Início Site Página 39

O que aprendemos com as crianças que não aprendem

Nós devemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem a nos respeitar, a dar um tempo para as exigência do dia a dia, a pararmos um pouco e refletirmos sobre o que estamos fazendo conosco e com quem amamos e se estamos no caminho mais curto para chegarmos à felicidade.

Inicio o texto de hoje com o poema de José Paulo Paes intitulado “Convite” que nos diz nos seus versos “… As palavras não: / quanto mais se brinca / com elas mais novas ficam…” É preciso aprender com as crianças que não aprendem que somos humanos e não robôs, cada um tem o seu tempo de ser e estar entre as palavras e os números.

Tendemos a ter vergonha das nossas crianças quando elas tiram notas baixas na escola, são reprovadas ou somos chamados para conversar com a professora porque elas não estão se saindo bem nas disciplinas. Com isso, o nosso primeiro impulso é castigar a criança.

Castigo resolve alguma coisa? Há quem diga que foi castigado na infância e cresceu uma pessoa bondosa e trabalhadora. Isso era em outros tempos, as coisas mudaram bastante. As crianças não podem ser castigadas todas às vezes que fugirem do padrão.

Sua criança não precisa a todo instante mostrar que ela é a melhor em tudo. Isso é muita cobrança. Deixe-a livre para fazer o que é necessário para o seu bem crescer mostrando-lhe o caminho certo sempre que possível.

A criança não aprende não é porque não queira ou porque seja desatenciosa. Talvez ela tenha algum problema, transtorno ou síndrome que precisa ser avaliado por um profissional especializado no assunto. Mas, o que podemos aprender com as nossas crianças em relação a isso? Muitas coisas.

Todos nós temos os nossos limites. Às vezes a criança já tentou de tudo para aprender o que a professora lhe ensina, mas não consegue. Ela precisa de ajuda. O tempo que passa na escola é pouco. Os pais devem estar atentos as agendas onde os professores fazem anotações com observações dos alunos.

As crianças não aprendem porque a aula é desinteressante, a didática da professora não é boa e nada consegue prender a sua atenção. Essa criança também precisa de ajuda. A gente acha cansativo quando um amigo fica numa conversa repetindo um assunto mil vezes.

Muitas coisas aprendemos quando as crianças não conseguem aprender algo, principalmente, no que diz respeito a paciência, tranquilidade, força de vontade, coragem e respeito. A criança não aprende porque não quer, isso não é verdade. Ela sente dificuldades assim como a gente sente dificuldades em mudar de função na empresa, em lidar com a nova turma de amigos do trabalho, em assinar um contrato.

A gente tem medo de enfrentar as coisas novas e se decepcionar. Assim acontece com a criança. Ela tem medo das avaliações e precisa ter isso trabalhado. Algumas professoras costumam fazer um terror antes dos dias das avaliações para os seus alunos e eles acabam vendo aquilo como algo assustador e bloqueiam o ensino-aprendizagem.

É preciso saber respeitar o momento em que a criança estará preparada para aprender; afinal faz parte do ser humano aprender a andar, a falar, a brincar, a fazer amizades, a lidar com problemas e perdas. Todos nós temos os nossos momentos e formas de aprendizagens.

Somos únicos no mundo e a nossa subjetividade faz da gente um ser que se diferencia dos demais no uso do raciocínio lógico. Cada pessoa tem o seu jeito de resolver as coisas. Às vezes uma questão de matemática é resolvida de maneiras diferentes, tem criança que vai mais rápida no raciocínio para chegar na resposta e tem outras crianças que vão por um caminho mais longo.

Nós devemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem a nos respeitar, a dar um tempo para as exigência do dia a dia, a pararmos um pouco e refletirmos sobre o que estamos fazendo conosco e com quem amamos e se estamos no caminho mais curto para chegarmos à felicidade.

Deixemos que as crianças descubram as suas próprias formas de aprendizagens lhes dando oportunidades de descobrirem os vários caminhos para chegarem a resposta correta. Nem sempre o nosso caminho é o mais preciso, às vezes a criança tem um caminho mais curto que o nosso. E ela sabe disso porque o seu pensamento está vazio de preocupações.

Não devemos exigir que as nossas crianças aprendam as coisas logo na primeira explicação. Ninguém aprende nada com pressa. Tudo tem que ser bem explicado.

Nem toda criança tem habilidades especiais para resolverem problemas. Conheço adultos que tiveram várias dificuldades de aprendizagem na escola e se tornaram grandes profissionais atualmente, devido a paciência dos seus pais.

É responsabilidade nossa cuidar da aprendizagem das nossas crianças dando-lhes o tempo necessário para que possam desenvolver o pensamento e buscar respostas que despertem a curiosidade. Quando educamos as nossas crianças também estamos nos educando porque aprendemos com elas detalhes pequeninos que passam despercebidos com a nossa pressa de fazer tudo para ontem.

As crianças não precisam de pressa para aprenderem as coisas. Na escola deve ser do mesmo jeito. Os professores precisam saber que aquelas crianças com um pouco mais de dificuldades de aprendizagem merecem mais cuidados e outras metodologias de ensino. Essas crianças não devem ser colocadas a mercê das outras como falta de incentivo ou exemplo negativo.

A criança que não consegue aprender pode estar passando por algum tipo de problema emocional em casa ou até mesmo na escola. É necessária uma investigação. Neste momento, os pais devem ser acionados para conversarem com seus filhos. A escuta cuidadosa sempre traz coisas boas e novidades que as crianças nos contam e nunca percebemos.

Uma criança com dificuldades de aprendizagem pode estar passando por sofrimentos incompreensíveis ao seu bem-viver e cabe aos professores investigarem como é a relação dela com os pais em casa. São os professores que muitas vezes descobrem violências psicológicas e físicas que as crianças sofrem em casa. Cada caso pode ser diferente.

Na verdade, podemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem o momento certo de pararmos e buscarmos descobrir onde estamos errando, o que nos leva a insistirmos no mesmo caminho, por que não mudamos de estratégias no trabalho para alcançarmos mais lucros, o que nos faz ficarmos presos numa relação afetiva em que já não há mais amor.

São tantas as coisas que as dificuldades de aprendizagem das nossas crianças podem nos ensinar que se eu fosse citar a lista seria grande. Assim, se nós sentarmos com os nossos filhos e tivermos uma conversa franca talvez consigamos descobrir o motivo pelo qual eles não conseguem aprender como as demais crianças da mesma idade e que estudam na mesma sala de aula que elas.

Volto a dizer que muitas vezes o problema não está na criança, mas no sistema onde ela vive que pode ser algo relacionado com os pais que não conseguem compreendê-la ou com os professores que não conseguem acompanhar o ritmo de aprendizagem lento da criança.

Se os pais exigem que os filhos sejam sempre os melhores em sala de aula isso poderá prejudicar mais ainda a aprendizagem, pois quando somos cobrados por melhorias tendemos a ficar tensos e não rendemos o que poderíamos render. Assim são as crianças.

Toda aprendizagem deve vir acompanhada com um pouco de amor, respeito e cuidado por parte de quem está ensinando.

A criança saudável tende a aprender com facilidade e rapidamente, mas aquela que está a todo tempo sendo castigada, cobrada e sem amor poderá sentir mais dificuldades cada vez que essas cobranças cheguem com ameaças psicológicas ou físicas.

