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Não está tudo bem!

“O Juca era da categoria das chamadas pessoas sensíveis, dessas que tudo lhes toca e tange. Se a gente lhe perguntasse: “Como vais, Juca?”, ao que qualquer pessoa normal responderia “Bem, Obrigado!” – com o Juca a coisa não era assim tão simples.” (Mario Quintana, Caderno H, p. 73)

Eu não sei você, caro leitor, mas eu sou um tipo explícito de Juca, eu nem ao menos tento esconder, na verdade, eu nem mesmo consigo. E perguntar se está tudo bem, pra mim, é como abrir um portal.

A primeira parada, para o meu interior. Assustador, incomoda-me o fato de me incomodar ao ter receio de olhar para dentro e correr o risco de me deparar com emoções incômodas. Mas, não é só isso, a segunda parada é para fora. Incomoda-me mais ainda aquela sensação de não poder expressar as minhas emoções, ou pior ter que menti-las!

Eu sempre engasgo com essas perguntas. Na verdade, achei até uma forma mais confortável e autentica de responder: Oi, tudo bem? Bem, na medida do possível. Seria um modo mais popular de adaptar a frase “dentro das minhas condições de possibilidade” (para ser mais Kantiana). Percebam, é genuíno!

No entanto, aqui entra aquela história do copo meio cheio ou meio vazio.

Para algumas pessoas, essa resposta pode parecer pessimista, além de estranha aos ouvidos. Algumas pessoas, realmente preocupadas comigo, por vezes, até perguntam: o que houve? E isso me assusta. Assusta porque involuntariamente e diariamente somos forçados a encaixar a vida em uma métrica ilusória de felicidade: está tudo bem!

Sendo um pouco mais otimista, soletrar esse mantra pode até mesmo esconder uma tentativa de aceitar que as coisas não estão bem, mas elas vão ficar caso você pensar positivo. Não há nenhum problema em ver as coisas dessa forma, desde que você faça alguma coisa para melhorar. Sejamos sinceros, não é o caso, se tratando de emoções, principalmente as negativas. E ouso dizer que a maioria de nós nunca parou nem ao menos para refletir sobre isso…

Segundo Brackeet (2021), a mensagem clara é que devemos esconder os sentimentos negativos – não apenas escondê-los, mas usar uma máscara para dizer ao mundo o oposto da verdade. Está tudo bem!

“Por mais estranho que isso pareça, há algo profundamente comovente nesse sentimento. Ficamos comovidos com a ideia de mascarar emoções negativas por trás de uma manifestação de alegria. Em algum nível achamos estranhamente enobrecedor quando alguém esconde sua infelicidade. (…) Mas, por quê? Para encobrir as emoções que associamos com vulnerabilidade e perda e mostrar ao mundo que não somos afetados pelo menos na superfície.” (Brackeet, p.141, 2021).

Bem, isso explica um pouco do meu engasgo ao não querer acessá-las. Isso explica também como a gente implode, um pouquinho por vez, todos os dias.

Eu sei, talvez seja um preciosismo meu ou até um exagero atucanado com as palavras.

Talvez, isso tudo não passe de uma mera convenção social que não deveria ser levada tão a sério. Eu compreendo que dizer que está tudo bem não é o mesmo que dizer que está TUDO bem (alguém me responde porque é que a gente faz isso, por favor?!). Até porque isso é impossível, sejamos francos, alguma coisa está bem outra nem tanto (a não ser que você esteja embriagado por altas doses de positividade tóxica ou álcool mesmo). Mas, tudo, tudo mesmo seria possível?

Analisando a fundo, é uma forma de quebrar o gelo ao iniciar a conversa, criando uma conexão de forma gentil, ao demonstrar que você se importa (por mais que muita gente não tenha a mínima noção disso e esteja pouco se lixando para você). O resto é teatro.

Ninguém diz o que realmente sente, e nem ao menos podemos levar essa pergunta a sério, pois tiraria todo o foco do que vem na sequência (a não ser que você esteja em terapia ou desabafando, é claro).

Já imaginou?! Chegando no trabalho…oi, tudo bem? Não, sinto-me triste, meu gato foi atropelado, comi um ovo estragado e você vai sentir isso antes mesmo que essa frase chegue aos seus ouvidos. Dois segundos depois que você estilhaçou o clima, ela com certeza esqueceu o que realmente gostaria de perguntar (sorte a sua se fosse para fazer algo que você não queira, azar se fosse para oferecer um café).  

O mais contraditório ainda é perceber que se você não iniciar uma conversa perguntando se está tudo bem, a pessoa pode até mesmo lhe considerar um insensível mal-educado. Mesmo sabendo que você nunca falaria a verdade – mesmo sabendo que, às vezes, nem ela se importa com o que realmente está sentindo.

O maior problema mesmo é que com esse costume, acabamos por banalizar o sentido de uma pergunta importante. Muito perigoso principalmente quando a pergunta se reporta aos nossos sentimentos. Perceba, dia após dia somos ensinados a atropelá-los com um rolo compactador.

Funcionaria, se as emoções não fossem “descartadas” em uma panela de pressão.

Mas, nem só de reclamações vive este texto, pois, além de cair em crise existencial com a pergunta, eu também me ocupo encontrando formas mais sensíveis de não deturpar a nossa sensibilidade.

E a primeira regra é: não banalize o sentido das palavras. Ou seja, não pergunte se está tudo bem, quando você não deseja saber, não tem intimidade ou não possui tempo para escutar genuinamente aquela pessoa. Ok, mas, o que fazer para não parecer um mal-educado?

A primeira resposta é minimalista. Diga “bom dia”, e em seguida coloque a questão de foco. É simples e generoso, pois demonstra que você deseja que o dia daquela pessoa seja bom. Mas, eu tenho um problema com o bom dia, principalmente, quando eu digo ele de tarde e sempre existe aquele infeliz ser humano que vai me corrigir: não almoçou hoje? Boa tarde?!

Como disse, a questão é minimalista e bom dia deveria servir para o dia – que tem 24h. Caso você for Cartesiano e desejar fragmentá-lo, sejamos mais coerentes, passemos a utilizar boa manhã, boa tarde e boa noite.

Se a estratégia minimalista lhe pareceu seca demais, você pode dizer: Bom dia, desejo que você esteja bem! Eu considero uma maneira objetiva e genuína de desejar o bem para aquela pessoa, sem ser inadequado e teatral. É o mesmo que dizer, este não é o momento de falar de emoções, mas, seja lá pelo que você estiver passando eu desejo fique bem. Fica tudo nas entrelinhas, mas, a gente entende.

