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Paulo Freire, 102 anos: um breve depoimento

Foi um enorme prazer remexer em meus arquivos (pessoais, do Imaco, da AEC/SP, do Vereda, do Libertad), manuscritos, textos publicados, agendas, dialogar com amigos que também viveram esse tempo tão especial, verdadeiro Kairós! Paulo Freire vive!

Neste ano de 2023, Paulo Freire, nascido em Recife, em 19 de setembro de 1921, faria 102 anos. Temos muito a comemorar!!![1]

I- Minha Relação com Paulo Freire

Minha relação com Paulo Freire[2] tem várias e complementares facetas: leitor de sua obra, aluno, participante de encontros e palestras com ele, “interlocutor” em minhas práticas escolares e de formação docente, “vizinho”, secretário de educação, amigo de amigos dele, parceiro em algumas atividades e, depois de seu falecimento, “autoconvocado” a reinventar sua obra, além de ser convidado a falar e a escrever sobre seu legado. Faço, a seguir, um breve depoimento de alguns destes diversos momentos.

1-Contato com a Obra

Meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire deu-se, não no âmbito da academia, mas dos movimentos sociais, mais precisamente em 1977[3], com a leitura de um trecho da “Pedagogia do Oprimido”, num papel mimeografado que ainda cheirava a álcool, numa noite de sábado, na sede da OAF-Organização de Auxílio Fraterno, antes de sairmos[4] para a ronda no centro de São Paulo (onde eram distribuídos chá, lanche e cobertor, se fosse o caso, para os moradores de rua).

Eu, com 21 anos, era aluno do 1º ano do curso de Engenharia Eletrônica da Escola Politécnica da USP, e já tinha sido professor na Escola Técnica Industrial Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo, onde me formara no curso Técnico em Eletrônica, em 1974. Estava num processo de metanoia, de “viragem à esquerda”, de um desvelamento de uma realidade que, até então, como um produto do “milagre brasileiro” (técnico eletrônico, iniciando engenharia)[5] e participando de um movimento católico de jovens bastante elitista, tinha sido poupado.

Mais tarde um pouco, com um grupo de amigos que faziam o curso de Teologia para Leigos no CEVAM-Centro de Evangelização Missionária, na Vila Carioca, em São Paulo, voltamos a ler “Pedagogia do Oprimido”.[6]

2-Curso “Ciço”

No ano de 1983, depois de ter deixado a engenharia, ter ido para o seminário franciscano em Guaratinguetá, deixado o seminário depois de pouco tempo  e voltado para São Paulo, eu cursava as últimas disciplinas do curso de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira. Trabalhava, pela manhã, como coordenador pedagógico no Instituto de Ensino Imaculada Conceição-Imaco e, à noite, como orientador educacional e professor no Colégio São Luís. Fazia uma disciplina optativa, no curso de Pedagogia, com a Profa. Selma Garrido. Numa das aulas, ela trouxe a divulgação de um curso com o Prof. Paulo Freire (e professores convidados): “Dimensões Políticas, Sociais, Econômicas e Culturais da Educação através da leitura do Ciço”. Fiquei muito interessado!

O curso ocorreu de 03 de maio a 14 de junho.

Conhecer pessoalmente Paulo Freire foi uma grande emoção. Os encontros foram fantásticos! Íamos lendo o texto “Ciço”, de Carlos Rodrigues Brandão, e a cada trecho, parávamos para dialogar. Às vezes, passávamos a noite toda dialogando sobre um único parágrafo. Numa das noites, a grande surpresa foi a presença do próprio Brandão. Imaginem a magia de um curso como este!

Pois bem, num dos dias do curso, Paulo Freire falou que estava precisando de um lugar para o CEEd-Centro de Estudos em Educação (logo em seguida denominado Vereda) que ele e alguns amigos tinham fundado recentemente. Falei como o diretor do Imaco[7], Prof. Luiz Pierre, que cedeu uma sala no 1º andar do colégio para o Vereda.

3-“Vizinho”

O período de minha maior proximidade com Paulo Freire foi justamente quando a sede do Vereda foi instalada Imaco, onde eu era coordenador pedagógico (e depois diretor), e lá ficou de meados de 1983 até final de 1988[8]. Tornou-se, assim, nosso “vizinho”, já que, de quando em quando, cruzávamos com ele pelos corredores. Participei de diversas atividades de estudos no Vereda, com intelectuais[9] de muitas áreas do saber[10] (o que revela, mais uma vez, a forte curiosidade que animava Paulo Freire). Ele nos brindou com vários encontros com nossos alunos do Ensino Médio (aos quais ia com muito gosto), bem como com nossos professores e comunidade educativa.

A foto abaixo foi de um destes maravilhosos encontros, eu já como diretor do colégio, na noite de 8 de outubro de 1985, com a temática “Educação enquanto Ato de Conhecimento”, na Semana de Educação, em comemoração ao aniversário do Imaco e ao dia de São Francisco de Assis (os Frades Capuchinhos eram os mantenedores do colégio).[11]

4-Falecimento de Elza

Em 1986, no dia 24 de outubro, faleceu Elza, primeira esposa de Freire. Eu era aluno de Dermeval Saviani no mestrado em História e Filosofia da Educação na PUC/SP e, ao mesmo tempo tinha, como disse, encontros com Paulo Freire nos corredores do Imaco. Eram dois educadores por quem eu tinha (e tenho) grande admiração e profundo respeito.

Naquele momento, todavia, era ainda forte no meio acadêmico o embate entre “competência técnica” e “compromisso político” do educador, e a maneira enviesada como era conduzido em alguns círculos, se extrapolava e dava-se a entender que Saviani e Freire seriam “inimigos mortais”.[12]

Tenho pra mim que a polêmica, embora fosse originalmente no campo teórico mais relacionado a Saviani[13], acabou sendo usada para atacar Paulo Freire, insinuando que pregava o “educador-político”, mas não dava muito valor para a escola, para o conhecimento. Este viés, carece totalmente de fundamento.[14] Basta ver, por exemplo, a obra “Extensão ou Comunicação?”, que comento em seguida.

Pois bem, para minha surpresa e alegria, quem vi no cemitério? Dermeval Saviani, solidário à dor de Paulo Freire, desmascarando todo aquele construto artificial de “briga irreconciliável”!

Minha intenção ao fazer este registro, algo totalmente subjetivo (minha surpresa e alegria no cemitério ao ver Saviani), é ajudar a superar picuinhas que, eventualmente, perdurem até hoje e, para além das saudáveis divergências, apontar para o que interessa e nos une no campo progressista: Um Outro Mundo e Uma Outra Educação Possíveis!

5-Extensão ou Comunicação?

Uma das coisas que sempre me encantou foi a paixão constante de Paulo Freire pelo conhecimento, que é também minha temática de paixão maior. Em seus diálogos, frequentemente, partia da política (que pronunciava com “boca cheia”, com muita ênfase e gosto), ia para a ética, para as grandes questões mundiais, etc. mas sem perder a referência epistemológica, ou gnosiológica, como preferia dizer; o conhecimento como instrumento de libertação.

No ano de 1987, no período de 17 a 22 de agosto, fiz um curso de extensão em “Filosofia para Criança”, na PUC/SP, ministrado pelo Prof. Marcos Lorieri, em que uma das referências básicas foi o livro “Extensão ou Comunicação?”.