Infelizmente conheço crianças que ainda são espancadas por tirarem notas baixas na escola ou por não terem se saído melhor do que o amiguinho da vizinhança. Não devemos comparar os nossos filhos com ninguém. Como já disse acima somos únicos no mundo. Cada um de nós tem um jeito de aprender diferente. Temos o nosso tempo. Como disse Jesus Cristo, há tempo de colher e de plantar.

O tempo da aprendizagem da criança não é o mesmo que o seu ou o que a escola planejou. Antes de matricular seu filho numa escola procure saber como é a sua metodologia de ensino e se há um respeito e cuidado para com os alunos que têm dificuldades de aprendizagens.

Nós também temos grandes dificuldades de largarmos o trabalho mecânico para o automatizado. Começamos tendo aulas e aos poucos vamos nos aproximando das máquinas. Não chegamos no primeiro dia de trabalho e o chefe nos coloca na máquina para começarmos a trabalhar. Há todo um treinamento e uma espécie de aptidão.

Procure saber em que disciplinas o seu filho tem mais facilidade de aprendizagem e foque nas que ele não consegue se sair bem nas avaliações e trabalhos. Não faça cobranças que a criança não possa corresponder a elas. Comece ensinando as coisas mais fáceis e só avance casas quando perceber que a criança está confiante em si própria.

Se a criança realmente apresenta grandes dificuldades de aprendizagem não a obrigue a fazer coisas que a deixarão amedrontada, envergonhada ou tímida diante dos amiguinhos.

Permita que ela desfrute do momento da infância para ir aos poucos traçando os seus caminhos de aprendizagem do seu jeito, pois chegará um momento em que ela vai encontrar o seu jeito de aprender mesmo que seja uma forma esquisita e estranha para você. Deixe-a seguir no caminho escolhido, pois a zona de conforto da aprendizagem deve ser respeitada pelos adultos.

Aprenda com as dificuldades da sua criança de aprender que tudo na vida é preciso de tempo e paciência. Que não vale a pena querer algo forçado, insistir no que sempre dá errado ou até mesmo submeter-se a situações de vexame só para não ser chamado de fraco ou medroso.

Aprender exige coragem e nem todos estamos preparados para enfrentar obstáculos e atravessar pontes porque não fomos estimulados desde pequeninos a caminharmos com os nossos próprios pés. Aprenda com a dificuldade da sua criança de aprender que na vida é preciso exercitar a arte de construir castelos de areia e se a água do mar os derrubar que se construa tudo novamente.

E para terminar deixo vocês com os versos do poeta Vinícius de Moraes do poema “A porta” em que ele nos diz

“Sou feita de madeira / Madeira, matéria morta / Não há nada no mundo / Mais viva que uma porta / Eu abro devagarinho / Pra passar o menininho / Eu abro bem com cuidado / Pra passar o namorado…”

Que possamos abrir a porta devagarinho às nossas crianças para que aprendamos com elas que dificuldades todos nós temos, mas aprender é um eterno abrir de janelas para olhar o Sol brincar de ser dia.

Autora: Rosângela Trajano

Democracia à brasileira (uma reflexão sobre as diferenças) – parte II

Pergunto coisas ao buriti e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul e não se aparta de sua água – carece de espelho.  Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende. (J. G. Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Essa, caríssimos, é, pois, a parte II da “Democracia”. Eu diria quase literalmente, já que a I se constitui numa espécie de reconhecimento de que ela (a Democracia!), apesar de tudo, teima em querer se insinuar nas vozes das e dos que remam na direção contrária ao proposto pela insídia de um poder que teima em separar para se beneficiar, caracterizando a “democracia à brasileira”…

Leia aqui: https://www.neipies.com/democracia-a-brasileira-uma-reflexao-sobre-as-diferencas-parte-i/

Eu já tinha me debruçado sobre mais adjuntos para essa “democracia à brasileira”, quando tropecei em algo que, súbito, emparedou-se à minha frente, impedindo que avançasse para fechar a composição. Um corpo estancou, muito próximo, e uma possível democracia “à brasileira” quase desanuviou-se; a memória se recompôs e se materializou uma lembrança vívida e, paradoxalmente, repleta de calor! Com esse acontecimento o texto teve de ser refeito!

Quem não se renderá a um paradoxo desses? Ora, quem, como eu, que quase não vive sem se sentir aquecido! Pois, num rasgo, pude me ver envolta num calor intenso, mesmo quando o acontecimento estava a sugerir um frio descomunal. Foi o que sucedeu, quando soube, no próprio dia do acontecimento (11/07/2023), do falecimento do Prof. Carlos Rodrigues Brandão!

Não vou discorrer aqui sobre a biografia dele. É fácil encontrar no mundo virtual. Mas quero, sim, sublinhar com muita ênfase, sua influência sobre pessoas que, como eu, se refugiaram não nas certezas, mas nas perguntas, nas curvas díspares da circunstância “aprende-ensina; ensina-aprende”.

O Carlos Brandão, no grande cenário da “democracia à brasileira”, se constituiu numa das não muitas vozes a gritar “a linha não é reta!”, quando se falava em Educação/Ensino… Esteve com Paulo Freire, eram amigos, escreveram juntos: “dize-me com quem andas”, e tal e tal…

Trago comigo, de meu tempo de aprendente, quando ministrava aulas de metodologia do ensino para estudantes de Letras numa universidade, uma lembrança especial das falas do Prof. Brandão. Essa lembrança se encontra numa de suas obras de nome “O que é Educação”.

Bem no comecinho, Brandão já dispara a epígrafe que coloquei neste texto. Daí, é possível intuir o que se sucederá. Quero, no entanto, me ater a um pequeno trecho, que está lá à guisa de introdução, em que é mencionado um acordo, feito nos Estados Unidos, em dois estados, entre seus governos e os povos originários que viviam nesses estados. A ideia era basicamente um oferecimento de vagas para que os jovens índios fossem estudar nas escolas deles.

Conta Brandão que os índios gentilmente agradeceram e declinaram do convite. Motivos? Eles argumentaram que os diferentes povos e nações tinham diferentes concepções de mundo e que eles (os governantes), certamente, não se ofenderiam por dizerem que a ideia de educação que eles (os representantes da oferta) tinham não era a mesma que eles (os índios) tinham. E completaram expondo os resultados de experiências neste sentido que outras nações indígenas tinham tido: quando os estudantes índios voltaram para seus espaços, já com diploma na mão, não sabiam mais correr, ignoravam a vida da floresta e se tornaram incapazes de suportar o frio e fome; não sabiam mais caçar ou construir uma cabana. Enfim, se tornaram inúteis na comunidade deles! 

A partir daí, Brandão prossegue dizendo que (…) a educação pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. (p. 4).  E esse trecho reverbera um modelo de educação que transita ainda solto na “democracia à brasileira”! 

Assim, o Prof. Carlos Rodrigues Brandão nos lega seu imperativo como educador: a constatação de que nos recônditos de uma possível reflexão para a ação, no eixo educativo do existir humano, um vislumbre de esperança se materializa. É então que podemos desafiar tudo o que essa avalanche de despropósitos e injustiças sociais ajudou a construir, a partir do nosso reconhecimento de que (…) a educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida (…) (p. 4).

Vai em paz, mestre!

Autor de mais de cem livros, boa parte sobre educação popular e método Paulo FreireBrandão deixa um legado inestimável para a construção de uma escola mais justa e igualitária. Leia mais: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/630449-carlos-rodrigues-brandao-e-o-sonho-da-educacao-popular?

