Na promoção do bem, as religiões vão demarcando seu espaço na sociedade, não em disputa proselitista, mas para ajudar a humanidade a viver e ser melhor. As diferentes formas de rezar e vivenciarem seus ritos são riqueza para toda a sociedade.
Não se configura novidade os ataques impetrados contra lugares sagrados de algumas denominações religiosas, especialmente as de matriz africana. Sobre este fato cabe lembrar que o direito à expressão religiosa é garantido pela Constituição Federal. O artigo 5º versa que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O texto discorre sobre as diferentes liberdades garantidas. O parágrafo VI desse artigo afirma que: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Vê-se que qualquer forma de ataque ou impedimento ao exercício da expressão religiosa pessoal ou comunitária configura-se como crime.
Para os católicos, existem também algumas orientações a partir do documento Dignitatis Humanae promulgado durante o Concílio Vaticano II (1965). Escreve o documento: “este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites” (Declaração Dignitatis Humanae n. 2).
Lembra a todos que tal liberdade é constitutiva da dignidade humana e deve ser protegida e reconhecida como um direito civil: “e o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil” (Declaração Dignitatis Humanae n. 2).
Em tempos de diferentes ameaças a elementos basilares da dignidade humana, especialmente à manifestação religiosa, é conveniente retomar os princípios fundantes acima descritos. Eles têm uma dimensão protetiva do direito à manifestação religiosa, mas também são referência na ação contra aqueles que insistem em não respeitar tais preceitos.
Constitucionalmente, o atentado à liberdade religiosa é crime. O não respeito à orientação da Igreja Católica é indicativo de não comunhão eclesial, pois é não atacando quem professa uma fé diferente que a pessoa solidifica a sua pertença.
A missão das Tradições Religiosas tem, além do diálogo com o transcendente, a importante tarefa de responder aos grandes dramas humanos, fato reconhecido na Declaração Nostra Aetate, documento da Igreja Católica sobre o diálogo com as religiões não cristãs. O texto parte do reconhecimento da importância da religião na vida humana: “os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem?
Qual o sentido e a finalidade da vida? Que é o pecado? Donde provém o sofrimento, e para que serve? Qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? Que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos” (Declaração Conciliar Nostra Aetate 1)
É uma tarefa significativa e que não se cumpre apenas na perspectiva humana imanente. As religiões invocam o transcendente em vista de responder a tantos questionamentos. Acolhem a força da religião como significante da vida. Compreendemos então o papel importante da religião da vida humana e na sociedade.
Cabe lembrar outro princípio que dá grande autoridade moral às diferentes Tradições Religiosas: o compromisso em promover o bem. Na promoção do bem, as religiões vão demarcando seu espaço na sociedade, não em disputa proselitista, mas para ajudar a humanidade a viver e ser melhor.
As diferentes formas de rezar e vivenciarem seus ritos são riqueza para toda a sociedade.
Atitudes de perseguição, preconceito e tentativa de desconstrução da crença alheia não se configuram modus operandi de um verdadeiro crente e são tipificadas como crime. A sociedade não pode ser conivente com tais atitudes. Não cabe apenas manifestar repúdio, mas denunciar tais práticas. Somente a ação legal poderá coibir aqueles que pensam que a certeza da sua pertença lhes dá o direito de vilipendiar a pertença do outro.
Assumamos um princípio do diálogo e respeito religioso: eu creio, o outro crê, nós cremos, todavia, o ato de crer e rezar pode ser diferente.
Casos de intolerância religiosa causa preocupação em Passo Fundo. 16/03/2023. Município tem registrado ataques contra religiosos. Religiões de matriz africana são o principal alvo dos criminosos. Assista: https://globoplay.globo.com/v/11454744/
Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade.
Eis uma pergunta (para muitas pessoas) trivial: que teremos para o jantar? Todavia, a trivialidade desse questionamento reside só na aparência de naturalidade com que é, na maioria das vezes, formulado. Na sua essência, aquilo que o psicólogo e pesquisador da Universidade da Pensilvânia, Paul Rozin, chamou de “dilema do onívoro”. Ou seja, quando se pode comer qualquer coisa que a natureza pode nos oferecer, decidir o que se vai comer, racionalmente ou não, é causa de ansiedade. Especialmente porque alguns alimentos podem nos fazer mal ou, até mesmo, nos matar.
Nos dias de hoje, em que (para quem tem dinheiro) abundam alimentos como jamais visto na história da humanidade, o dilema do onívoro torna o ato aparentemente simples de comer em uma coisa complicada. A tal ponto, de muita gente necessitar ajuda de especialistas (médicos e nutricionistas, por exemplo) para decidir o que comer (a par do modismo de dietas, que duram até o lançamento do próximo livro).
A situação existencial de um onívoro contrasta radicalmente com a de um comedor especializado, para quem a questão do que comer na próxima refeição não poderia ser mais simples. No caso de um comedor generalista (onívoro) aquilo que pode ser uma aparente vantagem também se torna um desafio, especialmente para os humanos, em que entra em jogo a racionalidade e valores morais.
A nossa vantagem frente a outros onívoros não racionais (um rato, por exemplo) é a nossa cultura, que nos permite ter acesso a uma farta experiência acumulada em relação à comida. São muitas as regras de alimentação codificadas em tabus, rituais, receitas, costumes e tradições culinárias que nos eximem (ou eximiam) de reviver o dilema do onívoro a cada refeição.
Uma visada panorâmica nas gôndolas de um supermercado e, principalmente, uma leitura um pouco mais atenta das embalagens dos alimentos industrializados talvez não nos deixe tão seguros assim quanto ao dilema do onívoro ser algo do passado da humanidade. Somos todos vulneráveis, especialmente aos olhos dos marqueteiros, que percebem, na questão da alimentação, o dilema do onívoro como uma oportunidade de negócio.
Novos produtos (alguns com promessas milagrosas), em tese da propaganda, podem aliviar a ansiedade que sentimos frente aos nossos hábitos alimentares.
Na mesa de jantar ou no corredor de um supermercado, não é difícil nos defrontarmos, mesmo sem perceber e atentar para a denominação, com o dilema do onívoro: produto orgânico ou convencional? Peixe do mar ou criado em tanques? Alimento com ou sem gordura trans? Gado criado em confinamento ou sob pastagem? Devo virar vegetariano? E se virar vegetariano, um do tipo moderado ou um vegano radical? Açúcar ou adoçante? É seguro comer um alimento que contém produto transgênico? Gordura vegetal ou banha de porco? Que significa “saudável para o coração”? Que é TBHQ ou goma xantana? Afinal, para onde vão me levar todos esses questionamentos?
Possivelmente, a melhor maneira de enfrentarmos o dilema do onívoro desse começo de século XXI é o entendimento das cadeias alimentares que nos sustentam, desde o início do processo de produção do alimento, passando pelas fases de processamento industrial, armazenamento e comercialização até chegar à mesa na forma de comida.
Compreender o nosso lugar nessa cadeia alimentar e ter consciência que a nossa condição de onívoro moldou a postura que temos em relação ao mundo natural, particularmente frente às espécies que nos servem de comida.
As adaptações que o homem sofreu ao longo da evolução das espécies serviram para que conseguíssemos derrotar as defesas de outras criaturas e pudéssemos comê-las (inclua-se a capacidade de caça, a invenção da agricultura e o ato de cozinhar utilizando fogo, que permitiu tornar os alimentos mais palatáveis, digeríveis e eliminar toxinas).
Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade. Uma criatura para quem era possível comer qualquer coisa (inclusive outros seres humanos, que o diga o bispo Sardinha, deglutido pelos Caetés em 1556) necessita especialmente de regras éticas, costumes e rituais no que tange aos alimentos e à alimentação.
Comer talvez seja algo que nos define (o quê e como comemos). Por isso é muito mais que um mero “ato agrícola”. É, ao mesmo tempo, também um ato ecológico e um ato político. Não é outra a razão, que leva muitas pessoas a comerem como autômatos na extremidade da cadeia alimentar industrial: pensar no assunto pode estragar o apetite.