Neste livro, depois de fazer a crítica à tradição educativa de “transformar o sujeito em objeto para receber pacientemente um conteúdo de outro”, Paulo Freire vai nos brindar com os fundamentos epistemológicos da atividade pedagógica, apresentando a sua leitura da teoria dialética do conhecimento, bem como o seu desdobramento didático-metodológico, em especial o diálogo problematizador, uma vez que “sem a relação comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível desapareceria o ato cognoscitivo.(…) A educação é comunicação, é diálogo”.[15]

“Extensão ou Comunicação?” marcou muito a minha formação, na medida em que aliou a reflexão gnosiológica, normalmente um tanto hermética e sisuda, à práxis da educação libertadora. Nos dias atuais, com tantos modismos e solicitações, esta obra, infelizmente pouco conhecida, torna-se indispensável[16] para ajudar o professor a ressignificar sua atividade a partir do seu núcleo mais profundo, possibilitando a articulação consistente entre a prática cotidiana de sala de aula, as contraditórias demandas sociais e o horizonte de um novo histórico-viável.

6-Secretário de Educação

Paulo Freire foi secretário de educação[17] da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, onde meus três filhos foram estudar, na E.M. Padre Manoel de Paiva[18], durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992), e onde fui membro do Conselho de Escola (na condição de pai de aluno). Foram anos de uma muito fértil convivência democrática, de aprendizagens riquíssimas para o Tiago, o Bruno e a Maíra, assim como para minha esposa e para mim.

Paulo Freire, registro da época em que era Secretário da rede municipal de São Paulo, SP. Fonte: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/

Na perspectiva pedagógica, um ponto alto foi o Conselho de Escola ter aprovado a participação da escola no “Projeto da Interdisciplinaridade”[19] que propiciou, entre outras coisas, o trabalho coletivo constante, as reuniões pedagógicas semanais na escola, fato bastante raro naquele momento tanto nas escolas públicas quanto particulares.

No primeiro semestre de 1990, como membro do Conselho Editorial da Revista de Educação AEC, entrevistei a Profa. Ana Maria Saul, que era diretora da Diretoria de Orientação Técnica-DOT da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

7-Itaici

Um aspecto da personalidade de Paulo Freire que propiciava sentir-me muito acolhido era a união, algumas vezes um tanto tensa é certo, que ele fazia entre sua visão cristã do mundo e a postura dialética diante da realidade que clama por transformação[20]. “Meu encontro com Marx jamais me sugeriu deixar de me encontrar com Cristo nas esquinas da rua!”[21]

Em 1992, participei, como assessor pedagógico da AEC/SP, da Assembleia Geral da Regional Sul I-CNBB, no Convento de Itaici, no município de Indaiatuba/SP, que refletia sobre educação. No dia 24 de junho, tive o privilégio de presenciar o rico diálogo de Paulo Freire com os bispos sobre a problemática da educação no Brasil. Fiquei tão impactado pela força da justa raiva e indignação de Paulo Freire que, logo em seguida, publiquei um artigo na Revista Dois Pontos:

“Como afirma Paulo Freire, uma das coisas que a academia (e a sociedade) ensina ao professor é detestar o cheiro do pobre, é considerá-lo incompetente, incapaz, indolente por natureza. Ora, a educação tem como fundamento justamente a esperança na possibilidade de mudança do outro; se não há esta esperança por parte do professor, como pode educar (vejam-se as “profecias autorrealizantes” de fracasso). (Vasconcellos, 1992)

8-Falecimento

No dia 2 de maio de 1997, quando de Paulo Freire me despedi, no hall do TUCA-Teatro da PUC/SP, onde seu corpo estava sendo velado[22], lembro de ter conversado rapidamente com sua filha Madalena sobre a responsabilidade de todos aqueles que o admiravam em relação à continuidade de sua obra.

9-Reinvenção

Paulo Freire continua muito vivo e presente em minha existência, lembrando o que ele dizia “Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como gente”. Alguns elementos de sua obra estão tão incorporados, que me faz lembrar e parafrasear a música “seu sangue errou de veia”… Só dois sinais externos: o centro de formação que criei, em 1989, chama-se “Libertad”[23], e a denominação que dei à concepção de educação que procuro sintetizar é “Dialética-Libertadora”![24] Não quero, absolutamente, dizer com isto que eu seja um ser humano da densidade que ele é, mas que ele continua me provocando a viver minha “histórica e ontológica vocação de Ser Mais”, como tanto insistia. Gosto muito daquela pergunta: “Menino, quem foram teus mestres?” Paulo Freire, sem sombra de dúvidas, foi/vem sendo um deles!

Ao sentir, pensar e intervir no mundo, algumas formulações de Paulo Freire, sejam conceitos ou neologismos próprios, sejam conceitos ou ainda palavras já conhecidas, mas que ganharam um novo vigor em suas falas, estão em mim sempre presentes:

  • A humanização do homem, que é sua libertação permanente, não se opera no interior de sua consciência, mas na história que eles devem constantemente fazer e refazer[25];
  • Alegria;
  • Amor/Amorosidade;
  • Boniteza;
  • Consciência do Inacabamento/Incompletude/Humildade;
  • Criticidade/Contradição;
  • Curiosidade Epistemológica;
  • Dar a resposta sem passar pela pergunta;
  • Dialética Humanização-Desumanização;
  • Diálogo;
  • Dodiscência;
  • Educação Bancária;
  • Educação Libertadora;
  • Esperança/Esperançar;
  • Ética;
  • Impregnar/Encharcar de Sentido;
  • Inédito Viável;
  • Investigação Temática;
  • Indignação/Justa Raiva;
  • Leitura do mundo precede a leitura da palavra;
  • Liberdade[26];
  • Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio. (…) Desde logo, qualquer busca implica, necessariamente, numa opção (tomada de posição, a favor de quem, contra quem)[27];
  • Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro a tarde…;
  • Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo…;
  • O mundo não é. O mundo está sendo;
  • Oprimido hospeda o opressor;
  • Política;
  • Práxis;
  • Problematização;
  • Rigor/Rigorosidade/Seriedade;
  • Saberes Necessários;
  • Tema Gerador;
  • Teoria do Conhecimento/Gnosiologia/Ciclo Gnosiológico;
  • Transformação, etc.

II-Algumas Preocupações

Para além das comemorações, temos também algumas preocupações. Uma, que tem me intrigado e preocupado, é verificar quantas vezes, nas redes sociais e mesmo em dissertações e teses, Paulo Freire é citado de maneira inautêntica, já que as frases a ele atribuídas não foram por ele escritas, qual seja, não se encontram em suas obras publicadas em vida ou posteriormente. Como podemos esperar as mudanças profundas necessárias na Educação que Paulo Freire nos aponta, se ele está sendo lembrado na base de slogans(!) e não no conhecimento de suas obras?

A frase “Não há saber mais ou saber menos; há saberes diferentes” é uma das mais citadas e referenciada como estando na “Pedagogia do Oprimido, p.68”. Pois bem, não está lá, nem se encontra em seus escritos; pode ter sido dita por ele, entretanto, não está nos seus livros.[28]

Analisando seu conteúdo, se não há saber mais ou saber menos, então o estudo do cientista sobre a vacina vale a mesma coisa que a opinião do tio do ZAP!

Quando consideramos os territórios de produção do conhecimento e suas epistemologias, podemos afirmar que não há saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes, no sentido do valor, digamos assim, da dignidade dos conhecimentos. Neste contexto, podemos lembrar de  citações de Paulo Freire (mesmo!): “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa” (A importância do ato de ler, p.78); “Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (Pedagogia do Oprimido, p. 95).

Todavia, num dado referencial epistemológico, isto não se aplica, visto que diferentes sujeitos ou grupos têm diferentes domínios de saberes em termos de abrangência e complexidade. Tenho, por exemplo, um grande amigo, profundo conhecedor da História da Matemática: sim, ele sabe muito mais do que eu neste campo. Porém, isto não significa que o conhecimento dele seja verdadeiro, nem completo, nem que eu não possa vir a ter este conhecimento maior também. Na minha pesquisa, o máximo que encontrei foi um texto do Prof. Pedrinho Guareschi em que afirma ter ouvido isto de Paulo Freire, na década de 70, quando conviveu com ele na Suíça. Valeria, portanto, como citação oral, porém não como tem sido feita de forma até falseada, ainda que não haja intenção, mas com falta de rigor por não verificar a fonte.

