Desenvolvimento talvez seja uma das palavras que mais vem na nossa mente quando pensamos em progresso, em crescimento econômico ou em inovação científica e tecnológica.
Em tempos de pandemia, vivenciados recentemente, todos os países estiveram empenhados em desenvolver uma vacina que pudesse pôr fim a esse terrível pesadelo que se abateu sobre o planeta. No entanto, é necessário problematizar o próprio conceito de desenvolvimento, seus pressupostos, suas finalidades, seus efeitos colaterais.
Em seu livro Ciência e Desenvolvimento, o epistemólogo argentino naturalizado canadense Mario Bunge desenvolve um conjunto de ensaios sobre o assunto que nos fazem pensar e nos instigam a sermos mais cautelosos e prudentes para não abraçar qualquer concepção de desenvolvimento sem avaliar as consequências de seus desdobramentos. Em um dos seus ensaios Bunge fala de quatro aspectos do desenvolvimento e como todos eles podem se tornar limitados quando pensados isoladamente. Trata-se do aspecto biológico, econômico, político e cultural.
Vejamos brevemente cada um deles seguindo os passos do próprio Mário Bunge.
A concepção biológica de desenvolvimento defende que ele ocorrerá se houver um aumento do bem-estar das pessoas, uma melhora da saúde de todos decorrente da melhoria da nutrição, da moradia, da vestimenta, dos hábitos alimentares, na prevenção das doenças etc. Certamente é a concepção de desenvolvimento preferida dos médicos higienistas e de todos aqueles que acreditam de que o país será desenvolvido quando todos os recursos forem canalizados para a saúde.
Por mais louvável que seja, pode se tornar uma concepção utópica e irrealizável porque não se preocupa com os meios necessários para alcançar o desenvolvimento biológico.
A desnutrição crônica, por exemplo que afeta de forma agressiva um país como o Brasil, dificilmente será superada se não houver uma mudança de mentalidade sobre o problema das desigualdades sociais, na injusta distribuição de renda, da forma como os governantes conduzem suas políticas e da falta de conhecimento das pessoas que se alimentam mal e desperdiçam dinheiro consumido alimentos de baixo teor nutritivo ou alimentando a indústria de bebidas alcoólicas.
Não se corrige o subdesenvolvimento biológico com medidas puramente sanitárias, tais como aumentar o número de médicos, de hospitais ou de campanhas de vacinação sem levar em conta outros fatores de desenvolvimento.
O desenvolvimento econômico defende que uma nação será desenvolvida se tiver uma forte indústria, o aumento das exportações e um elevando Produto Interno Bruto (PIB). Essa é a concepção preferida de empresários, economistas medíocres e políticos adeptos do desenvolvimentismo. É enganosa, pois pode produzir ainda mais a desigualdade social, o aumento da miséria, da violência e da competição destrutiva entre as pessoas.
A economia que deveria ser compreendida como meio para as condições de qualidade de vida das pessoas de um país se torna fim em si mesma e passa a beneficiar um grupo limitado de pessoas que se apossam das riquezas, do poder e da cultura em detrimento da grande maioria que é jogada na marginalidade e na pobreza.
A concepção política de desenvolvimento defende de que ele acontece quando ocorre uma expansão da liberdade, o aumento e segurança dos direitos humanos e políticos. É a concepção predileta dos políticos liberais. Também é limitada, pois de nada adianta ter os direitos políticos se faltam os meios econômicos e culturais para exercê-los. Não se tem democracia real quando em eleições os eleitores vendem seu voto para políticos corruptos que nunca entenderam o que é política no sentido profundo do termo.
A concepção de desenvolvimento cultural defende que este acontece quando ocorre um enriquecimento da cultura e à difusão da educação. Esta é a posição predileta dos intelectuais e dos educadores. Ela também não é suficiente, pois um estudante mal alimentado e contaminado por certas ideologias que desprezam a cultura letrada dificilmente aprende; um desempregado dificilmente se interessa por conhecimento ou por cultura, pois lhe falta condições básicas de vida. O desenvolvimento cultural não se realiza se não estiver acompanhado de um desenvolvimento biológico, econômico e político.
Por fim, talvez deveríamos investir na ideia de um desenvolvimento integral que olhasse para as quatro concepções com a mesma atenção e com os mesmos investimentos.
Uma nação será desenvolvida quando as quatro dimensões forem igualmente contempladas. E todas elas tem por base uma educação para todos, com escolas públicas de qualidade, professores bem formados e bem remunerados e um projeto de nação que prioriza vida digna para todos, com justiça social e equidade.
Para muitos, isso não passa de uma utopia ou uma ilusão irrealizável; para outros um projeto possível que se concretiza quando somos capazes de pensar a sociedade de forma coletiva que coloca as pessoas e o meio ambiente como centro das atenções. A isso poderíamos dar o nome de DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.
Quais são os caminhos, os desvios e as transformações que a arte produzida em ambientes urbanos está adquirindo em função das constantes mudanças sociais? E por que essas questões se tornam relevantes para entender essa expressão visual contemporânea?
Em janeiro de 2023, o artista internacionalmente conhecido, Eduardo Kobra, pintou mais um de seus característicos murais em Porto Alegre, RS. A obra, intitulada “Estado de Paixão”, homenageia o folclorista Paixão Cortes, adicionando ao mural a já icônica figura do “laçador”, além da “chama crioula”, considerada um dos simbolismos do tradicionalismo gaúcho. A pintura foi realizada na região da cidade conhecida como “Quarto Distrito” .
Também no início de 2023, no mês de fevereiro, foi inaugurada no Shooping Eldorado, na cidade de São Paulo, a exposição “The Art of Banksy. Without Limits”, do artista Banksy. O artista produz obras críticas à sociedade contemporânea e sua estratégia é quase sempre a de surpreender, pois não informa onde suas pinturas irão aparecer, surgindo em várias cidades do mundo.
Uma característica que adiciona uma aura de mistério a esse artista é que mesmo sendo mundialmente famoso, sua identidade nunca foi reconhecida. Suas obras, valiosíssimas, encontram-se em diversas galerias, museus e de posse de colecionadores particulares. Detalhe: o valor médio do ingresso para a exposição de Banksy em São Paulo custa $130 reais.
O que esses dois exemplos podem nos mostrar sobre a atual situação e condição da “arte urbana”? Quais são os caminhos, os desvios e as transformações que a arte produzida em ambientes urbanos está adquirindo em função das constantes mudanças sociais? E por que essas questões se tornam relevantes para entender essa expressão visual contemporânea?
Saliento que a intenção deste texto não é de esgotar o debate sobre o assunto, mas também de não expor opiniões ligeiras sobre o tema, pois há mais de dez anos estudo a temática das artes urbanas.
Em minha pesquisa de mestrado, acompanhei grupos de grafiteiros e pichadores da região periférica de Porto Alegre, resultando em diversos artigos publicados em revistas científicas e capítulos de livros que divulgam a pesquisa e ampliam o debate sobre o tema. Além do trabalho acadêmico, realizo oficinas de grafite em escolas e outros locais, participando esporadicamente de eventos de pinturas artísticas de rua.
Na primeira parte do texto, abordarei, de forma breve, a importância da cultura juvenil contemporânea para o desenvolvimento das artes urbanas, também conhecidas como “arte de rua”. Na segunda parte, exponho reflexões sobre o problema principal exposto nestes escritos: para onde a arte urbana está se encaminhado no atual cenário contemporâneo?
