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Não desista Rubes

Na trama da vida e na complexidade do nosso tempo, perder ou ganhar, são valores vazios e desprovidos de seu significado essencial.

Estava pensando em você Rubes, quando ouvi a expressão que falava assim: ‘um sino não é um sino sem você tocá-lo’.  Então pensei: um amigo não é um amigo sem se mostrar amigo.  Escrever é sempre o melhor caminho para se expor o que se pensa e pensar com os amigos.

O seu Nadir sempre fala de você, com aquele carinho típico. No entanto, quando apresentei o projeto das caixas sustentáveis, lembra, percebi ali o desânimo, dúvidas, e uma postura de incredulidade frente ao convite. Não que não estivesse agradecido, sem dúvidas.

Olha Rubes, não se preocupe, porque era apenas uma oportunidade.  E elas surgem todos os dias e nem sempre são as melhores para nós.  Às vezes, são convites menores e, ao invés de aceitarmos, recusamos, para em seguida, vermos nelas um livramento. Quantas vezes!

Você não é obrigado a viver como que se perguntando quais as oportunidades em que agarrou e quais as que perdeu.  E nem deve se culpar pelas que sumiram, e que talvez fossem boas, talvez não.  Nossa carreira não é muito longa e, quando acordamos, estamos em um estágio em que parece não haver retorno possível.

Mas isso é só meia verdade.  Sempre há um retorno! Nossos recomeços podem ser ilimitados, nosso tempo nunca acaba, não enquanto estivermos respirando.  Acaba, um dia, quando nós mesmos o damos por encerrado.  Podemos recomeçar, reaver o que nós achamos que perdemos, a todo instante.  Se é que perdemos alguma coisa. 

Dizem que bens, dinheiro, pessoas, se partiram e nos deixaram, é porque não nos pertenciam e nunca deveriam ter permanecido conosco. O mesmo vale para derrotas, que podem ser apenas o resultado de falsas batalhas.

Nós somente perdemos o que não nos importou, mesmo que distraídos.  Deixamos fugir o que em nossa escala de valores, mais tarde, sequer lembramos.  E somente se compararmos com o que não temos! Não podemos falar em perdas, que, em essência, nunca foram nossas e nem deveriam ficar ao nosso lado.

Ficamos muito tempo com os olhos no passado e não fazemos a conta exata do quanto nos resta.  Porque a nossa idade real é aquela em que ainda temos para viver e não a que já se consumiu.

O que de fato perdemos?  Vamos à Bíblia:  Deus ‘perdeu’ seu filho para salvar a humanidade.  Na verdade, não o perdeu, antes, ganhou milhares de pessoas que o amam até a morte.  Daí que há salvação para todos. E João lembrou que quem ama sua vida vai perdê-la e quem a perde, ganhará. Então perdemos o quê mesmo?

Família, amigos, pais, irmãos, mais amigos, isso sim, são perdas irreparáveis.  Até na saúde precária podemos viver e sorver a vida, em sua magnífica beleza.

O nosso acúmulo de coisas ao longo de nossa jornada vai se tornando pesado e, na medida em que avançamos, aumenta. Arrastamos nossos troféus para que os outros nos contemplem. Mas o olhar indiferente do vizinho e a poeira, é o que neles restará.

As pessoas acumulam muitas coisas, bens, ativos, dinheiro.  A corrida é grande e uma luta para conquistá-los. Em sua partida, porém, haverá limites à sua bagagem. Esquecem que ao final da pista, poucos quilos caberão em sua mala. Nenhum, talvez.  E então a sua vida passa, em tormentas diárias, de trabalho e ansiedade sem limites. Vencedores, nós os chamamos.

O conceito de perder e ganhar, em nossa sociedade foi banalizado.  Em meus lançamentos recentes, pude certificar.  Ao convidar uma professora para apreciar um livro, justamente sobre aceitação, vimos ali uma heroína, que tem em sua carreira uma vida de doação.  Entretanto, outras pessoas, que sequer apareceram, quem sabe por estarem desligadas do verdadeiro sentido do que seja vitória. Pois é na falta da tolerância, da convivência, da empatia e do respeito mútuos, que ali mesmo nasce a derrota.

Vencedores nesta sociedade, são os que conseguem mostrar em sua aparência, o que têm, o que é mensurável, o que vale para mostrar?  Isso para o olhar do outro e sua admiração e, em seguida, para sua inveja.

Muitos bens e pouco bem.  E o que não vemos, quanto vale? Qual o valor de uma casa vistosa, de um carro de luxo, de uma vida de consumo frente a rotina de uma mulher, que levanta todas as manhãs para cuidar de uma casa de repouso, que acolhe pessoas abandonadas!  Cuida de gente sem valor algum, que não produz mais nada e que nada pode consumir. O que vale mais?

Na trama da vida e na complexidade do nosso tempo, perder ou ganhar, são valores vazios e desprovidos de seu significado essencial.

A questão é que nós já os incorporamos, acreditamos nestas conquistas e, quando as conquistamos, ou mesmo, quando as perdemos, será sobre estes padrões que nos julgamos. E sofremos com isso.

Uma pessoa passa a vida dedicada ao bem, por exemplo, a crescer e ensinar às pessoas ao seu redor, mas muito pouco juntou, sendo depois julgada pelo que conseguiu.  Um homem arrogante e tolo, por outro lado, egocêntrico e incrédulo, é admirado e louvado pelos bens que mostra à sociedade.  Não estamos todos perdidos, sob este ponto de vista?

Somos prisioneiros de valores pelos quais não nascemos para lutar e passamos a vida inteira no seu encalço, para depois reconhecer, que o bem maior é a nossa coleção de amigos e não as ações na bolsa que empilhamos.  Mas aí pode ser tarde demais!

Temos de abandonar nossas perdas, porque em sua maioria trata-se de bens e não da essência para o que viemos aqui. Elas têm de partir, uma vez que não nos pertenciam. Temos de segurar o que nos envolve, o agora, porque o que resta de tempo é o único e verdadeiro tesouro a guardar. E assim sempre aprender.

Desistir? Somente quando a tampa for baixada.  Antes disso, há que se reavaliar, ressignificar, recomeçar, refazer, reconquistar, reencontrar…

Ao Universo e a Deus não há dias ou anos. Há hoje. Nós é que tentamos enganá-los, fatiando o tempo ao nosso interesse, como que negociando dias em troca de anos.  Não dá certo! Vivemos tudo ao mesmo tempo.

