco anos, contratações em andamento cuja prorrogação foi autorizada pela Lei Estadual 15.579/2020: 25 mil contratos de professores; 600 contratos de orientador educacional; 450 contratos de supervisor escolar; 9.820 contratos de servidores de escola; 150 contratos de técnicos agrícolas, totalizando 36.020 contratos temporários.
Ou seja, estamos evidenciando mais de 45 mil contratos temporários na rede estadual, algo em torno de 50% dos professores e servidores. O temporário e emergencial tornou-se a forma hegemônica de contratação na maioria dos estados brasileiros.
Tudo isso num contexto e cenário de penúltimo ano de vigência do PNE 2014-2024, com a maioria das metas atrasadas e descumpridas.
A carreira docente no Brasil perde prestígio e interesse (somente 2,7% dos estudantes cogitam a docência como profissão).
Por outro lado, a má qualidade da formação está evidenciada em vários diagnósticos e estudos, porém, não se trata de um mero descuido, mas de entendimentos e ações tomadas pelos governos a partir de 2016.
Vejamos o descaso com as quatro Metas do PNE neste período, conforme relatório 2023 de monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:
A Meta 15 prevê a garantia “em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam”.
Em 2017, o Ministério da Educação (MEC) lançou a Política Nacional de Formação de Professores, estabelecendo para o currículo dessa formação uma Base Nacional de Formação Docente (BNCC).
A política foi mais uma iniciativa definida de forma impositiva pela então gestão do MEC, sem diálogo com as Instituições de Ensino Superior (IES), com os profissionais da educação básica ou com as entidades que os representam.
Isso consiste em grave retrocesso para a efetivação de um Sistema Nacional de Educação e de um PNE que levasse em consideração a articulação entre formação inicial, formação continuada e condições de trabalho, de salário e de carreira dos profissionais da educação.
Um Relatório do Tribunal de Contas da União (2022) sobre essa necessária Política Nacional de Formação de Profissionais da Educação Básica e Formação Inicial de Professores conclui que a ausência de atividade de planejamento com caráter nacional tem reflexo direto na oferta dos programas de formação, que não priorizam as necessidades nacionais e acabam por concentrar a ação pública em algumas regiões da Federação, desconsiderando que a oferta de cursos e benefícios deve ter relação com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), bem como as efetivas carências de professores observadas em cada estado.
A oferta não pode ter por referência apenas as informações declaratórias dos próprios docentes interessados em adequar sua formação, resultando a expedição de recomendação concomitante à Capes e ao Ministério da Educação, para articular a oferta de vagas em sintonia com as carências identificadas.
O relatório reforça a necessidade de oferta de vagas em ensino superior, preferencialmente na modalidade presencial, bem como a necessidade de se priorizar o ensino presencial no momento formativo inicial que é corroborada pela experiência internacional.
Já a Meta 16 promete formar, “em nível de pós-graduação, 50% dos professores da Educação Básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todas e todos as(os) profissionais da Educação Básica formação continuada em sua área de atuação”.
No período entre 2014 e 2021, a porcentagem observada vinha aumentando a um ritmo muito próximo do necessário para atingir o objetivo disposto no PNE, mas para isso se realizar é necessária a manutenção desse avanço nos anos seguintes.
Em 2020, que é o ano mais recente calculado, 1,3 milhão dos 2.230.891 docentes em atividade na educação básica não haviam recebido qualquer tipo de formação continuada.
A Meta 17, por sua vez, define: “Valorizar as (os) profissionais do magistério das redes públicas da Educação Básica, a fim de equiparar o rendimento médio das(os) demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do sexto ano da vigência deste PNE”.
Em 2022 o rendimento dos docentes com formação superior era, em média, apenas 82,2% do observado para os demais profissionais com esse nível de escolaridade.
A ausência de um salário digno é um dos principais, senão o principal, indicador da desvalorização da carreira docente.
A reversão desse quadro é fundamental para que a carreira tenha maior atratividade. Salários inferiores a outras profissões e relações de trabalhos temporárias e emergências não atraem os melhores quadros em nenhuma profissão.