Grafites, pichações, muralismos: manifestação artística como cultura contemporânea e juvenil
A juventude, tanto como conceito quanto manifestação social e cultural desponta após a Segunda Guerra Mundial. Os jovens passaram a ocupar as ruas, os espaços urbanos públicos e privados, produzindo uma cultura própria, a música com o rock and roll, os protestos estudantis, a dança, roupas, acessórios e, claro, uma expressão plástica e visual características com os grafites e demais inscrições nos muros. Impossível não lembrar de James Dean, “rebelde sem causa”, ao falarmos da juventude desse período histórico.
Embora existam diversos estilos de arte urbana, o mais conhecido são os grafites compostos de letras gigantes e coloridas e também desenhos representando personagens. Surgem inicialmente em comunidades de bairros com populações negras e latinas dos EUA, em meados dos anos de 1970, principalmente na cidade de Nova York. Essas produções estão ligadas, indubitavelmente, às culturas juvenis contemporâneas e fazem parte de um processo de emancipação social em que a juventude se liberta da tutela paterna e passa ocupar espaços que antes lhes eram negados (FEIXA, 1999).
Os jovens encontravam nas ruas a possibilidade de uma forma de expressão mais livre, colorida, coletiva e democrática, pois de fácil acesso. Os muros, paredes se transformam em telas a céu aberto. O filme The Warriors, Selvagens da Noite, de 1972, cujo enredo envolve disputa de territórios por gangues juvenis na cidade de Nova York, destaca os grafites nos vagões do metrô como símbolos que identificam toda uma cultura daquele contexto.
No Brasil, o movimento hippie dos anos de 1960 dá lugar ao movimento punk e ao hip-hop, expressões juvenis que surgem no final dos de 1970, fortalecendo-se após a abertura democrática como fim da ditadura militar em 1985. Os grafites ainda eram poucos e tímidos, mas surgiam em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.
“ A rainha do frango Frito”, obra do artista Alex Valauri aparecia nos muros de São Paulo. Em Porto Alegre, impossível não lembrar do nome de “Toniolo” nas ruas da cidade. Notadamente, manifestações da mesma ordem surgem em diversas cidades do Brasil. Época em que essas ações não eram entendidas como expressões juvenis e muito menos como arte.
Outra forma de atuar nos espaços urbanos diz respeito à pichação. Considerada ilegal, esta grafia urbana é considerada sujeira ou vandalismo. A pichação pode ser utilizada como protesto, lembremos das frases que marcaram os movimentos estudantis em maio de 1968, ou no Brasil, com a escrita “Abaixo a ditadura!”. Vale lembrar que no Brasil a pichação é considerada crime ambiental e deterioração do patrimônio público nos termos do artigo 65 da Lei 9.605/98, a prática da pichação tipifica pena de detenção de 03 meses a 01 ano e multa.
Em diversos países, quaisquer inscrições realizadas em espaços urbanos são identificadas como graffiti, pois devido ao fato de utilizarem o mesmo suporte – paredes, muros, portas etc., usarem o mesmo material – spray, tintas, rolos e pincéis. Autores como Valenzuela, 1999; Garcia Canclini, 1989; Marques, Almeida e Antunes, 1999; Aguiar, 2007; Feixa, 1999, afirmam que são culturas juvenis envolvidas em práticas territoriais que se valem dos espaços públicos de forma semelhante.
De minha parte, sustento que enquanto a pichação utiliza a rua como território, o grafite utiliza a rua como ambiente para a expressão visual ( SILVA, 2010). O grafite apropria-se dos espaços com o objetivo de transformá-los em “telas” urbanas, a pichação utiliza as superfícies da cidade visando a demarcação de territórios por meio da ação de grupos ou indivíduos específicos dessa cultura juvenil contemporânea (SILVA, 2010).
Como toda atividade humana, a arte urbana, em todos seus segmentos, está em constante movimento e transformação, é uma prática cultural que não está dissociada do tempo, do espaço, dos discursos e ações de poder que estão em circulação no mundo .
Arte urbana valoriza seu imóvel! Arte de rua vende em galerias de arte!
De fato, podemos observar que o grafite invade as mídias, as redes sociais virtuais e ocupa já há bastante tempo os museus e as galerias de arte. A arte de rua se transformou em um lucrativo mercado, está cada vez mais voltada para uma elite consumidora e ávida por novas estéticas visuais.
Em artigo publicado no ano de 2022[1], destaquei como as recentes produções de murais gigantes realizados em empenas de prédios no centro histórico da cidade de São Paulo estão indiretamente envoltos em processos de revitalização urbana e interesses imobiliários.
Seguindo essa perspectiva de valorização urbana, o mural realizado pelo artista Kobra está localizado no Quarto Distrito, em Porto Alegre. Uma região cujos investimentos comerciais e residenciais têm sido cada vez mais intensos. A pintura do artista foi produzida em uma antiga fábrica de vidro construída em meados do século XX e agora abriga uma loja de materiais para decoração.
A despeito da qualidade da obra e reconhecimento internacional do artista em questão, é inevitável não deixar de perceber nessas ações distintos interesses, sejam eles econômicos ou políticos.
Mural realizado pelo artista Kobra. Fonte: Jornal Matinal[1]
Embora de forma sutil, a presença da arte urbana em materiais de divulgação de empreendimentos imobiliários e comerciais é outro exemplo que evidencia o seu uso em processos imobiliários e comerciais. Os grafites atuam como uma expressão visual que torna os locais mais, “modernos”, “boêmios”, “artísticos” ou quaisquer outros aparatos que possam ser usados tanto para vendas de apartamentos em condomínios “descolados” ou que buscam atrair uma população juvenil para bairros e regiões revitalizadas com bares e casas noturnas.
Segundo Sorbo (2019), “a presença da arte de rua pode criar a ilusão de insurgência e rebelião, embora seja criada apenas à mercê de desenvolvedores e planejadores urbanos”. Ao ser construída como moderna e boêmia, ela se separa de suas raízes que já existem, cada uma com seus significados históricos e culturais (SORBO,2019)
Em uma situação distinta, mas ainda na esteira dessa discussão, a exposição do artista Banksy, citado na abertura deste texto, ajuda-nos a refletirmos sobre a condição atual da arte de rua. Um acontecimento, durante essa mesma exposição, tornou-se crucial para problematizar até que ponto a arte de rua como expressão urbana e pública atinge na atualidade.
O artista de rua paulista conhecido como NEGRO M.I.A. realizou uma intervenção, pichando em uma obra de Banksy, a frase “Distanciamento social sempre existiu”. Bem vindos ao Brazil”. Uma crítica, segundo ele, à elitização da arte de rua, transformada em um produto rentável. A imagem abaixo, retirada da página Vogue Arte[3] mostra a intervenção na obra.
O que essa intervenção pode nos mostrar sobre a atual condição da arte de rua? O artista paulistano atingiu seu propósito de crítica e protesto contra a “elitização” da arte de rua? Ainda que a intervenção tenha sido válida, o que se apresenta a partir desse acontecimento é mais amplo e paradoxal, possibilitando-nos reflexões a respeito do atual sistema mercadológico que engole e rentabiliza quase todas as práticas sociais e artísticas.
Uma problematização: o fato de um artista contestador como Banksy estar em uma exposição já é por si só perturbador. Vendeu-se ao circuito econômico da arte? Continuarão surgindo grafites seus pelos muros e paredes do mundo?