A cada manhã em que nos levantamos, não há diferença alguma entre a noite que se foi e o dia que começa.  Tudo é presente.  E o mal que passou não vale mais, a dor de ontem não nos faz mais sentir. Daí que mágoas devem ser abandonadas, esquecidas, derrotas devem ser minimizadas, e um novo foco em valores reais deve ser reestabelecido. É retomar a vida que nos foi emprestada.

Voltando ao sino, Rubes, pense em cada vez que ouví-lo, assim que dobrar, uma perda tem de ser esquecida.

Viva seu recomeço!

Autor: Nelceu Alberto Zanatta, autor do livro “A planta, suas folhas e um sino”. https://www.neipies.com/uma-potente-pegada-por-empatia-em-livro/

Apenas dou aulas

Dar aula é inútil. Só dar aula, então… Hoje em dia espera-se que um professor faça de tudo. Só dar aula não dá lucro. Logo, não agrega valor.

Sou professor. Licenciado em Filosofia. Plenamente. Também sou acadêmico do curso de Letras. Estudei anos e anos para dar aula.

Infelizmente, é o que sei fazer…

Peço perdão por não saber fazer outra coisa. Sei que, ao ensinar sobre Platão, Aristóteles, Nietzsche e Schopenhauer, sou pior que um terrorista. Se eu falar sobre Karl Marx e sua crítica ao capitalismo, então, sou pior que Mao Tsé-Tung e Pinochet…

Dou aulas.

Não sei pregar um prego à parede. Não apenas porque não me preparei para isso, mas também porque não desejo pregar um prego à parede. No fundo, deve haver algo muito errado comigo.

Acontece que, quando jovem, disseram-me que ser professor era uma profissão importante. Tão importante quanto ser um mecânico ou um advogado. Jovem e tolo, eu acreditei.

Agora estou aí, dando aulas…

Como sou formado em Filosofia, uma disciplina inútil por si só, não me dou muito bem com trabalhos manuais em geral.

Posso, por exemplo, apresentar as principais concepções surgidas ao longo da história sobre o que é FELICIDADE. Sabia que existe uma linha, na Filosofia, que estuda isso? Chama-se EUDAIMONIA. Pois é…

A felicidade, porém, também é inútil. Útil, mesmo, é saber pregar um prego.

Dar aula é inútil. Só dar aula, então… Hoje em dia espera-se que um professor faça de tudo. Só dar aula não dá lucro. Logo, não agrega valor.

É por isso que, na educação atual, os governos enchem professores como eu com tarefas burocráticas, com muitos períodos e muitas crianças para atender por sala — porque somos inúteis. É preciso mesmo que inventem algo para fazermos, para justificar o imposto gasto com nossos salários.

A prioridade do trabalho dos professores e professoras deve ser o pedagógico, deve ser a relação com os estudantes, deve ser a exploração dos seus potenciais criativos, o uso de novas tecnologias e ferramentas educacionais e a mediação da construção dos conhecimentos. As quinquilharias da excessiva burocracia na educação só enchem tabelas de relatórios e os olhos dos burocratas que pouco entendem de educação. (Nei Alberto Pies) Leia mais: https://www.neipies.com/estao-matando-a-essencia-da-educacao/

Além de professor, sou escritor. Quer ver ficar pior? Sou poeta. Meu Deus, um professor-filósofo-escritor-poeta!

Não sou apenas inútil. Sou O inútil entre os inúteis…

Melhor eu ir ali, fazer um cursinho técnico, virar coach, aprender algo útil, antes que eu morra de fome. Preciso mesmo criar vergonha na cara.

Afinal, só sei dar aula…

Sou só professor.

E um escritor medíocre.

Autor: Aleixo da Rosa, autor da crônica “O curioso caso dos alunos que preferiram os livros”: https://www.neipies.com/o-curioso-caso-dos-alunos-que-preferiram-os-livros/

Os limites da suportabilidade

Até onde vai nossa capacidade de suportabilidade para tanta dor e violência?

O fotógrafo Kevin Carter, ganhador do Pulitzer de 94 pela fotografia do bebê sudanês famélico no mesmo plano de um abutre, que esperava pela morte do menino para finalmente devorá-lo, acabou se suicidando por não suportar as críticas pela atitude sofrível e desumana: ter optado pelo melhor plano (arte) e não pela vida. 

A relação, neste caso acima citado, parece, foi estabelecida na direção dos limites éticos de um trabalho artístico. Se podemos achar algo belo mesmo que em jogo esteja a representação de um gesto de violência, da fome, da dor. Talvez melhor, se a arte pode prescindir da ética, ou ainda, se o profissionalismo pode prescindir, em determinadas circunstâncias, insinuando-se por dentro de outros marcadores.

Kong Nyong, o bebê sudanês, sobreviveu. Carter pode ter cometido suicídio não apenas pela foto premiada. O próprio Sebastião Salgado, um dos grandes nomes da fotografia mundial, recebe críticas pela repercussão de imagens em que a denúncia não deixa de ser também violência.

Longe de apresentar uma consideração exaurida de fontes e discussões, tenho acompanhado nossa pressa, minha, inclusive, de nos livrarmos das responsabilidades cotidianas. Enquanto escrevo este pequeno artigo, uma ou duas horas de produção, mais de oito pessoas morreram vítimas de violência no país, algo em torno de 110 por dia; 19 adolescentes são assassinados/as a cada 24 horas, outros 123 estupradas/os. Praticamente 33 milhões de pessoas morrem e ou vivem em situação de insegurança alimentar. Brevíssimo histórico das nossas desmemórias.

Até onde vai nossa capacidade de suportabilidade para tanta dor e violência? Sim, é claro que seria impossível uma vida lançada ininterruptamente no abismo da existência, pois precisamos ancorar nossas dores e culpas em repositórios capazes de tornar menos sofrível a gratuidade da vida. Precisamos continuar, apesar de. Contudo, temo que a exposição continuada e contínua aos abusos da desumanidade nos torne insensíveis aos apelos dos que não têm salvaguarda no mundo.

Por quem choramos?  Quais são os cenários cotidianos que são suportados e figuram nas nossas vidas sem que nos provoquem qualquer repulsa ou empatia?

Estudo de Viezzer e Grondin (2018) mostra que a invasão/colonização europeia nas Américas provocou mais de 70 milhões de vítimas entre os povos originários (1500/1900). Nossa história foi construída sobre o sangue de milhões, sem menosprezar a igualmente perversa escravidão a que foram submetidos milhões de negros. O que nos é permitido esquecer? O que devemos lembrar?

Penso, muitas vezes, que a grandeza de um país não se mede pela sua cultura, mas pela história dos seus esquecimentos. E só de lembrar dos nossos esquecimentos cotidianos, um calafrio ganha meu corpo, pois já não sei se posso escrever sobre o que sempre fora insuportável.

