Seremos todos imigrantes em Marte?

Dentro em breve Marte será povoada. Não iremos ver este descalabro, mas a nossa descendência… provavelmente.

O que é uma vergonha completa, nós, como humanos que somos e criados, preferimos gastar bilhões para habitar em meio a pedras e poeira, abandonando uma natureza exuberante que nos cerca. Mas que tanto nos incomoda, por certo.

Qualquer cachoeira em nosso interior, aqui muito próximo, é mais linda do que qualquer paisagem de Marte. Claro que precisamos respeitar gostos e escolhas.  Há candidatos para se mudar para lá e passear pelas suas ruas com trajes que os permitam respirar. E sem passagem de volta. Mais de 200 mil pessoas já se inscreveram. ¹

Fico imaginando estas mesmas 200 mil plantando um pé de angelim em alguma beira de estrada: o quanto não fariam diferença ao seu redor. E como vamos salvar o Planeta com tantos querendo ir embora? O que a nossa Terra tem de errado para ser hostilizada ou abandonada?  É ingratidão na veia ou mal da criação? ²

Temos tudo por aqui, desde sempre: ar fresco e puro, de graça, sol e sombra, ambos de graça, ventos e marés, tudo, sempre sem custar um vintém.  Mas parece não está bom. 

Algum tempo atrás li que uma senhora de Bento, indignada que estava, vociferava contra as mudanças climáticas. Isso porque o Rio das Antas teimava em sair do seu leito. E a culpa era de barragens imaginárias ao longo do rio.

_E tem gente que ainda acredita nisso? Gritava.

A história está mais contaminada por guerras ou destruição da natureza do que na construção de paciência, paz ou plantios. E isso reflete essa busca insana pelo desconhecido, pela aventura, por não estar ou sentir perfeição na beleza de nossa casa e na magnífica camada de ozônio que a protege, por exemplo.

Vamos para Marte, então! Lá não haverá rios a contaminar nem matas a destruir.  Já foi tudo destruído mesmo, acho!  Ou, qual Criador, como nós o cremos, teria inventado um deserto, até lindo, digamos, somente para o prazer do seu olhar?  O que fazer por lá se nem borboletas veremos voando?

Vamos construir foguetes mais rápidos do que nunca e queimar combustível à vontade. Mas não é querosene de fora que nos levará pra lá.  É daqui mesmo.  Tungado do solo a qualquer custo e queimando ao ar livre até a exaustão, estas mesmas naves dependem em tudo do que a nossa velha amiga Terra pode ser rapinada por baixo.  E por cima.

Voar é fácil, quando o gás é ainda farto e sugado do solo. Quando acabar, como as naves voltarão?

Nunca se causou tanto dano à casa que nos acolhe. Mas estamos começando a dar conta de que a natureza tem boa memória. Vendo as chuvas e ventos, diariamente, sobre as cidades do país, devidamente permeabilizadas, somos confrontados com temporais que, em minutos, fazem de ruas, rios, de pedestres, vítimas.  Pessoas e carros são arrastados, em um clima que nunca se deixa controlar. E vemos nossos governantes ficando mestres em justificar os desastres.  A culpa será da natureza, querem apostar? Vamos para Marte! Lá, sequer os rios subirão.

A Revolução Industrial ficou registrada como o maior desastre ambiental do Planeta.  Poderíamos conquistar a mesma coisa, sem a devastação ocorrida. Mas sempre nos foi mais fácil, primeiro, destruir.

Pois é.  Por estas e outras razões é que os livros de história têm de ser queimados, quando um líder ou um governo tenta se impor sobre seus súditos.  A história é mestra implacável e não negocia. Basta olhar em terras devastadas por conflitos ou pela exploração sem medida e ver que ali mesmo foi necessário abandonar tudo. Ou observar o Rio Paraguai, que a cada ano diminui a sua vazão. Isso não nos incomoda?

Salvo a afirmação do ex-ministro Pedro Malan, ou de quem a tenha dito, ‘no Brasil, até o passado é incerto’. A história é única e não se dobra as preferências de quem a conta.  Ela é fluida como a água e continua a escorrer, sem se importar com o perfil de quem a conta.

E o que vemos é isso: a destruição gerando mais destruição, a poluição afetando nosso cérebro, a ambição desmedida excitando a desigualdade e rios e fontes secando por toda parte. Há lições preciosas não aprendidas no manejo e convivência com o nosso chão e nossas mentes.

Quem se importa?

Há muitíssimo mais pessoas de olho no dólar e nos índices de rentabilidade diários do que na devastação do nosso meio. E a cada árvore que vem abaixo é um lamento plantado para um futuro que bate à porta. Não que somos tão apaixonados assim, por ipês ou jamelões, mas é que adoramos respirar, não é mesmo?

Aqui no litoral, hoje, seguramente, o calor bateu os 40. Há cheiro em demasia pelas esquinas, em lixeiras que não suportam mais seus descartes.  As redes de esgoto, ralas e mal instaladas não suportam os níveis desmedidos de construção em curso.  Há mau cheiro pela beira-mar, nestes dias de calor, que devem nos lembrar os verões em Marte.

Continuamos com a nossa saga em perseguir um crescimento que não se sustentará a médio prazo. E até um dia específico foi criado para sabermos que exaurimos o planeta de todas as formas, mas não repomos a seu tempo:  o Dia da Sobrecarga da Terra. ³

Alguém aí tem dúvida de que após a tomada do novo planeta, em dois ou três anos, não será iniciada a mesma destruição?

Ahh, espero que não culpem os imigrantes de lá! Com o seu degredo imediato, uma vez que embarcaram na ilegalidade.  Sua pena?  Voltar à Terra, à força, acorrentados em naves movidas à cascalho, para aqui sofrerem as agruras de um sol a 50 graus. 

Estamos com temperaturas que não nos fazem sentir saudades do futuro, em liberdade poética.  Tudo parece secar e muito mais rápido que os prognósticos da ONU.

Mas a mensagem do Norte foi clara:  perfurem, perfuram, perfurem.  Obstinados por petróleo e dinheiro, vamos ter um retrocesso fatal para nosso clima. Tomara que não, claro.  Mas a história…ela não falha.

A senhora de Bento bem que poderia passear pela cidade e continuar a sua cruzada contra as mudanças climáticas; com guarda-chuva em mãos, claro. E muita corda para se amarrar e não ser levada pelas águas: porque as chuvas de agora caem aos baldes. 