Um paradoxo: não estariam as obras desse artista sendo ainda mais valorizadas a partir da intervenção realizada em uma delas? O protesto de NEGRO M.I.A também teria um efeito ainda mais espetacular já que foi executado na obra de um artista, do mesmo modo contestador? São indagações que surgem e podem nos apontar para os muitos caminhos que essas intervenções podem se direcionar.
De fora para dentro, de dentro para fora
A crescente utilização e espetacularização das artes urbanas, especificamente o grafite, pode servir como controle de uma arte que sempre foi gestada em espaços de contestação? Encastelá-la em galerias ou exposições, ou ainda torná-la como um veículo estético para propagandear a revitalização e a especulação imobiliária é mais um dos caminhos que essas expressões trilharam desde seu surgimento?
Retorno à minha dissertação de mestrado, finalizada no ano de 2010, onde destaquei as possíveis transformações e transferências que esses deslocamentos da arte de rua para galerias de arte e museus poderiam provocar.
Primeiramente, é preciso entender que encontrar tais produções em ambientes institucionais constitui-se em uma experiência estética completamente diversa daquela vista nas ruas, proporcionando outros pontos de vista, suscita novas observações, interferindo na forma como são descritas e analisadas (SILVA, 2010). É por isso que assistimos a transformação de um “grafite vândalo” para um “grafite arte” vinculados às condições contemporâneas cada vez mais híbridas que borram as fronteiras entre o poder econômico e o consumo cultural.
Por fim, fica o questionamento: é possível controlar ou criticar tais movimentos e transformações, já que essas são expressões visuais que sempre se caracterizam pela sua natureza libertária, seu domínio é público? Quem pode direcionar os rumos da arte de rua?
Autor: Eloenes Lima da Silva
REFERÊNCIAS
AGUIAR, C. S. D. Risco e Identidade de Gênero no Universo do Graffiti. Lisboa: Ed. Colibri; Soc. Nova Lisboa, 2007.
FEIXA, Carles. De Jovenes, Bandas e Tribos. Barcelona: Ariel, 1999.
GARCIA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair de la modernidade. México: Ed. Grijalbo, 1989.
MARQUES, F.; ALMEIDA, R.; ANTUNES, P. Traços Falantes (A cultura dos jovens graffiters). In: PAIS, José Machado. Traços e Riscos de Vida: uma abordagem qualitativa de modos de vida juvenis. Porto: Âmbar, 1999. Pp. 173-211.
SILVA, Eloenes Lima da. A gente chega e se apropria do espaço! Graffiti e Pichações
demarcando espaços urbanos em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2010, 180f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
Disponível: < http://hdl.handle.net/10183/27057> . Acesso em: 06 de nov. 2021
SILVA, Eloenes Lima da. Pedagogias das Artes Urbanas – Encontrando Murais Gigantes na Cidade de São Paulo. Educação Pública – Divulgação Científica e Ensino de Ciências • v2, nº1, maio/2022. p. 1-17.
VALENZUELA, J. M. A. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
[1] Pedagogias das Artes Urbanas – Encontrando Murais Gigantes na Cidade de São Paulo. Educação Pública -Divulgação Científica e Ensino de Ciências. v1, nº2, junho/2022.
Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. Não é suficiente não ser violento. É necessário lutar pela construção da paz como sinônimo de justiça e equidade social.
O racismo é histórico e vigora intenso na sociedade brasileira. Ele se multiplica de muitas formas, desde as mais veladas e dissimuladas até as mais escancaradas e violentas, que asfixiam, sufocam e matam. Nos últimos anos, esta prática parece ter se evidenciado ainda mais. O racismo é um vírus perigoso e abominável que precisa ser estudado com profundidade e combatido pela raiz.
A pessoa racista discrimina, segrega, exclui e barbariza as relações sociais. Ela vê o diferente como ameaça ou incômodo, como incapaz, sem valor, sem direito ou sem dignidade. O racismo faz mal não só para quem é atingido por ele, mas também para quem o pratica, embora o racista nem sempre o perceba. Toda expressão de racismo vem acompanhada de algum grau de perversidade.
Segundo Jessé Souza, “o aspecto principal de todo racismo é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe”[1]. Para o autor, no Brasil o racismo está associado à escravidão, questão essa que nos caracteriza enquanto nação e explica a existência de muitas mazelas, desigualdades e violências. Escravidão e racismo são dois lados da mesma moeda que ainda seguem impactando diretamente no funcionamento da nossa sociedade.
O racismo nega a identidade e fere a integridade do outro e o seu direito de ser do jeito que é. Não se trata de um acontecimento ocasional, mas de um fenômeno estrutural. É um problema social que se manifesta também por meio da indiferença diante do sofrimento do outro, da naturalização da miséria e da exclusão pelo fato desse outro ser de outra cor ou de outra origem étnica.
Não há racismo ingênuo ou de brincadeira. O que efetivamente acontece é que, muitas vezes, pela via da brincadeira ele também se consolida como se fosse algo natural. O racismo se sustenta na ideologia da supremacia racial, no mito da raça pura, nas tendências nazistas e neonazistas, na política de branqueamento e em outras expressões higienistas.
Existe o racismo ambiental, científico, cultural, institucional, pré-moderno, pós-moderno, neoliberal e com várias outras configurações.
O racismo não é um assunto a ser tratado de forma isolada, mas como um problema sistêmico. Não adianta usar máscara e fazer isolamento social para enfrentar o racismo. Igualmente, não há medida mágica ou vacina pronta para imunizar-se contra ele. A questão é muito mais complexa.
Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. Não é suficiente não ser violento. É necessário lutar pela construção da paz como sinônimo de justiça e equidade social. A luta para superar o racismo precisa ser diária por parte de todas as culturas, etnias, credos, idades, gêneros, línguas, classes, enfim da sociedade em geral.
O avanço para um estágio em que haja respeito efetivo às diversidades identitárias requer o combate constante ao racismo e a promoção das políticas de igualdade racial. Para tanto, a educação é o principal caminho. As Leis nº 10.639/03 e 11.645/08 assim o exigem, estabelecendo diretrizes de uma educação para o respeito às relações étnico-raciais.
Ademais, é preciso também garantir que os racistas sejam responsabilizados por suas práticas, segundo a lei, em qualquer situação que o racismo venha a ocorrer. Se é possível aprender a ser racista, pode-se do mesmo modo aprender a ser antirracista. Mais que uma possibilidade, esta é uma necessidade, pois o racismo é abominável sob todos os aspectos!
A sociedade racista desenvolve mecanismos diversos – uns mais sutis, outros nem tanto – de restrição, limitação e exclusão social. Sujeita o indivíduo negro a barreiras que limitam ou bloqueiam suas condições de mobilidade social. Leia mais:https://www.neipies.com/racismo/
Autor: Dirceu Benincá
[1]. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019, p. 19.
Graça e trabalho não são antagônicos. O que confunde a muitos é a conexão equivocada entre trabalho e mérito.
Foram quarenta anos de peregrinação pelo deserto. Naquele ambiente inóspito, Israel teve que aprender a depender de Deus como um filho depende de seu pai. Sob um sol escaldante, não havia a menor chance de que eles plantassem e colhessem. O ambiente lhes era totalmente hostil. Por isso, Deus toma para Si a responsabilidade, alimentando-os com o maná que do céu caía todos os dias e com as aves que voavam ao alcance de suas mãos, e saciando-os com a água que da rocha jorrava.
Além do alimento, Deus lhes protegia do calor abrasador, proporcionando-lhes sombra com a nuvem que os acompanhavam, e lhes protegia do frio à noite transformando a mesma nuvem numa coluna de fogo. Sua única preocupação deveria seguir aquela nuvem que os guiava deserto afora, e submeter-se à liderança de Moisés.