Uma outra citação bastante comum é a que diz respeito ao Esperançar: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.

As pessoas associam ao livro Pedagogia da Esperança, chegam a citá-lo, citar a página (que um dia alguém citou numa postagem provavelmente numa rede social e que passa a ser reproduzida, até em epígrafe de teses de doutoramento!), sendo que na Pedagogia da Esperança simplesmente não há a palavra esperançar! Aliás, em nenhuma outra obra publicada de Paulo Freire!

Na verdade, o uso da palavra Esperançar é introduzido por Mário Sérgio Cortella, em vários de seus textos, desde sua tese de doutorado (PUCSP, 1997), artigo para o jornal Folha de São Paulo (2001), e mais recentemente no Educação, convivência e ética: audácia e esperança! (Cortez Editora, 2015), sempre se referindo ter ouvido isto de Paulo Freire. De fato, é uma ideia perfeitamente freireana, embora não escrita por Paulo Freire.

Não se trata de um “purismo”, mas de um cuidado, para que Paulo Freire não seja reduzido a uma espécie de autoajuda pedagógica! O que angustia, como disse, é o desconhecimento da sua obra! Pode parecer um detalhe, mas nosso mestre prezava pela rigorosidade, não é mesmo?

Meninos, eu vi! Mais do que isto, eu vivi (e procuro viver)! Paulo Freire vive naqueles que buscam radicalmente fazer da Educação uma Prática da Liberdade!

Sou profundamente grato pelas marcas (insignare – marcar com sinal, dar a conhecer) que Paulo Freire deixou em minha formação! Estes registros, que espero sejam vistos como um convite, provocam muitas saudades, alegria e esperança de “um novo mundo em que seja menos difícil amar”!

AUTOR: Celso dos S. Vasconcellos

Prof. Celso dos Santos Vasconcellos é Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista, professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação. Foi Professor (Educação Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação), Orientador Educacional, Coordenador Pedagógico e Diretor de Escola. É consultor de secretarias de educação, responsável pelo Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica.  celsovasconcellos@uol.com.br     www.celsovasconcellos.com.br  

Autor texto: A potência da docência: https://www.neipies.com/sobre-a-potencia-da-docencia/

Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Avertissement. In: L’Education: Pratique de la Liberté. Paris: Les Éditions du Cerf, 1971.

__________ Extensão ou Comunicação, 5a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

__________ Pedagogia do Oprimido, 9a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

__________ Educação como Prática da Liberdade, 14a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

__________ A importância do ato de ler, 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1983.

__________ Professora Sim, Tia Não – cartas a quem ousa ensinar, 4a ed. São Paulo: Olho d’Água, 1994.

__________ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

__________ Pedagogia da Tolerância. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

NOSELLA, Paolo. Compromisso político e competência técnica: 20 anos depois. Educação & Sociedade (90). São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Cedes, 2005.

SAUL, Ana Maria. Planejamento Participativo como Instrumento de Construção dos Direitos Humanos na Rede Municipal de Ensino de São Paulo – entrevista a Celso dos S. Vasconcellos. In: Revista de Educação AEC: Direitos Humanos e Educação (ano 19, n. 77 out-dez). Brasília: Associação de Educação Católica do Brasil, 1990.

SAVIANI, Dermeval. O pensamento da esquerda e a educação na República brasileira. In: Pro-Posições, revista quadrimestral da Faculdade de Educação – UNICAMP. Campinas, vol. 3, n° 10.

VASCONCELLOS, Celso dos S. A Participação do Professor na Distorção da Avaliação. Revista Dois Pontos – Teoria e Prática em Educação. Belo Horizonte: agosto de 1992 (n. 13).

__________ Discurso e Prática na Educação Libertadora: o desafio da mudança de postura. Revista de Educação AEC. Brasília: out/dez. de 1997 (n. 105).

__________ Para trabalhar com o conhecimento. In: Revista Nova Escola. Uma biblioteca essencial para o bom educador. São Paulo: Fundação Victor Civita, out. 2001.

__________ Competência Docente na Perspectiva de Paulo Freire. Revista de Educação AEC. Brasília: abril/junho de 2007 (n. 143).

__________ Liberdade. In: GADOTTI, Moacir (org.). 40 Olhares sobre os 40 Anos da Pedagogia do Oprimido (Série Cadernos de Formação – Nº 1). São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008.

__________ Paulo Freire e o Amor: a identidade docente em questão. Revista Direcional Educador. São Paulo: maio de 2013 (n. 100).

__________ Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação, 14a ed. São Paulo: Libertad, 2018.

__________ Paulo Freire: patrono da minha educação. Coletivo Paulo Freire. Cem Anos de Paulo Freire, Cem Vozes de Corações e Mentes. São Paulo: Coletivo Paulo Freire, 2021

__________ Amorosidade Freireana na Atividade Docente. In: CHARLOT, Bernard (org.). Por uma Educação Democrática e Humanizadora. São Paulo: UniProsa, 2021.

__________ Carinhoso Abraço, Querido Mestre! In: AGUIAR, João J. Ferreira de e POLI, José Renato (orgs.).Um grande abraço em Paulo Freire. Campinas/SP: Editora Brasílica, 2021 (no prelo)


[1].Temos também algumas preocupações, como veremos no final.

[2].Não consigo chamá-lo simplesmente de Paulo, uma vez que não tive tanta intimidade assim com ele.

[3].Não consegui, até agora, localizar em meus arquivos exatamente o dia e o mês.

[4].Ivete, Nenuca, Fortunata, Regina Manoel, Regina Soares, Luiz Kohara, Gema, Paco, Rogério, Maria do Carmo, entre outros.

[5].Depois de seis meses de trabalho como professor da escola técnica, tive condições de financiar um Chevette, sedan da General Motors, zero quilometro!

[6].A amiga Gina, de Osasco, pediu emprestado a “Pedagogia do Oprimido” e até hoje não devolveu! Coisa comum entre amigos, não é mesmo? Comprei um novo exemplar em julho de 1981.

[7].Colégio dos Frades Capuchinhos, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, e que tinha direção leiga.

[8].Há pouco tempo, através da Profa. Andreia Queiroga Barreto, filha de José Carlos e Vera Barreto, grandes companheiros de Paulo Freire no Vereda, tive acesso à cópia da carta, datada de 28 de novembro de 1988, a mim dirigida como diretor do Imaco, em agradecimento pelo empréstimo do espaço para a sede do Vereda, assinada por Paulo Freire. Foi uma grande emoção!

[9].Foi ali que conheci o Prof. Moacir Gadotti, de quem fui aluno especial na disciplina “Filosofia da Educação”, no Programa de Pós-graduação em Supervisão e Currículo, na PUC/SP, durante o 1º semestre de 1984. É um professor que me marcou muito. Nas primeiras edições do texto “Boniteza de um Sonho”, para minha grande satisfação, embora sabendo que era algo sem pertinência, além de um total exagero, Gadotti referia-se a mim como “um dos melhores alunos de Paulo Freire”. Quando o texto foi transformado em livro, esta referência desapareceu. Há pouco tempo, numa conversa, brinquei dizendo que ele tinha se arrependido, ao que argumentou que deve ter sido coisa do editor. Na verdade, o que importa mesmo é o privilégio de ter sido aluno de Paulo Freire; isto sim é algo maravilhoso!

[10].Educação Popular, Sociologia, Física, Teologia da Libertação, etc.