Por mais que às vezes eu sinta que algumas pessoas realmente acham que, ao dizer “desejo que você esteja bem”, eu pense ou saiba que aconteceu algo de errado com elas. Isso acontece principalmente em cidade pequena, em que todo mundo sabe da vida de todo mundo, sabe?! Muitas inclusive respondem sem eu perguntar: estou bem e você?! Quase que como um descargo de consciência que diz, não há nada de errado comigo (não?!).

E existe aquela que para mim é implacável, mas eu confesso que se as pessoas não entenderem o significado, elas vão debochar da sua cara e é por essas que eu não uso muita ele aqui no Brasil (como se eu já tivesse saído do país). Que seria o Namastê! Aquele gesto das mãozinhas unidas, como em oração, que expressa um grande sentimento de respeito pelo outro, algo que em si faz invocar o interesse em ouvir, porque nem se quer a gente fala! 

E por fim, possuímos também a versão reflexiva, ou seja, aquela que faz as pessoas pensarem no que eventualmente significa tudo: Oi, tudo bem? Não está tudo bem, mas, nem por isso quer dizer que está tudo mal. Eu gosto dessa, pois parece aceitar a vida como ela é, e assim, como diria alguns Estoicos, fica mais fácil de se preparar para as adversidades.

Antes de finalizar, gostaria de deixar algumas coisas claras. Eu realmente compreendo a riqueza da linguagem e que a mesma palavra pode ter sentidos completamente diferentes. Nesse caso, um tudo bem também pode indicar concordância e aceitação (está tudo bem não estar tudo bem). Pode até mesmo ser um código que te libera a continuar a conversa e apenas isso, sem drama!

Mas, desafiei-me a escrever este texto com o intuito de demonstrar como algumas palavras ingênuas podem surtir efeitos, principalmente, em pessoas altamente sensíveis, e óbvio, também foi uma busca pessoal para tentar resolver esse incômodo.

Palavras diferentes, sentidos diferentes para a mesma palavra, “tudo” serve desde que pensemos a respeito. E esse é um ponto importante, refletir, principalmente naquele modo corriqueiro e automático de lidarmos com as nossas emoções, tudo bem?!

Bem pessoal, chegamos ao final de mais um texto reflexivo! Espero que essa reflexão possa ter contribuído, de algum modo, com a sua vida.

Se possuir interesse em conferir mais deste conteúdo, você pode clicar nos meus textos aqui em baixo ou conferindo os meus vídeos pelo youtube, procurando pelo canal Diálogos da Ana! https://www.youtube.com/channel/UC0_oBeGUwF2ce2YdL9-1GSQ

Autora: Ana P. Scheffer

Fome!

Há grupos organizados que definem quem come e quem não come, quem pode ter casa para morar e quem não pode, já que a carência alimentar do corpo é cruel e seletiva e a moradia é um privilégio!

Dia desses, rolando os posts no FB, passei por um anúncio que dizia: “descubra como é morar em uma obra de arte”. E discorria sobre um lindo prédio de apartamentos à venda. Aí pensei: quem não gostaria de morar em uma obra de arte? Até imaginei alguém morando em uma casa pintada por Monet, Van Gogh ou Munch…

Mas esse pensamento foi breve. Logo outro se agigantaria, num inevitável contraponto, porque ver é sempre ir além do que se enxerga.

Surgia, assim, o Invisível, as imagens das pessoas que vivem nas ruas, as crianças, os cães e os parcos pertences, amarradinhos em sacos plásticos, lotando praças e chãos gelados sob marquises – o frio e a fome assolando suas almas e corpos, em tantos lugares, grandes ou pequenos, perto ou longe de mim.

E pensei, num pensamento sólido, nelas e neles, e a bruma de seres humanos invisíveis foi se formando. Era possível, no entanto, ver o apagamento deliberado, tornando esse povo um fio de quase nada, sem identidade no complicado tecido social, varridos decididamente das possibilidades que a própria existência teria de lhes garantir, nesta sociedade dita democrática…

Foi quando um outro pensamento insistiu em esvoaçar sobre meu coração: como pessoa que vive na mesma “casa comum”, respira na mesma atmosfera, preciso urgentemente ver! Mas como ver o Invisível?

Não vou discorrer aqui sobre a forma através da qual a Filosofia e seus estudos fenomenológicos tratam a questão do “invisível”, embora esse recorte seja fascinante, porque meu fascínio repousa na praça e nas ruas, na concretude da pedra, donde também vem minha fome. (Apenas aproveito um pouco do que Agostinho de Hipona diz quando sugere que, para ver, é preciso mediações. Dessa forma, Agostinho louvava insistentemente a criação e as criaturas, como a louvar o próprio Deus, através dessas mediações d’Ele!)

A partir daí, para ver o Invisível, vou em busca de algumas mediações que sangram a nossa realidade: higienização social e preconceito; desigualdade de oportunidades, descaso para com as/os mais vulneráveis; sistema prisional dissipado por uma sociedade cega para essa realidade;  escola, enquanto instituição segregadora e seletiva, haja vista o obsoleto sistema de avaliação, presentificando ainda  a “promoção” (passar de ano/rodar- suposta seleção epistemológica); sistema de saúde pública, a par de seu modelo exemplar, (e embora heroico na Pandemia), com adversidades crônicas que atingem sempre os pobres; a terra nas mãos de pouquíssimos!

O que tudo isso tem a ver com quem vive nas ruas? Tudo, já que há grupos organizados que definem quem come e quem não come, quem pode ter casa para morar e quem não pode, já que a carência alimentar do corpo é cruel e seletiva e a moradia é um privilégio!

Então me deparo com meu construto de vida: quero ter fome, sim, de luta para poder ver o invisível! E então fico com a Adélia Prado: “Não quero a faca nem o queijo, quero a fome”! E sigo.

Agradeço a oportunidade de escrever neste sentido e somar-me aos esforços de outros tantos e tantas pela humanização, através do conhecimento. Leia também:https://www.neipies.com/aprender-a-desaprender-construindo-a-esperanca/

Autora: Ir. Marta Maria Godoy

“A culpa que tu carrega não é tua”: reflexões sobre a violência contra a mulher em projeto de enfrentamento

A partir desta experiência é possível demonstrar o necessário debate sobre o papel social da mulher na luta por direitos sociais, pela equidade de gênero, no âmbito da sociedade civil e domínios institucionais e especialmente na escola.