A Academia Passo-Fundense de Letras é uma instituição muito importante para a formação cultural e literária de nossa estimada cidade Passo Fundo. Esta instituição marca a história da cidade há 85 anos.
Conversamos com a presidente da Academia Passo-Fundense de Letras Marilise Brockstedt Lech sobre questões pertinentes quanto à comemoração dos 85 anos de existência desta importante Academia de Letras. Quisemos saber sobre importância de celebrar esta data, sobre a entrada de seis novos acadêmicos e sobre os desafios de manter uma Academia com tanta relevância e destaque cultural em nossa cidade.
“O relato sobre a história de uma instituição é sempre um espelho bem pouco nítido dos fatos reais que aconteceram nos diferentes momentos vivenciados. Contudo, olhando para tudo que passou, é possível visualizar os grandes feitos da Academia Passo-Fundense de Letras e dos acadêmicos que por ela passaram, e os que, hoje, compõem seu quadro de ocupantes das 40 cadeiras deste sodalício.
Ser acadêmico, embora represente um reconhecimento ao trabalho como escritor, está longe de ser apenas uma honraria ou um título. É, sim, uma função e um compromisso para com a comunidade.
Os acadêmicos cumprem um estatuto que inclui, dentre as finalidades, incentivar as letras e as artes, concorrendo para o seu aperfeiçoamento. Para tanto, dentre os inúmeros motivos para comemorarmos os nossos 85 anos, está o desenvolvimento dos 14 projetos literários e culturais. Tudo isso é feito de forma voluntária, já que a APLetras é uma entidade sem fins lucrativos e que se mantém unicamente com as anuidades pagas pelos acadêmicos, bem como com doações de pessoas da comunidade que sabem valorizar a literatura como caminho de formação humana.
A entrada de seis novos acadêmicos
“Neste ano de 2023 estamos tendo a alegria de receber seis novos acadêmicos, selecionados a partir de um processo que inclui, dentre outros requisitos, a análise do currículo vitae e das publicações. São eles: Alexandre da Rosa Vieira, Alex Antônio Vanin, Janaína Rigo Santin, Luiz Carlos Dale Nogari dos Santos, Marco Antônio Bomfoco de Almeida e Nei Alberto Pies. Com isso, a APLetras se renova, amplia seu valor e expande o seu alcance e influência para que aconteçam as necessárias transformações na sociedade”.
Desafios de manter uma academia com tanta relevância e destaque cultural em nossa cidade
“Os desafios são constantes, começando pela busca de recursos para fazer acontecer os nossos importantes projetos. Aos olhos de quem vê de fora, o nosso prédio ainda guarda mistérios…
Como não temos funcionários contratatos pela APLetras, infelizmente a porta mais alta do estado não fica aberta todos os dias da semana. No entanto, estamos sempre em atividades, organizando eventos (Congresso Estadual das Academias de Letras do RS, Momentos Culturais,…), preservando o bom uso da Língua portuguesa (Guardião das Letras), propondo oficinas para estudantes (Identificando Talentos), escrevendo (livros e a nossa Revista Água da Fonte), gravando entrevistas (Literatura Local – TV Câmara), incentivando os jovens para a escrita (Acadêmicos mirins), contando histórias junto à ONGs e Escolas, realizando o Concurso Literário, o Café Filosófico, a Mateada literária,…
E neste ano teremos a realização da VI Semana das Letras e retomaremos o projeto Academia nas Escolas, o qual prevê encontros de debates entre auotres da academia e estudantes passo-fundenses. Projetos como Cine-Literatura e Desafio Literário também estão sendo planejados.
Dentre os desafios também está ampliar a divulgação de tudo isso, para que mais pessoas possam ser beneficiadas com a nossa atuação”.
A UPF, membro fundador do Programa, esteve presente no lançamento realizado em Lisboa, no final de fevereiro de 2023.
Lançada oficialmente no dia 28 de fevereiro, a Cátedra Unesco: A cidade que educa e transforma integra o Programa de Cooperação Internacional Rede Internacional Cidade que Educa e Transforma (RICET). Liderada pelo ISEC Lisboa, a rede conta com 12 instituições de ensino superior de Portugal, do Brasil e da Guiné-Bissau, e tem entre seus membros fundadores a Universidade de Passo Fundo (UPF).
Aprovada pela UNESCO, a Cátedra, tem entre os principais eixos a promoção de um sistema integrado de atividades de investigação, formação e documentação na área das Cidades Educadoras e a divulgação de conhecimentos sobre o conceito de uma cidade educadora, a fim de permitir modelos de governação em linha com os ODS; a investigação e reflexão sobre as práticas baseadas em modelos de governação inspirados no conceito de Cidades Educadoras e suas respostas aos problemas emergentes das sociedades, especialmente na perspectiva da consolidação de democracias; a criação de uma rede de conhecimento que permita aos governos locais oferecer uma oferta diversificada de respostas equitativas e justas para os problemas da sociedade contemporânea; e a cooperação e colaboração na construção de sociedades do conhecimento através de diferentes estratégias de cidades educadoras.
De acordo com a professora Dra. Adriana Bragagnolo, na UPF, haverá o desenvolvimento do trabalho a partir do envolvimento do ensino, pesquisa e extensão.
“A proposta surgiu de um processo que foi se constituindo de diálogos entre universidades que apoiam e pensam nas cidades enquanto espaços de educação. A UPF está envolvida desde o início das discussões e da proposta, em meados de 2020. Agora, após o lançamento, o grupo segue reunido em Lisboa, realizando o planejamento do projeto geral, no qual está envolvido o plano de ação e todos os desdobramentos dos próximos quatro anos”, explica.
Adriana lembra que na UPF já existem ações que vão se articular com o grande projeto, como, por exemplo, o projeto UniverCidade Educadora nas ações formativas acerca da temática com municípios da região e também com projetos integrados, especialmente na perspectiva de infância e cidade.
A reitora da Universidade de Passo Fundo Bernadete Maria Dalmolin manifesta-se acerca do papel das universidades no fomento e na qualificação das Cidades Educadoras:
“Fomentar os pressupostos das Cidades Educadoras pelas universidades é uma estratégia de aprofundar, fortalecer e acelerar esse movimento mundial em prol de uma educação cidadã, plural, inclusiva e transformadora. É um processo que precisa envolver e contagiar a todos, nos diferentes lugares em que a vida acontece, qualificando-a e ressignificando-a para as pessoas”.
A Rede Internacional Cidade que Educa e Transforma é constituída pelos seguintes membros fundadores:
Instituto Superior de Educação e Ciências – ISEC, Lisboa, Portugal
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI, Brasil
Universidade Passo Fundo, UPF, Brasil
Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil
Universidade Federal da Bahia, UFAB, Brasil
Universidade Franciscano, UFN /Santa Maria, Brasil
FACED/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Brasil
Instituto Politécnico Nova Esperança da Guiné Bissau
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil
Centro Universitário Internacional, Uninter/ Curitiba/PR, Brasil
Fundação Anísio Teixeira, Brasil
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, Brasil
Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude?
Talvez um dos sentimentos mais compartilhados e evidentes do recente cenário de pandemia é o de crise. De todos os lados escutamos, percebemos, respiramos, somos absorvidos por sua presença: crise de governo, crise institucional, crise econômica, crise do desemprego, crise humanitária, crise existencial, crise da razão, crise da ciência, crise sanitária … e a lista poderia ser imensa ou até infinita.
No início de 2020, o planeta inteiro foi sacudido por um gigantesco avalanche chamado COVID-19 que alterou e continua alterando a vida de todos nós, das instituições que fazemos parte e da forma como se dão as relações humanas. Possivelmente, estejamos vivendo uma das maiores crises do século XXI.
Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude? Crise da vida pautada pela ética ou crise da prática de uma forma de fazer política que está nos destruindo?
Crise do consumismo ou crise de identidade? Crise do vazio existencial que se agiganta quando nos isolamos ou crise sanitária que ameaça a sobrevivência da espécie? Crise da banalização da morte ou crise de um sistema ultraliberal que transformou tudo em dinheiro?