AutoraIr. Marta Maria Godoy

Retrocessos nas metas do PNE acentuam as desigualdades educacionais

Dados revelam que nosso sistema educacional não oferece oportunidade e condições iguais para os jovens no Brasil. O jovem branco e com famílias de renda larga em grande vantagem em relação a jovens pretos, pardos e pobres. Portanto, nosso sistema não é nem equitativo, muito menos justo.

Entramos no último ano do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, Lei 13.005, promulgada em 25 de junho de 2014, com 13 das 20 metas em retrocesso e cerca de 90% não devem serem cumpridas no prazo, impactando principalmente populações negras e pobres, revela relatório publicado em 20 de junho de 2023 pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Às vésperas do final de vigência do Plano em 2024, o cenário de abandono do plano persiste. Com a baixa taxa de avanço em praticamente todas as metas, apenas 4 dos 38 dispositivos progridem em ritmo suficiente para o seu cumprimento integral no prazo, ou seja, quase 90% dos dispositivos das metas não devem ser atingidos até o final de vigência do PNE.

O mais grave é que 13 metas estão atualmente em retrocesso, conforme monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à educação. Elas se referem justamente a: universalização do atendimento à Educação Infantil (que conforme último censo decaiu), Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação Integral na educação básica (uma das promessas do novo ensino médio); erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério das redes públicas da Educação Básica; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público à educação pública com o equivalente a 10% do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil.

Falta de informações sobre metas do PNE

A situação pode ser ainda pior. Há grande falta de informações atualizadas, não permitindo afirmar com certeza a gravidade dos atrasos e retrocessos.

O balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação aponta grave problema na disponibilização dos dados oficiais. Das 20 Metas do PNE, 7 delas não possuem dados abertos suficientes para serem avaliados na sua totalidade. Alguns dados somente forma acessados por meio da Lei de Acesso à Informação e outros sequer foram respondidos. A falta de transparência é sintoma de outros problemas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNED Contínua/IBGE), divulgada em 7 de junho 2023, confirma que os impactos as desigualdades educacionais no Brasil mantem-se e se aprofundam. É o caso do percentual da população com ensino superior completo que saltou de 17,5% em 2019 para 19,2 em 2022. Porém, ao proceder-se o recorte por cor ou raça, enquanto 60,7% dos brancos com pelo menos 25 anos haviam finalizado o ensino médio, entre os pretos e pardos essa taxa foi de 47%.

O cenário por cor ou raça mostra uma desigualdade ainda mais marcante: 36,7% das pessoas brancas com 18 a 24 anos estavam estudando, enquanto entre pretos e pardos a taxa foi de 26,2%. Entre os brancos que frequentavam a escola, 29,2% cursavam uma graduação, enquanto entre pretos e pardos o percentual foi de 15,3%.

Nessa mesma faixa etária, 6,0% dos jovens brancos tinham diploma de graduação e, entre pretos e pardos, apenas 2,9%. Destaca-se, ainda, que 70,9% dos pretos e pardos não estudavam nem tinham concluído o ensino superior, enquanto entre os brancos este percentual foi de 57,3%.

Estes dados revelam que nosso sistema educacional não oferece oportunidade e condições iguais para os jovens no Brasil. O jovem branco e com famílias de renda larga em grande vantagem em relação a jovens pretos, pardos e pobres. Portanto, nosso sistema não é nem equitativo, muito menos justo.

O descumprimento das metas do atual PNE e os impactos na desigualdade educacional não são mera coincidência. É opção de políticas educacionais adotada, a partir de 2016, pelos governos da União e muitos Estados e Municípios brasileiros, que, também, descumprem seus planos regionais e locais.

Necessidade de trabalhar é a principal razão para abandono

Indagados sobre a causa do abandono escolar, 40,2% dos jovens apontam a necessidade de trabalhar como fator principal. Dentro os jovens do sexo masculino, esse valor sobre para 51,6%.  A falta de interesse em estudar – motivos a serem investigados -, é a segunda maior causa com 26,9%. Já entre as mulheres as principais causas são: necessidade de trabalhar (24%), gravidez (22,4%) e falta de interesse (21,5%). Outros 10,35 indicam afazeres domésticos ou cuidar de pessoas como principal motivo de terem abandona ou mesmo nunca terem frequentado a escola.

Entre os 49 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, 20%, um de cada cinco, não estavam ocupados nem estudando, ou seja, sem trabalho e sem escola. Outros 15.7% estavam ocupados e estudando, 25,2% não estavam ocupados,     porém estudavam e 39,1% estavam ocupados e não estudavam. Nossos jovens são trabalhadores que estudam quando possível, atrasam sua escolaridade na idade certa, impactando em suas trajetórias de vida e profissionais.

Em relação à cor ou raça, 18,8% das pessoas brancas trabalhavam e estudavam, percentual maior do que entre as pessoas de cor preta ou parda (13,7%). O percentual das pessoas brancas apenas trabalhando (39,3%) e apenas estudando (26,2%) também foi superior ao de pessoas de cor preta ou parda, enquanto o de pessoas pretas ou pardas (22,8%) que não estudavam e não estavam ocupadas superou o de pessoas brancas (15,8%).

Para além das desigualdades de raciais, destacam-se, também, as desigualdades regionais. Mesmo que a taxa de analfabetismo tenha recuado um pouquinho de 6,1% para 5,6% em 2022, o Nordeste apresenta a taxa mais alta (11,7%) enquanto o sudeste a mais baixa (2,9%). No grupo dos idosos (60 anos ou mais) a diferença entre as taxas é ainda maior: 32, 5% para o Nordeste e 8,8% para o Sudeste.

Pela primeira vez na história educacional brasileira, mais da metade (53,2%) da população de 25 anos ou mais havia concluído, pelo menos, a educação básica obrigatória, isto é, possuíam ao menos o ensino médio completo. No entanto, para as pessoas de cor preta ou parta, esse percentual foi de 47% enquanto que entre as brancas a proporção era de 60,7%.

Quanto a escolarização, de 2019 para 2022, a taxa de escolarização das crianças de 4 a 5 anos caiu de 92,7% em 2019 para 91,5% em 2022 por opção dos pais e responsáveis. A taxa de escolarização da população de 6 a 14 anos se mantém elevada em 99,4% e, a escolarização dos jovens de 15 a 17 anos subiu de 89% em 2019 para 92,2% em 2022.

A rede pública teve em 2022 77,2% dos alunos na creche pré-escola, 82,5% dos estudantes do ensino fundamental e 87,1% do ensino médio regular. Já a rede privada atende a 72,6% dos estudantes do ensino superior e 75,8% da pós-graduação, especialmente a pós lato sensu.

Precarização do ensino médio público e elitização do ensino superior

Aqui se manifesta uma das maiores assimetrias e contradições da educação brasileira: enquanto no ensino médio 87,1% das matrículas estão na rede pública – rede precarizada, mal tratada e sem condições de estudo e trabalho -, estes mesmos jovens – pobres, negros, pardos e do campo -, para acessarem o ensino superior necessitam pagar uma faculdade ou universidade privada que concentra mais de 2/3 das matrículas. Por esta e outras razões, menos de 20% dos jovens estão no ensino superior, configurando uma oferta de elite, pois representa apenas 1/5 das juventudes acessando a formação de nível superior.