Instituída em 2006, a Lei Maria da Penha, que trouxe maior rigidez na punição contra crimes de violência doméstica no Brasil, é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher uma das leis mais avançadas do mundo, produzida e pensada junto da sociedade civil e dos movimentos sociais que já trabalhavam com o enfrentamento à esse tipo de violência.

Ao mesmo tempo, o Brasil produz dados expressivos relacionados à violência contra a mulher: tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo, e, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 4,8 a cada 100 mulheres são vítimas de violência.

O tema exige uma luta coletiva: é um grande desafio articular as políticas diversas que estão relacionadas ao combate a violência de gênero sob uma perspectiva educativa e formativa, especialmente sob a égide das novas organizações curriculares, em que as disciplinas em que há espaço para a discussão do tema têm pouco espaço.

O projeto “A culpa que tu carrega não é tua: relatos de violência e práticas de sororidade”, realizado durante o ano letivo de 2022 no Instituto Estadual Cecy Leite Costa, foi pensado como uma atividade de enfrentamento a esse contexto. Partimos da ideia da existência da naturalização da violência contra a mulher na sociedade, que se mostra tanto na banalização do tema quanto das próprias práticas de violência.

O projeto foi concebido igualmente como um espaço de resistência e produção de sentido, docente e discente. Em espaços exclusivos para o corpo discente feminino, propomos uma introdução ao tema por meio de diferentes ferramentas, como dados estatísticos e evidências presentes cotidianamente, a exemplo de notícias publicadas nas redes sociais de dois dos maiores veículos de comunicação de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul e os comentários deixados por algumas pessoas nas postagens.

Na discussão com as estudantes, foi possível relacionar os dados estatísticos às evidências – tanto as apresentadas quanto casos trazidos pelas estudantes – que mostram um discurso perene de culpabilização das mulheres por violências que sofrem, bem como a disseminação de discurso de ódio às mulheres, de forma geral.

A intenção em tematizarmos a violência presente no dia-a-dia configurou-se como forma de introduzirmos as estudantes nas discussões do tema de forma de reforçar a presença das ideias de dominação, exploração e práticas violentas contra à mulher naturalizadas na sociedade, na perspectiva de que agem na produção, corroboração e reprodução de desigualdades, e resultam na manutenção das estruturas sociais e culturais ao longo do tempo.

A partir deste movimento inicial, os encontros focaram na viabilização de conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, suas implicações e todas as formas de violência previstas no texto da lei; exposição e diálogo sobre experiências cotidianas, auxílio e elaboração de relatos de violência naturalizadas e direcionadas às meninas e por fim uma comparação entre os dados da violência contra a mulher, os relatos produzidos pelas estudantes e a perspectiva do corpo discente masculino a respeito do tema (que recebeu um questionário de participação voluntária).

O trabalho educativo, por meio do projeto, se caracterizou como uma atividade dialética, exigindo das professoras articulação entre a realidade, expressa não apenas nos dados estatísticos, mas nas falas das estudantes, junto da identificação dos elementos culturais e sociais que pudessem encontrar sentido junto das estudantes e colaborar na promoção de mudanças no ambiente escolar e fora dele. 

Entendemos o projeto como o início de um movimento que propõe uma cultura de responsabilidade ética, profissional e política para a formação e capacitação de meninas por professores da Educação Básica, cujo resultado seja um corpo discente capaz de compreender a realidade em que está inserido e relacionar as práticas de violência descritas na lei Maria da Penha às suas vidas e relações pessoais.

A partir dos encontros do projeto, as estudantes puderam relatar suas experiências de violência, sofridas por elas ou por mulheres de seu entorno, que nem sempre se configuram como crime, mas que estão enraizadas em uma cultura machista e misógina e as atingem por meio de discursos cotidianos. A referência para a produção dos relatos foi a hashtag “#MeuAmigoSecreto”, ação desenvolvida nas redes sociais em 2015 e que repercutiu largamente naquele contexto. Cada estudante pôde registrar sua experiência de forma anônima, com a possibilidade ou não de dividi-la com as outras participantes em voz alta, por intermédio das professoras.

A experiência possibilitou a construção de um espaço de exposição, no dia 30 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, com todos os relatos, que foram digitalizados, impressos e expostos em uma sala temática no contexto de um evento de mostra escolar. A exposição foi construída pelas próprias participantes, que puderam ver seus relatos divididos com toda a comunidade escolar e após replicados em outras duas exposições, em outros espaços.

A produção e exposição dos relatos ajudou no cumprimento de um dos objetivos do projeto: auxiliar na compreensão de que a violência contra as mulheres, naturalizada em discurso, é cotidiana e, infelizmente, trata-se de uma experiência que todas temos em comum.

Como contraponto, os relatos do questionário respondido pelos meninos apresentou uma perspectiva interessante. Quando questionados sobre como o machismo influenciava ou afetava suas vidas, os estudantes responderam majoritariamente que não os afetava em nada, e muitos expressaram não considerar o tema como um assunto pertinente de ser discutido.

A opressão da mulher reúne um conjunto de práticas e discursos que puderam ser observados com a experiência deste projeto, que ofereceu um ambiente de construção de instrumentos de resistência junto das estudantes. Enfatizamos, a partir desta experiência, que é possível e necessário o debate sobre o papel social da mulher na luta por direitos sociais, pela equidade de gênero, no âmbito da sociedade civil e domínios institucionais e especialmente na escola.

Não há como pensarmos em uma promover uma cultura de crítica que alcance a mudança das práticas culturais e sociais sem considerarmos a escola como um dos espaços em que a reprodução das práticas de violência contra a mulher está em plena atividade.

Conheça esta experiência também através deste vídeo postado no Instagram: https://www.instagram.com/reel/ClZ6_t-j_KH/?igshid=NDk5N2NlZjQ%3D&fbclid=IwAR3NGHH94UxzQHIDmA3YvgJhKXt4_SB15gSWsVluN9PmS5-ryCt1L9Jx7UY

Autoras: Letícia Mistura (Mestra em Educação)

Thainá Battesini Teixeira  (Mestranda em História), professoras coordenadoras do projeto.

Cartas de liberdades: obra que reflete existência e encarceramento

Repercutimos a singularidade e a especificidade da obra Cartas de Liberdades escrita pela Acadêmica da Academia Riograndense de Letras, empossada em 2023, Marli Silveira. Recomendamos leitura!