As perguntas são muitas e complexas. As respostas, parciais e pouco convincentes.
Como diz Adauto Novaes na coletânea A crise da razão, a crise exige de nós reflexão, pensar não apenas sobre os acontecimentos históricos, mas também os fundamentos, os percursos, as escolhas, as opções, as crenças e os valores que orientam nossa vida. Ter a capacidade de refletir sobre a crise não é tarefa simples e pouco desejável pela grande maioria das pessoas.
A reflexão por si só nos coloca de volta a nossa própria condição primeira, de vermos o quanto somos limitados, frágeis, finitos, vazios e, por tudo isso, também responsáveis por aquilo que acontece, por aquilo que defendemos. Se vivemos o caos e se a realidade nos ameaça, inclusive de morte em tempos de pandemia, então é necessário dar-se conta que poderia ter sido diferente se tivéssemos feito outras escolhas, optado por outros projetos, deliberado de outra forma.
A palavra crise ou o que ela designa, geralmente é traduzida por algo negativo, ou “algo que não vai bem”. Quando uma determinada sociedade vive um alto índice de desemprego, queda no consumo, perda expressiva de renda da maioria das pessoas, economia em baixa, precarização das condições de trabalho e recessão geralmente se diz que estamos passando por uma crise econômica. Quando alguém se sente vazio, sem perspectiva de vida, sem projetos e sonhos, geralmente dizemos que este alguém vive uma crise existencial.
Quando um determinado governo tem dificuldade de articular um conjunto de políticas (econômicas, sociais, comerciais, internacionais), tem dificuldade de se relacionar com outros poderes, causa escândalos, está em permanente guerra com a imprensa ou com outros partidos políticos, está ameaçado de sofrer um processo de impeachment atribuímos a essa situação a ideia de crise política. E os exemplos poderiam ser extensivos a todas as outras crises.
No entanto, a palavra crise também pode significar oportunidade.
É o que nos diz com propriedade João-Francisco Duarte Junior em seu livro O sentido dos sentidos, quando lembra que na cultura chinesa “o conceito de crise é wei-ji, locução composta pela junção dos ideogramas perigo e oportunidade”. Compreendida dessa maneira, crise não é somente uma situação arriscada, delicada, ameaçadora, perigosa, causadora de medo, insegurança, vulnerabilidade, morte; a crise pode ser também uma oportunidade para repensarmos nosso rumo societário, nossas relações, nossos projetos de vida, nossa própria existência, nosso estar no mundo.
A crise se torna, dessa perspectiva, um sinal de alerta para revermos os rumos, as escolhas, os valores, as prioridades, o que realmente importa. Que a pandemia indesejada se seja uma grande oportunidade para fazermos uma profunda revisão de nossa trajetória civilizacional e talvez sermos mais prudentes e inteligentes nas nossas escolhas.
Quem respira e vive a escola, vê e sente a alegria das crianças quando são chamadas para comer. Quando questionadas sobre o que mais gostam na escola, citam a merenda escolar como um dos melhores momentos do período, seja manhã ou tarde.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 é um marco no que se refere às normas e direitos comuns do ser humano. Em seu artigo 25º ela delibera que toda pessoa tem o direito à alimentação. O que infelizmente ocorre é que a fome ainda atinge quase 830 milhões em todo o mundo, situação agravada pela pandemia de Covid-19, a guerra na Ucrânia; a mudança climática, a infraestrutura insuficiente, a baixa produtividade agrícola e outras questões específicas de cada nação. Aqui podemos incluir a má gestão das nações.
O estudo indica que o número de famintos aumentou de 811 milhões para 828 milhões entre 2021 e 2022. A guerra na Ucrânia aparece como principal fator determinante do aumento dos preços globais dos alimentos, da energia e dos fertilizantes, o que desencadeará o aumento da fome em 2023 e nos próximos anos. Neste cenário sombrio direcionamos nosso pensamento, nossa preocupação às crianças.
Aqui no Brasil, estamos amparados pelo Estatuto da criança e do adolescente que, desde 1990, estabelece princípios e diretrizes fundamentais ao bem viver destas etapas da vida. Neste ordenamento consta o papel do Estado, da família, da comunidade e da sociedade em relação à garantia de educação, justiça, liberdade e tratamento digno, o que inclui a alimentação adequada. E aqui chegamos ao ponto central da discussão: A essencialidade da alimentação escolar!
Se compararmos a alimentação escolar de anos e décadas atrás, podemos perceber que houve significativa evolução no modo de pensá-la e organizá-la! O grande avanço é o fato de terem surgido várias legislações desenvolvidas, com apoio de outros domínios (nutrição, medicina) que demonstraram preocupação e reivindicaram mudanças em benefício do estudante.
A concepção de vida saudável ampliou a reflexão para a necessidade de uma alimentação adequada, do consumo de alimentos essenciais, das práticas de atividades físicas, da aproximação com espaços naturais etc. Todo esse conhecimento ocasionou, de modo progressivo, a mudanças de hábitos de vida da sociedade de modo geral e, isso mobilizou as gestões públicas.
O modo de viver das famílias e na sociedade como um todo parece estar mais consciente em relação ao que é saudável. E, a partir dessa ótica que prima pela saúde, aliadas a outros objetivos, as políticas alimentares foram polidas. Claro! Ainda é um processo inicial, pois como apresentamos antes, muita gente está distante desses avanços e vive em condição de vulnerabilidade ou miséria.
O fato é que: Quem respira e vive a escola, vê e sente a alegria das crianças quando são chamadas para comer.
Quando questionadas sobre o que mais gostam na escola, citam a merenda escolar como um dos melhores momentos do período, seja manhã ou tarde. Ao escutar isso, emergem alguns questionamentos como: O que a alimentação escolar comunica? Qual a relação da alimentação com a educação? O que significa para o estudante o momento de comer? O que precisamos, enquanto educadores, é entender sobre o momento do lanche. O que já sabemos é que a comida toca o âmago! E se toca, causa efeito!
Se voltarmos ao passado, numa breve reconstrução temporal, constatamos que o ritual de comer e beber juntos já era compreendido como possibilidade formativa. Como exemplo citamos os gregos, inclusive a obra O banquete de Platão traz muitas contribuições no sentido da formação humana. A reunião grega era constituída em um espaço social e político, com o sentido ético e categorias normativas circunscritas de acordo com as características e especificidades da sociedade.
Nessas ocasiões eram tratadas as questões pertinentes ao contexto e ao interesse dos participantes (o que é muito semelhante com a escola). No caso da referida obra, o assunto a ser discutido entre os presentes era o Amor. Cada um, a partir do seu ponto de vista, argumentou o que compreendia acerca deste sentimento. O debate, o diálogo, o aprendizado ocorria de modo mais exitoso se houvesse a combinação entre comida e bebida.
Obviamente, notamos a presença desta herança no nosso cotidiano fora da escola também, pois quando se menciona um encontro, logo se pensa na alimentação. Ela torna-se parte orgânica da interação que nele acontece e, assim preserva o sentido formativo.
A alimentação é amor! A alimentação é vida. É também cultura e história! Transferência de um ser para outro, de geração em geração, desde quando o ser humano ainda é pequeno, quando recebe o leite da mãe.
A alimentação é um elo que enlaça a tripartite vida-cultura-história pertencentes em uma comunidade local e também global. O ato de alimentar-se permite a conexão com o outro, com a própria consciência e desta forma, expande-se o olhar. Junto da experiência sensorial que envolve a faces do sentir, estão os afetos, os vínculos, o crescimento saudável e o desenvolvimento. Por isso as memórias em relação aos sabores, cheiros, sons, texturas estão presentes e são reverberadas com tanta satisfação e, até encantamento, pelos estudantes. Por isso que ir à merenda provoca tanto bem-estar.
Parece pertinente afirmar que a sensibilidade é difundida entre os atos de nutrir, pelas mãos dos que preparam o alimento; e o do se nutrir, pelo desejo daqueles que dirigirem ao refeitório para comer.