E a reforma do “Novo” Ensino Médio (NEM), em implementação e muito contestada, segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais – e, por extensão, as desigualdades sociais –, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação, conforme atestam pesquisas comparadas que analisaram sistemas de ensino de vários países.

O NEM induz os jovens de escolas públicas a cursarem itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados de maneira precária em escolas sem infraestrutura, ampliando e acentuando a desescolarização no país, terceirizando partes da formação escolar para agentes exógenos ao sistema educacional (empresas, institutos empresariais, organizações sociais, associações e indivíduos sem qualificação profissional para atividades letivas).

Uma das dimensões desse problema é a possibilidade de ofertar tanto a formação geral quanto a formação profissionalizante do ensino médio a distância (EAD), o que transfere a responsabilidade do Estado de garantir a oferta de educação pública para agentes do mercado, com efeitos potencialmente catastróficos para a oferta educacional num país com desigualdades sociais já tão acentuadas.

O PNE 2014-2024 não está sendo cumprido. No lugar dele, são colocadas uma série de políticas públicas que vão na contramão do que ele preconiza: políticas discriminatórias, excludentes, de censura, e de esvaziamento da escola como lugar vivo, democrático, transformador e livre. Assim, o descumprimento do Plano Nacional de Educação está no centro da barbárie que toma a educação nacional.

O relatório da Unesco de 2022 reafirma que a educação é o principal caminho para enfrentar essas desigualdades enraizadas. Com base no que sabemos, precisamos transformar a educação.

As salas de aula e as escolas são essenciais, mas, no futuro, elas precisarão ser construídas e vivenciadas de forma diferente. A educação deve desenvolver as capacidades necessárias nos locais de trabalho do século XXI, levando em consideração a natureza mutável do trabalho e as diferentes formas pelas quais a segurança econômica pode ser suprida. Além disso, o financiamento educacional mundial e nacional deve ser ampliado para garantir que o direito universal à educação seja protegido.

Autor: Gabriel Grabowski, professor e pesquisador.

FONTE: https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2023/07/retrocessos-nas-metas-do-pne-acentuam-as-desigualdades-educacionais/

Um banquete, uma ceia e duas mortes

O Sócrates platônico e o Jesus do Novo Testamento, pelo uso do mito e de parábolas, deixaram um legado imensurável de valores, que a bestialidade humana se recusa admitir e botar em prática.

Recaem sobre nós, queiramos ou não, as mortes de Sócrates e de Jesus de Nazaré. Talvez porque, se estivéssemos em Atenas, no ano 399 a.C., teríamos votado pela condenação do filosofo grego que pregava “só sei que nada sei”; ou, em Jerusalém, no ano 33 d.C., diante de Pilatos, teríamos engrossado o coro da turba que bradou “Esse não! Mas Barrabás, sim!”, em detrimento do “Filho de Deus”.

Há mais semelhanças entre as condenações à morte de Sócrates e de Jesus de Nazaré do que, ao estilo Shakespeare, a nossa vã filosofia possa imaginar. Nos personagens que emergem da dramaturgia de Platão e do Evangelho segundo João, há um leve toque de “suicidas”.

Sócrates, admite-se, assegurou a sua condenação ao se recusar a negociar, tornando a situação irreversível, para ele, com a proposta de castigo alternativo a lhe ser imposto no lugar da cicuta. Além de ter refutado todas as oportunidades de fuga que lhe foram facultadas.

Jesus, em João 19, flagelado e coroado de espinhos, não deixou opção a Pilatos, que havia dito “Eu não encontro qualquer culpa nele” (João 18), quando, no pretório, ao se recusar a responder de onde vinha e, diante do questionamento “Não me falas? Não sabes que tenho autoridade para te libertar e autoridade para te crucificar?”, ter contestado “Não terias qualquer autoridade sobre mim se ela não tivesse sido dada de cima. Por isso quem me entregou a ti tem mais culpa”. Pilatos vacilou. Ainda tentou libertá-lo. Mas, diante dos berros da turba “Se o libertares, não és amigo de César”, cedeu. Jesus foi levado ao Gólgota, onde foi crucificado. E morreu para que se cumprisse a Escritura.

Sócrates, ao não condescender negociar valores, praticamente forçou Atenas, e, de resto, todo o mundo ocidental, a assumir a culpa por uma morte que, admitem algum, ele mesmo escolheu. Idem Jesus, no caso dos cristãos, ao se deixar morrer para que se cumprisse a Escritura.

Se tivéssemos tomado assento naquele júri de Atenas, como teríamos votado? Lembremo-nos que Atenas vivia quadro de humilhação militar e divisão política, quando Sócrates foi julgado. É provável que, diante de argumentos ditos irrefutáveis, muitos endossassem teses de que é preferível a injustiça à desordem, Goethe, ou que a preservação da ordem social e legal torna possível a reparação dos erros da justiça, Hegel, e votassem pela condenação. E, no caso de Jesus, como se contrapor ao argumento de que libertar o nazareno era o mesmo que recusar a autoridade de César.

Enquanto refletimos, parece que não nos resta outro caminho que não seja colocar em recesso, pelo menos em tese, aquele júri de Atenas e o flagelo e a crucificação de Jesus, sobrestando o juízo no pretório. Nesse entremeio, buscamos a redenção do nosso sentimento de culpa. Pois, até para aqueles que acreditam na Ressurreição de Cristo, a agonia e os gritos de abandono do nazareno na cruz soam terríveis.

Mesmo que a morte de Sócrates, na descrição de Platão aparente certa leveza, isso também não nos exime, mesmo que simbolicamente, de responsabilidade. As justificativas para essas duas execuções ainda permanecem abertas.

O Sócrates platônico e o Jesus do Novo Testamento, pelo uso do mito e de parábolas, deixaram um legado imensurável de valores, que a bestialidade humana se recusa admitir e botar em prática.

Foram dois personagens singulares que, mesmo separados por 432 anos na existência terrena, comungaram em muitas coisas, havendo, inclusive, quem identifique sinais da maiêutica socrática nas parábolas de Jesus.

Sobre o título dessa coluna, o banquete mencionado é o ocorrido por volta do ano 400 a.C., na casa de Agáton, descrito na obra de Platão, O Banquete, que teve Sócrates como personagem principal; e, a ceia, evidentemente, A Última Ceia (João 13). Depois desse banquete, segue-se o julgamento e a execução de Sócrates, no ano 399 a.C. E Jesus de Nazaré, desse último encontro com os seus discípulos, partiu para a morte, quase imediatamente.

Em tempo, os ensinamentos deixados por Sócrates e Jesus colocam, acima de tudo, o altruísmo, o amor e a compaixão, como valores universais. Para aqueles que, em nome de Deus, insistem pregar o contrário do que ele ensinou, nunca é demasiado rememorar as palavras de Jesus: Quem julgam vocês que sou?

Autor: Gilberto Cunha

Liberdade

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade! “; nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre/ ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade!/ abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da Pátria…” em certo instante.

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre como diria o famoso conselheiro… é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho…

Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir (As vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso…)

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!…) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento! Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos! …

São essas coisas tristes que contornam sobriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE.

Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte.

E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos, linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel…”.

AUTORA: Cecília Meirelles. Escolha o seu sonho: crônicas. Editora Record: Rio de Janeiro, pág. 7)

ATIVIDADE PEDAGÓGICA:

Neste vídeo a seguir, segue leitura do texto e propostas de atividades para estudantes das séries finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. A intenção, com esta publicação, é subsidiar a leitura e conhecimento do texto, o conhecimento sobre a autora e o aprofundamento do tema Liberdade junto aos estudantes através de atividades pedagógicas.