Ninguém precisava se preocupar em trabalhar, em correr atrás do pão de cada dia. Tudo vinha de mão beijada diretamente do Pai Provedor. Mas, de repente, o inusitado aconteceu. Aquele que os guiara desde o Egito partiu sem deixar vestígio. E como se não bastasse, Deus lhes deixou de sobreaviso: tão logo atravessassem o Jordão, o maná diário cessaria, a rocha deixaria de verter água, as codornizes desapareceriam de seu cardápio. A partir daí, eles teriam que arregaçar as mangas e trabalhar. Afinal de contas, Deus os teria introduzido numa terra que manava leite e mel, a tão sonhada Terra Prometida (Josué 5:12).
Meritocracia? Negativo. A mesma graça que os sustentou pelo deserto, agora seria responsável por cada chuva, por cada estação, por cada colheita (Atos 14:17). Entretanto, caberia a eles não receber tal graça em vão, mas trabalhar com afinco a fim de não desperdiçá-la.
Era de se esperar que a morte de Moisés os deixasse com aquele sentimento de orfandade que poderia desanimá-los e distraí-los do foco. Por isso, Deus incube a Josué de lidera-los na nova etapa que se iniciava. “Moisés, meu servo, é morto. Levanta-te agora, passa este Jordão, tu e todo este povo, à terra que eu dou aos filhos de Israel. Todo o lugar que pisar a planta do vosso pé, eu o tenho dado a vós, como prometi a Moisés” (Josué 1:2-3).
Em outras palavras, Moisés tinha prazo de validade, mas a promessa de Deus não. Esta jamais caducaria! Moisés era apenas um canal através do qual Deus guiava Seu povo. Mas eles teriam que reconhecer que, apesar de os canais variarem, a fonte segue sendo a mesma de sempre: DEUS! Josué seria o novo canal que os conduziria à terra com a qual sonharam desde que deixaram a terra dos faraós.
Durante a travessia no deserto, Israel sentia saudade do Egito, de suas cebolas, de seus alhos, de seus melões e peixes (Números 11:5). Apesar do trabalho forçado, da escravidão, dos açoites, eles tinham a garantia de que não lhes faltariam mantimentos. O período no deserto serviu para desintoxicá-los.
Tirá-los do Egito foi bem mais fácil do que tirar o Egito deles. Agora, contudo, eles teriam que voltar a trabalhar, não mais sob a tirania e a exploração de Faraó, mas sob os cuidados amorosos do Pai Celestial. Um Deus que é Pai não oprime a Seus filhos, mas também não os mima. Pelo contrário, Ele os disciplina para que cresçam, amadureçam, frutifiquem, e ainda assim, sigam dependentes de Sua Graça e Amor.
Graça e trabalho não são antagônicos. O que confunde a muitos é a conexão equivocada entre trabalho e mérito.
Na mesma passagem em que Paulo encomenda os discípulos “a Deus e à palavra da sua graça”, ele também diz: “Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é necessário auxiliar os enfermos, e recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse: Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (Atos 20:32,35).
Ninguém falou mais da graça do que Paulo. Porém, ele jamais a usou como subterfúgio, desculpa ou justificativa para a ociosidade. Pelo contrário, ele a enxergava como uma força motivadora para o trabalho, e diz que toma-la como desculpa para cruzar os braços é o mesmo que recebê-la em vão. Ou não isso que ele diz?: “Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo.” 1 Coríntios 15:10
O que a travessia do Jordão foi para os Israelitas, o Dia de Pentecostes foi para os cristãos.
Jesus já havia alimentado a multidão que o seguia pelo deserto, multiplicando pães e peixes por mais de uma vez. Ele também prometera aos Seus discípulos que os que n’Ele cressem fariam as mesmas obras que fez, e ainda faria obras maiores. Entretanto, não flagramos os discípulos protagonizando milagres de multiplicação após a descida do Espírito Santo em Pentecostes.
O episódio da multiplicação foi paradigmático, não por causa do milagre em si, mas pelo fato de que um menino se dispôs a compartilhar seu próprio lanche com a multidão. E foi assim, calcados neste exemplo, que as primeiras comunidades cristãs desenvolveram o hábito da partilha, razão pela qual, não havia entre elas nenhum necessitado.
O maior milagre é o que ocorre no interior do coração humano, transformando opressores e exploradores em potencial em seres generosos, cheios de amor pelos seus semelhantes.
Obviamente que alguns aproveitadores se infiltraram nas igrejas para obter alguma vantagem em cima do espírito solidário dos cristãos. Eles queriam uma fatia do bolo, sem, porém, cooperar para que este bolo crescesse e pudesse alimentar a tantos outros.
Para corrigir isso, o apóstolo Paulo nos deixou uma severa advertência: “Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo nós lhes ordenamos que se afastem de todo irmão que vive ociosamente e não conforme a tradição que receberam de nós. Pois vocês mesmos sabem como devem seguir o nosso exemplo, porque não vivemos ociosamente quando estivemos entre vocês, nem comemos coisa alguma à custa de ninguém. Pelo contrário, trabalhamos arduamente e com fadiga, dia e noite, para não sermos pesados a nenhum de vocês, não por que não tivéssemos tal direito, mas para que nos tornássemos um modelo para ser imitado por vocês. Quando ainda estávamos com vocês, nós lhes ordenamos isto: se alguém não quiser trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu próprio pão.” 2 Tessalonicenses 3:6-12
Não creio em meritocracia, pois entendo que nem todos desfrutam da mesma oportunidade de crescer, desenvolver-se e produzir.
Uma coisa é não ter oportunidade, outra é tê-la, mas negligenciá-la. A orientação apostólica é clara: “Trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para que tenha o que repartir com o necessitado (…) aproveitando bem cada oportunidade, porque os dias são maus” (Efésios 4:28b; 5:16b).
Se teve a oportunidade de se aperfeiçoar em alguma tarefa, não a desperdice! Se teve a chance de ser bênção na vida de outros, e, de quebra, garantir sua própria subsistência, não a negligencie.
Como já dizia meu velho e sábio pai: o que tinha que vir do céu já veio: Jesus para morrer por nós e o Espírito Santo para nos capacitar. Agora, só nos resta correr atrás, na certeza que as bênçãos de Deus nos acompanharão em tudo o que fizermos.
Que nosso objetivo seja o mesmo de Paulo e dos demais apóstolos: Não sermos pesados a ninguém! Nem que para isso tenhamos que trabalhar dia e noite sem parar: “Porque bem vos lembrais, irmãos, do nosso trabalho e fadiga; pois, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós, vos pregamos o evangelho de Deus” (1 Tessalonicenses 2:9).
Que nossa dependência de Deus não seja desculpa para o ócio, mas estímulo para o trabalho digno, honesto e honroso.
As crianças de uma escola infantil da cidade de Passo Fundo, EMEI Rita Sirotsky, se envolvem num projeto de horta escolar, com o intuito de aprender, através de práticas, sobre nutrição e alimentação saudável. Elas vivenciam desde sua tenra idade a importância de cuidar do solo, de cultivar hortaliças e colher alimentos saudáveis para manter boa saúde, no prato de comida que é servido em sua alimentação.
Cultivar alimentos é uma forma de educar na perspectiva da formação integral do ser humano, educando para a necessidade e importância de uma boa alimentação. O ser humano deve ser pensado em sua totalidade, contemplando todas as suas dimensões que fazem parte da sua essência e existência.