Tudo revela algo muito especial: o cuidado do outro, da parte de quem prepara com tanto afeto e compromisso; e o cuidado de si, da parte de quem demonstra apreço pela saúde e pelo momento de confraternização. Ambas as dimensões do cuidado são compartilhadas de modo intenso e profundo. Como dizer que não é uma forma de amor?
Para que ocorra essa concretização, a informação e a formação representam atitudes fundamentais, pois só o conhecimento é capaz de gerar e manter ativo nos envolvidos com escola (cozinheiras, professores e famílias) os saberes necessários para mobilizar nos estudantes, a parte mais favorecida, hábitos alimentares saudáveis. Neste sentido, a união em torno de um discurso único torna-se imprescindível. A ênfase em torno destes hábitos começa em casa e tem continuidade na sala de aula, pelas diferentes vozes da equipe escolar. O desfecho final é no refeitório, com ele lotado de crianças, em busca da saborosa comida saudável, em busca de uma forma de amor. O que se consolida assim, é a estreita relação entre o bem-estar físico, psicológico; a forte satisfação; e a possibilidade formativa no ato de comer.
Com isso, podemos pensar também no quanto a história, a cultura e as tradições interferem no ato de comer, isso porque há também o grande valor prática relacional que ocorre enquanto as pessoas se reúnem para alimentarem-se. A comida, neste sentido, além de formar, acolhe!
É em torno de uma mesa, seja na escola, em casa ou em festividades, que as ideias são acolhidas e compartilhadas. Novos projetos nascem. O sentido colaborativo se consolida. Então, que a gente possa cultivar a acolhida e o cuidado momento da alimentação, especialmente na escola, para que ela continue sendo especial, marca amorosa na memória e no corpo saudável que se forma com a experiência do encontro com os outros e com a comida.
Razão e emoção constituem o nosso viver humano. Não nos damos conta que todo sistema racional tem um fundamento emocional.
Somos seres eminentemente emocionais, embora abundem referências de que a nossa racionalidade é o que nos distingue dos outros animais. E os argumentos neste sentido são tantos e tão bem justificados que, sem uma maior reflexão, até acreditamos neles. Inclusive, insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais, fazendo com que vivamos uma cultura que desvaloriza as emoções em função de uma supervalorização da razão. Nada mais falso que isso, conforme demonstra a biologia do conhecimento e as teorizações formatadas pelo neurobiologista chileno Humberto Maturana.
Por emoções, na teoria de Maturana, há que se entender os diferentes domínios de ações possíveis, nas pessoas e nos animais, e as distintas disposições corporais que os constituem. É em função das disposições corporais que emoções são fenômenos próprios do reino animal. E o que chamamos de humano é basicamente o entrelaçamento do racional com o emocional, na linguagem, fazendo desabar o imperialismo da razão.
O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no emocionar. Acima de tudo, aceitar que não é a razão que nos leva a ação, mas a emoção.
A emoção fundamental que define o ser humano é o amor. E, no contexto da biologia do conhecimento, o amor é entendido como a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência.
Parece complicado de entender, mas não é. Basta a adoção de uma postura reflexiva no mundo em vivemos, com respeito por si mesmo e pelos outros, deixando de lado o sentimento de competição, marcado pelo eufemismo mercadológico da “livre e sadia competição”. A competição não é e nem nunca poderá ser sadia, porque se constitui na negação do outro.
A competição é um fenômeno cultural e humano e não, como se supõe, uma característica biológica intrínseca. Queiramos ou não, a vitória se constitui na derrota do outro.
A competição se ganha com o fracasso do outro. O derrotado tolera o vencedor esperando por uma oportunidade de revanche. Assim, a tolerância é uma negação do outro suspensa temporariamente. Em razão disso é que foi cunhada a expressão: “as vitórias que não exterminam o inimigo preparam a guerra seguinte”.
O que chamamos de racionalidade, quase sempre, não passa de uma atuação baseada em premissas previamente aceitas, a partir de certas emoções (aceitas porque sim, porque agradam a alguém, aceitas pela preferência de alguém, etc.). A discordância entre pessoas se dá quando a diferença está nas premissas fundamentais que cada um tem sobre determinados temas. Em que cada qual aceita ou rejeita algo não a partir da razão, mas da emoção. São exemplos clássicos, discussões ideológicas ou religiosas.
As premissas fundamentais de uma ideologia ou de uma religião são aceitas a priori e, portanto, não tem fundamentação racional. Não existindo erro lógico nos argumentos, estes são, obviamente, racionais para aqueles que aceitam as premissas fundamentais em que eles se baseiam; reforça Humberto Maturana na sua teoria. Por isso, em situações de conflitos ou de discordâncias, os chamados discursos racionais não convencem ninguém quando o que se fala e o que se escuta tem como referência emoções diferentes.
Nem todas as relações ou interações entre seres humanos são sociais. É o caso daquelas baseadas na obediência, na exclusão, na negação e no preconceito, pois negam a condição biológica básica de seres dependentes do amor, que é aceitar os outros como legítimos outros na convivência. As relações hierárquicas, quase sempre, não se fundamentam na aceitação mútua e sim na negação mútua. Essas são instituições e práticas baseadas meramente no argumento da racionalidade e da obrigação. Nada mais que isso.
Razão e emoção constituem o nosso viver humano. Não nos damos conta que todo sistema racional tem um fundamento emocional. Um chefe mal humorado, por exemplo, vive num domínio emocional no qual só são possíveis certas ações e não outras. É com base nisso que a secretária, amigavelmente, costuma avisar aos incautos: “hoje, nem ouse pedir um aumento!”
Sem a aceitação do outro no espaço de convivência não há fenômeno social. Razão pela qual, na vida, a maior parte do sofrimento humano vem da negação do amor ou da emoção que permite a aceitação do outro como legítimo outro na convivência.
Muitos jovens não escolhem a universidade com base nas suas paixões. Todos dizem a eles: ‘Escolha a faculdade que vai lhe fazer ganhar dinheiro’. É assim que estamos corrompendo os jovens. (Núccio Ordine, filósofo italiano)
Um livro clássico intitulado Como mentir com estatística, escrito por Darrell Huff, publicado em 1954 nos Estados Unidos, o autor demonstra de forma muito direta como números que parecem tão fortes são na realidade frágeis, quando não totalmente falsos, formando castelos de areia que ruirão após uma análise mais detalhada, ampliada e desprovida de ideias preconcebidas.
No país da desigualdade, a forma como os dados educacionais brasileiros são organizados e divulgados induzem, geralmente, a conclusões imparciais, pontuais e insuficientes para produzirem uma compreensão cabal dos verdadeiros impactos da educação na vida das pessoas e na estrutura da sociedade brasileira.
Cabe relembrar que, a educação, é um processo complexo que requer análises e evidências ancoradas em processos e séries históricas de médio e longo prazo.
O Censo da Educação Básica de 2022, divulgado recentemente, serviu de palco para reforçar teses parciais e conclusões tendenciosas. Ele apontou e destacou avanços no ano de 2022 se comparando com dados de 2020 e 2021, que foram os piores anos para a educação, devido a pandemia e a falta de políticas e gestão do MEC. Se estendermos a análise para os anos anteriores a pandemia, veremos que não tivemos avanço algum, pois, sequer recuperamos os avanços da década passada (2010-2019).
Outra perspectiva necessária é relacionar os impactos educacionais decorrentes das políticas do governo Temer (2016-2018) e suas reformas educacionais (BNCC, reforma “novo” ensino médio); do governo Bolsonaro (2019-2022) que praticou o desinvestimento em educação reduzindo 25% o orçamento para educação; relacionar com o descumprimento deliberado das Metas do PNE 2014-2024 pela União, Estados e Municípios, além do contexto pandêmico que ainda vivenciamos. Ou seja, a educação requer um olhar de totalidade por períodos históricos mais amplos e políticas (des)estruturantes praticados pelo estado brasileiro.