Acesse e confira! https://youtu.be/baHNcwgwtSU?t=470

Tempos de Utopias

Utopia é um conceito complexo e cheio de significados que atravessa o campo do conhecimento das ciências sociais, da filosofia política, da literatura e também da educação.

Conforme ressalta o sociólogo Michael Löwy, utopias são ideias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, ainda não existente. Sendo assim, as utopias tem uma dimensão crítica e até de negação da ordem social existente, pois são subversivas, podem assumir uma função revolucionária e são imprescindíveis para esperançar os tempos de crise.

Na história renascentista, um dos autores ligados ao conceito de utopia foi o inglês Thomas More (1478-1535). Filho do juiz John More, foi político, filósofo, humanista, diplomata, membro do parlamento inglês e chanceler no reinado de Henrique VIII. Decidido a seguir os passos do pai, formou-se em Direito na Universidade de Oxford e ingressou na vida política. Apesar de seus deveres públicos, foi um escritor influente. Além da Obra Utopia escreveu diversas outras obras dentre elas História de Ricardo III, considerada a primeira obra-prima de historiografia inglesa.

Thomas More pode ser considerado o grande representante inglês do renascimento e foi profundamente influenciado pelo pensamento de Erasmo de Rotterdam. Pode-se dizer que toda a obra de More inseriu-se dentro dos quadros do pensamento renascentista, mais particularmente dentro das coordenadas do Humanismo. Os humanistas se dispunham a repensar os filósofos antigos, de maneira a integrá-los na concepção cristã da vida.

(Sugiro leitura de crônica escrita a partir de obra Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam (1469-1536)): https://www.neipies.com/as-loucuras-de-nosso-tempo/

Descontente com a estrutura econômica vigente na Inglaterra, More escreve a obra Utopia, nome de uma ilha fictícia, na qual é apresentada uma sociedade ideal, sem desemprego, fome, doenças, guerras e intolerância religiosa. No centro de cada quarteirão destas cidades da ilha encontram-se um mercado de coisas necessárias a subsistência, onde são depositados os diferentes produtos necessários para as famílias.

Cada pai de família busca nestes mercados tudo o que necessita para os seus e por isso na Utopia de More não há famintos, indigentes, criminosos.

Quanto a organização política, a Utopia regula-se por um regime democrático, com um sistema completo de eleição dos magistrados de forma a não permitir o abuso de autoridade. As leis são discutidas amplamente a fim de evitar que sejam injustas e possam dar privilégios a qualquer cidadão. As instituições têm por finalidade impedir, por todos os meios, a possibilidade de os governantes conspirarem contra a liberdade, oprimirem o povo com leis tirânicas ou mudar a forma de governo.

No que tange a questão religiosa, os habitantes de Utopia professam várias religiões, desde os mais primitivos cultos astrológicos, como a adoração do Sol, até a crença num Deus único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável, onipotente e onisciente.

Apesar dessa diversidade, os adeptos das diferentes crenças e seitas não entram em conflito, pois todos se respeitam mutuamente. O Estado, por sua vez, não impõe nenhum credo e assegura a tolerância religiosa.

Thomas More se indispôs com o rei Henrique VIII por não concordar com a separação da Inglaterra da Igreja Católica e por isso foi destituído do cargo de chanceler. E ao negar-se a assinar o Ato de Sucessão que declarava nulo o casamento do monarca, foi preso e posteriormente condenado à morte por decapitação.

Mais de quinhentos anos nos separam dos escritos de Thomas More.

Seu pensamento e suas ideias influenciaram as democracias contemporâneas e continuam inspirando as novas gerações. Talvez seja urgente e necessário revisitar seus escritos, principalmente para perceber que ainda estamos longe de vivenciar a Utopia que ele tão bem descreveu.

Em certo sentido, do ponto de vista político, religioso e econômico estamos distantes das formulações que inspirou Thomas More a escrever sua Utopia da Inglaterra do século de XVI. Talvez devemos aprender com seus escritos o básico para a construção de uma sociedade democrática, a vivência da tolerância religiosa, o respeito pela diversidade e a solidariedade como valor econômico fundamental para a promoção da dignidade humana.

Autor: Dr. Altair Alberto Fávero

Sentir-se culpado é ruim, se sentir responsável é bom

Alimentar o sentimento onipotente de culpa, culpar a si ou aos outros, é o pior que temos a fazer. Resignar-se frente a parva condição humana, assumir nossa responsabilidade pelos erros cometidos e buscar uma atitude reparatória é o melhor que temos a fazer.

Emma: a pior “solução”

Flaubert, em “Madame Bovary” (1857), conta de Emma, uma mulher que, por ser “adultera”, trouxe sofrimento ao marido Charles, aos familiares de ambos, à sociedade. Mas Flaubert descreve a história de vida da personagem e nos permite entendê-la: Emma cresceu com o único sonho de encontrar na vida uma relação amorosa idealizada.

Casa com Charles, um médico viúvo, mais velho, e não encontra a relação que idealizou. No casamento não se encontra. Fora do casamento também não. Mas é só o que Emma tem na vida. Tenta encontrar o que busca em um amante. A relação acaba mal. Tenta em outro, o final é ainda pior.

Como constatou Alain de Botton: “No momento em que Emma perde seu status na comunidade, derrama arsênico e se deita na cama para esperar pela morte, poucos leitores têm ânimo para julgar”. Emma não tinha “pitadas de psicopatia”.

Emma: a segunda pior “solução”

Vamos imaginar que Emma, em vez de cometer o suicídio, dá-se conta de que, ao procurar amantes, além de se colocar numa posição ruim na sociedade em que vivia, trouxe sofrimento para si mesma, para seu marido e demais familiares. E, percebendo isso, passa a sentir uma culpa avassaladora. E a culpa a deixa paralisada, infeliz e sem perspectiva. Tenta expiá-la da forma como se expiam as culpas: com atitudes destrutivas. Convém lembrar dos métodos “medievais”: subir escadarias de joelho, açoitar-se…

Emma: a melhor solução

Nós, leitores de Flaubert, não culpamos Emma porque percebemos sua reduzida capacidade naquele momento de sua vida. Fica evidente que Emma agiu não por maldade, mas pela limitação de só ter um sonho na vida e não conseguir percebê-lo irrealizável. E não encontrou outro interesse. Não conseguiu ir atrás de outro interesse. Mas, se fosse possível a ela perceber a melhor saída, como seria essa “melhor saída”?

Não se culparia, pois reconheceria que, naquele momento, “não podia agir de outra maneira”. Seria “culpada” se tivesse, naquele momento, poder, “cabeça” para agir diferente. Não tinha.

Volto a citar o ótimo livro “Sentimento de culpa”, de Guedes e Walz: “O sentimento de culpa é o sentimento de onipotência”.

Emma perceberia que, por suas limitações, agira mal, sem poder não agir mal. Mas reconheceria o erro. E se sentiria responsável por ele e procuraria reparar. Com o sentimento de culpa, iria atrás de saídas destrutivas. Com o sentimento de responsabilidade, poderia buscar reparações construtivas.

Em síntese, alimentar o sentimento onipotente de culpa, culpar a si ou aos outros, é o pior que temos a fazer. Resignar-se frente a parva condição humana, assumir nossa responsabilidade pelos erros cometidos e buscar uma atitude reparatória é o melhor que temos a fazer.