Bem! Deve estar cansada um bocado com o calor de hoje.  Porque amanhã tem mais.

Boa viagem a todos!

Referências:

¹ G1, 10/09/2013 e Veja, 06/05/2016. Projeto da Empresa holandesa, Mars One. (Total de 202.586 candidatos de 140 países). Ida à Marte, sem volta.

² “Disse o Senhor: farei desaparecer da face da terra o homem que criei…porque me arrependo de os haver feito.” Gênesis 6:7

³ WWF

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “O que nos impacta ao vermos uma mulher idosa revirando lixo”?: www.neipies.com/o-que-nos-impacta-ao-vermos-uma-mulher-idosa-revirando-lixo/

Edição: A. R.

A vida é uma jornada pedagógica

A jornada que realizamos é pedagógica, pois, em ambientes formais e informais ocorrem os processos de aprendizagem. Não é possível existir sem aprender; esta é a tese sobre a qual desejamos discorrer neste breve texto.

Escrito depois da jornada pedagógica ocorrida na Rede Estadual de Ensino do RS, de 03/02/ 2025 à 07/02/2025
Estamos em jornada pedagógica, não por determinação de uma rede, nem por um tempo que no Kronos se dissolve. Estamos em Jornada porque essa é uma condição existencial. Fazer caminhada, mover-se com esperança na direção do humano que nos habita, trabalhando no sentido de nascer a todo instante, é por excelência, tarefa nobre da qual não podemos e nem devemos fugir.

A jornada que realizamos é pedagógica, pois, em ambientes formais e informais ocorrem os processos de aprendizagem. Não é possível existir sem aprender; esta é a tese sobre a qual desejamos discorrer neste breve texto. 


 Desde o princípio da vida, estamos envolvidos por contextos que vão constituindo nossa identidade de aprendiz. Alguns processos são ditados pelas regras biológicas, neuropsíquicas, outros, pelo ambiente no qual somos gestados, aos quais nascemos e crescemos. Um nascituro que tem suas necessidades físicas e emocionais atendidas tende a desenvolver-se melhor, inclusive no que diz respeito às capacidades cognitivas, superação de barreiras e inteligência socioemocional.


Aprendemos, quando bebês, que é através do choro, dos movimentos do corpo, por estímulos e respostas que comunicamos necessidades vitais como alimentação, higiene, afeto, cuidado. Um ser humano mentalmente sadio, não ficará, em quaisquer hipóteses, alheio e imune ao choro de um bebê. A linguagem do bebê inscrita no seu corpo está carregada de significados a serem aprendidos por pais, mães, cuidadores, enfim, todos. Da mesma forma, a observação dos comportamentos e queixas dos adultos e idosos transmitem conteúdos que vão além do que conseguem expressar as palavras. Toda ciência nasce da capacidade de admirar -se perante o mundo da vida.


É nos sentidos que a educação principia, como defendido pelo educador e psicanalista Rubem Alves. É na experiência proporcionada pelos sentidos que desvendamos o mundo e nos relacionamos com as belezas que saltam aos nossos olhos:  com odores, gostos, sabores e sensações táteis. A aprendizagem se inicia na curiosa observação e segue se consolidando nas experiências, inscrevendo-se, portanto, no próprio corpo no mesmo tempo que o transcende. Isso porque ideias, não são palpáveis e nem localizadas em neurônios específicos, mas estão em nós e aparecem disfarçadas em palavras, imagens e emoções.



A esse respeito o famoso William Shakespeare escreveu um belo e famoso texto condensando algumas aprendizagens. 


Assista o vídeo contendo esse conteúdo magnífico.  https://youtu.be/1ge_IdqQYrQ?si=1A9WpGy2ys2vCzWc

Potencializados para o aprender, desde o ingresso em espaços escolares além dos vastos conteúdos produzidos pela cultura, somos desafiados a arte da convivência. Deste modo, desvendamos os desafios e as benesses de sermos, como já dizia o filósofo grego Aristóteles “animais políticos”. De formas leves ou a duras penas, aprendemos que é indispensável conviver com os “espinhos… uns dos outros” como a única forma de garantirmos nossa sobrevivência. Essa metáfora, dos porcos espinhos cunhada por Arthur Schopenhauer dá o que pensar, especialmente nestes tempos de amores virtualizados e idealizados. 
É como se o kronos a tudo pudesse engolir para garantir a realidade de aparências e relacionamentos desprovidos do sentido e da essência que só o verdadeiro amor pode ofertar.  Infelizmente, parecer ser é objetivo disfarçado em belas postagens de Instagram e no marketing que produz o consumismo sem limites, a injustiça e a morte.


 A nossa existência é construída nessa jornada, por excelência pedagógica, visto que podemos aprender com o passado, refletir o presente e projetar o futuro.  Esses são tempos eminentemente existenciais, pois fundamentam-se na necessidade de evoluirmos como seres humanos, produtos e produtores da cultura.
Aprender e Ser são verbos que se conjugam juntos e em todos os tempos.  É urgente utilizarmos o gerúndio nessa jornada existencial que requer leveza e naturalização dos processos de aprendizagem, tanto nos espaços formais quanto informais.


O relato a seguir, extraído do livro “O saber em Jogo: A psicopedagogia propiciando autorias de pensamento”, intenciona nos ajudar a compreender a importância da naturalização dos processos de aprendizagem. É dessa concepção que carecemos para transformar o fazer pedagógico e existencial que ocorre o tempo todo.


 – Vou aprender a nadar – diz Silvinia, com a alegria de seus seis anos mal completados.
– Vai nadar? – Intervém a irmã, três anos mais jovem.
– Não, vou aprender a nadar.
– Eu também vou brincar na piscina.
– Não é o mesmo. Eu vou aprender a nadar, diz Silvinia.
– O que é aprender?
– Aprender é … como quando papai me ensinou a andar de bicicleta. Eu queria muito andar de bicicleta. Então… papai me deu uma bici… menor do que a dele. E me ajudou a subir. A bici sozinha caí, tem que segurar andando…
– Eu fico com medo de andar sem rodinhas.
– Dá um pouco de medo, mas papai segura a bici. Ele não subiu na sua bicicleta grande e disse:
_ “Assim se anda de bici”.
_ Não, ele ficou correndo ao meu lado sempre segurando a bici…. muitos dias e, de repente, sem que eu me desse conta disso, soltou e seguiu correndo ao meu lado. Então, eu disse: _        Ahhh! Aprendi!
– Aprender é quase tão lindo quanto brincar – respondeu.
– Sabe, papai não fez como na escola. Ele não disse “Hoje é o dia de aprender a andar de bicicleta”. Primeira lição: andar direito. Segunda lição: andar rápido. Terceira lição: dobrar. Não tinha um boletim onde anotar: muito bem, excelente, regular… porque se tivesse sido assim, não sei, havia algo nos meus pulmões, no meu estômago, no coração não me deixaria aprender.