Porém, os próprios dados do Censo da Educação Básica (EB) de 2022 precisam de um outro olhar e questionamentos, como: Por que ainda temos 1,04 milhão de crianças e adolescentes fora da educação que é considerada obrigatória nesta faixa etária de 04 a 17 anos, conforme PEC-59/2009? Por que temos taxas de insucesso tão elevadas no 6º ano (4,3%) do ensino fundamental e 9,8% no primeiro ano do Ensino Médio? Por que a Educação de Jovens Adultos (EJA) diminuiu 21,8% entre 2018 e 2022 chegando a apenas 2,8 milhões de matrículas em 2022? E, porque, o Ensino Médio que teve 347 mil matrículas (-5,3%) a menos em 2022, agravando uma tendência dos últimos 16 anos?
Aliás, sobre o Ensino Médio (EM), maior desafio da educação brasileira atual junto com o tema do financiamento da educação, precisamos ampliar o olhar para, no mínimo, três décadas atrás.
De 1991 até 2021, período de 30 anos, o EM cresceu 100%, passando de 1,56 milhões de matrículas para 8,5 milhões em 2005. Porém, desde 2006, descreveu – 15%, baixando agora para 7,8 milhões. Esta queda de mais 5,3%, somente em 2022, agrava esta etapa da educação básica, pois o Brasil continua com 48 milhões de jovens entre 14 e 29 anos.
Ao relacionarmos o EM com a expansão do Ensino Superior (ES) no mesmo período de 1991 até 2021, evidencia-se o paradoxo e a gravidade da condição educacional brasileira. O ES expandiu-se, no mesmo período, 475%, sendo 619% no ensino superior privado (período governo FHC) e, 245% no ensino público (período Lula/Dilma). Atualmente, a expansão no ES somente se mantém impulsionada pela EAD, que cresce no segmento privado, cujos ingressantes superam as matriculados presenciais.
As matrículas no EM estão em queda há 16 anos, formando anualmente, somente, 1,8 milhões de jovens. Este número é bem inferior aos ingressantes no ES, que superam 3 milhões ano, causando impactam no sistema de ensino superior federal, com ociosidade de vagas nas IES privadas e, inclusive, nas universidades públicas. Cabe lembrar que o ingresso no ensino superior está estagnado desde 2015 no Brasil, coincidentemente, após implementação das políticas dos governos Temer e Bolsonaro.
Portanto, não é a pandemia a responsável pela situação dramática do EM e do ES no Brasil, mas o desmonte das políticas públicas educacionais recentes, redução de investimentos e as reformas em curso. O “novo” ensino médio já está agravando e acentuando o insucesso dos estudantes e desmotiva que jovens de escola pública sonhem com formação de nível superior, incentivando a permanecerem no nível médio com qualificações profissionais fragmentadas. Por um conjunto de razões precisa ser revogado imediatamente. Reformá-lo não é a solução.
Outras relações e estatísticas precisam ser consideradas quando abordamos a educação no contexto brasileiro. Tanto relatório da UNICEF, como pesquisas da FGV Social, abrem as lentes para a correlação com as desigualdades sociais, econômicas, a pobreza e a fome dos estudantes.
Segundo UNICEF, pelo menos 32 milhões de meninos e meninas no Brasil vivem na pobreza. O número representa 63% do total de crianças e adolescentes no país e abarca a pobreza em diversas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação. É o que indicou a pesquisa As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil, divulgada em fevereiro de 2023 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Estudos recentes da FGVSocial sobre Retorno para Escola, Jornada e Pandemia, demonstram que: 1) o segmento mais adversamente afetado na pandemia foram os estudantes novos, na faixa de 5 a 9 anos, que sofreram evasão mais alta; 2) o tempo de escola para alunos de 6 a 15 anos caiu drasticamente (2 horas e 23 minutos por dia útil); 3) a falta de atividades escolares percebida pelos estudantes é mais relacionada à inexistência de oferta nas redes escolares do que a problemas dos próprios alunos; 4) queda na qualidade do ensino brasileiro na pandemia foi superior em comparação com os demais países; 5) os estudantes mais prejudicados foram os mais pobres e residentes em regiões remotas, entre outras constatações. Portanto, não foi só a pandemia que impactou a educação, mas a falta de (re)ação dos gestores por meio de políticas públicas de inclusão e assistência em situação de emergência sanitária e educacional.
Nesta perspectiva de ampliar as estatísticas educacionais com outros correlações e pesquisas, recente estudo publicado pelos pesquisadores Guilherme Lichand e Maria Eduarda Perpétua, da Universidade de Zurique (Suiça) e, Priscila Soares (USP), apontam que a elite econômica do Brasil capturou até 65% dos ganhos que os trabalhadores brasileiros tiveram com o aumento na escolarização para o nível fundamental, 60% para o nível médio e 30% para o superior, nos últimos 40 anos.
Neste período de quatro décadas, apesar dos avanços, os 10% mais ricos (o topo da pirâmide), continuaram ganhando até 50% mais que a metade mais pobre, ainda que eles tenham o mesmo nível de escolaridade. “Pelos resultados, podemos observar, se duas pessoas conseguem um diploma de ensino médio, ambas vão ter recompensas pelo investimento de tempo e dedicação, mas essa diferença é 50% maior se uma delas for da elite”, esclarece Lichand.
O que estes dados revelam é que os brasileiros de menor renda ganham menos no mercado de trabalho até mesmo quando conseguirem estudar mais. A discrepância ocorre, também, por questões raciais. A recompensa salarial para cada diploma é de até 50% maior para brancos e amarelos em relação a pretos, indígenas e pardos (pelos critérios do IBGE). Esta distância cresceu ao longo do tempo para o ensino fundamental e médio. Ou seja, talvez não seja o esgotamento da inclusão na educação, mas sim, o fracasso da inclusão em compartilhar retornos.
As categorias classe social, raça e gênero são fundamentais e estruturantes na educação.
Esta perspectiva de análise de estatísticas educacionais, correlacionando com raça, renda e pobreza, desmonta a teses ideológicas da OCDE, dos Institutos e Fundações Empresariais, de perspectivas educacionais ancoradas na meritocracia individual, nas avaliações de desempenho, na ideologia “querer é poder” e no discurso simplista que a escolaridade por si só aumentará a renda dos trabalhadores em um país que ainda pratica o trabalho análogo a escravidão. No caso brasileiro, para os pobres, negros e indígenas não é corresponde e, inclusive, já é fator de desistência e descrédito para com o valor da educação em si.
Por fim, não é a estatística ou o indicador educacional que mentem por si, mas a descontextualização e a linguagem secreta dos números, tão atraente em uma cultura votada para os fatos, empregada para reforçar, inflar, confundir e produzir simplificações enganadoras.
Métodos e termos estatísticos são necessários para relatar tendências socais e econômicas, pesquisas de opinião e censos, mas, na educação, requer-se responsabilidade ética, correlações de fatores diversos e análises enquanto totalidade e complexidade do processo formativo da condição humana.
A filósofa e escritora Viviane Mosé conversa sobre vida, morte, sofrimento, o papel da arte e saúde mental, em entrevista ao jornalista Adriano de Lavor, 30/08/2022, Revista Radis. Confira!
Psicóloga, psicanalista, filósofa e escritora, a capixaba Viviane Mosé se sente à vontade para falar sobre saúde mental, não somente por sua formação, mas pelas inquietações e reflexões que a levaram a questionar modelos de raciocínio e verdades absolutas. “Não existem doenças psíquicas, existem diferenças psíquicas”, disparou ao primeiro momento da entrevista que concedeu à Radis, durante o 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, antes de lotar uma das sessões mais disputadas do encontro, que aconteceu no fim de julho na cidade de São Paulo.
Na conversa, ela apresentou um mundo em transição, descrevendo metaforicamente dois movimentos: um prédio que nasce, representando a libertação dos corpos em contraponto à normatividade da razão, e um prédio que cai, constituído pela dificuldade humana em lidar com o sofrimento da certeza de sua própria finitude. Neste cenário, criticou a medicalização excessiva da tristeza e destacou a potência da arte e da complexidade dos corpos como antídotos à loucura. “O sofrimento faz parte da vida e tem que ser tratado com arte”.