Levei anos para entender que a melhor parte de mim é aquela que não se sabe, pois é com ela que posso me propor ao devaneio criativo. O que em mim cria está em aberto, pois é justamente a sinuosidade de uma mesmidade que não está dada que permite que nos lancemos na direção de nós e do mundo, podendo revisitar nosso próprio modo e as implicações da agência criativa. Leia mais: https://www.neipies.com/a-potencia-do-inacabado/

Autora: Marli Silveira 

Da Igreja ao sindicalismo: uma trajetória de escolhas

Revelamos e promovemos, com alegria e muita satisfação, histórias de vida que estão imbricadas com a humanização, seja através da religião ou da educação. O entrevistado desta matéria é professor e sindicalista Altair Follador, da rede municipal de Passo Fundo, RS.

Follador é destes profissionais da educação empenhados e envolvidos com muita intensidade, interesse e responsabilidade, seja pela qualidade da educação escolar, seja pela valorização profissional dos seus colegas professores e professoras, através do CMP Sindicato. Conviver com ele, conhecer sua história e reconhecer o seu trabalho é uma missão e uma tarefa que apreciamos muito neste site.

Esta matéria foi produzida por João Lucas da Silva, estudante de jornalismo da UPF (Universidade de Passo Fundo), gentilmente cedida para publicação neste site.

“Apesar das mudanças, a vocação para ensinar sempre esteve presente. Eram meados da década de 70. Sentado no topo de uma coxilha, o jovem de 13 anos, filho de pequenos agricultores, imaginava como seria o seu futuro. Altair Follador sabia que se continuasse ali não teria outra perspectiva senão casar-se com uma moça da região, “provavelmente polaca”, e seguir a profissão de seu pai.

Cerca de 50 anos depois, um professor, ex-sacerdote e sindicalista. As mãos que diariamente abotoam as tradicionais camisas já encarregaram-se de tudo um pouco. Capinadas de enxada, gesticulações nas homilias de domingo, quadros cheios de conteúdo em sala de aula, além, é claro, do punho cerrado em meio à manifestações.

O terceiro filho de uma família de oito irmãos sabia que estudar até o 5º ano do ensino fundamental não o levaria longe, mas o pai era relutante. “Filho meu não vai pra casa de estranhos (para estudar)”. Entretanto, Altair discordava. “Eu não me conformava com aquilo, eu sempre me imaginei estudando pra além do 5º ano. Não sei por que razão, eu nunca achei que 5º ano era o limite.”

Do interior de Alpestre, município mais setentrional do Rio Grande do Sul, o jovem só pensou em um meio de sair mundo afora. Ir para o seminário. “A família era um bocado religiosa e inclusive gostou da ideia, incentivou e encaminhou os meios pra ir”. A partir daí o itinerário seguiu por Frederico Westphalen, Viamão e Passo Fundo. Mesmo com questionamentos próprios à sua vocação, Altair foi ordenado padre seis meses antes de concluir a formação, por ocasião do jubileu da diocese que fazia parte. “Eu, que estava meio em dúvida, ainda me apressaram. Parecia que tava tudo conspirando”. Ele trabalhou por anos em capelas e paróquias na região de sua terra natal.

Quem vê o professor nas escolas de Passo Fundo nem imagina sua trajetória.

Altair teve a oportunidade de morar em Roma por dois anos e meio, onde trabalhou e fez mestrado. O curso intensivo de italiano e a vida na capital europeia o levaram a aprender a nova língua rapidamente, nada impossível para um descendente de italianos que cresceu ouvindo o dialeto vêneto em casa. Seu percurso diário, na época feito de bicicleta, pode ser considerado invejável por muitos. “Eu fazia um trajeto que passava do lado do Vaticano, depois do lado do Coliseu. O pessoal paga uma fortuna pra vir aqui ver essa construção, eu passo de bicicleta todo dia [ele ri]”.

Na Europa, Altair pôde viajar pelo continente, visitando diversos países e a cidade originária de seus ascendentes. Na comuna de Borso del Grappa ele chegou a conhecer a casa em que seu bisavô havia nascido.

De volta ao Brasil, em 1994, o padre tornou-se professor do instituto que havia cursado teologia. No período, a situação na Igreja era delicada, pois a Teologia da Libertação era contestada pela ala mais conservadora. Altair tinha sido formado no contexto do movimento e concordava com o pensamento de tal. Foi nesta circunstância que sua vida mudou de rumo. O professor reencontrou Andréia, uma moça que havia conhecido durante a graduação, mas que perdeu contato e ficou mais de dez anos sem conversar.

Neste meio tempo, apesar da incerteza paulatina, seguiu sua profissão de fé, mas quando retomou a comunicação com a antiga paixão, não houve dúvidas. Em 2000 ele deixou a Igreja, mudou de emprego e dedicou-se à companheira, com a qual possui três filhos. “Se lá na roça do meu pai eu imaginei o que seria o meu futuro se eu ficava lá, eu voltei a me questionar, o que vai ser da minha maturidade e da minha velhice se eu continuar nessa função.”

O atual sindicalista foi trabalhar como representante comercial e bancário, mas no final das contas retornou para a sala de aula.

Desde 2012 na rede municipal de educação, Altair leciona filosofia e ensino religioso e já passou por diversas escolas, fazendo parte, inclusive, do sindicato de professores.

Participa do Conselho de Representantes praticamente desde o início e em 2018 ingressou na diretoria, sendo, hoje em dia, um dos principais nomes dentro da entidade. Após todos estes anos de trabalho, ele pretende-se aposentar em 2023 com a consciência tranquila. “Mais de uma vez eu encarei uma decisão de dar uma guinada na vida. Pelo menos não me arrependi de nenhuma delas. Eu acho que todas me deram oportunidades que eu não teria.”

Autor: João Lucas da Silva

Fotos: divulgação/redes sociais CMP Sindicato

Pensando com Giordano Bruno

Os condenados de hoje, no entanto, não vão mais para a fogueira, mas se tornam vítimas de outras formas de extermínio tão perversas como as que levaram o pensador italiano a morte.

Conforme atesta meu grande amigo Luiz Carlos Bombassaro (professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos grandes estudiosos do assunto), o pensador italiano Giordano Bruno (1548-1600), foi certamente um dos maiores filósofos da Renascença. Sua biografia e sua obra o qualificam como uma das mentes mais originais e um dos mais importantes criadores de uma nova visão de mundo radicalmente distinta daquela difundida em sua época.