Por fim, mas deixando o tema em aberto, aprender, tanto em espaços formais de ensino, quando no cotidiano da vida onde quer que ela aconteça, deveria ser tão lindo quanto o brincar vivenciado por Silvinia. 


Existir não deveria ser verbo conjugado pela incerteza e na dor de tantas e muitas injustiças. Muito pelo contrário, a existência deveria ser para toda humanidade, uma aprendizagem marcada pela beleza e leveza do brincar de uma criança. Se a educação formal e informal não se pautar por tais convicções humanas e humanizadoras, então que se fechem as instituições de ensino e se retorne à existência acorrentada no “mundo da caverna,” como ilustrado pela alegoria do filósofo Platão.
 
REFERÊNCIAS
ALVES, RUBEM. Educação dos sentidos e mais. 6⁰ ed. São Paulo. Versus. 2010.
KARNAL, L. O dilema do porco-espinho: como encarar a solidão. 2. ed. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2018.
FERNÁNDEZ, Alicia. O Saber em jogo: a psicopedagogia propiciando autorias de pensamento. Trad. Neusa KernHickel. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001
ABRAL, João Francisco Pereira. “O conceito de animal político em Aristóteles”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/o-conceito-animal-politico-aristoteles.htm. Acesso em 13 de fevereiro de 2025.
PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de Enrico Corvisieri.
 
Autor: Marciano Pereira. Contribuições de Nelceu Alberto Zanatta. Também escreveu e publicou no site “Uma carta de gratidão e indignação amorosa”:  www.neipies.com/uma-carta-de-gratidao-e-indignacao-amorosa/ 

Edição: A. R.

Ainda Estão Aqui

Disseram que nós não chegaríamos aqui. E houve quem dissesse que nós só chegaríamos aqui por cima de seus cadáveres. Mas o mundo inteiro hoje sabe que nós estamos aqui. (Martin Luther King)

Esta publicação foi construída a duas mãos, por Convidado e Convidada deste site. O primeiro texto, uma crônica. Os textos que seguem, microcontos. Ambos, complementam-se na temática proposta pelo título.

***

(Por Eládio V. Weschenfelder)  

Quando é chegado o tempo em que é perigoso comer bolo, por suspeita de estar envenenado, ou beber algo por conter “Boa-noite, Cinderela”, é o indicativo de que todo mundo é suspeito de ter o espírito sombrio. Nada de se aceitar uma fatia de bolo, uma balinha, um bombom, uma bebidinha, um prato de comida. Nada! Nada! Tudo por precaução. Como se vê, o lado radiante e feliz ficou ofuscado pelo lado sombrio da humanidade.  

Lá pelos anos 470 AC, o filósofo grego Sócrates, além de estudar música, gramática e filosofia, questionou os valores sociais, morais e políticos impostos pela sociedade grega. Por isso foi acusado de negar os deuses e corromper os jovens, sendo condenado à morte por envenenamento (Cicuta). Deve ter sido por ódio dos que pensavam diferente.  Ao longo da história, reis, rainhas, homens e mulheres inocentes foram brutalmente “cicutados”.  A órfã Branca de Neve, por muito pouco, não foi vítima fatal da Rainha Má por um motivo fútil: ciúmes.   

Outras modalidades de violação à vida são praticadas contra crianças, idosos e mulheres.  No que se refere à pedofilia, por exemplo, destaca-se o fato de que os principais algozes são os familiares: pais, padrastos, tios, tias e vizinhos. Em âmbito geral, as crianças também são as principais vítimas das guerras, tanto no âmbito das armas, como da fome e das doenças. Veja-se o caso dos conflitos entre Palestina e Israel, Rússia e Ucrânia.

Nessa perspectiva, a escritora brasileira Luciana Savaget, na obra intitulada Operação Resgate na Palestina: a Herança de um conflito, descreve a situação das crianças nos campos de refugiados e nas áreas de conflito, onde os fins justificam a morte e a mutilação da população infantil. Confessa que o único meio de recuperar meninos e meninas de olhar sem brilho e coração murcho é contar-lhes histórias e disponibilizar livros e ambiências (bibliotecas) para leitura. A contação de histórias e os ambientes para leitura tornam as crianças mais radiantes e esperançosas.

Contra a população idosa há também cinzas e sombras nos noticiários que sinalizam maus-tratos, exploração, extorsão, cárcere privado, homicídio e ocultação de cadáver, dentre outras formas de violência. Toma-se como exemplo o adentramento de um cliente morto a um banco. A sobrinha buscava extorquir a instituição financeira, mediante uma rubrica forjada do tio falecido para fins de retirar valores decorrentes da aposentadoria. Uma cena patética, constrangedora e digna de ficção. Nessa perspectiva, pode-se estabelecer um nexo com a obra prima Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, quando sete mortos insepultos foram ao coreto de Antares para denunciar a violência a que foram submetidos nos tempos da ditadura militar no Brasil. Assim, tanto o cliente idoso morto, quanto os mortos insepultos, denunciam que “ainda estão aqui”.

Por seu turno, a misoginia resulta em altos índices de feminicídio no Brasil. Estamos fartos de tantas agressões, denunciadas pelos meios de comunicação, na forma de estupro, esganação, facada, tiro. Mulheres sendo jogadas pelas janelas de casas e edifícios, sequestradas e mantidas e cárcere privado por meses e anos.   A Lei Maria da Penha, a propósito, surgiu justamente para tentar, por força de lei, frear atitudes tão agressivas e injustas contra meninas, moças e mulheres.

O escritor brasileiro Machado de Assis, já no Século XIX, em três magníficos contos intitulados Pai Contra Mãe, O Enfermeiro e Causa Secreta revela o caráter sádico e assombroso da sociedade carioca. Entretanto, ainda vê-se replicar o caráter sombrio e odioso no frágil Planeta Terra. Se é verdadeiro que a humanidade evoluiu para melhor, os atos de violência praticados contra a vida das crianças, mulheres e idosos não deviam estar aqui.