“Nos últimos anos tenho procurado compreender, tematizar as experiências-limite, que seria também, segundo penso, o caso da privação da liberdade. O que as experiências-limite, ou seja, de finitude, podem explicitar do nosso modo de ser.

A privação de liberdade, sendo uma experiência fundamental, poderia nos ajudar a compreender aspectos da condição humana, de modo especial, evocar uma experiência de liberdade que chamaria de existencial.

Creio que, diante de determinadas situações, o indivíduo humano é colocado diante de si mesmo, devendo fazer algo com o que lhe acontece. O desamparo e a indeterminação, a vulnerabilidade, são trazidos para um encontro destituído de determinações e desobrigados do “passado”, podendo implicar uma liberdade própria a contextos inóspitos.

Claro que as condições materiais e históricas não podem ser desconsideradas, os processos constitutivos e os atravessamentos, mas tenho tentado oferecer um novo recorte para se pensar a condição humana reverberada do tensionamento de experiências de finitude.

A aproximação com uma situação concreta, como é o caso desdobrado pelas cartas, não tem como propósito deslegitimar discussões fundamentais no contexto brasileiro, como a política de encarceramento, talvez pudéssemos dizer, projeto de encarceramento. Prendemos muito e mal, sem mencionar as idiossincrasias do encarceramento feminino e juvenil nesse país.

Também não visamos romantizar a concretude da experiência da reclusão. Sim, podemos nos perguntar se somos livres (quem não está preso), ou o que é a liberdade? Podemos discutir conceitos de liberdade e o próprio tema da “natureza humana”, contudo, estar preso é absolutamente diverso de estar solto.

Nossa questão é aproximar contextos experienciais tensionados pelas implicações do limite ontológico, reverberando uma possibilidade de explicitar experiências de si, de ser livre. Muitas vezes me faço a pergunta: tudo isso não seria uma maneira de me salvar, tirar a minha responsabilidade sobre o que acontece, sobre os sobressaltos desumanos que vivemos nos mais variados âmbitos sociais e culturais? A pergunta me ajuda a jamais esquecer dos meus compromissos como cidadã e pesquisadora das humanidades. De outro, meu ponto de inflexão é outro, mas permaneço atenta aos queixumes do mundo, da vida.

Cartas de Liberdades é um convite para que coloquemos em xeque certos marcadores, de modo especial, para que consideremos que nosso modo de ser é aberto e acontecimental, que não respondemos nem apenas pelo meio ou por/como modos volitivos, mas lançados na direção de. Desdobramos nosso existir. Respondemos por um modo situado, mas também possível.

Estranha performance de um modo de ser sempre às voltas consigo mesmo.

Podemos falar de “liberdades”?”

FOTOS DO LANÇAMENTO DO LIVRO EM SANTA CRUZ, RS, DIA 27/05/2023

O livro pode ser adquirido na Livraria Iluminura e na página da Editora Bestiario: https://bestiario.com.br/

Autora do livro: Marli Silveira

Aprender com a pedagogia de Jesus

 “Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles (Lc 24,15)

A palavra pedagogia tem origem na Grécia, deriva de paidós que significa criança e agodé que se traduz por direção, deste modo cabe ao pedagogo e à pedagoga caminhar com o educando possibilitando aprendizagens. É tarefa desse profissional ajudar o estudante a vislumbrar direções, a extrair sentidos do seu existir no e com o mundo.

Dentre as muitas opções pedagógicas, este breve ensaio se propõe a iniciar uma reflexão sobre a pedagogia de Jesus, tal como se encontra em Lucas capítulo vinte e quatro, versículos de treze a trinta e cinco, trata-se de uma pedagogia na qual o ensino e aprendizagem ocorrem no caminho, a exemplo do que já faziam os peripatéticos antes de cristo.

Da etimologia grega do termo pedagogia se desdobra uma concepção bem desafiadora para o fazer educativo que se realiza nos espaços escolares e fora deles, isto porque a existência humana acontece em um mundo com diversas opções de caminhos, alguns íngremes, barrentos, espinhosos demais para serem trilhados sem que a dignidade seja estilhaçada.

Dentre os muitos caminhos que se apresentam à nossa vista, se encontra a opção por uma educação calcada nos valores do neoliberalismo, na formação de mão de obra barata para um mercado de trabalho que deseja espezinhar, escravizar ao invés de oportunizar renda e condições para que a vida seja humana; outras opções metodológicas fundadas em visões autoritárias fortalecem a violência e desmobilizam a cultura da paz.  

Essas constatações e críticas são temas de conversas, de pesquisas, de buscas que enquanto humanidade fazemos. Também andamos como aqueles dois discípulos de Emaús, cabisbaixos a caminho de nossas casas, de nossos locais de trabalho, especialmente quando se trata dos espaços onde a educação ocorre, ali onde a vida deveria ser tematizada e fluir na alegria da descoberta, reinam práticas, por vezes autoritárias, violentas, desprovidas da intenção humanizadora. 

O clima é de desesperança e de tristeza diante do mercado que vende uma falsa ideia de felicidade, diante de concepções e métodos distorcidos que não educam para a liberdade e autonomia.  

Cléofas e o outro discípulo, (sem nome, porque figura cada um de nós) são, para fins dessa reflexão, professores, educadores, gestores, pessoas que perderam a referência do Mestre, que deixaram de acreditar e apostar na força transformadora do seu fazer.

O caminho de Emaús acontece aqui, onde o sistema sufoca a vida, onde as políticas educacionais são pensadas desde um poder que se serve ao invés de servir. Neste cenário caótico que se insere a pedagogia da pergunta, recurso filosófico que serve para desestabilizar, colocar em crise as certezas e dar à luz a estratégias que reascendam a esperança.

há que se pensar no caminhar pensante, alternativas para se evitar o choque com as pedras, pois são mais duras do que o frágil ser humano. Levanta hipóteses: saltar sobre elas, passar por baixo ou, simplesmente, buscar um suave desvio. (Eladio Vilmar Weschenfelder) Leia mais: https://www.neipies.com/eureca-no-caminhar-pensante/

“O que vocês andam conversando pelo caminho?”, é a pergunta do Mestre aos discípulos de ontem e de hoje, e como dito acima o tema da conversa é a esperança que se perdeu, havia tanta potência naqueles estudos que realizávamos, naqueles grupos de pesquisa que frequentávamos, porém os tempos mudaram e a liquidez da vida tapa nossos olhos para o essencial do fazer pedagógico, para a fé no ser humano e na transcendência, o amor – caridade que se traduz em ações geradoras de vida, a esperança do verbo esperançar como arguia o pedagogo e filosofo Paulo Freire.