[11].Neste período, tivemos também no Imaco a sede provisória da Associação de Educação Cristã de São Paulo-AEC/SP, numa sala do térreo. Através da AEC/SP, tive contato com o Movimento de Educação Popular Fé e Alegria, e com educadores como Paulo Englert, Cecília Cardoso Alves, Margot Bertoluci Ott, Luiz Augusto Passos, etc., todos de inspiração e práticas freireanas! O projeto educativo inovador do Imaco possibilitou também o encontro com Anna Regina Lenner de Moura, Antonio Faundez, Frei Betto, Frei Ismael Martignago, Ismar de Oliveira Soares, Waldemar Rossi, entre outros.

[12].Daquela época e até hoje, parece-me que boa parte da “oposição” entre Saviani e Freire era muito mais entre “savianetes” e “freirenetes” do que propriamente entre eles! Era uma maneira de simplificar o mundo, dicotomizando-o, e dispensando-se de lidar com sua complexidade e contradições.

[13].A partir de diferentes interpretações de Antonio Gramsci, especialmente entre Guiomar Namo de Mello e Paolo Nosella.

[14].Paulo Freire sofreu críticas praticamente a vida toda. Para a direita, ele seria comunista, ateu, marxista, subversivo, um perigo à nação, etc. Para a(s) esquerda(s), ele seria cristão, liberal, hegeliano, idealista, não-diretivo, espontaneísta, escolanovista, só preocupado com a educação popular, etc.

[15] Trabalha também temáticas centrais de sua obra: tomada de consciência, relação pensamento-linguagem, teoria-prática, tema gerador, esperança crítica, busca do ser mais, processo de libertação do homem, etc.

[16].Considero este livro de Paulo Freire fundamental na formação do professor por tratar, com profundo rigor, de um dos pilares básicos da prática docente: o trabalho com o conhecimento. Como pode o educador desenvolver uma prática emancipatória se sequer compreende como se dá o processo de conhecimento?

[17].Atuou como secretário de educação de janeiro de 1989 a maio de 1991.

[18].Esta escola me foi sugerida pela querida amiga Olgair Gomes Garcia, na época Diretora de Educação Infantil da SMESP, que em função de sua proximidade com Nita (Ana Maria Araújo, que veio a se tornar a segunda esposa de Paulo Freire), tornou-se muito amiga de Freire.

[19].Sobre o projeto, ver “Série Inovações Educacionais-3”, publicação do INEP dedicada ao estudo de caso do “Projeto Interdisciplinar no Município de São Paulo”: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001617.pdf acesso em 07 de dezembro de 2021

[20].Esta tensão também era vivida nos setores da igreja ligados tanto à Educação Libertadora quanto à Teologia da Libertação.

[21].Encontro de Paulo Freire com educadores, promovido pela AEC/SP, no dia 8 de outubro de 1984, no Imaco.

[22].Faleceu na manhã do dia 2 de maio, de ataque cardíaco, aos 75 anos, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

[23].Libertad-Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica, em São Paulo.

[24].Muito sinteticamente, a Concepção Dialética-Libertadora de Educação procura articular, de forma concreta, a Epistemologia (campo do conhecimento) de uma Filosofia Dialética com a Ontologia (campo da existência como um todo) de uma Concepção Libertadora de Educação

[25].L’humanisation des hommes, qui est leur libération permanente, ne s’opère pas à l’intérieur de leur conscience, mais dans 1’histolre qu’ils doivent constamment faire et refaire (Freire, 1971: 36).

[26].A primeira produção de Paulo Freire de maior repercussão foi “Educação como Prática da Liberdade”. Sua grande obra, “Pedagogia do Oprimido”, trata da luta dos oprimidos para a superação da negação da liberdade. Sua última obra, “Pedagogia da Autonomia”, tem como referência a autonomia que é um outro nome para a liberdade. Por aí podemos perceber um dos motivos da vitalidade de sua obra, uma vez que a liberdade se confunde com o próprio processo de humanização.

[27].Uma das grandes riquezas de Paulo Freire é que jamais reduziu ou dicotomizou o Pedagógico, o Epistemológico, o Ontológico do Político! Este texto está logo no começo da obra “Educação como Prática da Liberdade”, escrita em 1965 (anterior à “Pedagogia do Oprimido”, escrita em 1968).

[28]. Eu costumava dizer que esta era uma das únicas frases com que não concordava com Paulo Freire, e acabei descobrindo que a frase não é dele.

Edição: A. R.

Segredos de família, ora pois!

Como é bom e saudável para a gente conhecer outras culturas, viajar, conhecer pessoas. A vida se expande e, ao retornar, se sente mais vontade de trabalhar, tem-se mais ânimo para tudo.

Quando deixei para trás a capital de Portugal, numa manhã dourada pelo sol da primavera, lá ficou um pedacinho de meu coração. A distância que nos separa é de aproximadamente 8904 km milhas marítimas, com o tempo de voo de 11 horas.

Lisboa é tudo o que há de bom em uma cidade. O centro histórico é lugar de querer entrar e ficar por horas e horas. Tanta coisa para apreciar. Tem cultura, lazer, tradição, belas paisagens. Até o ar que se respira purifica os pulmões. Também, chama muita atenção a gastronomia, bacalhau, vinho, sempre ao som do fado, é claro. Os lisboetas sabem o que é bom.

Na rua, ladeada por bares e sombrinhas coloridas, experimentei a melhor azeitona, cultivo próprio, são imensas as áreas de produção. Até trouxe uma pequena embalagem de vidro, que enrolei, protegi com roupas e coloquei no fundo da mala. Aqui, hoje, colocada em um recuerdo, degusto com um bom vinho português.

Como é bom e saudável para a gente conhecer outras culturas, viajar, conhecer pessoas. A vida se expande e, ao retornar, se sente mais vontade de trabalhar, tem-se mais ânimo para tudo.

Pelo menos, por uma semana, ainda quero voltar a ficar em Lisboa. Passear, andar com calma pelas ruas da capital. Fazer uns “bate-volta” em lugares próximos, como Sintra e Cascais. Quero trazer os segredos da produção de azeitonas, talvez, quem sabe, produzir aqui, E por que não?

Autora: Elenir Souza, Soledade, 02 de junho de 2023. Autora da crônica “A luta por um recomeço”: https://www.neipies.com/a-luta-por-um-recomeco/ Publica também em página do Faceboock: https://www.facebook.com/entreluasegirassois

Edição. A. R.

Os corpos marcados

Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!

Esta é uma das crônicas que surgiram a partir de minha atuação na Pastoral Carcerária da Igreja Católica. Durante os últimos 4 anos nosso pequeno grupo (com o hiato causado pela pandemia de covid), alicerçado pelos princípios do Evangelho de Jesus Cristo, volta seu olhar para os privados de liberdade e os visita uma vez na semana.

Nosso objetivo a priori é a escuta. O que eles têm a dizer? O que suas vidas têm a dizer?  Como podemos estar presentes, a partir dessas falas?

A expressão “sistema prisional” faz parte do rol de assuntos de que muitas pessoas (boas cristãs, inclusive!) passam ao largo ou abertamente se posicionam por deplorar!

Parto do princípio de que o silenciamento pode significar aquiescência, por isso estou aqui, a escrever. O silenciamento pode nos colocar num menear de cabeça afirmativo, quando nossa vontade é gritar “não”. Além de, se de um lado, falar sobre prisão, assunto que a sociedade como um todo torna invisível e mudo, numa indiferença coletiva que é capaz de amordaçar qualquer fala, pode se tornar mesmo uma árdua tarefa, de outro, sabemos que levantarem-se questões acerca de uma chaga social, como os sistemas prisionais, ainda que sob o manto de um texto literário, pode colaborar para que a invisibilidade e o silenciamento se tornem mais do que manchetes sensacionalistas de programas de tv. Dito isso, segue o olhar:

Não era uma tarde das mais agradáveis. Fazia muito frio e caía uma chuvinha fina, comum por aqui em qualquer junho. É quando a paisagem e os prédios adquirem tons de cinza.  Não era a primeira vez que lá estávamos. Demoramos para entrar, que tudo é demorado na prisão. Em tudo há pontos finais, as vírgulas foram esquecidas lá fora.