Os venenos parecem estar em tudo. O espírito do ódio venenoso está no ar, na terra, nos rios e no mar. Parece loucura.  O problema também é verificado nas carnes, frutas e verduras.  Os venenos também estão vitimando abelhas polinizadoras, peixes, frutas e verduras, fauna, flora e vidas humanas. Cadê os culpados?   As vítimas são visíveis. Por mais que se tente ocultá-las, ainda estão aqui. Silenciar não é preciso, esperançar por mudanças preciso é.

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também escreveu e publicou no site “Rios do céu e da terra”: www.neipies.com/rios-do-ceu-e-da-terra/

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MICROCONTOS

(Por Roseméri Lorenz)

Espelho Mágico

Diariamente, rolava, por horas, o feed das redes sociais:

– Todos mais belos, mais ricos, com vidas mais interessantes!

Aos poucos, a Rainha Má que lhe habitava foi ganhando espaço e pesquisando, no Google, por venenos.

Bicho Papão

Tinha medo do escuro. Por precaução, sempre olhava embaixo da cama antes de apagar a luz. Mas, ultimamente, era em vão. Na madrugada, sentia o peso no colchão. O perigo vinha do quarto ao lado.

Os Três Velhinhos

“O homem é o lobo do homem”. A frase de Thomas Hobbes nunca fez tanto sentido para Cícero, Heitor e Prático como naquela tarde. Impedidos de acessar o próprio terreno, viram suas casas irem ao chão em um sopro. Se eram de palha, madeira ou tijolos, pouco importava. A ambição do sobrinho era mais forte.

O Chapéu da Aia

Criado especialmente para ela, cobria-lhe o rosto, impedindo-lhe de ver e de ser vista. Escuro e imenso, ilustrava bem as palavras por ele proferidas, de modo solene, ao mundo. E, assim, o SÓBRIO tornou-se SOMBRIO.

Reprise 1

“PM joga homem de ponte”

“Policial é baleado na frente dos filhos”

“Carne podre da enchente é vendida como nobre”

“Trump toma posse com discurso expansionista”

“Mudanças na política da Meta autorizam discursos de ódio nas redes sociais”

Mesmo distante, pois, há tempos, havia partido, lia as manchetes e, orgulhoso, vociferava, alisando o bigodinho e o uniforme militar:

– Ainda estou aí!

Reprise 2

“PM joga homem de ponte”

“Policial é baleado na frente dos filhos”

“Carne podre da enchente é vendida como nobre”

“Trump toma posse com discurso expansionista”

“Mudanças na política da Meta autorizam discursos de ódio nas redes sociais”

De todos os lados, pernas em marcha, braços e abraços em resistência e luta, surgem membros das mais diversas artes, bradando em coro:

– Ainda estamos aqui!

Autora: Roseméri Lorenz. Também escreveu e publicou no site Um desafio ao leitor e ao escritor: www.neipies.com/um-desafio-ao-escritor-e-ao-leitor/)

Edição: A. R.

Professor não é palhaço e escola não é circo

Afinal, todos sabem: o grande problema da educação é o professor! Questões genéticas, sociais e estruturais da própria escola? Irrelevantes! Um bom educador supera tudo isso — e sempre com um sorriso no rosto. Ou melhor, fazendo palhaçadas!

Já mencionei, em outro texto, que cada época tem seus modismos na educação. Por modismo, refiro-me a essas ideias que surgem como soluções “revolucionárias”, métodos que prometem resolver todos os desafios educacionais, trazendo dignidade e respeito ao ensino.

Leia aqui: www.neipies.com/o-curioso-caso-dos-alunos-que-preferiram-os-livros/

Não critico os métodos em si — eles são necessários e, em muitos contextos, bem-vindos. O que questiono é a ênfase excessiva que se dá a eles, a idealização que os transforma em respostas definitivas, como se, sozinhos, pudessem reformar toda a educação.

Nenhuma educação autêntica acontece por meio da idealização, que rejeita a realidade em favor de imagens inalcançáveis ou artificiais. Toda educação genuína nasce do encontro entre professor e aluno, e do confronto de cada um consigo mesmo. Esse processo não é isento de conflitos — pelo contrário, envolve embates tanto subjetivos quanto objetivos, pois aprender exige esforço, questionamento e transformação.

A tendência atual são as metodologias ativas. E, antes que me acusem de rejeitá-las, ressalto que possuo formação específica na área. Entre as abordagens que mais aprecio e aplico, destaco a sala de aula invertida e o storytelling.

O problema é que as metodologias ativas têm sido reduzidas a uma ferramenta de facilitação — ou, pior, de aceleração — do aprendizado. Fala-se em educação como se ela devesse ser, obrigatoriamente, leve e divertida. Nessa perspectiva, o professor deixa de ser um mediador do conhecimento e se transforma em um mero facilitador de um aprendizado dinâmico e, claro, sempre divertido.

Como se resolver equações de segundo grau fosse uma experiência empolgante para todos. Como se ensinar Sêneca e o estoicismo não exigisse um esforço cognitivo que, inevitavelmente, causa certo desgaste. Como se aprender sobre sujeito e verbo fosse tão natural e prazeroso quanto pular em uma piscina numa tarde de verão.

Nesse cenário de aprendizado supostamente irresistível, onde todos estão sempre motivados, sedentos por conhecimento e incrivelmente felizes, a escola se transforma em um grande circo.

Os prédios e o pátio fazem as vezes de lona, e cada sala de aula vira um picadeiro — com seu palhaço particular: o professor.

— Venham, venham, crianças! Estudar é pura diversão! Aprender nunca foi tão fácil e emocionante!

Nesse contexto, aula expositiva? Nem por um minuto! Deus me livre! Poderia destruir, irreversivelmente, a sagrada motivação das pobres crianças.

Afinal, todos sabem: o grande problema da educação é o professor! Questões genéticas, sociais e estruturais da própria escola? Irrelevantes! Um bom educador supera tudo isso — e sempre com um sorriso no rosto. Ou melhor, fazendo palhaçadas!

Se antes aprender exigia foco, paciência e perseverança, hoje o que realmente importa são ambientes coloridos e a postura do professor. Questões estruturais relacionadas ao ensino? Irrelevantes. O aspecto político da educação? Simplesmente inexistente!