Por fim, a Meta18 indica: “Assegurar, no prazo de 2 anos, a existência de planos de carreira para os(as) profissionais da Educação Básica e Superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira das(os) profissionais da Educação Básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido em lei federal”.
A partir de informações prestadas ao IBGE por unidades federativas (estados e o Distrito Federal) e municípios em 2018 e 2021, nota-se uma imensa dificuldade de avanço rumo a condições minimamente adequadas de trabalho aos profissionais da educação, já que pouquíssimo se avançou na proporção de redes cumprindo cada um dos requisitos mensurados da meta 18.
É requisito básico e urgente a coleta, ao menos bianual, das informações necessárias ao monitoramento desta e de todas as metas do Plano, seja por meio de reorganização das pesquisas já existentes, seja pelo desenvolvimento de novos instrumentos.
No começo do deste ano de 2023, um Grupo de Trabalho foi instituído pelo MEC para propor políticas de melhoria na formação inicial de docentes.
Em agosto, o GT apresentou relatório parcial, envolvendo um conjunto de temáticas que apontam para: revisão e mesmo revogação das Resoluções CNE/CP nº 02/2019 e nº 01/2020; aperfeiçoamento da regulação dos cursos de licenciatura ofertados na modalidade a distância (EaD); formulação de plano nacional de valorização dos profissionais do magistério que articule formação, carreira, remuneração e condições de trabalho; reafirmação da Capes na formação inicial e continuada de professores; institucionalizar e ampliar iniciativas voltadas para o fortalecimento da formação teórico-prática dos licenciados, entre outras.
Além do GT, o MEC ampliou 31 mil bolsas para a formação de iniciação à docência e residência pedagógica em 2023 e outras 100 mil para 2024, por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Docência (PIBID).
Desta forma, o MEC aumentou em 54% as bolsas, saindo já em 2023 de 57 mil para 90 mil bolsas. São medidas iniciais muito tímidas e insuficientes para a complexa condição docente brasileira. Políticas e programas mais estruturais são urgentes e necessários.
Hoje, diante de um cenário, a Frente Nacional pela Revogação das Resoluções CNE/CP 02/2019 e 01/2020 – que estabelecem diretrizes para a formação dos professores –, aponta alguns aspectos que justificam a imediata revogação dessas resoluções por razões como:
a) a imposição da ultrapassada Pedagogia das Competências e Habilidades que preconiza uma concepção pragmática e reducionista de formação e de docência, centrada em processos de (de)formação com ênfase na padronização, centralização e controle;
b) a redução do magistério a simples função de tarefeiros e instrutores, induzindo à alienação da categoria e ao expurgo da função social da escola e da formação, como a BNCC e a Reforma do Ensino médio propugnam;
c) a secundarização do processo de construção do conhecimento pedagógico e científico e sua socialização, a articulação teoria-prática e a sólida formação teórica e interdisciplinar, ferindo o necessário equilíbrio curricular e,
d) a desconsideração da autonomia das IES e de seus Colegiados de Curso na definição da concepção, sequência e ordenação dos conteúdos curriculares necessários à formação.
Segundo o professor pesquisador Artur Eugenio Jacobus, da Unisinos, a Educação a Distância no Brasil apresenta um crescimento e impacto não identificado em nenhum outro país no mundo.
Vejamos: ingressantes em cursos presenciais em 2011 (Brasil): 81,7%. Em 2021: 37,2%; ingressantes em cursos EaD (Brasil): 18,3% em 2021. Em 2022: 62,8%; Índice de evasão do EaD: 65%; Desempenho no Enade (ciclo 2017 a 2019): 42% cursos EaD com conceito 1 e 2 (reprovados); Formação em Pedagogia: Dados de 2021: 789.254 alunos cursando Pedagogia, desses, 75,8% cursam Pedagogia na modalidade EaD; só 24,2% frequentam cursos presenciais.
Esta formação inicial e continuada dos professores não forma teórica-praticamente o professor para o complexo processo educativo contemporâneo.