No entanto, culpar-se? Quem consegue ficar sempre focado? Ninguém, é claro. Ninguém é, de fato, infalivelmente onipotente. Assumindo nossa limitação, não vamos esperar e exigir de nós mesmos o que não podemos. Leia mais: https://www.neipies.com/a-culpa-nao-serve-para-nada/

Autor: Jorge A. Salton

Lições de uma implosão

É válido lembrar que sempre poderemos aprender não somente com os nossos erros, mas também, com os erros dos outros. Seja por intermédio de uma estória, como vimos sobre Pandora e Eva, seja na própria vida “real”, como é o caso deste texto que procurou encontrar lições, mesmo em uma tragédia.

O Titan embarcou rumo a uma expedição nas profundezas obscuras do oceano com o principal objetivo, turístico, de visualizar nada mais que, segundo os boatos de 1915, o navio mais luxuoso e seguro do mundo.

A passagem do Titanic poderia chegar a 50 mil Euros ou 240 mil Reais. Isso sem correções, que poderia passar de meio milhão na atualidade. Já um “assento” do Titan (entre aspas, porque aquilo não parecia ter bem assentos e não era nenhum pouco luxuoso), poderia ser comprado pela bagatela de 1,1 milhão de Reais.

Isso tudo para ver uma das maiores catástrofes marítimas da história, por uma tela. Eu não iria, não porque eu não tenho dinheiro, sendo sarcástica, mas, porque entrar em contato direto com algo que representa tanto sofrimento não é algo que se assente muito bem em mim (eu sei, tem muita história por lá, e essa é a parte interessante, mas, ao menos para mim, o outro lado parece pesar mais).

Às pessoas que me rodeiam que sabem: ai delas se compartilharem fotos de acidentes ou tragédias no meu whatsapp: leva xingão e discurso na hora!

Isso, de algum modo, me faz questionar essa “curiosidade” que muitas vezes chega a ser insana. Aliás, para os curiosos, a palavra curiosidade, segundo a página “A Origem das Palavras” deriva do latim Curiositas que significa “desejo de conhecer, de se informar”, a raiz latina “cur” significa por quê. É também a origem da palavra “cura” que quer dizer cuidado, e da palavra curioso, que se refere àquele que teria sempre o cuidado de saber o porquê, de saber mais.

Curiositas era uma virtude, associada ao desejo da mente pelo conhecimento, e uma motivação nobre e louvável. Nada parecido com a curiosidade que estamos nos referindo por aqui, não é mesmo?

Mas, o povo antigo era esperto, pois possuíam uma denominação específica para esse outro tipo de curiosidade, eles a denominavam cupiditas, que também, segundo informações da página A Origem das Palavras, se trata de um tipo de “curiosidade” que tem efeitos opostos sobre a própria mente. Como, por exemplo, a curiosidade dos fofoqueiros, a curiosidade por informações inúteis, a curiosidade que coloca em risco a própria vida sem um bom motivo! Falando nisso:

De cupiditas sofreu Pandora, na mitologia, aquela que se fez esposa de Epimeteu e a quem deram os deuses uma caixa com a recomendação de que nunca a abrisse, pois, continha lá dentro todos os males e desgraças do mundo. Por não ter resistido ao pior da sua própria curiosidade, sucumbiu Pandora à tentação de ver o que havia dentro da caixa – e libertou toda a espécie de males sobre o mundo (o egoísmo, a crueldade, a inveja, o ciúme, o ódio, a intriga, a ambição, o desespero, a tristeza, a violência, e todas as outras coisas que causam miséria e infelicidade). E todos os males podem ser chamados por um único nome: Ignorância (A Origem das Palavras).

De algo parecido sofreu a Eva, lá no jardim do Éden, ao escolher comer a única fruta proibida naquele paraíso inteiro (e eu nem vou entrar na discussão de que essas estórias parecem ser um tanto quanto machistas, ao escolherem o que a ampla cultura impõe como o “sexo frágil”, para ceder as tentações, essa discussão fica para uma próxima oportunidade). Mas, salvo as exceções, parece-me que as nossas narrativas retratam muito bem os males que uma curiosidade mal-empregada pode nos causar.

É justamente dessa curiosidade que os telejornais se alimentam, de sangue e de tragédia. É a curiosidade oca, vazia que as pessoas mais consomem. Infelizmente, pois se utilizassem a curiosidade como virtude, aquela que está relacionada ao desejo por conhecimento, acredito fielmente que grande parte dos maiores sofrimentos e preocupações da humanidade estariam, no mínimo, bem encaminhados. No entanto, elas preferem continuar abrindo a caixa de Pandora ou comendo maças.

Mas, o Titan, além de carregar consigo o peso ou a problemática da curiosidade, também pode nos fazer refletir sobre as profundezas de nosso oceano: metaforicamente falando…

Isso porque, segundo o G1, ele já havia feito mais de vinte viagens. Segundo os especialistas, toda vez que ele submerge e emerge ele vai acumulando danos, que quando submetidos a altas pressões, um pequeno amassado que represente 2% da superfície do submarino é suficiente para reduzir a profundidade máxima da operação em 50%, pois, a pressão externa exercida em uma profundidade de 3,8 mil metros é equivalente a um elefante apoiado em cada pedaço de 25cm² (um quadradinho de 5cm x 5cm) e isso significa dizer que qualquer trinquinha, nessas condições, pode virar um trincão.

O que me faz lembrar de algumas questões subjetivas, como, por exemplo, quantas vezes nos submetemos a altas pressões, dizendo sim a todos os pedidos, enquanto o nosso corpo implora por descanso ou reparo. Quantas vezes fizemos mais do que podemos fazer, deixando marcas em nós mesmos, até que um dia, essas pequenas trinquinhas, acumuladas ao longo de inúmeras situações, culminem em uma implosão. Que pode ser um AVC, um infarto, um Burnout, uma Depressão ou um transtorno de Ansiedade Generalizada.

E o mais irônico de refletir, é que as pessoas se indignam com o que aconteceu com o Titan, mas, nem piscam para a implosão que está se encaminhando dentro delas, ignorando todas as medidas de segurança, dia após dia.

Podemos refletir também o quanto o mundo inteiro se envolveu com a história do Titan. Por alguns dias, ficamos aflitos e até mesmo sufocados em nos imaginar dentro de uma cápsula, a quilômetros de profundidade, sem comida e com o oxigênio contado.

Você já parou para refletir em como o fato de apenas imaginarmos algo pode nos causar tremendo mal-estar? Como nos lembra o Estoicismo, a sugestão é: domine a sua mente, caso contrário ela dominará você!

Mas, a essa capacidade de se colocar no lugar do outro, como se você fosse o outro, e portanto, compreendendo o contexto do outro, e o mais importante sentindo! Chamamos de empatia. Esse mecanismo natural é fundamental para a sobrevivência da espécie humana, porque ao nos solidarizarmos com aquela situação, de tal modo que consigamos sentir a dor a aflição do outro, também sentimos uma vontade de querer ajudar. Resultado das buscas para encontrar um submarino no oceano e a comoção mundial. É por essas que a empatia acaba promovendo a preservação de nossa espécie. É por essas que um mundo cada vez mais egoísta, uma grandeza diretamente contrária à empatia, pode mesmo culminar em nossa implosão.