O agente transformador, capaz de minimizar todo o resto — problemas familiares, cognitivos e emocionais — de fato, é o professor. No entanto, para que isso aconteça, não basta adotar “metodologias ativas”. A verdadeira valorização da educação vai muito além disso.

Nós, educadores, precisamos sempre lembrar: professor não é palhaço e escola não é circo! Não devemos aceitar o papel medíocre que o mercado da educação muitas vezes tenta nos impor. A educação pode ser divertida, às vezes, mas, acima de tudo, é coisa séria!

Autor: Aleixo da Rosa. Também escreveu e publicou no site “Professores não sabem nada”: www.neipies.com/professores-nao-sabem-nada/

Edição: A. R.

Nunca somos: sempre estamos sendo professores e professoras

“Pessoas esquecem fatos, mas elas lembram das histórias.” (Joseph Campbell)

Sempre pensei que estava mais vocacionado e preparado para a atuar como docente junto aos jovens do Ensino Médio ou adultos em escolas de EJA (Escolas de Jovens e Adultos). Alimentei por mais uma década esta ideia, mas as circunstâncias e as oportunidades me levaram também para o exercício do magistério no Ensino Fundamental – séries finais -nos últimos anos.

Explico: em 1999, passei em concurso numa cidade próxima de Passo Fundo, RS, em Ciências Humanas nas séries finais do Ensino Fundamental, e não assumi por me julgar incapaz de atuar com crianças e adolescentes. Mas, recentemente, ao assumir cargo de professor de Ensino Religioso com crianças e adolescentes no Ensino Fundamental, descobri-me um educador aprendente, comprovando também estar habilitado para trabalhar com estudantes desta faixa etária.

Nem padre, nem religioso: sou professor: www.neipies.com/nem-padre-nem-religioso-sou-professor/

Em 2001, assumi meu primeiro Concurso como professor de Filosofia na Rede Estadual do RS. Já nos primeiros anos de atuação, fui desafiado a implantar o retorno do Ensino Religioso no Ensino Médio do Instituto Estadual Cecy Leite Costa, preparando-me através de uma Pós-Graduação “Especialização de Metodologia do Ensino Religioso”. Esta especialização promoveu mudanças e perspectivas importantes na minha trajetória docente. Atuei, desde então, nesta e em outras escolas, com componentes curriculares de Ciências Humanas como História, Sociologia, Filosofia, Ensino Religioso e Projeto de vida.

Construí, nestes 24 anos de história no magistério estadual, uma trajetória que julgo satisfatória. Atuei também como professor, Coordenador Pedagógico, Orientador Educacional e, mais recentemente, como Redator do Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio, pelo componente Ensino Religioso que compõe Ciências Humanas. Nunca tive medo de desafios, sempre dentro da minha área de conhecimento, mas faço agora uma escolha para dedicar-me integralmente ao Ensino Fundamental, séries finais.

Ensino Religioso no Ensino Médio do RS: www.neipies.com/ensino-religioso-no-referencial-curricular-gaucho-do-ensino-medio/

A partir de 2025, assumo, com orgulho, por 40 horas, a função de professor do componente Curricular Ensino Religioso na rede municipal de Passo Fundo.

Meu reconhecimento, como estudioso deste componente curricular/área de conhecimento, pelos Concursos Públicos que este município realiza ao longo de mais de 3 décadas para selecionar professores habilitados e capacitados do Ensino Religioso.

Passo Fundo orienta rede municipal no Ensino Religioso: www.neipies.com/passo-fundo-orienta-rede-municipal-no-ensino-religioso/

Sou muito grato a tantas pessoas que me convenceram da importância do Ensino Religioso na formação integral do ser humano, a partir do ensino escolar. Na escola, o Ensino Religioso reconhece a diversidade religiosa brasileira, trabalha o conhecimento das religiões de uma maneira que favoreça o respeito e a tolerância com a fé alheia e busca conhecer valores comuns às diferentes religiões, na busca pela humanização.

Minha experiência de 20 anos como professor de Ensino Religioso, na rede Estadual e na rede municipal de Passo Fundo, é carregada de significados e iniciativas que fortaleceram minha formação pessoal, mas também a formação de tantos outros colegas que assumem o desafio de atuarem com este tão importante componente curricular na escola pública.

Durante os anos 2022, 2023 e 2024 participamos de processos de formação permanente de professores do Ensino Religioso em diferentes regiões do RS. Confira: www.neipies.com/professores-de-ensino-religioso-com-orgulho-e-por-opcao/

Reverenciamos Eduardo Galeano para finalizar esta crônica: “Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias”.

Autor: Nei Alberto Pies. Também escreveu e publicou “O mundo”: www.neipies.com/o-mundo-por-eduardo-galeano/

* Foto da capa créditos para Gazeta do Povo.

Edição: A. R.

Restrições do uso de celulares nas escolas: o que pensam professores e professoras?

Lei nº 15.100/2025 proíbe o uso de celulares e outros aparelhos eletrônicos em escolas públicas e privadas do Brasil. A lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 13 de janeiro de 2025. A lei proíbe uso de celulares em todo o ambiente escolar, inclusive recreio e intervalo entre as aulas. No entanto, o uso é permitido em situações excepcionais como emergências, necessidades de saúde e para fins pedagógicos. 

A lei foi baseada no PL 4.932/2024, de autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS). Visa melhorar o desempenho escolar, a disciplina na escola, reduzir o bullying, favorecer a concentração nas aulas e promover maior interação social. 

Especialistas e estudiosos fazem debates e discussões sobre os desafios da implementação desta importante medida prevista nesta legislação. Escolas e redes de ensino estão definindo regras de aplicação desta legislação no Brasil afora.

Julgamos importante a escuta e o posicionamento de professores da educação básica, do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Por isso, procuramos um professor e uma professora que atuam diariamente na sala de aula, estudiosos ou especialistas da temática tecnologias e educação, para manifestarem seus pontos de vista sobre o tema, a partir da realidade das escolas da cidade de Passo Fundo, RS.

Para o professor Selmar Rodrigues, da rede municipal e estadual em Passo Fundo, RS, especialista em Mídias na educação e licenciado em Química, “o mau uso do celular pelos alunos na sala de aula é um problema que muitos educadores enfrentam no seu dia a dia. Mesmo com todo o potencial para ser uma ferramenta educativa, seu uso inadequado pode causar diversas consequências negativas para o aprendizado”.