O objetivo da pergunta de Jesus é provocar a reflexão dos seus discípulos para que se lembrem do essencial, da palavra das escrituras e dos fatos que fazem arder o coração.

No caso dos profissionais da educação é preciso recordar as teorias que fundamentam a prática e superar a dicotomia entre uma e outra, como argumenta Freire “é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática” (FREIRE, 2003, p. 61).

Um educador freiriano e discípulo de Jesus precisa buscar através da sua práxis coerência para que seu fazer nunca perca de vista a humanidade e não sirva a outras pedagogias que favoreçam o mercado alimentando o sistema neoliberal.

É urgente apostar cada vez mais num fazer pedagógico inclusivo e dialógico, reunir-se com os pares e partilhar as angústias enfrentadas no caminho é condição para formar comunidade educativa.

É preciso como fez Jesus com aqueles discípulos recordar as razões da fé, os motivos da escolha pela docência e os compromissos assumidos nas relações de ensino aprendizagem. Para tanto, é necessário que a educação seja concebida como processo no qual todos se humanizam, é sempre ponto de partida que não se conclui com o encerramento de uma etapa, de um ciclo.

Por vezes, somos lentos demais para perceber que o fazer pedagógico, embora nem sempre se realize nas condições ideais, faz grande diferença na vida das pessoas.

É pela educação que se pode romper ciclos de vulnerabilidade, de violência e de injustiça. É na escuta atenta da palavra, na aprendizagem de conteúdo específicos que se pode desenvolver habilidades provocadoras da mudança. É preciso prestar atenção nos sinais e dar ouvido ao que parece absurdo, ou seja, as pessoas que anunciam a possibilidade do novo, que nutrem grandes esperanças, e por vezes, são desacreditadas devido ao pessimismo e ou descrença daqueles que o sistema conseguiu dominar.

Ao chegar no destino, pequeno povoado de Emaús, aquele homem, até então estrangeiro, fez menção de seguir adiante, porém foi convidado à ficar, porque já era tarde. Foi então que os olhos dos dois se abriram quando sentados à mesa Jesus abençoou e partiu o pão, nesse momento eles entenderam porque durante a caminhada, processo de aprendizagem muito usado pelo evangelista Lucas, os corações deles ardiam.

Assista e escute também: https://youtu.be/wXTDU2UHG-4?t=75

O momento da partilha do pão aqui é figura da vida partilhada entre docentes e discentes, das reuniões pedagógicas onde a experiência dos colegas pode iluminar as diferentes práticas possibilitando esperançar. Sentar-se à mesa, quando se trata de educação, significa alimentar-se dos fundamentos que movem as ações pedagógicas, e festejar as conquistas que ocorrem durante a caminhada.

Um educador cristão não é um apologista e ou doutrinador, pelo contrário é um ser humano que, por convicção, entende as implicâncias éticas do seu agir e assume, assim como Jesus, a árdua missão, de questionar, provocar e mobilizar esforços em prol da vida, inclusive quando entende as consequências de remar contra a maré de um sistema inumano desde as suas origens. Sistema que impede a festa da páscoa sempre que provoca a fome, a miséria e as situações de não vida. 

Um educador cristão sempre será um discípulo que opta pelo diálogo, pela pedagogia da pergunta se importando e se colocando a serviço da vida.  Quando os profissionais da educação entendem a grandiosidade da tarefa que realizam, eles não ficam parados resmungando, murmurando contra o sistema, eles se mobilizam para construir sentido e elaborar significados diferentes dos ditados pela pedagogia neoliberal.

Educadores que não perdem de vista os motivos principais do fazer que realizam partilham vivências, elaboram e efetivam planos que corroboram com a formação integral de sujeitos. Essas atitudes figuram o corajoso retorno à Jerusalém, outrora lugar da derrota. Era noite, mas o medo foi vencido, visto que notícia feliz não pode ser guardada, precisa ser partilhada e dar sentido a existência de outras pessoas, fomentar outras práticas geradoras de vida.

Que cada instituição se constitua nesse lugar de encontro e da partilha que gera a vida.

Autor: Marciano Pereira

REFERENCIAS:

BÍBLIA DE JERUSALEM. Bíblia sagrada.  Paulus – 2008 (Lc 24, 13- 35).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.                         

A linguagem simbólica das parábolas de Jesus

Jesus explorava a imaginação de seus ouvintes pois, cada um, com a plasticidade de seu pensamento, criava mentalmente a cena dos episódios narrados na história, que sempre envolvia situações cotidianas, comuns à compreensão de todos.

Jesus, o maior pedagogo da História, ao passar seus ensinamentos, seu evangelho de luz e libertação pelo conhecimento da verdade relativa à nossa compreensão, na época, não procurou homens eruditos, cheios de títulos e detentores de poderes governamentais ou religiosos, pois sua doutrina jamais poderia ficar na dependência de ideias conflitantes, de homens falíveis, cheios de tendências personalistas.

Jesus procurou as pessoas simples do povo, cheias de sofrimentos e necessidades, exploradas pelo domínio romano e por religiosos judaicos. Ele as escolhia com amor, irradiando seu magnetismo curador, curando-as das doenças do corpo e dos conflitos da alma.

A magnitude de seus ensinos não poderia ser comunicada em linguagem rebuscada, racional, convencional ou filosófica, de difícil entendimento. As expressões utilizadas eram conhecidas de todos, tinham sentido e significado para o povo e faziam parte do cotidiano das pessoas. Atualmente, as parábolas, ao serem analisadas, são lições antigas, mas sempre com ensinamento novo. Apresentam novos caminhos que expõem verdades e mostram a escala de valores a ser conquistada na busca da felicidade real.

Nelas destacam-se o sentimento do amor, da compaixão, da empatia, da caridade, do autoconhecimento e da necessidade do esforço próprio para reencontrarmos o caminho de volta para Deus, nosso Pai. Jesus era sempre seguido pela multidão que encontrava nele o alimento da alma e do corpo.

Muitos de seus ensinos eram verbalizados através da parábola. A singeleza das narrativas de Jesus envolve a semente, o solo, o semeador, as redes, os peixes, as moedas, as pérolas, o fermento, a massa do pão, as relações familiares e sociais, a simbologia do Pai, do Senhor da vinha, representando a presença Divina e encantava a todos.