Passados pelo escâner, pela segunda segurança, e eis-nos, enfim, sob o mesmo teto que nossos irmãos privados de liberdade – teto cinza, de fala cinza. Caminhamos pelo corredor num curto caminho cinza e, depois de passarmos por duas grades, esperamos a última porta se abrir, sugada por um segurança, lá em cima.

Por fim, já dentro de uma mistura de salão com pátio – parte com teto, parte sem teto, porém com grades em cima, e dos lados, como grandes gaiolas, encontramos aqueles que já nos esperavam. Quase sessenta pessoas! A maioria dos olhares se voltaram para nós, nesta chegada, e os cumprimentos, os apertos de mão, os parcos sorrisos, nos receberam.

Tratava-se de uma visita, tratava-se de um encontro.

Caminho mais para o fundo, na parte coberta e sento no banco de metal gelado, que se estende ao longo de grandes mesas de igual material. A princípio tudo parece igualmente gelado; mas, de repente, atraio a atenção de um jovem, que se senta em frente, e entabulamos uma conversa. Observo seu rosto.

– A senhora pode falar com minha mãe e dizer que eu tô aqui. Ela não tá sabendo.

Os olhos me fitavam com uma mistura de possibilidade e a angústia de um não.

Pensei por um instante na gaiola. Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!

– Claro, posso sim. Sabe o telefone?

Pensei ver um sorriso tímido.

– Sei.

Ao contrário do que se imagina, a conversa é monossilábica e, de tão lenta, parece levar horas até que uma nova frase seja dita. E ele me diz o número, que anoto na agenda. Estou escrevendo, mas sinto seu olhar atento, certamente torcendo pra eu não errar o número, porque essa é a última chance pontifícia para uma comunicação quase pública, sem privacidade nenhuma… depois, só dali a uma semana, quando volto.  Ele repete o número. Releio. Está certo. Que bom que temos memória!

– A senhora vai ligar, então? – insiste.

– Vou.

Neste momento, olho definitivamente para ele: suas parcas roupas, camiseta, que um dia fora branca no corpo de outro, uma bermuda (meu Deus do céu, devia estar fazendo uns 15 graus!), uma coberta – de algodão prensado – sobre os ombros que, de noite, o cobre no sono talvez sem sonhos. E então, me lembro que estou agasalhada, meu corpo marcado pelo calor, enquanto o jovem à minha frente sela com o seu corpo a marca da tortura pela qual passa, e não consigo parar de pensar em Michel Foucault, quando nos mostra que todo poder busca colocar sua marca no corpo ou, inversamente, o corpo é o receptáculo privilegiado da vontade de poder.

Mais alguns minutos e nós, os “livres”, transpomos as grades, no sentido da saída. Vão comigo um número de telefone e o aprisionamento de uma vergonha humana espetacular pelo corpos marcados.

Autora: Ir. Marta Maria Godoy

Edição: A. R.

 

Meus filhos, os poemas

Meus filhos

os poemas

andam por aí

circulando de mão em mão.

De vez em quando

recebo notícias de um

que está fazendo sucesso

outras

que não.

Mas os filhos

depois que a gente os dá à luz

já não nos pertencem mais.

Eles andam por aí

com suas próprias

pernas

e mãos.

Mas ainda acredito

que um dia

um desses filhos

há de me dar

uma grande alegria

realização.

Vai ganhar o mundo

e junto

me fazê-lo ganhar também

como seu pai

seu criador.

Creio apenas

pois esse dia

ainda não chegou.

Pois os filhos

longe de nós

são capazes das coisas extraordinárias

que só os pais acreditam

que são

embora o mundo

não.

Eles precisam o provar.

Para isso

caminhar

com as próprias pernas

é a condição

sem a qual…

Essa é a verdade

que uma hora ou outra

teremos de enfrentar.

Autor: Júlio Perez

Edição: A. R.

Foi num 20 de setembro…

Neste 2023 não poderia deixar passar este tal de 20 de setembro. Afinal, estamos diante do caos climático, onde muitos gaúchos perderam suas pilchas para as caudalosas águas das chuvas. Haverá poucos festejos, talvez com menos fandango, menos carne assada, menos cavalgadas não sobre algum tempo a mais para reflexão.

Imaginem vocês há 188 anos atrás acordando em Porto Alegre –  de 15 mil habitantes –  com uma tropa de farrapos cruzando a ponte da Azenha, dando tiros.

Porto Alegre ficou tomada por eles. Mesmo que os imperiais tivessem retomado a capital já em 1836, ficou sitiada por mais de 4 anos, sob Bento, Canabarro, Netto e João Antônio da Silveira.

Havia dois governos. Porto Alegre e seu povo pouco tinham a ver com as demandas concretas dos revolucionários. Claro, havia o tema da República e dos escravos, especialmente para os primeiros farrapos que fundaram o Partido Farroupilha, como o Tenente Alpoin, que nem gaúcho era. Mas de lado a lado, mantiveram seus escravizados.

E a República virou ficção na bravura de Netto, como na Constituição nunca votada. A demanda dos farrapos tinha mais a ver com os criadores de gado, com os impostos sobre o charque, questões que não atingiam o citadino.

Logo, mesmo com o título outorgado à capital pelo Imperador, não se tratava de lealdade de fato.

A vida e a sobrevivência, como os interesses econômicos de uns e os pessoais de outro, era o que contava.

Por que não se discutem as façanhas de sobrevivência a um cerco de quatro anos? Por que não se debate a falta de alimentos na capital? Por que não se fala de gado e cavalos roubados não só de estancieiros, mas de outros bem menores?

Por que quatro famosos generais com quatro vezes ou mais soldados foram repelidos por uma minguada tropa imperial na capital? Simplesmente porque o povo ia às trincheiras para a defesa do que era seu, a cidade. Por que não se fala de Chico Pedro, o Moringue, que nem soldado era, mas formou um exército em defesa da capital, tirando-a da fome com investidas aos sitiadores?

Por que será que se esquecem dos adversários?

Chico Pedro foi, ao final da Guerra, usado pelo Duque de Caxias para dar combate em Porongos. Afinal, foi ou não foi um massacre?  Nem neste infortúnio ele é lembrado.

Até hoje não se vislumbram as razões.  Até porque nem aos mais sérios e empenhados historiadores chegaram documentos para deslinde de certos pontos nebulosas desta Guerra.

Aos poucos vamos encontrando alguns espaços de debate. Mas nunca vi nem ouvi num CTG onde a Guerra nem perto chegou alguém se fazer esta pergunta: aqui, a Guerra não chegou, então por que tanto alarde neste 20 de setembro? Na Guerra Civil de 1893-95 as pelejas já foram quase gerais, mas na dos Farrapos não foi assim.

Neste 2023 não poderia deixar passar este tal de 20 de setembro…Afinal, estamos diante do caos climático, onde muitos gaúchos perderam suas pilchas para as caudalosas águas das chuvas.

Haverá poucos festejos, talvez com menos fandango, menos carne assada, menos cavalgadas não sobre algum tempo a mais para reflexão.

Muitas façanhas ainda a deslindar!

Autor: Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito. Autor da crônica “Os gaúchos”: https://www.neipies.com/os-gauchos/

Edição: A.R.

A luta por um recomeço

Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?

Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?

O céu estava invernal e cinzento naquele dia funesto. O sol, porém, baixou devagar e cada vez mais avermelhado, parecendo sangrar no horizonte.

A escuridão da noite, carregada de nuvens, logo se adensou. O vento se ergueu de repente, deslocou-se para longe. Ia e voltava. Nas ruas, as rajadas eram fortes, parecendo pressagiar o que estava por acontecer. Contudo, ninguém jamais pensou que a natureza pudesse mostrar seus dentes de forma tão intensa.