Nem precisaremos de uma ajuda externa, um meteoro, como aconteceu com os dinos, a gente dá conte de acabar com a humanidade sozinha, dada a nossa “inteligência” ou “curiosidade”.

De tudo o que conversamos até aqui, ainda acredito que a maior lição vem a partir de agora, ou seja, em como alteraremos as normativas de segurança, o projeto de submarinos, a escolha de materiais, estudos, pesquisas dentre outras infinidades de cuidados redobrados, com o principal objetivo de tentar assegurar que essa tragédia não se repita.

E eu sei, ninguém gosta de errar, ficamos putos quando dá um erro no computador, ficamos chateados e incomodados quando erramos, quando as pessoas erram, pois, ele atrapalha os nossos planos… e ainda mais quando tudo isso resulta em uma tragédia. Vivemos em uma sociedade que associa o erro ao fracasso, a incapacidade. Essa cultura também alimenta um perfeccionismo tóxico, que deixa muita gente doente. Isso porque, a maioria de nós nunca parou para enxergar o erro como uma oportunidade.

Um erro, por pior e mais trágico que ele seja, sempre poderá nos fornecer um aprendizado para consertarmos o que não está bom, para escolhermos um caminho melhor, para nos tornarmos pessoas melhores. Mas, há um porém, é preciso reconhecer no erro essa capacidade, ao invés de apenas lamentar ou como muitos costumam fazer por aí: escondê-lo!

E tem mais uma coisinha (depois eu prometo que finalizo o texto). É válido lembrar que sempre poderemos aprender não somente com os nossos erros, mas também, com os erros dos outros. Seja por intermédio de uma estória, como vimos sobre Pandora e Eva, seja na própria vida “real”, como é o caso deste texto que procurou encontrar lições, mesmo em uma tragédia.

E agora eu desafio você, caro Leitor, a fazer o mesmo! Deixe um comentário contando para gente quais foram as lições que o submarino Titan lhe ensinou! Sinta-se à vontade para deixar um comentário e ampliarmos a discussão a respeito do assunto!

Conheça as outras 08 crônicas já publicadas no site: https://www.neipies.com/author/ana-paula/

. . .

Bem pessoal, chegamos ao final de mais um texto reflexivo! Espero que essa reflexão possa ter contribuído, de algum modo, com a sua vida.

Se possuir interesse em conferir mais deste conteúdo, você pode clicar nos meus textos aqui em baixo ou conferindo os meus vídeos pelo youtube, procurando pelo canal Diálogos da Ana! https://www.youtube.com/channel/UC0_oBeGUwF2ce2YdL9-1GSQ

Autora: Ana P. Scheffer

FONTES:

A Origem das Palavras: https://www.facebook.com/113798452062157/posts/234575589984442/

G1: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/06/24/entenda-como-as-escolhas-de-design-e-materiais-do-submarino-podem-ter-causado-a-implosao.ghtml

Uma cidade sob um olhar fotográfico

Diogo Zanatta define-se repórter fotográfico. Zanatta é graduado em Publicidade e Propaganda pela UPF (Universidade de Passo Fundo), 2006. Cursou também uma pós-graduação – Fotografia Imagem em movimento – Universidade Positivo – PR.

Diogo atua, apaixonadamente, para revelar a realidade, eventos sociais, culturais e políticos, como também as mudanças visuais que ocorrem no Passinho, como é carinhosamente chamada a cidade Passo Fundo.

Este jovem fotógrafo funde, de certa forma, o ser cidadão com o ser fotógrafo. Em breves diálogos, pudemos constatar que as lentes e as suas máquinas fotográficas tornaram-se também ferramentas que revelam a cidadania dele mesmo e a cidadania da nossa gente passo-fundense.

Conheçamos Diogo Zanatta por ele mesmo.

Como, quando e porquê esta tua paixão pela fotografia? Conte-nos.

Sempre fui um menino inquieto, mas sem muita definição do que queria ser. Tentei ser até veterinário. Ao crescer, percebi uma tendência com as artes. O contato com as câmeras se deu a partir da minha mãe, que fotografava a partir de uma janela (a mesma pela qual ainda faço registros fotográficos). Minha mãe sempre nutriu amor por fotografias.

Ganhei do meu tio Nelceu Aberto Zanatta uma câmera um pouco mais moderna, pois o tio sempre gostou de fotografias também, e daí em diante nunca mais parei de clicar, mas já a partir do mundo digital.

Minha paixão é registrar o cotidiano a partir do lugar onde vivo, do que enxergo e do que posso revelar. A fotografia pode se tornar um instrumento de historicidade, quando revela o cotidiano dos acontecimentos de um lugar.

Com que olhar, com que sentidos e com que sentimentos desvendas Passo Fundo através das lentes?

Gosto de pensar que na nossa querida Passo Fundo temos muitas coisas para mostrar, que não estamos desconectados do resto do Brasil e do mundo. Como repórter fotográfico, posso registrar acontecimentos sociais, políticos e também fenômenos naturais como chuva, raios, eclipses, meteoros (que também gosto muito). Gosto de valorizar o que acontece na nossa cidade, uma cidade do interior.

O que mais chama atenção no cotidiano das pessoas que habitam nossa cidade Passo Fundo?

Ao observar o cotidiano de nossa cidade, percebo que somos um povo acolhedor, mas poderíamos ter um olhar mais aberto para diferentes realidades como a vida dos imigrantes que moram por aqui, dos indígenas, das pessoas que moram em nossas periferias e ocupações. Tento dar um pouco mais de visibilidade a estes tantos que não são tão bem valorizados, como deve ser a missão de um documentarista.

Um registro seu, feito em nossa cidade, que julgas especial. Tens?

Sim, tenho uma foto da Praça Tamandaré que gosto muito. Gosto deste lugar da cidade, tanto que já participei anos atrás de uma associação que cuidava desta praça.

Um registro seu, feito em nossa cidade, que julgas relevante. Tens?

Fiz uma foto que projetou Passo Fundo para fora, numa época em que aconteciam em todo o país um movimento de grandes manifestações (ano de 2013). Neste período exerci o papel de repórter fotográfico regional, o que me permitiu uma experiência de trabalho com fotos por certo período, em 2014, na nossa capital, Porto Alegre.

Um registro seu, feito em nossa cidade, que julgas tenha grande impacto social. Tens?

Faço registros fotográficos para um projeto chamado “Arquitetura para quem mais precisa”. Este projeto mostra necessidades que vão para além de casas, provocando olhares sobre a dignidade humana de quem as habita.

Consideras a fotografia uma forma de arte? Qual é a importância social da fotografia?

Não considero a minha fotografia uma arte; eu procuro mostrar os fatos, a informação que está presentes em fenômenos sociais, políticos e sociais. Se outros consideram minhas fotografias uma arte, tudo bem. O Brasil tem muita desigualdade social. Fazer da fotografia uma ferramenta para desvelar as realidades como elas são é parte de sua importância social. O fotógrafo tem de se despir de preconceitos, discriminação, mostrando as realidades como elas se apresentam, para serem vistas, apreciadas e enfrentadas por todos nós.

Como vês e como olhas Passo Fundo por teu olhar cidadão?

Nasci passo-fundense. Vi Passo Fundo em mudanças. Gosto de fotografar como uma questão de cidadania; me sinto cidadão por poder fotografar e registrar coisas boas de nossa cidade e coisas que precisam ser melhoradas. Não consigo mais separar o aspecto cidadão do aspecto fotógrafo. Faço da fotografia uma forma de cidadania!