Este projeto iniciou em agosto de 2019, a partir de uma palestra de outro projeto – Escola de Pais – sobre nutrição junto à comunidade escolar. Escola de Pais é um projeto onde a Escola forma os pais, com palestras sobre temas de importância para os pais, como limites na educação infantil, alimentação, auto estima, o olhar do adulto para a criança.
Como na escola havia uma área de terra com uma horta abandonada, um pai se dispôs a fazer uma primeira limpeza e também o primeiro plantio de mudinhas para as crianças. De lá para cá, esta horta escolar vem sendo importante referência para outras escolas e para outras iniciativas de alimentação escolar, envolvendo crianças e adolescentes. Esta importância é demonstrada através de uma matéria feita pela UPF TV no ano de 2020.
Rudimar Gomes, diretor da Escola, fala um pouco mais para a gente sobre esta iniciativa que revolucionou a educação infantil e a relação de toda comunidade escolar (pais e mães, crianças, funcionárias e professoras).
Professor Rudimar, como, ao longo dos últimos anos, a Horta escolar se integrou ao Projeto Político e Pedagógico deste educandário de Educação Infantil?
Rudimar: A horta nasceu naturalmente, não foi pensada como um grande projeto, ela simplesmente nasceu aos poucos. E, como tudo que nasce naturalmente, sem ser imposto, ela se integrou ao projeto da escola, onde as atividades começaram a se integrar com o fazer pedagógico. Muitas aprendizagens são vivenciadas na horta escolar, formas, cores, tamanhos, sabores, enfim um universo de descobertas.
Vejam o antes e o depois do terreno onde foi implantada a horta.
Qual é a finalidade deste tipo de projeto numa escola de ensino fundamental, a partir da educação infantil?
Rudimar: O projeto horta no Ensino Fundamental visa uma continuidade dessa vivência e das aprendizagens que as crianças têm também em contato com natureza. O produzir não está somente ligado a tecnologias e outros projetos impostos, mas pode-se e deve-se produzir a partir da natureza, produzir e poder experimentar o resultado dessa produção.
Além disso, cria-se a prática das hortas nas casas, onde um simples projeto tem resultados econômicos, didáticos e inspirando uma alimentação saudável em nossos alunos.
Como a comunidade escolar, sobretudo os pais e mães, estão envolvidos na horta escolar?
Rudimar: Quem cuida de nossa horta escolar é um pai da escola, ele ajuda as crianças no plantio, a regar as plantas e também na colheita dos produtos. Importante lembrar que a criança, filha desse pai, já não faz mais parte da nossa escola, mas, mesmo assim, o seu amor pelas crianças e pela escola faz com que ele dê continuidade a esse projeto. As mudinhas que são plantadas, vem em forma de doação da Strapasson Comércio de Mudas, uma empresa parceira de nossa escola desde o início da horta.
Estudos apontam a necessidade de relacionarmos formação integral às crianças a partir da relação delas com a natureza. Quais são os indicativos que esta experiência que relaciona educação e natureza já suscita com as crianças atendidas nesta escola?
Rudimar:As crianças começam a compreender de onde vem as coisas, muitas delas não imaginavam que a terra era a responsável por produzir os alimentos. Além disso, é comum o relato dos pais informando o desejo das crianças em criar uma horta em casa. Elas começam a compreender a importância da natureza, o cuidado ao plantar, o compromisso em regar todos os dias e por fim o sabor da colheita dos resultados.
A natureza não é vista como algo distante, até então presente apenas nas florestas e filmes, mas a percepção de que ela está ali, bem próxima e que precisa ser cuidada e protegida é apenas um dos diversos fatores interiorizados.
Quais as orientações ou os cuidados que o senhor recomendaria para escolas que queiram iniciar uma horta escolar?
Rudimar: O cuidado em qualquer projeto a ser iniciado em uma escola é a realidade da escola e o desejo da mesma ante o desafio. Ou seja, tem que ser algo prazeroso, algo que nasce espontaneamente e que não uma obrigação imposta ou uma competição a ser vencida, pois logo ali na frente, se for imposto, as pessoas cansarão e ele se tornará um fardo e, se for uma competição, assim que terminar o jogo, projeto será abandonado.
Quando as coisas surgem naturalmente, elas não são abortadas pelo tempo. Esse projeto nasceu de uma simples palestra, não foi algo criado na cabeça de um e imposto a outros, foi do coletivo e quando o “filho é seu, você cuida”.
Projetos que nascem querendo enaltecer o próprio ego à custas de outros, estão destinados ao fracasso. O projeto deve nascer de uma necessidade, de um momento de reflexão, onde todas as pessoas tenham voz e vez de decidir quando e como fazer.
Qual sua mensagem final aos educadores e educadoras, pais e mães, professores e professoras?
Rudimar: Minha mensagem que fica é que projetos grandiosos nascem da simplicidade. As obras faraônicas do Egito, erigidas para mostrar o poder do líder que se achava um deus, estão lá simplesmente como ruínas de um poder passageiro, pois foram impostas, não houve diálogo e nem empatia com os envolvidos.
Já a democracia dos gregos permanece até hoje, pois foi algo construído em conjunto, que tem como objetivo principal a participação de todos e não apenas o enaltecimento de uma pessoa. Aquilo que é construído por muitas mãos, permanece por mais tempo.
Que todos os envolvidos na educação saibam da minha admiração e respeito, pois são eles que estão todos os dias com a mão na massa, mudando vidas, ampliando horizontes e escrevendo novas histórias através da educação. São eles os protagonistas, são eles os verdadeiros pensadores da era atual.
Você já parou para pensar sobre as origens do preconceito? Será que ele tem alguma função ou algum motivo de ser?
Começando pelo começo (aha!), etimologicamente falando, a palavra preconceito por si já revela muito de si, ela é constituída por dois componentes: o pré, que significa algo como vir antes, e o conceito, ou aquilo que se compreende em respeito de algo, segundo o dicionário. De certo modo, podemos dizer que a palavra preconceito é uma conceituação que vem antes. Mas, antes de quê? Antes de conhecer ou de se chegar as vias de fato.
Eu gosto muito de procurar respostas do entendimento das características humanas em nosso processo evolutivo, e meus amigos, a biologia é algo incrível, e por mais que o preconceito seja muito malvisto nos dias atuais, ele tem, ou teve? O seu valor.
– Explica melhor isso, Ana!
Na verdade, o preconceito pode ser visto como uma ferramenta humana que visa prever o que poderá acontecer com base em experiências passadas. Por exemplo, imagine que você, ser humano, nômade e pelado na selva, foi picado por uma cobra, passou muito mal, mas, graças aos Deuses da época, você sobreviveu. Depois desse evento, você passou a odiar tudo que rasteja sem patas e parece ser geladinho, com aqueles olhos que o pavor não nos deixa nem descrever. E o pior, ou melhor? Você não só passou a odiar as cobras, como passou a matar desesperadamente todas, sem exceções.
A isso chamamos de generalização, que basicamente é o ato de utilizar uma experiência para definir todas as outras experiências parecidas. Como o seu cérebro age buscando sempre a sobrevivência, e você passou muito mal ao ser picado por uma única cobra de uma única espécie, o que ele vai fazer é concluir que tudo que se enquadre nas características citadas acima deve ser visto como uma ameaça. Ele vai compreender que não vale a pena ficar investigando, porque o risco é muito alto. O problema é que existem cobras que nem veneno possuem, e que matar todas elas poderia gerar um desequilíbrio ecológico tremendo.