A ventania, cada vez mais forte, fazia farfalhar as folhas; as árvores balançavam para frente e para trás, como se quisessem fugir de alguma coisa.

Os pinheiros, que se erguem solitários, no terreno ao lado, rangiam e giravam para todos os lados. Ora suas copas se voltavam para cima, como se pedissem clemência para um Deus qualquer.

O silêncio dentro de casa, junto com o medo, crescia. Ela foi até a cozinha e preparou uma xícara de chá.

Era tarde. Fechou toda a casa. Antes lançou, pela janela da frente que dava para a rua, vazia àquela hora, um olhar enviesado, em direção ao céu. Havia uma força enorme lá fora. “Quem sabe o que pode acontecer?”, pensou.

Tudo virou em nada naquela madrugada da noite imensa. Sentiu o piso da casa ranger e ouviu o barulho das telhas que se levantavam e voltavam a sentar-se. Elas estavam conscientes de que poderiam ser úteis.

Portas e janelas pareciam voar pelos ares. O aguaceiro tamborilava por toda parte. Os rios, “que só queriam passar”, levavam o que havia pela frente e começaram a entrar em todos os lugares. Afogaram as cidades. Vidas se perderam.

LAMENTO DE UM RIO: EU SÓ QUERIA PASSAR: https://youtu.be/RzEzegwTjdM?t=18

— Socorro!!! Socorro!!! — gritavam algumas pessoas já em cima dos telhados de suas casas.

Impotentes diante de eventos climáticos extremos, as pessoas se unem. Uma tragédia assim faz com que tenhamos comoção e, com isso, união.

Em circunstâncias tais, ficamos mais próximos uns dos outros. Aquele que vivenciou na pele sofre muito e precisa de solidariedade. É necessário compreender a sua dor, seu estado de choque e ajudar.

Fatos como este sugerem que nos tornemos melhores em relação ao outro e que façamos alguma coisa para aliviar seu sofrimento. São pessoas impactadas em todos os sentidos. Muitas tiveram suas vidas corrompidas; sonhos, projetos e construções foram esvaziados em segundos.

Um aniquilamento social e psíquico. São as intermitências da morte tão presentes na vida que se desumaniza dessa forma. A melancolia ocupa todo o espaço agora deixado pela destruição. Contudo, a vida segue não se sabe bem para onde. Como recomeçar neste espaço lamacento deixado pela devastação?

Quando o trabalho de uma rotina de vida “normal” voltará? Quando as crianças poderão estar em salas de aulas? O que restou das cidades poderá de alguma forma ser reaproveitado? As praças renascerão a convite da primavera se aproximando?

Palavras de esperanças precisam ser ditas. Abraços precisam ser dados. A dor e as lembranças sofridas ficarão por longo tempo. Algumas pessoas se refazem, conseguem elaborar, outras não.

O trauma vivido deixará cicatrizes profundas ali sempre em aberto. Muitas pessoas precisarão de acompanhamento psicológico. O sentimento de empatia é muito importante neste momento. Só assim, quem sabe, poderão ter forças para recomeçar.

Autora: Elenir Souza, Psicóloga.

Soledade, RS, 10 de setembro 2023.

*Foto: Governo do Estado do Rio Grande do Sul

Edição: A.R.

A cabeça de Gumercindo Saraiva

A História do Rio Grande do Sul foi mal ensinada nas escolas, dizem meus amigos. Não posso falar, pois fiz meu ensino fundamental e médio em terras barriga verdes. E lá não foi diferente. Não lembro se me falaram de Anita Garibaldi.

Pergunta 1 – Quando você estudou História Rio-grandense na escola alguém falou de Gumercindo Saraiva?

Pergunta 2 – É Guerra ou Revolução Farroupilha? É Guerra Civil de 1893-95 ou Revolução Federalista?

Pergunta 3 – Em que “Guerra” ou “Revolução” ele perdeu a cabeça?

Há dois anos, escrevi “As Cinco Tumbas de Gumercindo Saraiva”, para comentar o livro a história esquecida pelos gaúchos sobre o maragato Gumercindo Saraiva – https://claudemirpereira.com.br/2021/05/literatura-as-cinco-tumbas-de-gumersindo-saraiva-o-livro-e-a-historia-esquecida-dos-gauchos/

Tratava-se do livro de Ricardo Ritzell.

Pouco depois li o livro do Tabajara Ruas: “Netto perde sua alma”, mas não tinha lido até agora “A cabeça de Gumercindo Saraiva” do mesmo Tabajara Ruas e Elmar Bones.

A História do Rio Grande do Sul foi mal ensinada nas escolas, dizem meus amigos. Não posso falar, pois fiz meu ensino fundamental e médio em terras barriga verdes. E lá não foi diferente. Não lembro se me falaram de Anita Garibaldi.

Até bem recentemente, nas escolas era quase sempre uma grande decoreba de datas, nomes; mas nada muito substantivo. Temos muitos livros que falam de nossa história (do Rio Grande do Sul, pois depois de 50 anos por aqui, sou parte dela e deste Estado). Sei de muitos mitos e lendas que se sobrepujam aos fatos reais.

Em 1983, Tau Golin escreveu “Bento Gonçalves O Herói Ladrão”, e ele e o livro sofreram uma verdadeira caça. Em 1997, sai este “A cabeça de Gumercindo Saraiva”, com patrocínio da Copesul. Em pouco tempo, alguma coisa havia mudado.

O livro é preciso nas suas buscas e pesquisas em documentos, como ficou rico em entrevistas com parentes seus e de pessoas que sabiam algo mais concreto.

O livro tem outro mérito ao colocar as posições das facções em disputa na Guerra Civil de 1893-95, mostrando quem eram os chimangos e quem eram os maragatos.

Os autores não tomam posição, mas como leitor, pelos dados apresentados, fico cada vez mais convencido do autoritarismo dos pica paus, seguidores do castilhismo, cuja vertente política e ideológica impregna nossas vidas locais até os dias de hoje.

Ficou evidente mais uma vez nesta leitura que apesar do caudilhismo dos Saraiva, dos Tavares e de seus amigos, eles tinham como pressupostos a luta pelas liberdades herdadas de Gaspar Silveira Martins, não aceitavam a ditadura castilhista e floriana.

Alguns até poderiam questionar a República, o que não era difícil, pois não era esta República a de Benjamin Constant e de outros republicanistas. Eles acabaram tendo a simpatia de dissidentes do castilhismo, algo que se reforça nas batalhas de 1923. Não era um bando de latifundiários nem de mercenários. Mercenários havia nos dois lados. Não podemos esquecer que tiveram ao lado de Gumersindo e dos maragatos Custódio de Melo e Saldanha da Gama.

Quanto às degolas temos dados elucidativos, como aqueles citados nos estudos de Carlos Reverbel, citados pelos autores. Se do lado de Gumersindo havia um Adão Latorre, Zeca Tavares e outros homens violentos, do lado de Pinheiro Machado havia o sanguinário do Firmino de Paula e Varzulino Dutra.

Eram tempos sombrios, de matanças e crueldades, mas o mundo vivenciou a Banalidade do Mal anos depois com o nazismo. As guerras de ódio, de matanças por questões étnicas e religiosas continuam. Logo, a sobrevalorização e a forma sentimental de analisar nossa História não nos tem ajudado em nada. Como nada nos ajudou até hoje se posicionar século e tanto depois por uma facção ou outra. Recentemente, na Nicarágua, vemos Daniel Ortega virar um ditador quando estivemos anos atrás pelo mundo com ele e os sandinistas na luta para derrubar o somozismo.

Que pelo menos possamos ler autores como os citados, que possamos continuar lendo e estudando. Que a população saiba que maragatos usavam lenço vermelho e os chimangos, o branco. Nem esta coisa elementar se sabe hoje em dia.