Conhecido como aquele que rompeu com as cadeias que prendiam o ser humano ao mundo fechado, Bruno foi um intelectual muito além de seu tempo, pois em seus escritos foi capaz de fundir filosofia, ciência e literatura e constituiu, dessa forma, uma nova forma de compreender a unidade nas múltiplas manifestações do universo.

Em seu livro Giordano Bruno e a filosofia da renascença, Bombassaro ressalta que para o pensador italiano uma das mais importantes questões filosóficas consistiu em explicar de que forma se realiza a atividade intelectual, como o intelecto humano se move em direção à contemplação da causa, o que move o mundo, como tudo se estabelece. Para ele, o princípio que tudo move é o amor, pois é este sentimento que tudo vincula. Há dois tipos de amor: amor humano e o amor divino. Enquanto o amor humano é vulgar e pode se constituir em uma tirania quando sufoca o outro, o amor divino é o vínculo dos vínculos, a causa do que existe no universo, pois está presente na multiplicidade das coisas, que ao mesmo tempo anseia pelo divino. O amor divino se infunde na alma e no corpo dos seres humanos e é este amor que possibilita a beleza que se traduz em harmonia, consonância e proporcionalidade entre as partes.

Contrariando o pensamento de sua época, Giordano Bruno compreende o universo como um sistema em permanente transformação, no qual todas as coisas são e não são ao mesmo tempo: o frio se torna calor, a água se torna vapor, o dia se torna noite. Tudo está em constante modificação. O universo, portanto, não é uma estrutura hierarquizada na qual o movimento é governado por uma ideia estática que tudo determina. Ao contrário, o Universo seria um todo no qual nada é imóvel, nem mesmo a Terra, como afirmava a antiga religião dos egípcios e o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (astrônomo contemporâneo que também foi condenado a fogueira).

Para Giordano Bruno, o movimento de todas as coisa não seria de ordem mecânica, como se o mundo fosse um jogo de partículas móveis, cujo deslocamento dependeria de um movimento inicial possibilitado por um ser superior. Para o pensador italiano, o movimento é resultante da natureza dos seres vivos, pois todas as coisas possuiriam um princípio anímico, que faz transformarem-se permanentemente.

As ideias de Giordano Bruno contrariavam o sistema teológico-filosófico da época. Este tinha como uma de suas peças básicas a astronomia de Ptolomeu a qual afirmava que a Terra era um ponto imóvel privilegiado (o centro do universo), onde todos os corpos celestes giram ao seu redor. A essa astronomia ptolomaica juntava-se a concepção de que todos os movimentos são imperfeições e constituem transgressões da ordem divina. Por se colocar contra o pensamento dominante, Bruno foi preso, julgado e condenado a morte na fogueira pelo Tribunal da Inquisição. Sua execução aconteceu no dia 17 de fevereiro de 1.600.

Mais de quatrocentos anos nos separam dos acontecimentos preconceituosos que levaram Giordano Bruno a morte na fogueira. Certamente suas ideias foram revolucionárias para o desenvolvimento ciência moderna e amplamente reconhecidas pela humanidade.

No entanto, em pleno século XXI ainda persistem certos preconceitos obscuros que impedem de ver o mundo de forma diferente. Tais preconceitos negam os conhecimentos confirmados pela ciência estão produzindo os tempos sombrios, tão bem denunciados pela pensadora Hannah Arendt.

Os condenados de hoje, no entanto, não vão mais para a fogueira, mas se tornam vítimas de outras formas de extermínio tão perversas como as que levaram o pensador italiano a morte.

Autor: Dr. Altair Alberto Fávero

O curioso caso dos alunos que preferiram os livros

Quando se fala em educação, o nosso tesouro — onde está?

A todo instante coisas incríveis acontecem. Para percebê-las, porém, é preciso olhar de viés. Quando enxergamos assim, percebemos no movimento das pernas de uma formiga o inevitável mistério das coisas, belo e assustador. Vislumbramos a verdade escondida pelo verniz, às vezes até bonito, mas frágil e insustentável.

O breve caso que contarei ocorreu há poucos dias, em uma escola na qual dou aula.

Nesse colégio, não faz muito, foi instalada uma daquelas salas com impressora 3D, cortadora a laser e o escambau.

— Tecnologia de ponta, coisa do futuro — disseram os políticos.

De tempos em tempos, surge uma nova mania na educação. Uma febre sazonal. Toda vez promete-se muito e cumpre-se pouco. E dá-lhe estripulias para render matérias na imprensa, sites e redes sociais. Afinal, uma bela foto no Instagram seguida de centenas de curtidas basta para comemorarmos nossa chegada ao futuro.

As salas makers, suspeito, são a moda da vez. Assim mesmo, em inglês, para dar pompa às circunstâncias, à espetacularização do momento.

Comenta-se muito, agora, sobre tecnologia e inclusão digital. Enquanto isso, na realidade, a maioria dos estudantes amarga desempenhos ruins em disciplinas básicas, como Português e Matemática.

O objetivo é modernizar a qualquer custo! Isso me lembra, aliás, o governo de Juscelino Kubitschek e seu conhecido slogan (e uso slogan porque, hoje em dia, usar palavras em inglês é cult e cool): 50 anos em 5! A história se repete, é cíclica. No Brasil, então, isso acontece em várias e várias camadas, vários e vários ciclos.

Nessa escola que mencionei foi montada a dita sala maker. Como o cômodo era grande, no mesmo ambiente foram colocados os livros da biblioteca. Livros impressos, tradicionais, em papel, por incrível que pareça. Com lombadas, cheiros e folhas amareladas.

Muitos dos livros possuíam, realmente, folhas amareladas, já que, em comparação com os equipamentos novíssimos da era digital, a biblioteca, coitada, era pobre, pobre… Para cuidar dos equipamentos, havia funcionários. Já para organizar a biblioteca… Ela que se vire!

Livros impressos, pois, coisas velhas! Nem um pouco cool. Muitos, ainda, eram de literatura brasileira, não inglesa e, muito menos, americana. Quem leria aquilo?

A biblioteca tinha poucos móveis. Os livros estavam empilhados em pequenas prateleiras e em uma grande mesa no centro da sala.

Ao olhar para as obras, lembrei-me do texto bíblico de Mateus:

Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam:

Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. (Mt 6, 19-20)

Um dia todos aqueles livros virariam pó!

A impressora 3D, pomposa, de certo, olhava para os exemplares e sentia pena. Caso pudesse falar, talvez dissesse:

— Ora, mas que belas velharias!

Ao levar alunos ao local, entretanto, surpreendi-me. Eles não dispensaram muita atenção aos novíssimos e caríssimos equipamentos tecnológicos.