Retomando o exemplo, além de passar a exterminar todas as cobras, seu ímpeto de sobrevivência lhe deu um novo propósito de vida, você passou a difundir a informação de que todas as cobras eram venenosas e precisavam ser exterminadas, seus filhos nunca foram picados por uma cobra, mas eles mesmos já mataram várias e fizeram questão de repassar o costume para as futuras gerações… até que um dia uma cabeça pensante perceba que a cultura de matar todas as cobras está equivocada e resolva lançar um olhar mais curioso e consciente diante da situação e mudar esse paradigma.
O preconceito reside justamente entre a sua experiência ou memória passada e como ela influencia o seu modo de agir e de pensar. Olhando a fundo, de fato ele tem o seu valor e pode mesmo nos poupar de enrascadas.
Mas, não, eu não vim aqui defender o preconceito, o meu interesse por aqui é tentar fazer refletir sobre um modo mais equilibrado de utilizar essa ferramenta da natureza. Agora apresentamos a outra face da moeda.
O ser humano é um animal social, inundado diariamente por uma complexa rede de conceitos pré-estabelecidos em que absorvemos sem, na grande maioria das vezes, nos darmos conta de sua influência sobre os nossos pensamentos e ações.
Em outras palavras, isso significa dizer que podemos formular certas visões, com base nas estórias que nos contaram, de coisas que ouvimos ou vemos, sem nos dar conta de que aquilo é apenas algo que aconteceu com alguém ou alguma coisa e não deve ser aplicado a todo o contexto parecido, sem um olhar consciente, caso contrário ele poderá prejudicar, e muito a nossa convivência e a ferramenta da natureza se torna uma cilada.
Aplicando-a em um contexto atual, digamos que você assiste o noticiário diariamente, e eu não preciso nem descrever o quanto só tem tragédia naquele negócio, não é mesmo?!. Na segunda você viu uma reportagem que uma pessoa de cor lilás (cor inventiva justamente para não ser seletiva) foi presa por tráfico de drogas. Na quinta você viu outra reportagem que outra pessoa de cor lilás foi presa por homicídio e assim sucessivamente.
O que o seu cérebro deverá fazer?
Primeiramente ele vai identificar uma espécie de padrão (ou o conjunto de ações que se repete com frequência), e isso pode acontecer de modo inconsciente. Ou seja, com base na sua experiência no noticiário: pessoas lilás cometem crimes. Após identificado tal padrão, a tendência é a generalização, ou seja, como pessoas que cometem crimes de alguma forma são uma ameaça a nossa vida, e pessoas lilases cometem crimes, é interessante para a nossa sobrevivência que construamos uma narrativa que busque se afastar dessa ameaça.
O que fazemos? Também de forma inconsciente? Evitamos nos relacionar com pessoas lilases e muitas vezes as difamamos, sem as conhecer, adotando como base as associações inconscientes que criamos. Eu sei que isso parece um exagero, mas, acontece e muito.
Como se não bastasse, há um outro fator agravante que é: não nos damos bem com o desconhecido. O nosso cérebro gosta de sentir que está no controle da situação e isso significa que ele vai se sentir mais confortável com aquilo que conhecemos, pois, conseguimos identificar os padrões e prever o que poderá acontecer, diminuindo, portanto, a chance de ameaças. É por essas que religiões diferentes, pessoas diferentes, opções sexuais diferentes, escolhas políticas diferentes, ou seja, lá o que for diferente de nós ou da nossa visão de mundo também nos causará desconforto, e poderá até mesmo ser visto pelo seu cérebro como uma ameaça, e de fato, essas eleições são a prova que essa teoria parece mesmo funcionar!!!
Então, se o preconceito parece até mesmo ser algo natural, como seria possível extingui-lo? Eis o ponto “x” da questão, a gente não precisa acabar com ele, até porque eu não sei exatamente se isso seria possível, ao menos a curto prazo. E aqui vai uma dica valiosa: toda vez que você não conseguir acabar com alguma coisa, faça um esforço para aceitar e olhar de uma perspectiva diferente.
Isso significa dizer que você pode perceber o preconceito como um subterfúgio (credo, nem sei o que isso significa) da natureza, que tem ou teve o seu valor em nosso processo evolutivo. Com isso, não iremos negar as informações que a nossa experiência está nos transmitindo, mas sim, lançar um olhar consciente sobre elas que compreende os seus motivos de ser, e utilizá-las com sabedoria.
O preconceito pode evitar que você se meta em enrascadas, como também pode tornar a sua convivência um caos, repleto de comentários maldosos e injustos, originários de uma narrativa que criamos para fundamentar o nosso lado instintivo.
Antes mesmo de pensar e agir com base nele, depois do que compreendemos por aqui, você pode desenvolver um olhar consciente sobre os seus pensamentos e quando algum comentário maldoso, geralmente relacionado a algo novo ou diferente dos nossos costumes, surgir, observe ele mentalmente e se questione se você não está empregando o preconceito de maneira equivocada e até mesmo machucando ou ferindo alguém com isso, de forma descaradamente injusta, ou seja, sem realmente conhecer.
Agora vem a parte difícil, que pode ser resumida como a busca pelo equilíbrio.
Isso significa dizer que você não vai sair por aí confiando em todo mundo e nem mesmo vai ignorar o seu lado mais instintivo. Há situações de grandes ameaças que precisaremos pensar pouco e fazer o que o nosso corpo está mandando, mas, elas são raras; e infinitamente desproporcionais a forma como utilizamos o preconceito em nosso dia-a-dia. Portanto, aos poucos, busque encontrar oportunidades de dar uma chance para escutar e buscar compreender as pessoas, outras culturas, escolhas e tudo mais diferente que em um primeiro momento possa lhe causar algum desconforto.
Eu preciso te avisar que em função desse exercício, poderemos nos machucar de vez em quando, poderemos até mesmo validar a nossa experiência passada e ouvir da nossa própria cabeça “viu só, eu te avisei para não confiar nele”. Mas, em troca de algumas ciladas, acumulamos aprendizado, potencializaremos o nosso autoconhecimento, em busca de um exercício constante de equilíbrio entre o nosso lado instintivo e o nosso lado racional.
A parte nobre de tudo isso, é que minimizamos o impacto negativo que uma forma preconceituosa de agir tem sobre os outros. Ampliamos a nossa visão de mundo, favorecendo a nossa criatividade, passamos a nos sentir menos ameaçados e mais conectados, novas amizades irão surgir, além do verdadeiro respeito.
Se isso não for o suficiente, já temos estudos comprovando que um grupo diversificado, diferente, composto por diferentes gêneros, inclusive, de etnias distintas, possui mais efetividade no gerenciamento dos problemas e na criação de soluções inovadoras. Por quê? Porque o diferente nos faz olhar para além de nosso umbigo, além de nossa visão limitada de mundo e com isso conseguimos atingir públicos que não atingiríamos se o nosso grupo fosse composto de pessoas que agem e pensam de modo muito semelhante.
A Filosofa Marta Nussbaum em seu livro “Educação sem fins lucrativos” aborda muito bem a questão do diferente, e orienta que exercitamos a nossa consciência além da coragem, a fim de que tenhamos abertura suficiente para conhecer o diferente e se familiarizar com ele, como uma das principais estratégias para superar o preconceito nocivo. Ela ainda sugere o teatro como uma das principais ferramentas, justamente, pois, ao assumir um papel, e se colocar no lugar de determinada pessoa, passamos a olhar o outro com menos julgamento e mais compreensão e acolhimento.