A vulnerabilidade e rotatividade dos professores em contrato temporário impossibilitam vínculos e relações de aprendizagens efetivas e sólidas com os estudantes. A educação é um processo humano que precisa ser duradouro, sólido, amigável e de confiança.
Acalmei o espírito e tornei a sentar. Aí encontrei o elo que faltava nesta corrente espúria. O elo da liberdade. Estes jovens sabem que cometeram infrações, sabem que são rejeitados pelo seu comportamento, mesmo assim, não desistiram de sair livres, um dia, mesmo que demore o tempo em que suas vítimas ainda os culpem.
A professora caminhava logo à frente, como que preparando o caminho de nossa descida pelas escadas do prédio correcional, rumo às celas de adolescentes presos. Aos poucos fui entendendo a sua preocupação: teríamos de chegar às salas de aula em segurança. Mas quem nos faria mal se estavam todos trancados?
Quando fui convidado para falar sobre minha pequena história de empatia e amizade em suas salas, sequer imaginava os cuidados e a quantidade de portas de ferro que separavam o ambiente prisional da rua.
À medida em que descíamos o seu interior, as portas se fechavam atrás de mim. Não tinha respiração para olhar atrás e pensar em como seria minha fuga. Portas que pareciam portões. Uma após outra, fechando-se, parecendo um caminho sem volta. Como se eu mesmo estivesse ali, chegando para ficar, como novo prisioneiro em minha listinha de transgressões.
Os meninos estavam em suas celas, sentados à cama, e respondiam com entusiasmo aos cumprimentos dirigidos a eles. Uma simpatia incomum para quem pensava que seria esfolado vivo, por adolescentes que, em alguns anos apenas, não passavam de crianças. O ambiente lúgubre e cercado de educadores, com portas forjadas a ferros e cadeados, não os intimidava em nada.
Aguardamos sua chegada junto à sala de nossas pequenas palestras e foram eles chegando aos poucos. Alguns tímidos, outros com sorrisos espertos e os demais, com feições de entristecer o mais otimista dos professores. Todos estenderam as mãos e, inesperadamente, mais uma porta se fechou, agora a da sala, justamente onde estávamos a sós. Não havia mais saída, portanto, e ninguém a nos salvar a partir de agora.
Distribuí o livro de minha história sobre a mesa e uma curiosidade tomou conta do grupo. Ali sentados, ficava difícil começar a falar sobre uma planta rejeitada em meio a pátios, cujas árvores crescem em um chão de verdes escolhidos.
As palavras teimavam em não sair, porque diante destes olhares desconfiados e inquietos, uma história de rejeição não faria diferença alguma, em uma relação interminável de rejeições a que estes jovens estão expostos. Um deles, aliás, fixando uma parede branca parecia estar a milhares de quilômetros do local. Outro, mais falante, disse que gostava de ler e sonhava em ser engenheiro. E à minha frente, contudo, o menino mais educado, mais apreensivo e mais atento com a história que eu estava prestes a contar, como nunca vira antes.
Não havia alternativas. Dizia a eles sobre como rejeições podem se transformar em aceitações, em como tolerância e respeito podem ser novos caminhos para acolhimento e amizade.
Não tinha como escapar, falando, ou calando, nada poderia mudar nesta sala, trancada que estava. Todos prisioneiros nesta tarde! Eles, por suas delinquências, pelo descaso com a sociedade que sequer os acolheu, eu, por outro lado, aprisionado pelo medo e indignação frente ao meu desafio.
Como falar em empatia, para quem não tem 5 metros a caminhar sem ser observado? O que dizer sobre tolerância, com um menino de 15 anos, brutalmente trancado em uma cela pelos delitos que aprendeu com delinquentes maiores, ainda soltos pelas ruas, certamente.
Falar ou chorar ao seu lado?
O menor da mesa, interessado que estava, fixava seu olhar agredido em uma página do livro. Justamente nesta em que foi escrita uma parábola de uma planta que cresce, teima em crescer, escondida ao lado de uma torre, porque fora rejeitada em um pátio de muitas sombras, de possibilidades, mas que a ela não sobrara um palmo na terra, em um buraco qualquer, para dar seu primeiro passo. Mesmo assim, ela não desistira.