Rodrigues concorda que a distração, falta de foco nos estudos, problemas de indisciplina, cyberbullying, dentre outros, são algumas das consequências que impactam a aprendizagem dos estudantes por mau uso dos celulares. Recorda, ainda, já ter passado por situações de desrespeito à autoridade do professor em sala de aula, quando tentou, em vão, não permitir o uso dos celulares em determinado período de suas aulas.

“Aos estudantes, falta a maturidade e a decisão de saírem dos celulares em momentos que o mesmo não faz parte da dinâmica da aula”, afirma.

No seu entendimento, há aspectos positivos do uso do celular nas aulas, tornando-o uma poderosa ferramenta pedagógica. Pode ser usado para acessar conteúdos educativos, realizar pesquisas rápidas, participar de atividades interativas e até colaborar em projetos em grupo. Além de poder gravar vídeos e sons, pode-se registrar fotos sobre diversos temas. O estudante ainda poderia fazer reportagens sobre problemas da comunidade em que está inserido.

Quando perguntado se acha que a lei facilitará a vida dos professores e professoras em sala de aula, respondeu que sim porque a lei, na verdade, vai regulamentar a relação dos professores e estudantes sobre o uso dos celulares em sala de aula.

O professor e especialista em Mídias na educação alerta para duas questões fundamentais para a implementação da lei:

a) a escola vai ter que se adequar de uma forma que o aluno possa ter um local apropriado para deixar o celular e retirar somente na saída;

b) e outra questão é o apoio dos pais e mães, entendendo que prioridade da sala de aula é a construção de conhecimentos e não o entretenimento.

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Para a professora Graziela Bergonsi Tussi, da rede municipal em Passo Fundo, RS, Doutoranda em Informática na Educação, Mestre em Educação, licenciada em Geografia e Pedagogia, “a realidade do uso do celular é diferente em cada sala de aula. Enquanto alguns professores conseguem contornar a situação, outros não. Isso se deve a falta de limites e respeito de alguns estudantes, que, muitas vezes não respeitam a figura do docente”.

A professora acredita que todos professores já devem ter passado por situações desconfortáveis em sala de aula, hoje em dia é muito difícil perceber o limite do que é saudável e do que não é em relação às tecnologias, pois utilizamos smartphones o tempo todo, para praticamente todas as tarefas do cotidiano.

“Sempre converso com meus alunos sobre o horário de utilizar o telefone, e nos anos finais eles sempre colaboram. Claro que sempre tem aquele aluno que não quer saber, coloca embaixo da classe, joga durante a aula, mas é minoria, e na nossa escola os pais são muito presentes, nos apoiam e entendem quando chamamos a atenção deles quanto a isso”.

Ela destaca o papel da família, que é fundamental nesse processo, pois entender que eles estão lá para estudar é o primeiro passo. Nos Anos Iniciais, a maioria das crianças nem tem ou nem levam o telefone para a escola. Quando algum familiar precisa falar com alguma criança, os canais da escola (telefone e WhatsApp) estão à disposição, e são muito utilizados. Além disso, a escola possui uma agenda, o que facilita a comunicação, através de bilhetes e avisos. Também é importante destacar que a rede municipal de Passo Fundo tem internet e notebooks para que estudantes e professores possam utilizar a internet, sem que os celulares precisem ser utilizados todo o tempo.

Quando questionada sobre como ela avalia a nova lei que restringe o aparelho nas escolas, a professora destaca que restringir não é a solução dentro de sala de aula, pois nem todas as escolas ou redes de ensino tem a infraestrutura que Passo Fundo tem, e é preciso pensar no país, que é muito grande e de realidades socioeconômicas diversas.

“O que precisaríamos fazer é mudar a cultura de toda uma sociedade, mas não é um caminho fácil, então precisamos trabalhar com o que temos né? Os celulares possuem alguns aplicativos muito interessantes para o ensino, que ainda não foram desenvolvidos para desktop, e muitas crianças poderiam ter acesso. Também, durante uma aula, o aluno pode ter curiosidade sobre um tema que está sendo abordado e, em conjunto com seu professor, buscar as informações. Essa norma acaba com a autonomia do estudante, por exemplo”.

Por outro lado, o uso de telas recomendado pela OMS e pela UNESCO é de muito menos tempo do que eles utilizam em horário fora da escola. Esse debate cresceu nos últimos anos, e percebemos países desenvolvidos voltando atrás em medidas que usam as tecnologias, com algumas ações mais “tradicionais”.

A professora salienta também que é possível trabalhar assuntos relacionados a tecnologia sem usar computadores, explorando as ferramentas desplugadas e a criatividade, práticas já comuns na rede municipal de Passo Fundo, através da disciplina de Cultura Digital e dos espaços maker que a rede proporciona, mas destaca que esse é um passo que nem todas as redes de ensino deram.

Para finalizar, a professora destaca que “me chamou atenção na lei a garantia do direito dos alunos incluídos, ou seja, para estes alunos, caso necessitem adaptações, o uso do celular em sala de aula está garantido”.

Sugestões de subsídios para esclarecer e aprofundar a temática desta matéria:

Proibição dos celulares: como adaptar sua escola? https://youtu.be/F5N8wA6uOgg?t=94

Resenha do livro: A fábrica de cretinos digitais os perigos das telas para nossas crianças: https://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/15723

Edição: A. R.

Educação contra a barbárie

As lutas educacionais não podem parar quando a própria civilização está sofrendo “os impulsos regressivos”. Em síntese, nosso grande desafio é “desbarbarizar a educação”.

Como ressalta Fernando Cassio (p.16-21) na apresentação do livro que nos propomos a resenhar, “as ameaças à educação brasileira exigem a nossa energia para pautar um debate público” que seja capaz de ultrapassar as simplificações superficiais e homogêneas de “discursos eficientistas do empresariado e de suas assessorias educacionais”. Tal energia é necessária para promover um processo de “luta por escolas públicas democráticas, inclusivas, laicas e com liberdade de ensinar”, a qual depende de nossa capacidade e “disposição para defender projetos educacionais radicalmente democráticos”. Em síntese, nosso grande desafio é “desbarbarizar a educação” (p.15).