Curiosamente e sem convite eles foram aos livros… Quando dei por mim, estavam folheando aquelas antiguidades, dadas às traças. Tocaram, olharam, sentiram na pele e através do olfato, e perguntaram se podiam levar livros para casa.

Não sei se há bibliotecárias na rede municipal de ensino. Ali, pelo menos, não há. Os professores, no entanto, dão um jeito. Pegam um caderno. Anotam o nome do aluno e do livro retirado. Assim, de improviso, na boa vontade e sem pompa e tudo em português.

Então, com meu olhar de viés, entendi.

É verdade que os livros fazem parte deste mundo, onde a traça e a ferrugem tudo consomem. Porém, quando lemos um livro, o levamos para o coração, onde nem a traça nem a ferrugem consomem. Ganhamos, assim, um tesouro imperecível, para toda a vida. Talvez até mesmo para outra vida. 

E, citando mais uma vez o bom e velho Cristo, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.

Quando se fala em educação, o nosso tesouro — onde está?

E a portentosa sala maker e sua impressora 3D: levam-nos para onde?

A aplicação prática do conhecimento é o final de um processo iniciado muito antes. A utilidade é quando o rio encontra o mar, mas, para haver um rio, é preciso haver uma fonte. Essa fonte existe na atmosfera da inutilidade, onde a água não tem outro objetivo senão o de, simplesmente, jorrar. Leia mais: https://www.neipies.com/escravos-da-utilidade/

Autor: Aleixo da Rosa

A potência do inacabado

Ler, incluiria o escrever, são práticas ou exercícios que permitem ao indivíduo humano transitar sobre si-mesmo e no deslocamento sobre si, poder imaginar-se em outras paragens poéticas e humanas.

Creio que todas as pessoas concordam, mesmo as opiniões não transitadas por dentro das academias, que a leitura tem um papel importantíssimo não apenas na/para a formação humana, quanto na formatividade inerente ao processo psicológico que nos mobiliza na direção de.

Há um pressuposto na matriz epistemológica que orienta a comunidade intelectual, que é o fato do indivíduo humano poder se formar e se autoformar. Sem entrar em maiores discussões se toda a leitura é ou não capaz de contribuir no processo formativo e, por optar momentaneamente pelo presente modo de acesso à discussão, embora reconhecendo as implicações das tamanhas desigualdades que pautam a vida da população brasileira, recorro ao papel da literatura no que concerne ao desenvolvimento integral do ser humano.

Apresento por ora, a condição muito própria da literatura, que é a de lançar o indivíduo no aberto da existência. Aristóteles já havia nos dito que a “literatura ( no caso, a tragédia) é mais filosófica do que a história”, porque enquanto esta aborda o que aconteceu, aquela se desdobra na direção do possível. Neste sentido, açambarca a todos dentro de uma generalidade circunscrita pelas bases nas quais somos tocados pela proximidade existencial.

Ler, incluiria o escrever, são práticas ou exercícios que permitem ao indivíduo humano transitar sobre si-mesmo e no deslocamento sobre si, poder imaginar-se em outras paragens poéticas e humanas.

A experiência literária (ler, escrever, ouvir) implica um dos modos de “se segurar” o tempo, retesando um tipo de fruição que pode garantir a liberdade para se começar, suspendendo o passado e as determinações. Considero enormemente a liberdade trazida pela envergadura teórica de Beauvoir e a dificuldade de separá-la da igualdade (e das condições materiais), confesso, contudo, que há uma performance genuína colocada em jogo nas experiências da literatura, aderentes à pendularidade ontológica humana.

Também, mobiliza outro aspecto muito importante, que é a possibilidade de se poder imaginar e ou se colocar nas proximidades dos outros. E é justamente o fato de sermos implicados por uma transitoriedade que nos permite repactuar nossa própria vida com a vida dos outros, sem ela, viveríamos uma linearidade sem espessura existencial.

Sempre achei que Clarice Lispector tinha razão quando dizia que sabia muito pouco, mas tinha a seu favor tudo o que não sabia. No caso, ausentam-se os preconceitos quando se ingressa em campos pouco ou nada conhecidos. É como estar liberado da carga de determinações, medidas e sentidos ditados pelas incursões partilháveis cotidianamente.

Levei anos para entender que a melhor parte de mim é aquela que não se sabe, pois é com ela que posso me propor ao devaneio criativo. O que em mim cria está em aberto, pois é justamente a sinuosidade de uma mesmidade que não está dada que permite que nos lancemos na direção de nós e do mundo, podendo revisitar nosso próprio modo e as implicações da agência criativa.

Há, portanto, uma relação muito estreita entre a literatura e a potência do inacabado, um sem-lugar que nos devolve sempre constrangidos de não continuar tentando completar-se, pois há um desejo de querer-se por inteiro, mesmo que saibamos que tal completude será experimentada como antecipação de uma chegada malograda.

Concordo com Bachelard, para quem “os poetas nos convencem que todos os nossos devaneios de criança merecem ser recomeçados”, pois inscrevo a pronúncia da literatura em uma região advertida da palavra final, endereçada aos inacabamentos que arrancam outros modos possíveis de apresentação, ali mesmo onde parecia haver apenas destroços, rearticulam-se sentidos em lide agônica com Cronos.

Literatura é mobilizadora de mundos, de sentidos e possibilidades. Reconheço que há limites, que há diferenças radicais inscritas nas distintas culturas, como e fundamentalmente, modos de acesso diferenciados e que implicam a experiência social. Contudo, por força da humanidade que cultivo, preciso acreditar que podemos tentar e construir caminhos mais solidários também por obra da poesia e da Literatura. Leia mais: https://www.neipies.com/uma-mulher-poeta-na-academia-rio-grandense-de-letras/


Autora: Marli Silveira

Acadêmica, Academia Rio-Grandense de Letras.

Uma obra sobre poesias e guerra

Na noite da última quinta-feira, 15 de junho, no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade da Universidade de Passo Fundo, aconteceu o lançamento da obra “O jogo ficcional entre o real e o imaginário: a guerra em A rosa do povo e Poesia liberdade”, do autor Tiago Miguel Stieven com Prefácio da Professora Doutora Ivânia Campigotto Aquino.

Tiago Miguel Stieven, além de Professor da Rede Municipal de Ensino, é pesquisador e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF na linha de pesquisa Produção e Recepção do Texto Literário.