“A negação da arte nos hospitaliza”, advertiu Viviane, que defendeu a construção de um novo modelo de saúde, que inclua o delírio, o erro e a fantasia, e destacou o quanto são potentes as vivências da diversidade. Corpos livres, diferentes e potentes contra o controle dos psicofármacos; vidas em diversidade, conectadas pelo uso consciente de instrumentos de comunicação e de construção do conhecimento. “A vida é o que a gente inventa”, propôs a filósofa, vislumbrando um novo ser humano, mais consciente das complexidades de seu corpo e da mente, mais integrado à sociedade e suas complexidades.
De que modo a saúde mental se relaciona com o seu trabalho?
A saúde, especialmente a saúde mental, é meu tema de trabalho a vida inteira. Com 17 anos eu já estava na faculdade de Psicologia, e a minha carreira veio daí. A Filosofia entrou na minha vida como um complemento. E todo o meu trabalho de Filosofia diz respeito ao humano. Minha palestra de hoje é por um ser humano mais amplo. Daí eu discuto o modelo psíquico que nos é imposto e a nossa subjetividade, que é um modelo. A minha questão fundamental não é curar doenças, mas produzir saúde. É a produção de saúde, não a cura de doenças.
Não existem doenças psíquicas, existem diferenças psíquicas, e algumas doem muito, mais do que outras diferenças. Esse é meu trabalho a vida inteira. Por isso estou aqui.
Na apresentação do congresso, um texto destaca o lirismo de Manoel Bandeira, quando diz: “Quero antes o lirismo dos loucos / o lirismo dos bêbados / o lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare / Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. Neste momento em que se busca ou se defende a racionalidade tecnológica, como usar o lirismo para promover a saúde mental?
Eu não concordo que haja uma busca pela racionalidade. Ninguém está buscando racionalidade e não há racionalidade. Nós vivemos hoje a queda drástica da razão. A razão é um modelo de raciocínio que nasceu no pensamento platônico-socrático, mas que se estrutura na modernidade com o pensamento cartesiano. E o pensamento cartesiano, segundo Michel Foucault, é o início da exclusão dos loucos. Como é que começa essa exclusão? Quando eu digo “penso, logo existo”. Mas eu não existo porque penso; eu existo porque eu sinto. Então a ideia cartesiana de “eu existo porque eu penso”, que marca o início da modernidade, nos diz que não é que eu existo porque eu penso; ela nos diz que eu existo porque eu penso do modo cartesiano. Então quem não pensa do modo cartesiano está no lugar da (des)razão. É aí que a história da loucura começa.
“A vida é o que a gente inventa”.
Quais os reflexos disso para a vida?
O que nós temos no mundo é um modelo psíquico que foi inventado e que funciona a partir de um raciocínio em linha, que estabelece que de um lado está o bem e do outro, o mal. Isso não é real. Todo mundo sabe que existem bem e mal, mas ninguém sabe a diferença, onde se encontram um e outro. Ninguém sabe a diferença entre sanidade e loucura, porque a razão (o modelo racional de raciocínio) é um dos maiores produtores de violência e de sofrimento psíquico. Este modelo racional e cartesiano está em franco desabamento.
Hoje nós vivemos o caos da queda da estrutura civilizatória; vivemos a urgência e a necessidade da queda dessa estrutura, e ela cai muito em função das novas mídias, quando saímos de um modelo vertical de gestão para um horizontal. Neste novo modelo também há espaço para a defesa da Terra plana e para a crença de que a vacina não presta, mas isso é bolha, é consequência da liberdade do pensamento que veio com a internet. Hoje vivemos um caos porque tínhamos um modelo pronto de verdades, que eram excludentes, e elas caíram. Ainda bem! Mas ainda não temos uma nova possibilidade. Eu leio esse novo momento como a queda do modelo lógico-racional como predomínio e o nascimento de outros modos de pensar. Isso traz outros seres. E o que é esse novo modo de pensar? É o modo de pensar que inclui o delírio. Não existe um ser humano sem delírio. Todos deliramos, todos imaginamos. Nós todos somos líricos. A vida é o que a gente inventa. Então quando a gente separa a loucura da razão e a chama de (des)razão, nós estamos dizendo que a razão é um pensamento sem loucura e que a loucura não tem razão. Isso não é verdade. A loucura tem a sua razão. Ela tem seu modo de organização. Assim como a razão também tem loucura e delírio. A gente tem que inventar um modelo psíquico que inclua a fantasia e o delírio na nossa vida, que inclua o erro. Temos que ampliar o modelo psíquico não para nos tornarmos melhores como seres humanos, mas para nos tornarmos maiores. Tornando-nos maiores nós incluímos. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas deliravam, viam santos e ninguém as chamava de malucas. Havia um delírio incluído. É claro que na Idade Média também havia pessoas que divergiam. Sempre há quem diverge do modelo e sai na ponta. Mas o importante é perceber que essas pessoas não eram chamadas de doentes. Essa é a questão. Existem diferenças psíquicas; existem pessoas que não conseguem entrar na nossa ordem. E isso não é uma doença.
Ao chamar o seu sofrimento de doença, você fica sob o domínio de quem lhe cura. E quem lhe cura não é um terapeuta, é a medicação psiquiátrica, que cria dependência”.
Mas as políticas públicas e o mercado não tentam estruturar isso de outro modo? Não há um conflito aí?
Quando eu falo isso é porque eu estou fazendo um complô em favor disso. Eu estou aqui para dizer: “Tudo caiu!” Mas é obvio que o mercado vai levar isso por um outro caminho, para uma nova ordem, que é castradora. Mas esse é o melhor momento para a gente, entende? Apesar de todo o sofrimento que ele traz, nós podemos entubar uma nova possibilidade, porque não tem ninguém coordenando esse troço. O mercado virou um salve-se quem puder. É terrível, é cruel. Quem manda hoje no lucro capitalista, basicamente? A indústria farmacêutica! Você fecha uma loja, um restaurante ou um centro cultural e ali abre uma farmácia de quatro quarteirões. É algo inacreditável. A farmacologia, especialmente a psicofarmacologia, aparece como saída para todo mundo que sofre! Mas o sofrimento é parte da vida, e ele tem que ser tratado com arte. Quando a Organização Mundial da Saúde diz que no século 21, se não fosse a pandemia, a doença mais incapacitante do mundo seria a depressão, é porque está se considerando depressão uma diferença individual que diz respeito ao sofrimento.
Hoje, sofrer é ter depressão. Peraí! Então todo mundo que sofre tem depressão? O que é isso? Tornaram-nos deprimidos e a indústria farmacêutica — que não investe em pesquisa e cobra caríssimo pelos seus medicamentos — gasta seus milhões em mídia. Só que mídia de medicação produz doença. Então hoje existe uma produção de depressão para controle social. Passamos a ser controlados por medicações psiquiátricas, e elas são muito competentes. Até a mãe que está amamentando uma criança, cansada, faz um Tik Tok reverenciado o uso de remédios como Rivotril ou Frontal. O que é isso? Então para se ter um filho tem que tomar Frontal? Rivotril, três gotinhas. Isso é moda no Tik Tok: todo mundo que está sofrendo tem que tomar umas gotinhas. Isso também é a destruição da humanidade e é muito grave. Nós não somos deprimidos, estamos sofrendo. É preciso parar de chamar de depressão o sofrimento. Porque ao chamar o seu sofrimento de doença você fica sob o domínio de quem lhe cura. E quem lhe cura não é um terapeuta, é a medicação psiquiátrica, que te cria dependência. Hoje a gente tem uma revolução na psicofarmacologia, com medicamentos incríveis, não é isso? Então por que nunca tivemos tantos deprimidos, suicidas e automutiladores? A medicação psiquiátrica está aumentando o número dessa gente. Então o ser humano tem que resgatar a sua existencialidade e o seu sofrimento para se libertar desse controle social, feito por quem mais lucra no mundo, que é a indústria farmacêutica.
“A negação da arte nos hospitaliza”.