A coletânea Educação contra a Barbárie, lançada em 2019 pela editora Boi Tempo, organizada por Fernando Cássio (doutor em ciências pela USP e professor da UFABC) e com o prefácio de Fernando Haddad (ex-ministro da educação no período de 2005-2012, prefeito de São Paulo de 2013-2016 e candidato à presidência da República pelo PT em 2018), é composta por um conjunto de reflexões de autores e autoras que “não tem medo de dizer quem são os inimigos da educação no Brasil, de defender a educação como um projeto coletivo e de se contrapor às agendas educacionais ultraliberais, ultraconservadoras e reacionárias” (p.16).

A coletânea, composta de 26 ensaios, está organizada em três partes: na Parte I, intitulada de “A barbárie gerencial”, “desafia a mesmice dos discursos de assessorias, movimentos, institutos e fundações educacionais do empresariado brasileiro”, mostrando “o embuste das agendas educacionais empresariais, cada vez mais capilarizadas e indistinguíveis das políticas educacionais oficiais”.

Trata-se de um processo visível de “aniquilamento da educação como bem público”. Trata-se de uma barbárie gerencial que tenta destruir as escolas de fora para dentro (p.17); na Parte II, que tem por título “A barbárie total”, o conjunto dos textos examinam o projeto em curso que visa “arruinar as escolas a partir de dentro”, por meio da intimidação e perseguição ao professorado, pelo “negacionismo científico”, pela “militarização das escolas públicas”, pelo “desprezo ao conhecimento”, onde impera a “violência como currículo” e o “ódio como pedagogia”(p.18-19); na Parte III, intitulada “Educação contra a barbárie”, os ensaios tratam da “da disputa da escola e a retomada da pedagogia” como ferramenta para discutir as escolas coletivamente (p.19-20).

Não vou comentar aqui todos os ensaios que compõe a coletânea; apenas vou expor brevemente o teor de cada uma das três partes com o intuito de criar interesses nos leitores.

No primeiro ensaio da Parte I, intitulado “Contra barbárie, o direito à educação”, o educador e cientista político Daniel Cara, defende que “o direito à educação é, em um sentido geral e por consequência, o direito de todas as pessoas se apropriarem da cultura” como parte “essencial da condição humana” e como “uma necessidade para o pleno usufruto da vida” (p.26). Tal direito é ameaçado quando “as políticas educacionais das forças hegemônicas têm reduzido a educação a um insumo econômico ou a uma estratégia disciplinadora doutrinária” resultantes das “ações ultraliberais e dos ultrarreacionários” que tomaram recentemente o poder (p.27).

A segunda parte da coletânea, intitulada “A barbárie total”, é composta por um conjunto de nove ensaios. O primeiro deles, de autoria de Bianca Correa, “Educação na primeira infância: direito público x capital humano”, tece uma abordagem sobre o discurso que projeta a imagem das crianças como seres meramente biológicos, sob janelas de oportunidades exploradas de forma mercantil. Segundo Correa, essa lógica coloca as mulheres como protagonistas de um papel que no passado era tratado como dever materno e atualmente, diante de um jogo de interesses mercantis, projeta-se como um dever afetivo e econômico que chega a soar como uma chantagem emocional.

A terceira parte da coletânea inicia com o ensaio “Escola e afetos: um elogio da raiva e da revolta”, de autoria de Rodrigo Ratier, jornalista e doutor em educação pela USP. Para o autor, o foco “excessivo na dimensão racional, típica das sociedades ocidentais, varreu para detrás das cortinas a atuação dos sentimentos” (p. 152). No campo da educação, com a BNCC, há um retorno da abordagem dos sentimentos, porém, agora, como “competências socioemocionais”.

Ratier pondera que “falar de afetos e emoções na educação não significa, necessariamente, falar de competências socioemocionais” (p. 153). Por mais que se diga que a BNCC não é currículo, a curto prazo emerge um enorme desafio: “como trabalhar as tais habilidades socioemocionais se o tema não faz parte da formação inicial [dos professores] e, até recentemente, da capacitação em serviço?” (p. 153).

De acordo com o autor, apresentam-se dois caminhos. O primeiro que é a atuação intuitiva dos professores, que segundo algumas pesquisas, se baseia em recompensar o aluno pelo seu comportamento. O segundo remete as soluções pedagógicas do mercado editorial que promete com seus materiais didáticos resolver as dificuldades da escola com relação às emoções; o problema desses dois caminhos é o controle das emoções por obediência e comandos que vem de outras pessoas. Essa perspectiva de docilização do sujeito elimina as palavras “raiva”, “indignação” e “cólera”.

Ratier afirma com base em Paulo Freire, que a “escola transformadora não suprime a rebeldia e nem a condena”, ao contrário, “busca canalizar o rancor destrutivo para o questionamento das injustiças”. “A raiva e a rebelião são entendidas como parte do processo para a formação de indivíduos autônomos, capazes de crítica e reflexão” (p. 156). O autor conclui o ensaio com uma pertinente declaração do filósofo iluminista Condorcet: “a verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar” (p. 157).

Uma análise conjunta dos ensaios que compõe a coletânea possibilita afirmar que se trata de uma competente reflexão sobre os distintos temas e problemas que envolvem a educação na contemporaneidade e sua leitura promove um juízo crítico sobre o rumo da que está em curso no Brasil. Uma leitura dos distintos ensaios possibilita problematizar o que vem sendo anunciado pela tomada de decisão de quem está governando o país, bem como compreender a atuação dos diversos atores que estão em cena neste contexto. Desejamos uma boa leitura a todos.

Além da obra organizada por Fernando Cássio, cuja referência completa está abaixo, indico o artigo “Que Auschwitz não se repita: quando a barbárie ronda o cotidiano” que escrevi em parceria com meu grande amigo Ricardo Cocco, egresso do doutorado do PPGEdu da UPF.

Segue o link de acesso:

https://www.researchgate.net/publication/360542011_QUE_AUSCHWITZ_NAO_SE_REPITA_QUANDO_A_BARBARIE_RONDA_O_COTIDIANO

Referências:

CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.

COCCO, Ricardo; FÁVERO, Altair Alberto. Que Auschwitz não se repita: quando a barbárie ronda o cotidiano. Revista Debates Insubmissos, Caruaru, PE, Brasil, ano 5, v.5, n. 16, jan./abr, 2022, p.12-33.

Autor: Altair Alberto Fávero. Também escreveu e publicou no site “Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal”: www.neipies.com/educar-para-humanizar-e-resistir-a-racionalidade-neoliberal/

Edição: A. R.