Na oportunidade, a Coordenadora do PPGL/UPF, Professora Doutora Claudia Stumpf Toldo Oudeste, destacou a importância dessa produção, que é fruto de pesquisas realizadas durante o curso de mestrado no referido Programa de Pós-Graduação. Além disso, enfatizou que esses momentos fazem a diferença na formação dos pesquisadores, já que possibilitam a divulgação do que está sendo produzido, o compartilhamento de estudos e práticas na área de Letras.

O autor destacou que a importância da obra reside no fato de que ela traz à tona a relevância da literatura para compreender o acontecimento histórico da Segunda Guerra Mundial, eis que possibilita o fomento de reflexões por meio de diferentes perspectivas ao desvelar os universos poéticos dos poetas brasileiros Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, quando estes abordam a temática da guerra em seus poemas. Assim, o autor, ao valer-se da teoria literária, realiza a análise de poemas desses autores que têm por temática a Segunda Guerra, demonstrando que a obra dos poetas se apresenta como um gesto de contraposição aos esquecimentos e que ambos oferecem, sempre, a poesia como meio de expressão.

Tiago, por meio da obra, possibilita uma visão reflexiva e profunda acerca da importância e do papel desempenhado pela poesia como um modo de resistência aos tempos sombrios da guerra, além de evidenciar que a literatura permite um exercício reflexivo que, certamente, os textos teóricos que abordam essa mesma temática não consigam desempenhar com a mesma intensidade que é característica do texto literário, especialmente, da poesia.

A literatura nos possibilita que nos tornemos sempre outros e, como, nos é afirmado no prefácio da obra “a poesia, forma nobre de palavra, é, mais do que outras manifestações de linguagem o são, a sensibilidade da vida humana”.

Lançamento da obra aos amigos e comunidade

Na data de 24 de junho de 2023, das 15h às 18h30min, ocorreu na Livraria Delta da Paissandu, na cidade de Passo Fundo, o lançamento presencial da obra. Na oportunidade, o autor recebeu inúmeros amigos, familiares, professores, amigos, autoridades, estudantes e a comunidade em geral, os quais puderam ter contato com a obra, além de adquiri seu exemplar. O pesquisador, nessa data, referindo-se à obra afirnou que “o desejo é o de que leitura da obra possa contribuir para um conhecimento mais humanizado. Sabe-se que as máquinas e todo o aparato tecnológico são importantes frente a sociedade da qual fazemos parte, porém, é somente o humano que pode conferir sentido, que pode atribuir significado”.

Para conhecimento dos leitores deste site, segue um trecho do prefácio da obra, escrito pela professora Doutora Ivânia Campigotto Aquino.

“A partir dos poemas, este livro nos provoca com uma pergunta sobre como essa poesia é pensada para representar a guerra, qual subjetividade molda a temática e que elementos definem a construção, ou seja, a forma das produções poéticas. Aqui, entendemos a resposta, encontrada por Tiago, ao exprimir as ideias dos dois poetas e a linguagem própria que é requerida a cada um para dizer a realidade.  Esse dizer se pronuncia nos poemas escolhidos para o estudo, os quais têm a força de uma época mundial que despertou o olhar da compaixão ao ser humano por parte da literatura.

Tiago dedica-se à nobre tarefa de explicar uma poesia dolorosa e angustiante na qual morte e vida latejam, com tema urgente. Invencionando imagens da Segunda Guerra Mundial, os dois poetas estudados empenham-se na entrega da poesia engajada, a qual se constitui como meio de reflexão sobre a experiência política da guerra e como elemento de transfiguração do real em busca da formação da consciência social. São poesias necessárias, são leituras incontornáveis a quem dá importância a uma reflexão sobre a sociedade. E a poesia nos revela a ideia sempre vigente de acreditar no ser humano.

A condição humana tratada nas poesias é, sem dúvida, o conteúdo maior das análises que o autor implementa em seu estudo. A essa condição ele confere a complexidade do viver, que, sim, integra a destruição e morte pela guerra, mas também a esperança de um mundo novo pela resistência e construção. Percebe tanto em Drummond quanto em Mendes as instâncias de moral, humanismo e ideologia que atribuem sentidos aos fatos decorrentes da barbárie, bem como a urgência de se sensibilizar com a dor dos outros. Isso não somente em relação à Segunda Guerra Mundial, mas também em âmbito nacional, uma vez que era preciso vencer nossas próprias guerras, num Estado Novo que submetia a população às agruras governamentais.

Comprometo-me com a recomendação de O jogo ficcional entre o real e o imaginário: a guerra em A rosa do povo e Poesia liberdade, de Tiago Miguel Stieven, com tranquilidade. Honra-me ser parte do livro por meio deste texto inicial que pretende apresentar o estudo que se desenha nas páginas que seguem. Tiago é um estudioso inquieto, um pesquisador insistente e dedicado que vem construindo uma sólida carreira no sistema do ensino superior. Que orgulho participar da sua formação!”

Assista também live produzida pela editora Dialética com o autor: https://youtu.be/FPFdksyS_ks?t=108

O que aprendemos com as crianças que não aprendem

Nós devemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem a nos respeitar, a dar um tempo para as exigência do dia a dia, a pararmos um pouco e refletirmos sobre o que estamos fazendo conosco e com quem amamos e se estamos no caminho mais curto para chegarmos à felicidade.

Inicio o texto de hoje com o poema de José Paulo Paes intitulado “Convite” que nos diz nos seus versos “… As palavras não: / quanto mais se brinca / com elas mais novas ficam…” É preciso aprender com as crianças que não aprendem que somos humanos e não robôs, cada um tem o seu tempo de ser e estar entre as palavras e os números.

Tendemos a ter vergonha das nossas crianças quando elas tiram notas baixas na escola, são reprovadas ou somos chamados para conversar com a professora porque elas não estão se saindo bem nas disciplinas. Com isso, o nosso primeiro impulso é castigar a criança.

Castigo resolve alguma coisa? Há quem diga que foi castigado na infância e cresceu uma pessoa bondosa e trabalhadora. Isso era em outros tempos, as coisas mudaram bastante. As crianças não podem ser castigadas todas às vezes que fugirem do padrão.

Sua criança não precisa a todo instante mostrar que ela é a melhor em tudo. Isso é muita cobrança. Deixe-a livre para fazer o que é necessário para o seu bem crescer mostrando-lhe o caminho certo sempre que possível.

A criança não aprende não é porque não queira ou porque seja desatenciosa. Talvez ela tenha algum problema, transtorno ou síndrome que precisa ser avaliado por um profissional especializado no assunto. Mas, o que podemos aprender com as nossas crianças em relação a isso? Muitas coisas.

Todos nós temos os nossos limites. Às vezes a criança já tentou de tudo para aprender o que a professora lhe ensina, mas não consegue. Ela precisa de ajuda. O tempo que passa na escola é pouco. Os pais devem estar atentos as agendas onde os professores fazem anotações com observações dos alunos.