A parábola apresenta método de narrativa oral, muito utilizado na antiguidade. São informações simbólicas, transmitidas de uma geração a outra, através do tempo, sem nunca perder a atualidade, podendo ser interpretadas conforme as circunstâncias e características culturais da época. Ao usar esse recurso didático, Jesus estimulava o despertar dos potenciais divinos inerentes ao ser humano e no seu desenvolvimento sócio, psicológico e espiritual.

A palavra parábola origina-se do latim parabola e do grego parabole,  que significam COMPARAÇÃO entre duas ou mais situações da história com a vida real. É uma história fictícia que transmite mensagem indireta utilizando a comparação, a analogia com a atitude desejada. Oculta sempre uma grande verdade. Ela revela mensagens profundas que devem ser refletidas. É uma narrativa cheia de simplicidade e beleza que penetra na mente humana, despertando emoções e sentimentos nobres, que dão sentido ético à vida.

Jesus narrou mais de 40 parábolas, que estão registradas no Novo Testamento.

Através desse método pedagógico, são estimuladas as dimensões emocionais, a atenção, a inter-relação, a convivência pacífica com os outros, as questões morais e espirituais dos ouvintes, induzindo à reflexão de seus próprios atos e convivência na família e na sociedade.

Jesus explorava a imaginação de seus ouvintes pois, cada um, com a plasticidade de seu pensamento, criava mentalmente a cena dos episódios narrados na história, que sempre envolvia situações cotidianas, comuns à compreensão de todos.

Outro aspecto importante desse processo educativo é o desenvolvimento da capacidade intrapessoal, de autoconhecimento, de ter compreensão de suas próprias condições e despertamento do potencial adormecido em si, apto a se desenvolver e a aprender a utilizar este modelo de conduta para agir melhor em suas vidas.

Jesus utiliza a didática do exemplo, explorando a observação crítica do ouvinte através da conversa amiga, livre, espontânea, sem imposições, comprovando a importância do afeto recíproco entre mestre e discípulo.

As atitudes de Jesus na convivência com as pessoas, mostram o bom exemplo que Ele dá sobre o que Ele ensina, este procedimento é fator importante para desenvolvimento da dimensão moral da inteligência humana. Ele não utilizava a linguagem abstrata, trazia fatos concretos, focalizando os atos, os procedimentos, as condutas dos personagens, propiciando a autocrítica sobre a maneira pessoal de agir em relação aos outros, visando melhorar os relacionamentos na vida particular de cada um e na vida comunitária.

As histórias contadas por Jesus estimulam a reflexão sobre o verdadeiro sentido da vida e a percepção de que ninguém está sozinho no mundo e que cada um faz parte de um todo, despertando a habilidade de lidar com os problemas existenciais, como os fracassos, sofrimentos, prejuízos. Este aprendizado capacita o ouvinte ou leitor a buscar situações novas que promovam o equilíbrio, o torne mais flexível e disposto a não causar dano aos outros, compreendendo Deus como Pai que oferece novas oportunidades de melhoramento, extremamente misericordioso e justo e que o aguarda amoroso quando tomar a decisão de se corrigir e de começar a trilhar o caminho de volta para Ele.

A leitura atenta, por exemplo, da Parábola do Filho Pródigo (Lucas 15, 11-31), possibilita a compreensão da infinita misericórdia de Deus para conosco. Ele sempre nos aguarda quando decidimos retomar o caminho de volta para a Casa do Pai, quando aprendemos a nos autoconhecer, reconhecer nossas escolhas equivocadas e mudar de conduta.  A análise detalhadas dos fatos relatados na narrativa do Mestre, desde a introdução do assunto, acompanhando a sucessão dos eventos, no desenvolvimento da história, até chegar ao ponto culminante, quando o filho rebelde, reconhecendo seu equívoco e sofrendo as consequências de suas atitudes, decide, humildemente, retornar à Casa do Pai e pedir perdão pela sua atitude insensata. O Pai o recebe de braços abertos, porque o aguardava!

A narrativa podia encerrar neste ponto,  mas eram dois irmãos…O outro, aparentemente fiel ao Pai, era extremamente egoísta e se rebela com a atitude do Pai em relação ao irmão. O Pai vai em busca deste filho também explicando o motivo do acolhimento e de Sua alegria com o retorno do Filho Pródigo.

A mesma reflexão nos provoca a leitura das narrativas do Bom Samaritano (Lucas 10, 23-27), do Semeador (Lucas 8, 4-15) e demais parábolas. O momento atual nos requisita a atitude sensata, silenciosa, de paramos um pouco, nos desligarmos das distrações virtuais, e buscarmos estas diretrizes tão claras ofertadas por Jesus.

Precisamos, urgentemente, voltar a ser humanos, simplesmente humanos, filhos de Deus, convivendo como irmãos uns dos outros, cada um com as suas características próprias, tendo a certeza que Deus nos aguarda de braços abertos.

Como educadores, tendo a nossa frente e ao nosso lado nossos alunos, não podemos nos furtar de lhes contar estas lindas e elucidativas histórias.

Parabéns Nei, pela tua coragem em divulgar o que é bom para a educação. Jesus te ampare e inspire. No teu site temos precioso espaço para divulgar nossas boas mensagens.

Autora: Gladis Pedersen de Oliveira

O debate ciência versus religião

No debate entre ciência e religião, em geral, sobressaem-se posições antagônicas, a favor ou contra, especialmente quando, no centro das discussões, está o confronto evolucionistas versus criacionistas, que, ao fim e ao cabo, tudo parece se resumir.

O assunto, por mais apaixonante que possa parecer, não dispensa a necessidade de reflexões um pouco mais aprofundadas, quer seja em manifestações de concordância ou de discordância, em favor de um lado ou de outro.

Afinal, é possível conciliar a prática científica com a fé religiosa?

Uns dizem que sim e outros, obviamente, que não. No grupo dos cientistas que trabalharam no mapeamento do genoma humano, por exemplo, Francis Collins é, declaradamente, um cristão fervoroso, e Craig Venter é taxativo em afirmar que não é possível alguém ser um cientista de verdade e acreditar em Deus. Quando um cientista passa a acreditar em Deus ele deixa de fazer a pergunta certa, segundo ele. Creig Venter diz que não acredita em Deus, mas tem fé em Darwin.

O caso Galileu Galilei e, aos olhos de hoje, a abominável condenação que sofreu dos tribunais da Inquisição, no século XVII, que o obrigava, inclusive, a recitar sete salmos penitenciais uma vez por semana durante três anos, é interpretado, por muitos, como exemplo de que o conflito entre ciência e religião é inevitável. Esses, em maioria, costumam rotular a comunidade científica como de mentalidade aberta e a comunidade religiosa como de mentalidade fechada. Nada mais falso que isso. Há exemplares destes espécimes tanto na comunidade científica quanto na religiosa.