A historiografia rio-grandense tem que ser revisitada, algo que vejo neste livro e alta qualidade.

Autor: Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito. (– no dia dos 50 anos do golpe no Chile.) Autor da crônica: Os gaúchos: https://www.neipies.com/os-gauchos/

Edição: A.R.

Em tempos de ebulição: leituras instáveis

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Ser, fazer e pensar. Estes verbos exprimem o nosso modo humano de existir no mundo.

Ao mesmo tempo em que fazemos a história, constituímos nossa identidade e podemos exercitar a capacidade de refletir sobre nós mesmos e a realidade que nos circunda. Em boa medida, somos aquilo que fazemos. Porém, somos também aquilo que desejamos ser e fazer, e que, por motivos diversos, não o conseguimos.

Se o nosso ser e fazer são limitados ou impedidos, nossos pensamentos, crenças e sonhos podem nos alçar ao infinito. Nossas ações, modos de pensar e identidades individuais sempre têm incidências concretas sobre a história coletiva que construímos ou modificamos. De forma negativa ou positiva, todos deixamos marcas impressas na sociedade e no sistema cósmico do qual fazemos parte.

Observar como se processam os comportamentos das pessoas nos vários âmbitos, dimensões e contextos da vida é um exercício fundamental. Da capacidade de análise da realidade resulta também a possibilidade de interferir de forma mais apropriada na história, a fim de que ela adquira feições mais sustentáveis, justas, benfazejas e humanizadas.

Esta obra, constituída de uma espécie de mosaico do pensar, transita pelos terrenos movediços da realidade humana no anseio de que ela se firme em bases sempre mais sólidas nas quais a vida floresça e prevaleça.

Reúne 85 artigos, a maioria dos quais publicados nos últimos anos em meios virtuais e impressos. “Em tempos de ebulição – leituras instáveis” apresenta perspectivas do autor sobre aspectos da realidade social, ambiental, política, econômica, religiosa e cultural.

As análises se articulam e conectam à ideia de que os cenários que nos envolvem e que também são por nós construídos ou modificados estão em profunda efervescência. Desse modo, as leituras do que se passa na tela trêmula e efêmera da história acabam por ser elas mesmas instáveis e provisórias. Uma vez que tudo está em constante mudança, requer sempre novas e criteriosas leituras.

*Este livro de crônicas contempla algumas das reflexões já publicadas neste site. Conheça a coluna, onde já foram publicadas 18 colunas: https://www.neipies.com/author/dirceu_beninca/

O livro pode ser adquirido diretamente com o autor.

Contatos: dirceuben@gmail.com     –   

 (54) 99241-6226

Autor: Dirceu Benincá, Graduado em Filosofia e Teologia; especialista em Comunicação Social; mestre e doutor em Ciências Sociais; pós-doutor em Educação. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Campus Paulo Freire. Autor de diversos livros, capítulos de livros e artigos científicos.

Edição: A.R.

O conhecimento para vencer o mundo das sombras

Quando dizemos que estamos vivendo um novo obscurantismo religioso, facilitado pelos meios de comunicação e pela indústria das fake news, as ideias de Descartes se apresentam como um facho de luz para indicar caminhos que nos ajudem a enfrentar as terríveis trevas que acreditávamos ter superado.

Podemos dizer que a filosofia de René Descartes (1596-1650) inaugura de forma mais acabada o pensamento moderno propriamente dito. Tal pensamento foi longamente preparado pelo humanismo renascentista representado por Erasmo de Rotterdam e Thomas More, pelas concepções científicas de Giordano Bruno e Galileu Galilei e pela visão prática de conhecimento dos empiristas ingleses. Mas Descartes é certamente o mais lembrado quando se fala do sentido da modernidade e da forma como esse brilhante pensador rompe com uma forma de compreender o mundo e inaugura uma nova forma de fazer filosofia.

O tempo de Descartes é um tempo de profunda crise da sociedade e da cultura europeias; um tempo de transição que rompe com a tradição feudal e inaugura uma nova tradição não mais baseado na autoridade da divindade, mas na autoridade da razão. A decadência do sistema feudal e o surgimento do mercantilismo trazem uma nova ordem econômica baseada no comércio, na livre iniciativa e no individualismo. Na arte, os efeitos do renascimento possibilitam não só retomar os valores da Antiguidade clássica, mas também propor uma cultura leiga, secular e mesmo de inspiração pagã.

Descartes nasceu na França, de família pertencente à pequena nobreza, estudou no colégio jesuíta de la Flèche e onde se tornou um exímio conhecedor da matemática e das principais ciências valorizadas na época.

Homem de seu tempo, viajou por diversos países da Europa, engajou-se no exército onde foi soldado combatente, foi aliado tanto dos católicos quanto dos protestantes, foi homem da corte e habitante da província, pensador solitário e correspondente da intelectualidade europeia, autor de um manual de esgrima e de uma das mais profundas obras de metafísica da modernidade.

O projeto filosófico de Descartes constitui uma defesa do modelo de ciência inaugurado por Copérnico, Kepler e Galileu contra a concepção escolástica de inspiração aristotélica que vigorava nas escolas de formação da qual ele mesmo frequentou. Em sua obra O discurso do método, faz uma defesa desse modelo mostrando que a nova ciência se encontra no caminho certo, ao passo que a ciência antiga havia adotado concepções falsas e errôneas.

Para Descartes, o bom senso, isto é, a racionalidade, é natural em todos os homens, mas nem todos são capaz de fazer uso adequado da razão e assim aplicam de forma incorreta o conhecimento, causando inúmeros problemas e falta de discernimento sobre as escolhas melhores. Por isso, a finalidade do método é para o pensador francês a forma de colocar a razão no bom caminho, evitando o erro.

O método se constitui num conjunto de regras e princípios que possibilitam garantir o sucesso do conhecimento e a elaboração de uma teoria científica que nos ajude a vencer o mundo das sombras.

“Penso, logo existo”, do latim “Cogito, ergo sum” é uma das mais importantes e célebres expressões filosóficas ditas por Descartes, pois representa para ele o fundamento seguro para a construção do “edifício do conhecimento”.

Em tempo de notícias falsas, da manipulação realizada pelos grandes meios de comunicação, do fanatismo religioso e político, da forma como as pessoas são facilmente enganadas por falsas ideologias, a indicação do “pensar” cartesiano se torna um antídoto poderoso para neutralizar o falso pensamento que se anunciam em todos os lugares.

Quando dizemos que estamos vivendo um novo obscurantismo religioso, facilitado pelos meios de comunicação e pela indústria das fake news, as ideias de Descartes se apresentam como um facho de luz para indicar caminhos que nos ajudem a enfrentar as terríveis trevas que acreditávamos ter superado.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com

Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF, autor da crônica “O pensamento faz a grandeza do ser humano”: https://www.neipies.com/o-pensamento-faz-a-grandeza-do-ser-humano/

Edição: A.R.

Precarização e ressentimento: uma discussão acerca dos ataques aos docentes da educação pública durante a pandemia

A educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles.

Nossa sociedade, imersa na tecnologia e na informação, se constitui na/pela racionalidade neoliberal. As modificações vertiginosas e incisivas na vida humana fazem com que o trabalhador seja regido pela lógica da produção e do consumo, o que repercute no afastamento dele em relação aos princípios necessários ao bem viver. O capitalismo hegemônico tem esfacelado os princípios morais e éticos, estabelecendo como premissa nuclear das relações a competição em torno da lógica de mercado.

O exemplo de fragilidade dos princípios que regem a convivência humana que trouxemos é recente, do contexto pandêmico recém superado, e trata do sentimento de ressentimento que brota no ser quando está em sofrimento.