As crianças não aprendem porque a aula é desinteressante, a didática da professora não é boa e nada consegue prender a sua atenção. Essa criança também precisa de ajuda. A gente acha cansativo quando um amigo fica numa conversa repetindo um assunto mil vezes.

Muitas coisas aprendemos quando as crianças não conseguem aprender algo, principalmente, no que diz respeito a paciência, tranquilidade, força de vontade, coragem e respeito. A criança não aprende porque não quer, isso não é verdade. Ela sente dificuldades assim como a gente sente dificuldades em mudar de função na empresa, em lidar com a nova turma de amigos do trabalho, em assinar um contrato.

A gente tem medo de enfrentar as coisas novas e se decepcionar. Assim acontece com a criança. Ela tem medo das avaliações e precisa ter isso trabalhado. Algumas professoras costumam fazer um terror antes dos dias das avaliações para os seus alunos e eles acabam vendo aquilo como algo assustador e bloqueiam o ensino-aprendizagem.

É preciso saber respeitar o momento em que a criança estará preparada para aprender; afinal faz parte do ser humano aprender a andar, a falar, a brincar, a fazer amizades, a lidar com problemas e perdas. Todos nós temos os nossos momentos e formas de aprendizagens.

Somos únicos no mundo e a nossa subjetividade faz da gente um ser que se diferencia dos demais no uso do raciocínio lógico. Cada pessoa tem o seu jeito de resolver as coisas. Às vezes uma questão de matemática é resolvida de maneiras diferentes, tem criança que vai mais rápida no raciocínio para chegar na resposta e tem outras crianças que vão por um caminho mais longo.

Nós devemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem a nos respeitar, a dar um tempo para as exigência do dia a dia, a pararmos um pouco e refletirmos sobre o que estamos fazendo conosco e com quem amamos e se estamos no caminho mais curto para chegarmos à felicidade.

Deixemos que as crianças descubram as suas próprias formas de aprendizagens lhes dando oportunidades de descobrirem os vários caminhos para chegarem a resposta correta. Nem sempre o nosso caminho é o mais preciso, às vezes a criança tem um caminho mais curto que o nosso. E ela sabe disso porque o seu pensamento está vazio de preocupações.

Não devemos exigir que as nossas crianças aprendam as coisas logo na primeira explicação. Ninguém aprende nada com pressa. Tudo tem que ser bem explicado.

Nem toda criança tem habilidades especiais para resolverem problemas. Conheço adultos que tiveram várias dificuldades de aprendizagem na escola e se tornaram grandes profissionais atualmente, devido a paciência dos seus pais.

É responsabilidade nossa cuidar da aprendizagem das nossas crianças dando-lhes o tempo necessário para que possam desenvolver o pensamento e buscar respostas que despertem a curiosidade. Quando educamos as nossas crianças também estamos nos educando porque aprendemos com elas detalhes pequeninos que passam despercebidos com a nossa pressa de fazer tudo para ontem.

As crianças não precisam de pressa para aprenderem as coisas. Na escola deve ser do mesmo jeito. Os professores precisam saber que aquelas crianças com um pouco mais de dificuldades de aprendizagem merecem mais cuidados e outras metodologias de ensino. Essas crianças não devem ser colocadas a mercê das outras como falta de incentivo ou exemplo negativo.

A criança que não consegue aprender pode estar passando por algum tipo de problema emocional em casa ou até mesmo na escola. É necessária uma investigação. Neste momento, os pais devem ser acionados para conversarem com seus filhos. A escuta cuidadosa sempre traz coisas boas e novidades que as crianças nos contam e nunca percebemos.

Uma criança com dificuldades de aprendizagem pode estar passando por sofrimentos incompreensíveis ao seu bem-viver e cabe aos professores investigarem como é a relação dela com os pais em casa. São os professores que muitas vezes descobrem violências psicológicas e físicas que as crianças sofrem em casa. Cada caso pode ser diferente.

Na verdade, podemos aprender com as nossas crianças que têm dificuldades de aprendizagem o momento certo de pararmos e buscarmos descobrir onde estamos errando, o que nos leva a insistirmos no mesmo caminho, por que não mudamos de estratégias no trabalho para alcançarmos mais lucros, o que nos faz ficarmos presos numa relação afetiva em que já não há mais amor.

São tantas as coisas que as dificuldades de aprendizagem das nossas crianças podem nos ensinar que se eu fosse citar a lista seria grande. Assim, se nós sentarmos com os nossos filhos e tivermos uma conversa franca talvez consigamos descobrir o motivo pelo qual eles não conseguem aprender como as demais crianças da mesma idade e que estudam na mesma sala de aula que elas.

Volto a dizer que muitas vezes o problema não está na criança, mas no sistema onde ela vive que pode ser algo relacionado com os pais que não conseguem compreendê-la ou com os professores que não conseguem acompanhar o ritmo de aprendizagem lento da criança.

Se os pais exigem que os filhos sejam sempre os melhores em sala de aula isso poderá prejudicar mais ainda a aprendizagem, pois quando somos cobrados por melhorias tendemos a ficar tensos e não rendemos o que poderíamos render. Assim são as crianças.

Toda aprendizagem deve vir acompanhada com um pouco de amor, respeito e cuidado por parte de quem está ensinando.

A criança saudável tende a aprender com facilidade e rapidamente, mas aquela que está a todo tempo sendo castigada, cobrada e sem amor poderá sentir mais dificuldades cada vez que essas cobranças cheguem com ameaças psicológicas ou físicas.

Infelizmente conheço crianças que ainda são espancadas por tirarem notas baixas na escola ou por não terem se saído melhor do que o amiguinho da vizinhança. Não devemos comparar os nossos filhos com ninguém. Como já disse acima somos únicos no mundo. Cada um de nós tem um jeito de aprender diferente. Temos o nosso tempo. Como disse Jesus Cristo, há tempo de colher e de plantar.

O tempo da aprendizagem da criança não é o mesmo que o seu ou o que a escola planejou. Antes de matricular seu filho numa escola procure saber como é a sua metodologia de ensino e se há um respeito e cuidado para com os alunos que têm dificuldades de aprendizagens.

Nós também temos grandes dificuldades de largarmos o trabalho mecânico para o automatizado. Começamos tendo aulas e aos poucos vamos nos aproximando das máquinas. Não chegamos no primeiro dia de trabalho e o chefe nos coloca na máquina para começarmos a trabalhar. Há todo um treinamento e uma espécie de aptidão.