Quem conhece a comunidade científica de perto, talvez até concorde que o conservadorismo na ciência é um lugar mais comum do que se pensa, especialmente nos chamados colégios invisíveis, cujos membros, apegados a visões disciplinares, não medem esforços para aniquilar quem pensa ou age diferente das suas (deles) visões corporativas.

O conflito entre ciência e religião, certamente, não é inevitável, até porque quem está em ascensão no mundo contemporâneo é a ciência e não a Igreja de Roma, apenas para confrontar com os tempos áureos da Inquisição.

Também é falsa a crença de que a prática científica é baseada exclusivamente em experiências e testes envolvendo o mundo natural. Fique certo que apenas uma pequena fração daquilo que você conhece depende de observações próprias, quer seja um cientista ou exerça qualquer outra atividade.

A aprendizagem dá-se de muitas maneiras e o papel da ciência, que trata da sistematização do conhecimento, é mostrar que as coisas nem sempre são como parecem. É preciso acreditar, sem ver, em algo que é, aparentemente, implausível.

Tomemos como exemplos a teoria da evolução e a mecânica quântica (dualismo onda e partícula). A ancestralidade comum parece correta? Que teríamos eu e você em comum com aquele cãozinho que nos espreita sorrateiramente ou com aquela planta em cujo caule desce mansamente um caracol? De fato, cientificamente, as coisas não são como parecem.

Não lhe parece mais sensato aceitar o Gênesis e a criação do mundo e de toda a vida em alguns poucos dias de 24 horas cada um? Mais sensato e mais cômodo, acrescento eu.

Aceitar Darwin é tirar do homem o privilégio de ter sido especialmente criado, relegando-o a um mero descendente do mundo animal. Algo, para muitos, inaceitável diante do tamanho do nosso egoísmo.

A evolução não é um progresso previsível, que atua em prol de grupos e comunidades, avançando teleologicamente em direção a fins desejados. Ao contrário, lamento pela decepção, a evolução busca beneficiar o indivíduo (luta pelo sucesso reprodutivo, deixando maior descendência). É uma teoria clara do individualismo levado ao extremo, que nos mesmos moldes da “mão invisível do mercado”, na expressão clássica de Adam Smith, que acaba beneficiando toda a economia, também, biologicamente, a espécie, a partir dos indivíduos, acaba sendo privilegiada.

Deus, segundo dizem, escreveu dois livros. O livro da natureza, em que nos inserimos, e o livro das escrituras ditas sagradas. Pare e olhe para o céu, de preferência numa noite de Lua cheia. Depois de alguns minutos, é bem provável que você se conscientize da sua insignificância diante do cosmos e isso sirva para renovar a sua fé. Ou, alternativamente, procure o Dr. Freud para, em definitivo, romper com Deus.

(Do livro A ciência como ela é…, 2011)

Autor: Gilberto Cunha

Aprender a desaprender: construindo a esperança

Fomos ensinados a competir e a rastrear, sem descanso, uma via que nos leve a uma história que, na maioria das vezes, nem nossa é. Dificilmente nos perguntamos sobre sermos “vencedores em que”, de que parte da história…

Nossos tempos parecem nos conduzir a uma quase completa desesperança; e isso em nível mundial, eu diria. E não somente por causa de uma pandemia assoladora, recém abrandada, das guerras internas em tantos países, entre outras grandes mazelas.

No nosso eixo do mundo, apesar de uma mudança nos rumos políticos da nação, os respingos da morte e da fome ainda são evidentes.  Como construir esperança, então?

Há um claro esforço de determinados segmentos da composição da sociedade, empreendidos para criar situações de desespero, fragilizar ainda mais os empobrecidos e os miseráveis e desestabilizar as instituições que estão ao lado desses.

Há uma contra-história que vem sendo concebida justamente para matar uma possível esperança movente no nascedouro. E ela conta com uma aliada incontestável: a linguagem. 

Na redes sociais nos deparamos com xingamentos, com artimanhas e armadilhas discursivas, com uso de palavras inadequadas até mesmo em reuniões do alto escalão do governo federal (como se viu no governo passado); uma parafernália de modos de se comunicar que beira ao ridículo.

Rubem Alves, na obra “Da Esperança”, já dizia que a linguagem de uma comunidade de fé “deve (…) expressar o espírito de liberdade para a história, o gosto pelo futuro, a abertura para o provisório (…),deixando o velho e rumando em direção ao novo”. A partir daí, segundo ele, se pode pensar em construir Esperança.

Talvez se possa estender o que é aplicado ao termo “comunidade de fé” para “todos nós”, independentemente de professarmos uma religião ou não!

Então, enquanto humanidade, podemos nos perguntar: cultivamos a esperança? Em que esperamos? O que esperamos? Como vemos as possibilidades e suas manifestações em nossa existência tão precária e fugaz? Quem supostamente não tem religião pode ter esperança? Movimentamo-nos para um “desaprender” que nos conduza a novas alternativas?

Para construir a esperança é necessário desaprender! É claro, se pensamos em “desaprender” parece que caminhamos para trás, mas não se trata disso! Desaprender, aqui, quer dizer desvincular-se do que destrói, levando à promoção da vida, a um incessante olhar para a justiça e à revolucionária igualdade de oportunidades, já proposta por Jesus de Nazaré tanto tempo atrás. Significa reconhecer e desligar-se de “linguagens” envelhecidas, que impedem a paixão de instalar-se – a paixão que conduz a transformações às vezes jamais pensadas!

Mas como se pode pensar em “desaprender”, quando o que todos querem é “aprender”?

Trata-se de um remar ao contrário. É uma história às avessas desta que está por aí.  Isso, porém, só pode acontecer se entendermos que somos fruto dessa época, que fomos ensinados. Ensinados no preconceito (“bandido bom é bandido morto”), no desânimo (“pau que nasce torto morre torto”), na obstinada busca do sucesso a qualquer custo (“Deus ajuda a quem cedo madruga”), no estigma de “vencedores” (“Atirei o pau no gato”).