Pensei em sair correndo, bater no primeiro portão, gritar para que se me abrissem os outros quatro, ainda fechados, quando ouvi de um matreiro e falante na mesa, um dos “piores,”, e que dizia… _estamos aqui crescendo para a liberdade, professor!
Acalmei o espírito e tornei a sentar. Aí encontrei o elo que faltava nesta corrente espúria. O elo da liberdade. Estes jovens sabem que cometeram infrações, sabem que são rejeitados pelo seu comportamento, mesmo assim, não desistiram de sair livres, um dia, mesmo que demore o tempo em que suas vítimas ainda os culpem.
Então tudo fez sentido. Eles não vivem nesta pequena masmorra, apenas esperam. Um dia após outro. A sua liberdade em andar livres não lhes sai da mente. Aproveitei a deixa:
-Suportem estes dias para ficar ao lado dos seus iguais, troquem tolerância mútua, afastem-se de quaisquer julgamentos, aceitem seus colegas hoje, tais como o são, pois poderão ser seus amigos lá fora. A empatia, ainda não sendo uma palavra gasta, pode auxiliar a todos, ao colocarem-se no lugar do outro, afastando as condenações pelos erros de cada um. Cada qual aprenda a conviver e a perdoar-se mutuamente pelos seus atos. Uma amizade pode nascer neste doloroso caminho, e um novo olhar pode ser lançado sobre seu amigo, quem sabe, sobre seu inimigo, igualmente. Sem empatia, ali na frente, a liberdade poderá ser mais uma falsa corrente.
Alguns me olharam com olhos marejados, a Professora com seu rosto ainda mais sereno. Pareceu ali que todos queriam prestar conta à sociedade. Mesmo sabendo que as transgressões destes meninos de 14, 15 anos, são concebidas pela pedagogia de bandidos amadurecidos, que os admitem e os lançam a toda sorte de delinquência, na certeza de que em sua menoridade, seus crimes e penas serão amenizados.
Apertei com força as mãos destes garotos, lembrando das falsas oportunidades em que eu fora tentado na mesma idade, em suas aventuras ou fantasias. Alguém ao meu lado soube impedir, orientar. A maioria deles, porém, não tem ninguém. E saber que o tráfico ainda os aguarda ao lado de fora dos portões desta clausura…
Rapidamente esqueci o medo, o preconceito, os julgamentos e pude sentir as suas vidas sendo devastadas por comportamentos que, em sua maioria, dizem estar arrependidos. Lembrei neste momento de emoção, das palavras de um quase amigo que me falou quando soube de minha missão: “esqueça esta bobagem de falar sobre empatia com estes adolescentes presos”.
A propósito, um pequeno que estava ao meu lado, assim que eu soube, fora cooptado pelo tráfico após sua Mãe capitular pelo consumo de drogas. Deixado junto à calçada com dois irmãos menores, um com dois anos, não demorou para estrear em um mundo de crimes, de tamanhos variados. Mas dizia que estava ansioso para sair, pois seus irmãos o aguardavam. Agarrou meu livro na hora, prometendo a sua rápida leitura.
Jamais, em momento algum poderia continuar em vida sem passar por estes portões. Ao final, o liberto fui eu. Aprisionado em preceitos e conclusões, julgando e condenando estes jovens privados em sua liberdade, e por entender que aprenderam a se espelhar rapidamente em crimes adultos, fui salvo.
E deixando pelas escadas a última porta trancafiada, senti-me absolvido de toda a ignorância que aprisionava meu entendimento sobre suas vidas. De igual maneira, pedi absolvição pelo meu amigo, em sua incapacidade de entender que convivência não diz respeito a idade somente, nem a prisões ou liberdades. Pois onde duas pessoas convivem, pelo menos, devia saber sua mente obtusa, que sempre há de se escolher compaixão e empatia. É o que sustenta a humanidade.
Convido a pensar, aos que ainda têm seus conceitos cativos no preconceito e no medo, a trocar o seu silêncio e a ouvir o que adolescentes reclusos têm a dizer. A libertação pode ser mútua.