Procure saber em que disciplinas o seu filho tem mais facilidade de aprendizagem e foque nas que ele não consegue se sair bem nas avaliações e trabalhos. Não faça cobranças que a criança não possa corresponder a elas. Comece ensinando as coisas mais fáceis e só avance casas quando perceber que a criança está confiante em si própria.

Se a criança realmente apresenta grandes dificuldades de aprendizagem não a obrigue a fazer coisas que a deixarão amedrontada, envergonhada ou tímida diante dos amiguinhos.

Permita que ela desfrute do momento da infância para ir aos poucos traçando os seus caminhos de aprendizagem do seu jeito, pois chegará um momento em que ela vai encontrar o seu jeito de aprender mesmo que seja uma forma esquisita e estranha para você. Deixe-a seguir no caminho escolhido, pois a zona de conforto da aprendizagem deve ser respeitada pelos adultos.

Aprenda com as dificuldades da sua criança de aprender que tudo na vida é preciso de tempo e paciência. Que não vale a pena querer algo forçado, insistir no que sempre dá errado ou até mesmo submeter-se a situações de vexame só para não ser chamado de fraco ou medroso.

Aprender exige coragem e nem todos estamos preparados para enfrentar obstáculos e atravessar pontes porque não fomos estimulados desde pequeninos a caminharmos com os nossos próprios pés. Aprenda com a dificuldade da sua criança de aprender que na vida é preciso exercitar a arte de construir castelos de areia e se a água do mar os derrubar que se construa tudo novamente.

E para terminar deixo vocês com os versos do poeta Vinícius de Moraes do poema “A porta” em que ele nos diz

“Sou feita de madeira / Madeira, matéria morta / Não há nada no mundo / Mais viva que uma porta / Eu abro devagarinho / Pra passar o menininho / Eu abro bem com cuidado / Pra passar o namorado…”

Que possamos abrir a porta devagarinho às nossas crianças para que aprendamos com elas que dificuldades todos nós temos, mas aprender é um eterno abrir de janelas para olhar o Sol brincar de ser dia.

Autora: Rosângela Trajano

Democracia à brasileira (uma reflexão sobre as diferenças) – parte II

Pergunto coisas ao buriti e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul e não se aparta de sua água – carece de espelho.  Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende. (J. G. Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Essa, caríssimos, é, pois, a parte II da “Democracia”. Eu diria quase literalmente, já que a I se constitui numa espécie de reconhecimento de que ela (a Democracia!), apesar de tudo, teima em querer se insinuar nas vozes das e dos que remam na direção contrária ao proposto pela insídia de um poder que teima em separar para se beneficiar, caracterizando a “democracia à brasileira”…

Leia aqui: https://www.neipies.com/democracia-a-brasileira-uma-reflexao-sobre-as-diferencas-parte-i/

Eu já tinha me debruçado sobre mais adjuntos para essa “democracia à brasileira”, quando tropecei em algo que, súbito, emparedou-se à minha frente, impedindo que avançasse para fechar a composição. Um corpo estancou, muito próximo, e uma possível democracia “à brasileira” quase desanuviou-se; a memória se recompôs e se materializou uma lembrança vívida e, paradoxalmente, repleta de calor! Com esse acontecimento o texto teve de ser refeito!

Quem não se renderá a um paradoxo desses? Ora, quem, como eu, que quase não vive sem se sentir aquecido! Pois, num rasgo, pude me ver envolta num calor intenso, mesmo quando o acontecimento estava a sugerir um frio descomunal. Foi o que sucedeu, quando soube, no próprio dia do acontecimento (11/07/2023), do falecimento do Prof. Carlos Rodrigues Brandão!

Não vou discorrer aqui sobre a biografia dele. É fácil encontrar no mundo virtual. Mas quero, sim, sublinhar com muita ênfase, sua influência sobre pessoas que, como eu, se refugiaram não nas certezas, mas nas perguntas, nas curvas díspares da circunstância “aprende-ensina; ensina-aprende”.

O Carlos Brandão, no grande cenário da “democracia à brasileira”, se constituiu numa das não muitas vozes a gritar “a linha não é reta!”, quando se falava em Educação/Ensino… Esteve com Paulo Freire, eram amigos, escreveram juntos: “dize-me com quem andas”, e tal e tal…

Trago comigo, de meu tempo de aprendente, quando ministrava aulas de metodologia do ensino para estudantes de Letras numa universidade, uma lembrança especial das falas do Prof. Brandão. Essa lembrança se encontra numa de suas obras de nome “O que é Educação”.

Bem no comecinho, Brandão já dispara a epígrafe que coloquei neste texto. Daí, é possível intuir o que se sucederá. Quero, no entanto, me ater a um pequeno trecho, que está lá à guisa de introdução, em que é mencionado um acordo, feito nos Estados Unidos, em dois estados, entre seus governos e os povos originários que viviam nesses estados. A ideia era basicamente um oferecimento de vagas para que os jovens índios fossem estudar nas escolas deles.

Conta Brandão que os índios gentilmente agradeceram e declinaram do convite. Motivos? Eles argumentaram que os diferentes povos e nações tinham diferentes concepções de mundo e que eles (os governantes), certamente, não se ofenderiam por dizerem que a ideia de educação que eles (os representantes da oferta) tinham não era a mesma que eles (os índios) tinham. E completaram expondo os resultados de experiências neste sentido que outras nações indígenas tinham tido: quando os estudantes índios voltaram para seus espaços, já com diploma na mão, não sabiam mais correr, ignoravam a vida da floresta e se tornaram incapazes de suportar o frio e fome; não sabiam mais caçar ou construir uma cabana. Enfim, se tornaram inúteis na comunidade deles! 

A partir daí, Brandão prossegue dizendo que (…) a educação pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. (p. 4).  E esse trecho reverbera um modelo de educação que transita ainda solto na “democracia à brasileira”! 

Assim, o Prof. Carlos Rodrigues Brandão nos lega seu imperativo como educador: a constatação de que nos recônditos de uma possível reflexão para a ação, no eixo educativo do existir humano, um vislumbre de esperança se materializa. É então que podemos desafiar tudo o que essa avalanche de despropósitos e injustiças sociais ajudou a construir, a partir do nosso reconhecimento de que (…) a educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida (…) (p. 4).

Vai em paz, mestre!

Autor de mais de cem livros, boa parte sobre educação popular e método Paulo FreireBrandão deixa um legado inestimável para a construção de uma escola mais justa e igualitária. Leia mais: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/630449-carlos-rodrigues-brandao-e-o-sonho-da-educacao-popular?

AutoraIr. Marta Maria Godoy

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