Conforme com o conceito de Kehl (2020), ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo próprio sofrimento, uma vez que o outro tem o poder de decidir algo sobre a vida do sujeito e, por essa razão, pode culpá-lo se houver algum insucesso. O sentimento retratado por Kehl (2020) parece ter eclodido durante a pandemia, com trabalhadores (potencialmente ressentidos) atacando outros trabalhadores, por meio de discursos depreciativos, principalmente nas redes sociais – espaço de expressão privilegiado no período da pandemia.

A Covid-19, deflagrada no final de 2019 e com continuidade nos anos seguintes, expôs a fragilidade da organização do trabalho no capitalismo, denotando a suscetibilidade dos sujeitos neste período particular e evidenciando a vulnerabilidade do próprio modo de produção. Por mais que seja organizado de forma a sustentar uma racionalidade em que os interesses privados estão acima de perspectivas humanas e sociais inclusivas e em que empresários são tidos como mártires por proverem empregos, contraditoriamente foram os homens e as mulheres – trabalhadores e trabalhadoras – nas relações de classe, que provaram sustentar a ordem social vigente.

A consciência acerca desse processo, contudo, não se mostrou assimilada por parte substantiva dos trabalhadores, principalmente daqueles em funções mais precárias que, ao invés de lutarem pela manutenção dos direitos básicos deles enquanto preservavam as próprias vidas, foram mobilizados a descumprir regras de distanciamento social a fim de manterem os empregos deles e as (insuficientes) condições de sobrevivência.

Empresários e agentes governamentais, inclusive, protagonizaram campanhas menosprezando os efeitos da pandemia e exigindo protocolos menos rígidos. Nos ambientes virtuais, movimentos em prol do retorno às atividades presenciais, principalmente por parte do funcionalismo público, ganharam notoriedade.

Os professores, de forma específica, passaram a ser referenciados como privilegiados e receberam adjetivos pejorativos enquanto categoria. Apesar de continuarem a desempenhar as funções de professores, mas de modo remoto, sofreram investidas diversas (inclusive com o impetramento de ações jurídicas) para garantir o retorno presencial das aulas e, assim, do exercício docente no ambiente específico da escola.

Foram muitos os ataques sofridos pelos professores, principalmente de escolas públicas – ressaltando que os professores de escolas privadas, necessitam manter o silenciamento para garantir o emprego.

As ofensivas dirigidas por parte de outros trabalhadores, revela um processo de precarização do trabalho que, neste período particular do capitalismo, potencializa a constituição subjetiva do ressentimento. A probabilidade torna-se latente no trabalhador precarizado hodiernamente, fazendo com que, em sua condição de indiferença, não consiga perceber a própria opressão e, assim, ressinta-se.

A incursão capitalista e neoliberal não é recente e a pandemia tornou-a ainda mais recrudescida, com o trabalhador tornando-se cada vez menos humano e transformando-se em objeto. Na condição de objeto ou coisa, o trabalhador se torna um ser de negócios, ao mesmo tempo em que “negocia o seu ser”, em um empreendedorismo de si, como problematizado por Dardot e Laval (2016). Transformado em coisa de transação comercial, o ser humano convive com o impedimento das experiências cotidianas, das vivências que sustentam a subjetividade e a dignidade dele (ADORNO; HORKHEIMER, 2012).

Nesse cenário, o ser humano, inserido nas diferentes profissões, acaba enredado pelas situações precarizadas de trabalho, com o receio de perder o emprego e de deixar de subsidiar as próprias necessidades básicas, o que o torna refém da sociabilidade em curso. Impotente frente à condição objetificada/coisificada pela qual é submetido, o trabalhador angustia-se, inquieta-se e aquieta-se, cultivando o ressentimento contra si e contra os outros (especialmente em embate aos que insistem em se debater na tentativa de superar as intempéries).

O imperativo era para que os professores retornassem ao trabalho presencial (mesmo sem haver vacinação e diante de graves riscos de contaminação pelo vírus da Covid19). O que estimulava tais movimentos era o fato de que outras categorias haviam retornado anteriormente aos espaços laborais deles, como se os direitos de parte do coletivo de trabalhadores não devessem ser ampliados, mas sustados.

Ocorreram ataques entre iguais (todos trabalhadores), exigindo-se que um fragmento deles abandonasse seus direitos ao invés de haver a união entre as classes para conquistar ou preservar direitos para todos. Esse processo de precarização do trabalho gera sofrimento e favorece e intensifica a constituição do ressentimento!

O trabalho, transformado em atividade individual, hierárquica e competitiva, não deixa espaço para o potencial criativo, muito menos para a realização pessoal.

Sem tempo livre, não consegue reverter a situação que vive, restando somente o lamento e, consequentemente, o “ressentimento”. Este sentimento tende a se intensificar quando discurso se volta contra si e contra os outros – em favor do próprio apedrejamento e do apedrejamento de seus pares –, o ser humano omite e se ressente com o que inevitavelmente deseja e sente: ele quer uma vida com qualidade e garantia de direitos. Esforça-se para afastar de si a ideia de que está sendo subjugado e oprimido, mas acaba expressando o ressentimento em algum momento. Pode-se dizer que acaba por viver uma vida ressentida, em que aproveita as oportunidades não para mudar a própria condição, mas para infundir o que ressente contra o semelhante KEHL (2020).

É imprescindível questionar o papel da educação no reconhecimento e na constituição de ferramentas de luta contra a subordinação do sujeito a um formato de trabalho que o entende como mercadoria, como um instrumento a ser descartado e substituído por outro à revelia do empregador. A docilização do trabalhador para que ele, passivamente, produza e consuma, aceitando ser subjugado não pode figurar, mesmo que subliminarmente, no cotidiano pedagógico.

Com a Reforma do Ensino Médio, implementada a partir da Lei nº 13.415/2017 e atualmente com revogação exigida por entidades estudantis, docentes e sindicais, há um esvaziamento das disciplinas tradicionalmente referenciadas – e responsáveis pelo conhecimento historicamente produzido – nessa etapa da educação básica, uma vez que as disciplinas são substituídas por componentes e percursos formativos voltados para temáticas como o empreendedorismo e a construção de projetos de vida. Mesmo reconhecendo que a escola brasileira precisa de muitas mudanças, esse processo denota o desfavorecimento de um processo reflexivo e crítico.

Entendemos que sem tais características não teremos uma educação emancipadora, tampouco a formação de consciência, tão necessária aos trabalhadores oprimidos e ressentidos que precisam se dar conta da condição de subordinação em que se encontram. Sem isso, não há desestabilização desse sistema que corrompe o ser humano, insere a competitividade e a individualização como orientadoras dos modos de vida e que, em momentos extremos como o de uma pandemia, consegue desestruturar ainda mais as relações e favorecer as rivalidades entre os iguais, como no caso em questão.

Apesar dessa aposta ser a qualificação da formação sabemos, também, que a educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles. Sabemos, ainda, que os docentes podem se tornar ressentidos ao viverem as consequências de processos de precarização que atingem a categoria profissional e o trabalho deles.

Assim, um movimento formativo pautado em princípios humanos e sociais, sensível às vivências cotidianas da realidade de subjugação, de fragilidade e de insegurança da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2000) precisa acolher também essa parcela de trabalhadores. Com isso e a partir disso, a dinâmica social precisa ser reconstruída, com a valorização dos trabalhadores e dos direitos deles e com a recuperação do espaço de fala e de luta de cada um, constituindo-se (mesmo que árdua e lentamente) em novos modos de vida.

Autoras:

Ana Lúcia Vieira

Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF).  Professora da rede municipal de ensino de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos Formação Humana (UPF), do Núcleo de Pesquisas em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Sociedade (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS).

Renata Cecilia Estormovski

Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ensino Médio e Juventudes (GEPCEM Unisinos/CNPq).

ENDEREÇO DO TEXTO COMPLETO:

https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/issue/view/2365

Edição: A.R.

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