O tema do congresso destaca as antropofagias e as potências da luta antimanicomial. Você apresenta este momento como caótico, mas também muito potente. 100 anos depois da Semana de Arte Moderna, quais são as lições que a antropofagia pode dar para enfrentar esse momento e fortalecer o complô que você propõe?
O que a Semana de Arte Moderna trouxe ao Brasil foi a sua dignidade estética como o povo da diferença. Isso é alucinante! A gente tinha vergonha de existir. E a Semana de Arte Moderna disse: Nós somos incríveis, com toda essa loucura que existe nesse país, com essa mistura de todas as coisas. A Semana de Arte Moderna deu dignidade à cultura popular, colocando-a nos museus; ela trouxe o Brasil para a nossa mão. Então o que é que a gente tira dessa experiência? Que a arte dignifica a nossa existência. Há 100 mil anos, apenas, nascia a nossa espécie, que é a Sapiens sapiens. Ela nasce quando adquire consciência de si, quando começa a enterrar os mortos. Ali você já vê que há consciência.
O que é a nossa dor humana? É a dor de existir. É saber que se nasce e que se morre. É terrível descobrir isso, desde criança, quando se entende que há um fim. O que faz com que a gente não enlouqueça, no pior sentido? É a arte! Então você se descobre mortal, mas você se descobre criador. A arte não pertence aos artistas. A arte pertence a todos nós. É isso que a Semana de Arte Moderna nos ensina. Que nós somos artistas quando compomos a nossa casa, especialmente no Brasil. Eu conheço o Brasil como a palma da minha mão. Quando você chega ao Nordeste, que é nossa área mais pobre, quando você chega a uma favela, assim como quando você chega ao continente africano, o que você encontra? Arte brotando por todos os lados. A África é o continente mais pobre do mundo, mas a música do mundo nasceu na África. A negação da arte nos hospitaliza. Então se a gente quer falar de luta antimanicomial, a gente tem que falar de uma sociedade que ama e cultiva a arte e a cultura.
Neste cenário de resgate das potências da luta antimanicomial, qual é o papel da comunicação?
A comunicação é o que domina nosso mundo. A terceira guerra mundial não é o coronavírus. É a guerra da informação. Nós vivemos uma guerra diária pela informação. Quantas pessoas morreram porque não tomaram a vacina? A gente tem que ter raiva delas porque eram negacionistas? Não, eram apenas pessoas que foram influenciadas por notícias erradas. Elas acreditaram na cloroquina, ou que dentro da vacina havia um chip que iria transformar as pessoas em jacarés. De onde vem o controle de corpos hoje, que nos diminui tanto? Vem da informação, do conhecimento e da comunicação. A gente só vai conseguir resgatar os ideais da Semana de Arte Moderna e do Movimento Antimanicomial, que é um movimento libertador, se resgatar os ideais desse movimento que realmente entrou com tudo. Como é que a gente faz isso? Compreendendo que nós somos dominados pelo conhecimento e pela informação.
Que movimentos, hoje, você identifica como contrapontos a esse aprisionamento e a esse controle de corpos e mentes?
Eu sinto que a grande abertura psíquica que vivemos ainda não é proporcionada pela arte. Até porque a gente viveu essa pandemia e o isolamento atrapalha muito o processo artístico. O que vejo claramente como algo que rompe, hoje, e que é interessante para se pensar no debate sobre saúde mental, é a transexualidade e a diversidade de gênero. A possibilidade de corpos livres, que se combinam em masculino e feminino como bem entendem. A gente já mexe no corpo há muitos anos, faz plástica, faz cirurgias, mas isso pode, né? Então porque não posso colocar peito, retirar peito e mudar?
As pessoas hoje, na transexualidade, estão criando um movimento que não é somente relacionado ao corpo. É algo que se relaciona com um novo ser humano. Vou falar de outra maneira. Quando fiz Psicologia, na Universidade Federal do Espírito Santo, uma excelente universidade, a gente já sabia que a homossexualidade não era doença. Ninguém nem discutia isso. Mas a gente tratava a transexualidade como um desvio grave de papel. Hoje, a gente sabe que isso não é verdade. A gente sabe que pessoas não são masculinas ou femininas. A oposição entre masculino e feminino existe em consequência da oposição entre bem e mal, que caiu. Então quando cai a oposição entre bem e mal, saúde e doença, cai também o modelo psíquico básico que diz que mulher é uma coisa, homem uma oposta e que no meio está tudo errado. Isso não é verdade. Homem tem muito de mulher e mulher tem muito de homem. E não deixam de ser mulher ou homem. Pessoas que se colocam na transição de gênero estão abrindo uma possibilidade humana muito grande. Grande parte das hospitalizações feitas no século 20 tinham relação com a diversidade de gênero, porque se aceitava que um homem se colocasse como mulher, mas não se aceitava que uma mulher que se colocasse metade dela mulher e a outra metade, homem. Isso não podia, era um desvio grave. Hoje, você anda na rua e vê um cara de barba, batom vermelho e brinco. E o que você tem com isso, se é assim que ele se sente? O mundo está rompendo, de um modo inacreditável, para a liberdade da diferença. Isso é uma coisa legal, é bom, algo que eu chamo de “prédio que nasce”. Mas há também “o prédio que cai”, ao mesmo tempo. E o que cai é aquele que pega a nossa depressão e a medica.
De que modo isso acontece?
Nós estamos entre dois movimentos: Um deles é o movimento de libertação do corpo, do pensamento, por um ser humano maior, onde os gordos podem viver felizes, os velhos podem transar e viver, as pessoas que têm limites físicos podem ser felizes. Hoje tudo está mudando. Se você não tem uma perna, se você só tem o tronco, você se maquia toda, aparece e se casa! Então hoje não importa se você não tem perna, não tem braço, se tem vitiligo. Tudo isso é colocado como bonito. A sociedade em rede está acabando com muitas exclusões — e que geram internações. Então jovens que tem uma diversidade de gênero grande, pessoas muito gordas ou muito magras, muito bonitas ou muito feias, tudo isso era um inferno, e hoje não há mais isso. Assumimos os obesos. Se é uma questão de saúde, isso é problema deles, mas eles existem. Isso é legal, é o prédio que nasce.
E o prédio que cai…
O prédio que cai é representado por todos nós, que não sabemos lidar com o sofrimento e estamos à mercê da indústria. A indústria nos capta por meio da medicação psiquiátrica. A Inteligência Artificial é a nova revolução que vai acontecer no mundo. E ela vai se ocupar do que? Da sua decisão. Quando você é deprimido e medicado, é mais fácil você comprar um produto de Inteligência Artificial. Existe um complô, que não é organizado por uma pessoa, e não é uma teoria da conspiração, mas o mercado, há muitos anos, nos adoece para nos tratar depois. Diz o Michel Foucault: No controle social, no controle do poder, descobriu-se que é mais barato criar um fraco do que punir um forte. O poder repressivo pega você, que é forte, te tortura e te manda para a cadeia. E o poder disciplinar cria você fraco. Somos uma sociedade de produção de fraqueza. Fraqueza que depois será dominada pela medicação.
Como reagir a isso?
O outro caminho é: sejamos gordos, sejamos velhos, sejamos sem perna, sejamos transexuais, sejamos o que quisermos. Isso é o novo ser humano. E isso é produção de saúde. Eu existo no mundo e eu tenho direito a existir. É uma trajetória entre o meu nascimento e a minha morte, que eu traço como eu quero. Se eu não estiver machucando ninguém, se eu seguir respeitando os outros, por que eu não posso ser como quero?
Entendendo sua fala como uma injeção de potência na luta por uma nova ideia de Saúde, qual a contribuição da Filosofia à formação de novos profissionais?
A Filosofia tem total contribuição. Eu discuto muito com meu filho sobre estas possibilidades. Ele tem 18 anos e vê o mundo a partir de sua destruição. Ele me fala: “Mãe, não tem jeito. Olha o meio ambiente, isso e aquilo não têm jeito”. Eu digo a ele: “Olhe só, nós não temos uma sociedade em rede? Temos! Não nos comunicamos, todos, com o mundo inteiro, mesmo com todas as diferenças, inclusive com quem não acredita em vacina, inclusive com quem acredita em Terra plana?” Ele responde: “É, mãe”. Há uma mudança conceitual nesta rede.