O grande dilema do homem é não empobrecer a autocrítica e saber evitar o egocentrismo intelectual.
Não é o exercício de profissões (aparentemente) eruditas, nem o privilégio de usufruir de titulações acadêmicas elevadas (ou cargos), que asseguram a um indivíduo o grau de intelectual. Tampouco servem os estereótipos dos bancos escolares (óculos fundo de garrafa e ares de c.d.f.). E muito menos as definições dicionarizadas: “pessoa que tem gosto predominante ou inclinação pelas coisas do espírito, da inteligência”.
Em tempos de criticismo à intelectualidade brasileira, cabe a indagação: afinal, que é um intelectual? Quem é esse raro espécime?
Talvez só não menos raro que um Oryx leucoryx (antílope do deserto que inspirou o mito do unicórnio e que se tornou virtualmente extinto no começo dos anos 1960).
Não sou eu quem afirma, e sim Edgar Morin (em Meus Demônios), que um indivíduo só se torna um intelectual a partir do momento em que é capaz de tratar, de maneira não especializada e além do seu campo profissional restrito, por meio de ensaios (gênero híbrido entre filosofia, literatura, jornalismo e sociologia), textos em revistas ou artigos de opinião em jornais, dos problemas humanos, morais, filosóficos e políticos.
Ou seja: os rótulos de “professor”, “pesquisador”, “sociólogo”, “cientista político”, “escritor”, “crítico literário”, “juiz de direito”, “procurador”, “advogado”, “médico”, etc., que costumam estar apensos aos nomes de pessoas, geralmente acompanhados de titulações acadêmicas adicionais, não dizem absolutamente nada quanto ao exercício da intelectualidade. Dizem meramente o que representam: o exercício de funções. Há que superar a profissão nas ideias, para alguém ser merecedor da designação de intelectual.
A missão do intelectual é trazer à tona reflexões sobre o mundo, a vida, o ser humano e a sociedade de modo geral. Servindo quase como uma espécie de consciência da humanidade (mas sem exageros).
O seu principal papel é combater as forças que prejudicam a reflexão, a análise crítica dos fatos e levam ao erro. E a grande ameaça ao exercício da intelectualidade é a especialização, o tecnicismo e a profissionalização (também muito necessários), que não raro, quando fora dos seus domínios, grassam na cabeça de técnicos e cientistas não mais que ideias vazias e superficiais, em se tratando de pensar abstratamente a sociedade (especialmente no diagnóstico político).
Mas, o pior de tudo é o espírito de corpo que costuma reinar absoluto no seio das disciplinas científicas, em que o especialista (ou pretenso) se julga proprietário do domínio (físico, técnico, ético e cultural), acreditando ocupar o centro do mundo, e passando a atacar aqueles que imagina como competidores, à semelhança do instinto territorial dos animais irracionais. Sintetiza assim o mito do perseguidor-perseguido.
Ninguém ignora que há também a casta dos intelectuais, cuja corporação, em nome do espírito de grupo, costuma manifestar o seu próprio conformismo, defendendo idéias ou fatos que, em essência, podem não ser totalmente defensáveis. Existe neste caso uma competição não-confessa em busca da glória e do reconhecimento dos pares, uma espécie de obsessão pela admiração da crítica, que, a exemplo da seleção darwiniana, tende a reduzir a biodiversidade intelectual.
Há ainda aqueles que, na dependência do sistema de produção cultural vigente, professam apenas ideias de consumo de massa. Ou os que se julgam o soberano juiz de todas as coisas, não prestando atenção nos discursos alheios ou sendo incapazes de ouvir um argumento sem deformá-lo, considerando ignorantes todos os que não possuem a sua cultura. Portanto, não se trata, de maneira alguma, de uma comunidade que esteja imune a críticas (e a erros também). Acima de tudo, porque é indiscutível que o erro é o risco permanente do conhecimento e do pensamento.
O grande dilema do homem é não empobrecer a autocrítica e saber evitar o egocentrismo intelectual.
Eu, por exemplo, tenho muito claras minhas carências intelectuais. Como oriundo das ciências agrárias, nas quais, sem que muitos (e importantes atores) se dêem conta, triunfou (e insiste em persistir) o pensamento do paradigma científico positivista, cotidianamente, luto para “matar” Auguste Comte.
Não havia até então me dado conta: meu pai era um valente! Que façanha difícil a dele. Sim, meu pai era um valente!
Para mim, quando menino, meu tio João era um valente. Já adulto, ao contar as façanhas que a mim justificavam o título que outorgara a ele, surpreendi-me ao incluir o tango.
Era valente por tomar mate fervendo, por dormir com revólver embaixo do travesseiro, por ser indigenista, por ter tido um negócio que o obrigava a dirigir um moderno caminhão em altíssima velocidade, ida e volta São Paulo/Buenos Aires.
E qual era o vínculo dele com o tango e o do tango com a valentia?
Bem, diziam que tio João dançava tango como um argentino e que tinha um caso com uma dançarina de Buenos Aires. Lembrei que na minha infância o tango era coisa muito séria, o escutávamos nas ondas curtas das rádios portenhas, e entendi um pouco mais ao ler Borges explicar a missão do tango: “Dar aos argentinos a certeza de terem sido valentes, de terem já cumprido com as exigências da valentia e da honra”.
Já com meu pai, Wolmar Salton, a surpresa que tive foi outra.
Não o via como valente. Simplesmente não o avaliava nesse quesito. Mas, numa noite em que eu, menino de uns oito ou nove anos, assisti assustado a meus familiares próximos e não tão próximos em desavença, fui levado a avaliá-lo. Parecia que todos tinham perdido a razão: acusações gritadas, choros raivosos… Tentei me desangustiar indo a uma janela. A noite era muito escura. Felizmente, como na foto de Jussara Gomez, algumas luzes (ou lucidezes) surgiram em meio ao tumulto.
Meu pai. Sim, meu pai manteve-se calmo e sereno. Ouviu a todos e, com poucas palavras (e acredito hoje que mais com sua postura), conseguiu que o ambiente sossegasse. A paz voltou, todos foram para seus cantos e com eles o meu medo. Como se luzes tivessem acendido na escuridão.
Puxa! Como ele conseguiu não se deixar abalar e conseguiu manter-se equilibrado? Não vacilou em momento algum, apenas algumas vezes assobiou baixinho. Fiquei impressionado ao perceber nele uma fortaleza, um homem “homem”!
Não havia até então me dado conta: meu pai era um valente! Que façanha difícil a dele. Sim, meu pai era um valente! Só quando adulto consegui definir sua valentia. E achei-a – até hoje acho – a de maior valor. Ele era valente de alma!
Rubens Mário dos Santos Franken, advogado e professor lança e apresenta dois importantes livros: Problemas emergentes, Soluções juridicas, Direito & Filosofia e Família Franken: histórias em dois continentes.
Conhecimentos sobre o autor:
Rubens Mário dos Santos Franken, Advogado pós-graduado em Direito Contemporâneo do Trabalho e Processo do Trabalho (UPF), Especialista em Direitos Humanos (IFIBE), professor licenciado em Filosofia e Sociologia (UPF). Foi um dos criadores e atuou do Balcão do Trabalhador da UPF. Foi Diretor Administrativo e Financeiro da Leão XIII, por 26 anos. Presidiu por duas gestões o Conselho Municipal de Assistencial Social CMAS de Passo Fundo.