É a linguagem… Fomos ensinados a competir e a rastrear, sem descanso, uma via que nos leve a uma história que, na maioria das vezes, nem nossa é. Dificilmente nos perguntamos sobre sermos “vencedores em que”, de que parte da história…

Construir esperança é, pois, aprender a desaprender, mudar a linguagem! O desaprendizado, porém, implica compromisso com a insegurança, o desconforto, a desinstalação… pois linguagem nova, linguagem outra, faz-nos revirar nosso eu, em primeiro lugar. E aí, bom, aí possivelmente, temos o “homem e a mulher novos”, edificadores da Esperança construtora.

Autora: Ir. Marta Maria Godoy, graduada e pós-graduada em Letras, pós graduanda em Teologia

O ser humano light

O ser humano light potencializa o consumismo, o interesse efêmero pelas futilidades, o desinteresse pela cultura mais elaborada e absorção imediata do lixo cultural.

Reli recentemente o livro O Homem Moderno, do reconhecido e prestigiado Psiquiatra espanhol Enrique Rojas. Apesar de ser um livro escrito nos anos de 1990, sua atualidade e a forma como Rojas analisa o perfil psicológico do ser humano atual, é visivelmente surpreendente.

Originalmente o livro foi publicado em Madrid/Espanha com o título El hombre Light. Na análise de Rojas, assim como nos últimos anos entraram em moda certos produtos light (cigarros, algumas bebidas ou certos alimentos), também foi sendo gerado um tipo de ser humano que poderia ser qualificado de ser humano light.

Mas qual é o perfil psicológico deste ser humano? Como ele poderia ser definido?

Para Rojas, trata-se de um ser humano relativamente bem informado, mas de escassa educação humanista; um ser humano que tudo lhe interessa, mas de forma superficial. Viu tantas transformações nos últimos anos que começa a não saber a que se agarrar ou, o que dá no mesmo, a fazer afirmações do tipo “vale tudo”, “não me interessa”, “as coisas são assim mesmo”.

Encontramos “um bom profissional” em seu campo específico de trabalho, que conhece bem suas tarefas, mas que fora deste contexto, fica perdido, sem ideias claras, num mundo repleto de informações, que o distrai, mas que pouco a pouco o converte num homem superficial, indiferente, permissivo, que vive um “enorme vazio moral”.

As análises do Psiquiatra Espanhol são oportunas e importantes, porque a descrição que ele faz do ser humano light nos ajudam a perceber o quanto estamos sendo influenciados e contaminados por esse perfil psicológico que toma conta de adultos, jovens e crianças.

A superficialidade e o vazio existencial se fazem sentir nas relações cotidianas entre pessoas próximas e até mesmo nas relações familiares. No âmbito escolar esse perfil psicológico se faz presente nas manifestações de apatia pelos estudos, no pensamento fraco, nas convicções sem firmeza, na violência tácita ou explícita.

No cenário social e econômico, o ser humano light potencializa o consumismo, o interesse efêmero pelas futilidades, o desinteresse pela cultura mais elaborada e absorção imediata do lixo cultural. Por essa análise se entende porque certos “cidadãos de bem” defendem ideias fascistas, idolatram posturas autoritárias, negam a ciência e os fatos e acreditam cegamente e fake news que circulam livremente pelas redes sociais.

Em termos educacionais, nosso grande desafio é compreender o perfil psicológico do ser humano light que vem se constituindo nos últimos tempos.

Nosso compromisso de educadores (pais e professores) é possibilitar que as novas gerações não sejam tragadas por esse perfil psicológico que está na raiz de grande parte dos processos depressivos que atinge cada vez mais nossa juventude e que produz a cultura do vazio, uma geração de fanáticos e a morte dos sonhos.

A luta contra o vazio se torna um desafio e compromisso educacional no sentido de que precisamos, urgentemente, construir em nosso fazer pedagógico, espaços de formação solidária, pautados pelo compromisso social que nasce dos projetos de futuro e que são alimentados pelos sonhos de uma sociedade melhor.

Como nos diz o saudoso poeta gaúcho Mário Quintana: “Os sonhos são como as estrelas. Não podemos alcança-las. Mas, sem elas, não temos orientação”.

Autor: Altair Alberto Fávero

O mundo não é maternal

Sem a mãe, ficamos órfãos de tudo, já que o mundo lá fora não é nem um pouco maternal conosco.

É bom ter mãe quando se é criança, e também é bom quando se é adulto. Quando se é adolescente, a gente pensa que viveria melhor sem ela, mas é um erro de avaliação. Mãe é bom em qualquer idade.

Sem ela, ficamos órfãos de tudo, já que o mundo lá fora não é nem um pouco maternal conosco.

O mundo não se importa se estamos desagasalhados e passando fome. Não liga se viramos a noite na rua, não dá a mínima se estamos acompanhados por maus elementos.

O mundo quer defender o seu, não o nosso.

O mundo quer que a gente torre nossa grana, que a gente compre um apartamento que vai nos deixar endividados, que a gente ande na moda, que a gente troque de carro, que a gente tenha boa aparência e estoure o cartão de crédito.

Mãe também quer que a gente tenha boa aparência, mas está mais preocupada com o nosso banho, nossos dentes, nossos ouvidos, com a nossa limpeza interna: não quer que a gente se drogue, que a gente fume, que a gente beba.

O mundo nos olha superficialmente.

Não detecta nossa tristeza, nosso queixo que treme, nosso abatimento. O mundo quer que sejamos lindos, magros e vitoriosos para enfeitar a ele próprio, como se fossemos objetos de decoração do planeta. O mundo não tira nossa febre, não penteia nosso cabelo, não oferece um pedaço de bolo feito em casa.

O mundo quer nosso voto, mas não quer atender nossas necessidades. O mundo, quando não concorda com a gente, nos pune, nos rotula, nos exclui.

O mundo não tem doçura, não tem paciência, não nos escuta.

O mundo pergunta quantos eletrodomésticos temos em casa e qual é o nosso grau de instrução, mas não sabe nada dos nossos medos de infância, das nossas notas no colégio, de como foi duro arranjar o primeiro emprego.

Mãe é de outro mundo.

É emocionalmente incorreta: exclusivista, parcial, metida, brigona, insistente, dramática. Sofre no lugar da gente, se preocupa com detalhes e tenta adivinhar todas as nossas vontades, enquanto que o mundo nos exige eficiência máxima, seleciona os mais bem dotados e cobra caro pelo seu tempo.

Mãe é da graça.

“O egoísmo unifica os insignificantes. Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande… é a sua sensibilidade, sem tamanho…” Leia mais: https://www.neipies.com/o-tamanho-das-pessoas/

Autora: Martha Medeiros (reflexão escrita em maio de 2017)

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