Educação ou Prisão? O futuro que escolhemos construir

A hipocrisia de acreditar que mais prisões resolverão o problema da violência precisa acabar. Vamos acordar! O Brasil não precisa de mais presídios; precisa de educação, inclusão e oportunidades para que o futuro de nossos jovens não seja traçado dentro de uma cela.

O governador Eduardo Leite discursou recentemente sobre o aumento do número de vagas em presídios, reformas no sistema carcerário e a ampliação do efetivo policial. No entanto, diante desse cenário, não podemos deixar de questionar: e a educação? Onde estão os investimentos em escolas reformadas, salários dignos para educadores, materiais didáticos atualizados, tecnologia em sala de aula, cursos profissionalizantes e políticas de combate à evasão escolar?

Se não priorizarmos a educação, essas novas vagas nos presídios serão rapidamente preenchidas. O Estado insiste em ignorar uma verdade incontestável: o que ele não atende, alguém atende. Assim, crescem as facções, os recrutamentos e a marginalização da juventude, que vê no crime a única oportunidade de sobrevivência e pertencimento.

É preciso coragem para admitir que a prisão não recupera, não previne o crime e tampouco garante segurança à sociedade. Aquele que hoje está encarcerado, amanhã retorna ao convívio social. E o que estamos fazendo para que esse retorno seja digno?

O sistema prisional, em sua estrutura falida, apenas acumula rancor, ódio e desejo de vingança. Se um número expressivo de pessoas volta a delinquir após o cumprimento da pena, não deveríamos nos perguntar o porquê, ao invés de apenas pedir mais prisões?

O que precisamos não são novas celas, mas sim oportunidades reais de transformação. Espaços profissionalizantes, escolas estruturadas, campanhas de reinserção social, incentivos para o acolhimento de egressos e políticas eficazes de combate à dependência química. Só assim podemos quebrar esse ciclo perverso que se repete há décadas.

A hipocrisia de acreditar que mais prisões resolverão o problema da violência precisa acabar. Vamos acordar! O Brasil não precisa de mais presídios; precisa de educação, inclusão e oportunidades para que o futuro de nossos jovens não seja traçado dentro de uma cela.

A solução duradoura para os problemas de convivência social não passa pela construção de novos presídios, pela propagação de mais ódio e violência e nem pelo endurecimento de nossas leis. A cura dos nossos males está na promoção da vida e da humanidade, através do cultivo do amor e do afeto. E na promoção da justiça. (Nei Alberto Pies) Leia mais: www.neipies.com/amizade-amor-e-afetos/

Autora: Vera Dalzotto. Esta é a primeira publicação de muitas outras que virão na sequência.  Sou Voluntária da Pastoral Carcerária Nacional, um serviço da Igreja Católica dedicado à evangelização e promoção da dignidade humana.

Edição: A. R.

Desarmar o coração e reconstruir a paz

E o Papa Francisco continua: “Desarmar o coração é um gesto que compromete a todos, do primeiro ao último, do pequeno ao grande, do rico ao pobre. Por vezes, é suficiente algo simples como um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito”, pois a paz não nasce dos acordos selados nos escritórios.

Todos sabemos, mas vale a pena lembrar: não é o ano que precisa ser novo; somos nós que precisamos renovar nossa escala de valores, atitudes, projetos, ações e relações; somos nós que precisamos abandonar as velhas lições e as roupas novas da meritocracia e da competição, que muito cedo se revelaram apertadas e inadequadas.

Nas lições sempre novas da cartilha cristã não encontram guarida mandamentos do tipo “cada um para si e Deus para todos”; “quem pode mais chora menos”; “o importante é levar vantagem em tudo”; “vícios privados se convertem em virtudes públicas”; “saúde é o que interessa, o resto não tem pressa”; “se queres a paz, prepara-te para a guerra”…

Voltemos nossa atenção à guerra, sereia que seduz navegadores em todos os mares e em todos os tempos. Ela é gerada no ventre inóspito da ambição desmedida, do medo irracional, da intolerância pandêmica, da livre concorrência revestida com as belas roupas da virtude. Ela nunca realiza o que promete, e, no fim, todos perdem.

Permitam-me levá-los novamente à exortação com a qual o Papa Francisco se dirige aos homens e mulheres de boa vontade na abertura deste novo ano civil: “Utilizemos pelo menos uma percentagem fixa do dinheiro gasto em armamento para a criação de um fundo mundial que elimine definitivamente a fome”. Ou a paz não merece esta chance?

Para que cheguemos, como comunidades e como humanidade, a essa meta ousada e necessária, precisamos desenvolver uma ampla gama de atividades educativas que nos ajudem a abrir os olhos às crises que nos rodeiam e elimine qualquer pretexto para competir e vencer o outro, vingar a ofensa recebida ou eliminar quem pensa diferente.

É duro, mas precisamos compreender que a meritocracia, oferecida como força propulsora do sucesso, pode ser uma arma perigosa que deve ser descartada definitivamente. Ela forma consciências arrogantes, que nos levam a atribuir a nós mesmos os créditos de tudo o que existe de bom e a deixar aos outros apenas os débitos.

Por isso, quando nos despojamos da arma do crédito e devolvemos o caminho da esperança a um irmão, contribuímos para a restauração da justiça de Deus e caminhamos juntos para a meta da paz, diz o Papa. Para desarmar o mundo e investir no combate à fome, precisamos “desarmar o coração” e superar a ideologia da meritocracia.

“Procuremos a verdadeira paz, que é dada por Deus a um coração desarmado: um coração que não se detém em calcular o que é meu e o que é teu; um coração que dissolve o egoísmo para se dispor a ir ao encontro dos outros; um coração que não hesita em reconhecer-se devedor e está pronto para perdoar as dívidas que oprimem o próximo”.

E o Papa Francisco continua: “Desarmar o coração é um gesto que compromete a todos, do primeiro ao último, do pequeno ao grande, do rico ao pobre. Por vezes, é suficiente algo simples como um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito”, pois a paz não nasce dos acordos selados nos escritórios.

Com estes gestos – pequenos, mas significativos – nos aproximamos da meta da paz. Caminhando juntos, perceberemos que já mudamos o nosso ponto de partida. “A paz não vem apenas com o fim da guerra, mas com o início de um mundo novo, no qual nos descobrimos diferentes e mais unidos, mais irmãos do que poderíamos imaginar”.

Autor: Dom Itacir Brassiani MSF – Bispo de Santa Cruz do Sul. Janeiro 2025

Edição: A. R.

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