Foi Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Passo Fundo. É pesquisador e escritor. Atualmente vive no Balneário Cassino, em Rio Grande – RS.
O livro é uma coletânea de obras do autor composta por 5 artigos.
O primeiro artigo trata de direito material e processual do trabalho, NO TEMA: “Discriminação no ambiente doe trabalho e a prova diabólica, nas despedidas discriminatórias. O segundo trata do “Transconstitucionalismo: uma reflexão sobre a internacionalização dos direitos fundamentais / direitos humanos”, assim como define Marcelo Neves, em suas obras.
O terceiro é “Robert Alexy e a máxima da proporcionalidade no julgamento do HC 108872 pelo STF.” Demonstrando a falácia do uso da máxima da proporcionalidade. O quarto é “A afirmação dos Direitos Humanos através da Justiça Restaurativa,” que traz a questão da justiça restaurativa e sua intenção de não judicialização de pequenos problemas que sobrecarregam a justiça e que podem ter uma solução mais rápida e pacifica, através da JR.
E, por fim, o atualíssimo tema da jurisdição constitucional e a homossexualidade, através do artigo “Jurisdição Constitucional brasileira: homoafetividade e cidadania”. As análises dispostas na obra, evidenciam uma preocupação central no pensamento do autor, qual seja, o conteúdo dos Direitos Humanos e o seu embate histórico contra a barbárie.
Família Franken: histórias em dois continentes
As curiosidades do autor, transformaram-se em pesquisa e depois em um livro. Com o intuito de pesquisar sobre o sobrenome alemão Franken, a imigração alemã no Brasil e a vinda de sua família da Alemanha para o Brasil, levou o autor a pesquisar no Brasil e na Alemanha em diversas fontes.
A história da vinda do tronco familiar para o Brasil, descortinou a amizade entre o empresário alemão Alfred Krupp e o imperador Brasileiro Pedro II. Assim, a família imperial brasileira entra na história da família Franken e o autor aproveitou para escrever também sobre o II império e a sua figura principal: o Imperador Pedro de Alcântara.
A segunda parte é toda dedicada para as pesquisas feitas sobre o sobrenome Franken.
Na terceira parte, conta pequenas histórias dos Franken e seus descendentes já no Brasil. Para que houvesse uma integração maior entre os membros da família, abriu espaço para todos os seus membros, interessados em identificar-se com nome e fotos.
O livro quebra o paradigma da figura do imigrante europeu semianalfabeto que vinha para o Brasil, fugindo da fome e em busca de terras para cultivar.
Visita à Academia PassoFundense de Letras
No dia 13 de maio de 2023, das 11 às 11:45 hs, Rubens Mário dos Santos Franken fará uma visita às dependências da APLetras para a apresentação de seus livros para os acadêmicos e acadêmicas, bem como para pessoas convidadas que estejam presentes.
Para quem vive e convive com o cotidiano da escola sabe o quanto essa condição de refém é prejudicial à saúde e ao bem estar do professor. Não se faz educação de qualidade sem que o professor tenha condições dignas de exercer seu trabalho.
Em tempos de crise na educação, de ataque às escolas, de aulas remotas, de obscurantismo tomando conta das redes sociais, dos discursos de ódio contra pessoas que pensam diferente, na eminência de um novo surto de doenças consideradas extintas, a identidade e importância do professor se faz sentir com toda força intensidade.
O professor é um sujeito social milenar que precisa ser compreendido dentro dos diversos tempos e espaços que ocupa. Não há dúvida de sua importância histórica, de seu papel na consolidação de uma sociedade democrática e de sua relevância na formação das novas gerações.
A experiência traumática da pandemia vivida recentemente, reacendeu um debate fundamental sobre o papel do professor nos dias atuais. Pais que defendiam educação domiciliar ou homeschooling para ficar numa expressão americanizada, entusiastas da Educação à Distância, pessoas e que aplaudiram propostas de políticos que almejam transformar tudo em educação a distância, com a recente experiência da pandemia se sentem retraídos, desconfortáveis e se dão conta que a escola presencial e o professor são imprescindíveis.
Retomei recentemente a leitura do livro O professor refém (Editora Record, 2006), da filósofa e educadora carioca Tania Zagury. Trata-se da publicação de uma importante pesquisa realizada por Zagury com 1.172 professores de educação básica em escolas públicas e privadas de todo o país. Dentre as perguntas de pesquisa exploradas por Zagury destacam-se as seguintes: o que pensam os professores que atuam com nossos filhos na salas de aula? Quais são suas maiores dificuldades? Como veem a educação que os pais dão hoje às crianças? Que avaliação fazem das recentes mudanças educacionais?
A pauta desenvolvida por Zagury no livro não é pequena – progressão automática, (in) disciplina, dificuldades em sala de aula, temas transversais, avaliação, recuperação paralela, condições de trabalho -, enfim, todos os elementos que habitam – e muitas vezes atormentam – o cotidiano dos professores. Os professores que tiverem a possibilidade de ler a pesquisa sistematizada no livro irão reconhecer sua própria vida na maior parte das respostas compiladas pela pesquisadora.
Mas afinal, de quem o professor hoje é refém?
De forma resumida, a partir da pesquisa realizada, Tânia Zagury responde: refém da má qualidade de ensino que ele mesmo teve; refém do tempo que necessita, mas de que não dispõe; refém das pressões internas que sofre do sistema; refém da própria consciência, que lhe revela sua impotência; refém dos alunos, que o enfrentam em muitos casos; refém da família, que perdeu a autoridade sobre os filhos; refém da sociedade, que surpreende professores e gestores com medidas cautelares, mandados de segurança e processos …
Apesar de ser uma pesquisa realizada há quase vinte anos, sua atualidade salta aos olhos.
Gostaria de acrescentar alguns itens à lista compilada por Zagury: o professor é refém de um salário cada vem mais reduzido que o obriga a uma sobrecarga de trabalho para garantir sua subsistência; refém da cegueira de certos políticos que tratam a educação como prioridade apenas no palanque eleitoral, mas que esquecem da educação no dia seguinte das eleições; é refém de certos pais ignorantes que veem a escola como a creche gratuita que cuida de seus filhos durante boa parte da semana e principalmente agora em tempos de pandemia; refém da falta de esperança para projetar um futuro melhor de autorealização profissional; refém de uma sociedade consumista que acredita que a função da escola é instrumentalizar pessoas para o trabalho e preparar cidadãos para serem consumistas alienados.
Para quem vive e convive com o cotidiano da escola sabe o quanto essa condição de refém é prejudicial à saúde e ao bem estar do professor. Não se faz educação de qualidade sem que o professor tenha condições dignas de exercer seu trabalho.
A condição de refém faz com que o professor se torne vítima do medo, da insegurança, da frustração, da falta de perspectivas.
Pesquisas mostram que nossos professores estão adoecendo, que nossos jovens não querem ser professores e que o futuro educacional está ameaçado. Se é correto o dito popular de que “a grandeza de uma nação se mede para qualidade da educação do seu povo”, então teremos muito a lamentar num futuro próximo se continuarmos mantendo nossos professores reféns.
Valorizar o trabalho do professor, reconhecer sua importância, participar das atividades da escola, ser uma presença ativa na educação dos filhos, conhecer a forma como os professores realizam o seu trabalho, tornar a educação dos filhos o centro de nossa atenção são alguns indicativos para que a educação ocupe o lugar que ela merece no mundo em que vivemos. Leia mais: https://www.neipies.com/quanto-vale-um-professor/