Em cinco anos temos outro mundo. Nós temos tecnologia para resolvermos os problemas em nossos mares, para clonar animais e plantas, para resolver a vida neste planeta, sim nós temos. O que não temos é vontade política. Uma mudança conceitual de pensamento muda o mundo, certo? Profissionais de saúde hoje continuam trabalhando no sufoco, assim como os professores. Neste momento, não somos mais consumidores, nós somos o produto. Robôs brigam para que nossas cabeças se transformem em consumidoras. É um troço terrível! Neste contexto, quando os profissionais de saúde entendem essa interpretação eles se potencializam. Porque o que potencializa um profissional de saúde é ele entender o que é o jogo, porque senão, como humano, ele submerge no mesmo buraco, achando que não tem saída, que é um retrocesso.
Como lidar com a ideia de retrocesso?
Retrocesso só existe para quem acredita em progresso. Progresso é uma ideia ridícula, que diz que a gente vai do menos para o mais desenvolvido. Mas o mundo caminha para frente, para trás, de lado, de banda, não existe uma linha. Então, e daí se estamos em retrocesso? Um retrocesso pode significar um respiro para um avanço imenso, posterior.
O mundo não caminha somente para frente, então retrocesso não é um problema. Estar em retrocesso pode ser bom para a gente sentir na carne a importância da liberdade, para entender como se vota… Então tudo isso não é o problema. A questão é entender que quando a gente sofre um abismo como o que a gente vive agora, a hora é de se potencializar para dar um maior salto. E quem é que vai dar este salto? O profissional de saúde e o profissional da educação, basicamente. Antes, era mais o da educação; hoje é mais o da saúde porque a doença psíquica domina o planeta. Antigamente o professor era o profissional mais valorizado — e eu falo isso direto para eles. Agora, é a hora da Saúde, infelizmente, porque o analfabetismo, que era nosso grande problema, ainda existe, mas hoje é o suicídio de jovens que é a segunda causa de mortes entre jovens e a primeira entre crianças, em muitas partes do mundo. Em muitas cidades americanas, é a primeira causa de morte entre crianças, superando inclusive em número os acidentes.
Historicamente, qual o papel de uma pandemia neste cenário que você descreve? Ela acelera, ela faz parte, ela não impacta… Qual é a sua avaliação deste momento que a gente ainda vive?
A gente só sabe o que acontece com a gente depois. Nós ainda estamos em uma pandemia, mesmo que não usemos mais máscaras. Só que a gente viveu, durante dois anos, assistindo a covas coletivas sendo furadas para enterrar pessoas. Então o que nós sofremos, isolados dentro de casa, com medo de respirar o ar que podia nos matar, foi desesperador. Isso inevitavelmente muda as pessoas. Mas elas não mudam racionalmente. “Ah, ninguém mudou”, podem pensar. Não mudou racionalmente. Eu vi uma matéria esta semana dando conta de que existe na Europa um acúmulo de produtos. As pessoas não estão comprando. O mercado imaginou que as pessoas, saindo de uma pandemia, iriam surtar. Ninguém sabe o que fazer. As pessoas hoje não compram produtos, elas compram virtualidades. E mais outra coisa. O mercado está mudando. Nós vamos trabalhar quatro dias na semana. Isso já está acontecendo no mundo todo. E o que é que se vai fazer nesse terceiro dia? Arte e cultura! E por que isso? Porque as empresas de tecnologias estão vendo o suicídio de seus líderes, no mundo todo. Em Franca, São Paulo, já existem algumas empresas que não trabalham às quartas-feiras. O que eles descobriram: que a lucratividade melhora. Estamos em um mundo de mudanças!
Fundir o pensamento do poeta do inefável, Rainer Maria Rilke, com as ideias da “lenda viva de Harvard”, Edward O. Wilson, pode soar absurdo, a menos que se considere a criação artística e a prática científica como indissociáveis.
Indiscutivelmente, Cartas a um jovem poeta, de Rilke, e Cartas a um jovem cientista, de Wilson, são duas obras imprescindíveis de orientação para quem pensa em se aventurar no mundo da poesia e/ou no mundo da ciência, uma vez que em ambos há mais pontos em comum do que se poderia imaginar à primeira vista. Resumindo: o cientista ideal, de Wilson, deve pensar como um poeta, e o poeta ideal, de Rilke, deve pensar como um cientista.
Em 1929, foram reunidas as 10 cartas que Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta nascido em Praga e expoente das letras alemãs, trocou com Franz Xaver Kappus, o jovem que ambicionava ser poeta.
Nessas peças epistolares, Rilke, com clareza avassaladora e elevada densidade poética, diz coisas que se aplicam tanto a um aprendiz de poeta quanto a um estudante de iniciação científica. Por exemplo, que nem tudo é tão fácil de aprender e nem de dizer como normalmente somos levados a acreditar. Ou, ao sugerir, para maior chance de êxito em algo relevante, que sejam evitados temas e formas muitos usuais e comuns de escrever, exemplificando com o caso dos poemas de amor. A dificuldade é sempre maior em meio à profusão de coisas boas e algumas até brilhantes.
Ainda: quando diz que não se deve esperar uma resposta de fora (do ambiente externo) para questões que apenas podem ser respondidas intimamente. E, especialmente, ao afirmar que a tão comum tendência para a dúvida, que graceja entre as pessoas, se bem educada e usada com inteligência, pode se tornar uma qualidade positiva. Pois, quando essa dúvida for capaz de ser convertida em crítica e virar saber, deixará de ser meramente destruidora para se converter em colaboradora/construtora.
Edward O. Wilson (1929-2021) é um dos principais expoentes da ciência contemporânea. Professor emérito da Universidade Harvard, foi criador de disciplinas (biogeografia e sociobiologia, por exemplo) e de conceitos científicos (biofilia, biodiversidade e consiliência) visando à unificação das áreas de humanidades com as outras ciências, além da iniciativa de criação da Enciclopédia da Vida, que se configura em marco sem precedentes para estudos da biodiversidade global.
Wilson também é autor de dezenas de livros, sendo vencedor de dois Prêmios Pulitzer. Ao longo de uma carreira científica de mais de 60 anos, Edward O. Wilson produziu obras de valor inestimável. Este é o caso do livro Letters to a young scientist (Cartas a um jovem cientista), lançado em 2013.
Em Cartas a um jovem cientista, Wilson usa a si mesmo como referência para sugerir a essência do que é necessário para alguém ser bem sucedido na carreira científica.
Começa realçando que o conhecimento científico dobra a cada 15 anos, dificultando sobremaneira quem pretende saber tudo ou intenciona apenas se manter atualizado.
Destaca que a nossa ignorância sobre o tamanho da biodiversidade terrestre coloca essa área da biologia entre as portadoras de futuro. E condiciona que qualquer pretendente a cientista dever ter bem claro que a prática científica hoje é baseada em uso de tecnologia (equipamentos de pesquisa, por exemplo), que a tecnologia que permeia o nosso dia a dia é derivada do conhecimento científico e que a indústria contemporânea é baseada em tecnologia e ciência. Eis um novo mundo não tão simples assim.
Wilson orienta que a paixão pela descoberta vem antes do treinamento, ainda que esse seja imprescindível. E que bons mentores/orientadores são essenciais na formação dos jovens cientistas, pois são eles, pelos exemplos pessoais, que modelam valores e comportamentos. Realça que, por mais glamorosas e atrativas as áreas científicas da ocasião, deve-se sempre buscar o novo, onde poucos estejam trabalhando, pois como também frisou Rilke ao aprendiz de poeta, aí as chances de sucesso são maiores.
Finaliza lembrando que a prática científica é a busca pela verdade. E isso, acima de tudo, exige ética, pois se atua numa espécie de campo minado em que vicejam vaidades, competições pessoais e invejas de toda sorte.
E, de resto, poeticamente lembrando, é deixar a vida acontecer.
Do livro: Ah! Essa estranha instituição chamada ciência, 2021.