Um pensamento, uma ideia ou uma filosofia que defina você.

“O sentimento de insignificância frente ao universo faz de você um ser humano melhor”. (Revista Galileu, matéria:https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Comportamento/noticia/2015/08/o-sentimento-de-insignificancia-frente-ao-universo-faz-de-voce-um-ser-humano-melhor.html)

Uma mensagem para quem te lê agora.

Sou movido pela coletividade. Acho que o senso de coletividade traz em si uma grande potência capaz de promover maiores mudanças. Na arte, na fotografia, na vida, a coletividade nos salva, constituindo mudanças reais e significativas para a maioria, para a humanidade como um todo. Acredite nisso você também e engaje-se!

Na solidão das livrarias

Visite as livrarias com urgência, porque corre-se o risco de restarem somente farmácias. E, ao longo de seu labirinto de uma vida sem letras, não há saída que possa ser encontrada.

O dia estava lindo, véspera de feriado, clima perfeito para uma prévia de um descanso programado em mais um final de semana tedioso com esquinas e ruas tomadas, gentes pelas calçadas, carros que ameaçam a todos, ratos que correm pelo meio-fio, sorrisos apressados, promessas de alegria.

Olho pelo ângulo de uma árvore formosa que estava ali, quase gigante, mas que fora cortada em pedaços para dar lugar a mais uma farmácia, em uma dupla tragédia urbana.

“Corta-se uma árvore, uma vida.

Nasce uma loja iluminada

em seu lugar

para vender a morte

ou seu dia adiar.”

Uma típica sexta à tarde, azulada, nervosa, de pessoas que andam mais rapidamente, sem saber muito exatamente em que parede sua noite vai topar. Aproximo meus passos cada vez mais rente ao shopping onde fala-se haver uma grande livraria, a mais sortida, como diziam alguns antigos, ou, com inúmeros títulos, em linguagem de anteontem.

Quantos carros!

Cada metro é disputado por esses casulos ambulantes, cada pessoa com o seu, como se fossem a roupa de cada um, colorida, de aparência duvidosa, e o seu mundo buscando estacionar no seu riscado. Pensei que teria problemas com o excesso de pedestres, logo à entrada, onde tive a certeza de que parques e espaços verdes estão em declínio abissal por aqui. Toda a cidade veio ao shopping.

“Corredores e lojas cheias de todos, pizzarias e lanchonetes ocupando cada meio metro possível nesta caverna moderna”, pensei… Caminho um pouco mais, vejo a capa de um livro cobiçado, pergunto seu preço e sumo. “Volto na segunda – pensei – quando a realidade será imposta a todos estes consumidores distraídos”.

Mas não.  Alcanço a livraria em minutos, e, surpresa: vazia!

– Não creio! – resmunguei baixinho.

“Quanta gente vem pra cá…

Como,

tantos a gastar,

comer e mostrar,

e ninguém a pensar?”

A atendente pula em minha direção em uma reação dúbia. De alegria intensa, mas, ao mesmo tempo, surpresa: “Um cliente… Nossa!” – Sabe-se lá quanto tempo não via um deles. Ela falava, mas de canto de olhos via seus colegas a esmo, pelas colunas da sala. Disfarçados, entediados, por horas e horas em pé, sem alguém para oferecer o Escravidão, do Laurentino; Ikigai, do Ken Mogi; ou mesmo A Vida dos Doze Césares, do Suetônio. E centenas de outros e mais outros…

De que falam mesmo os vendedores de livros enquanto seus clientes não chegam? Falam com os próprios livros, suas esperas e histórias? Não pode haver maior solidão do que uma livraria vazia cercada de gente por todos os corredores. A história adormecida em pilhas de obras não vendidas.

Nos hospitais, pelo menos, temos de aguardar os horários para sermos medicados. Em rodoviárias, temos de aguardar as chegadas de ônibus para que sejam anunciadas suas partidas. Em velórios, aguardamos a última lágrima para então sair da presença assustadora da dor humana que restou…

Em livrarias, todavia, a cura pode acontecer em segundos. É abrir o capítulo certo, a página perfeita, e a esperança se tornar manifesta. Não há espera que não possa ser desfeita nem resposta que se abstenha diante de um pretenso leitor curioso. Nada pode ser adiado, sequer o desejo de abrir o último romance e ler algumas linhas, apenas. Sentar-se, descansar os olhos, imaginar um viajante que não chega nunca… como este.

“Não sinto mais cheiro de nada.

Neste caminho estrangeiro que leva à minha casa,

nem mais composto de meus sonhos, apenas de mim.

Vou caminhando muitos passos, um de cada,                      

e estou andando há horas, na escuridão do dia, sem começo ou fim.

Nada mais humano, nem divino, nada sobre nada.

Sequer os raios me atingem, meu andar trôpego espia,

margaridas me seguem, crisântemos, fadas.

E o tempo que some, sombras se escondem, é o pio da noite, diria”.

Em que loja de calçados poderemos encontrar este presente? Quais farmácias nos dariam este calmante? Mas elas estão lotadas. Suas prateleiras mal suportam tantas promessas em suas caixas de alívio.

E as livrarias, que oferecem gotas de felicidade em suas poções mágicas de cura e de bálsamo, de contos e histórias, essas continuam vazias. Não as farmácias, mas elas mesmas poderiam receber receituários para poder vender seus livros. 

– Doutor, estou com vertigem.

– Tome a receita, vá e mergulhe com Alberto Caeiro.

– Doutor, tenho muitas dores pela manhã, logo ao despertar.

– Pronto, dose única: Manuel de Barros. Até o meio-dia, leia alternadamente.

É inaceitável o que se vê!

Estamos buscando nos shoppings desvios mais rápidos que nos satisfaçam, e saindo deles ainda mais vazios. Nossos passos nos apressam para que compremos mais e mais, e, em seguida, frequentemos as farmácias como se fossem pequenos free shopps para alívio e consolo das solidões que nós mesmos construímos.

Não seria mais simples irmos à essência? Logo após um lanche, misturar ao café Fernando Pessoa, adoçando lentamente a xícara com uma colher de açúcar da Clarisse?

Saio do lugar com a sensação de que os livros ainda irão se revoltar com todo o nosso descaso. Livros solitários, abandonados em prateleiras, nunca lembrados ou comprados, conspirando com outros ao seu lado, confabulando para todos irem às ruas e baterem os seus compêndios na cabeça dos humanos.

Coleções e avulsos que, na madrugada, desviam os centuriões modernos e fogem pelas calçadas para bater nos primeiros que encontram.  Dicionários, revoltados, gritando pelas esquinas. Romances, contos, biografias, todos indo à luta para despertar essa gente que caminha feliz em ruas iluminadas – todos, rigorosamente, a caminho da escuridão.

Então, ficamos assim: para pequenos enjoos da vida, busque a sua farmácia mais próxima. Se a dor persistir, corra para uma livraria e peça ao atendente uma solução simples e duradoura para o seu mal maior: leitura. Entre estantes, silêncio e muitos livros, é o lugar onde você pode dissolver de imediato suas dores da alma. Ou o seu vazio.

Mas visite as livrarias com urgência, porque corre-se o risco de restarem somente farmácias. E, ao longo de seu labirinto de uma vida sem letras, não há saída que possa ser encontrada.

Autor: Nelceu Alberto Zanatta

Veja também