Barcos à deriva

Desmanteladas as seguranças que nos mantinham de pé, desfeitos os pontos sólidos que marcavam nossos passos, instala-se uma espécie de abismo sem fundo ou de horizonte frio, opaco e indefinido.

Nos tempos modernos ou pós-modernos, ruíram os pilares que sustentavam determinadas referências históricas, culturais ou de tradições familiares. Termos como razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia perdem a aura de deuses, convertendo-se em meros ídolos. As certezas são substituídas pelas dúvidas, as verdades cedem o lugar a hipóteses ou mesmo opiniões. Os astros luminosos se apagam na noite escura, as placas de trânsito desaparecem da estrada e o chão firme se rompe sob os pés.

Tudo parece sacudir, tremer, vacilar, como em um terremoto imaterial, mas nem por isso menos nocivo. Daí o resultado de multiplicarem-se o medo, a inércia, a depressão e a sensação de vertigem. Não se trata de uma época de mudanças, e sim de uma mudança de época. Uma transição, mas transição estranha, incógnita: sabemos de onde viemos, mas desconhecemos para onde nos dirigimos. Encontramo-nos sobre uma espécie de ponte pênsil, na travessia de um rio turbulento, de correntes descontroladas.

Desmanteladas as seguranças que nos mantinham de pé, desfeitos os pontos sólidos que marcavam nossos passos, instala-se uma espécie de abismo sem fundo ou de horizonte frio, opaco e indefinido.

Cabe aqui o adjetivo “líquido”, cunhado por Zygmunt Bauman, para caracterizar a sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo que a terra se desfaz, o céu permanece indiferente. É como se subitamente tivéssemos ficado sós, órfãos, vazios, errantes. Por todos os lados do nosso edifício desabitado, brotam as ervas daninhas da insegurança, da incerteza e da inquietude. Destruindo os valores e sinais que nos orientavam no passado, arruinamos igualmente o presente. Ao mesmo tempo que jogamos nuvens sombrias sobre o futuro. O horizonte se converteu num campo nublado.

O temor e tremor da solidão leva a buscar refúgio fora de nós mesmos.

Cada um como que se tornou o pior inimigo de si próprio. A companhia que mais tememos é nosso “eu” inquieto e irrequieto. Coisa que nos leva à busca obsessiva de pessoas, de gente, seja quem for… da multidão. Esta se converte, contemporaneamente, em lugar para se esconder, mas também em momento para se manifestar.

Escondemos o rosto no oceano anônimo de outras faces. Todos aflitos e apressados, sem saber exatamente para onde vão e o que buscam. Espremidos na multidão, borram-se os contornos de uma identidade enferma e fragmentada. O grande rio e a torrente dos transeuntes tudo baralha e confunde, tudo distorce e apaga.

Por outro lado, e de igual maneira, passamos a compensar o vazio com a posse de “coisas”. Quanto maior a quantidade, melhor podemos nos ocultar a nós mesmos. As sucessivas ondas da moda nos conduzem a um consumismo exacerbado. Enchemos a casa, o quarto, o armário e as gavetas com a maior variedade de objetos, não raro repetidos. Fixamo-nos neles como se representassem tábuas de salvação. Compramos certos produtos que, antes mesmo de desfeito o embrulho, já se converteram em lixo.

Nem nos damos conta que quanto mais abarrotados de “coisas”, mais afastamos permanecemos das pessoas e de nós mesmos, para nem falar de Deus. Mercadoria e multidão funcionam como altares onde oferecemos aos deuses/ídolos cada minuto, cada hora e cada dia de nosso tempo atribulado.

Entretanto, a multidão também é o terreno onde tentamos nos manifestar. Não com voz, rosto e olhar próprios, mas no espectro diabólico de grupos que primam pelo ódio e pela fúria. Sem paradigma e sem princípios de orientação, facilmente seguimos o primeiro rebanho que aparecer no caminho.

O rebanho tende a baixar o nível de reflexão e do bom senso geral, a bestializar cada indivíduo, o qual, por sua vez, também facilmente se torna um desconhecido selvagem.

Quando solitário, revela toda sua fraqueza e timidez; na multidão cega e ensandecida, grita forte, bate os punhos e devasta o que encontra pela frente. A falta de referências e de relações sólidas brutaliza até os limites da insanidade. Com relativa frequência, se transforma num barco à deriva em meio às tempestades socioeconômicas ou político-culturais. Por isso seus gritos, ofensas e ataques bestiais, por mais inflamados que sejam, não passam de braçadas de náufragos que, sem bússola e sem enxergar o farol nem porto, tentam a todo custo escapar das águas turvas e bravias.

Autor: Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo. Também escreveu e publicou no site “Consumismo e felicidade: uma relação inviável”: www.neipies.com/consumismo-e-felicidade-uma-relacao-inviavel/

Edição: A. R.

50 anos de lutas e resistência!

Ocorreu no último dia 23 de setembro uma homenagem na Câmara de Vereadores de Passo Fundo em comemoração aos 50 anos do Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo. Durante a solenidade foi entregue uma placa comemorativa pela passagem do cinquentenário da entidade. Verdadeiramente, um momento histórico de um patrimônio de educadoras e educadores, assim como da classe trabalhadora de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul.

Fundado em 14 de setembro de 1974, O Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato, da região do Planalto Norte do estado, teve como sua primeira diretora a professora Santina Rodrigues Dal Paz, ocupando esse cargo por oito anos, até 1982. Antes da fundação, a região de Passo Fundo era acompanhada por uma supervisora do CPERS, posição ocupada por anos pela prof.ª Olga Poletto.

Atualmente o Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato, cobre 29 municípios, com cerca de 3200 filiadas e filiados no seu quadro social. É o 4º maior núcleo do Rio do Grande do Sul. Tem destacada atuação, tanto na cidade de Passo Fundo quanto nos municípios de sua área de abrangência. Por isso, o mesmo caráter que a cidade tem – de eixo integrador de sua região – pode ser atribuído ao Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato.

Fez e faz parcerias com diversas entidades influentes na área educacional, como a Universidade de Passo Fundo (UPF) e o Centro Municipal de Professores – Sindicato (CMP). O título de Cidade Educadora, que a cidade detém, em grande parte é devido à atuação do núcleo como protagonista nos debates educacionais.

Desde sua fundação, o Sétimo Núcleo do CPERS preocupou-se com a defesa da educação pública e gratuita. Foram vários os encontros, seminários e colóquios realizados pelas diretorias do núcleo, como o Seminário Regional de Educação, que ocorreu no princípio dos anos 1980, dando origem ao Colóquio Nacional e Internacional de Educação Popular, importante debate da educação que queremos, sua função social e importância para as filhas e filhos da classe trabalhadora. Deste mesmo período temos o registro da participação na primeira atividade política de grande importância: o movimento das Diretas Já, que teve o protagonismo do núcleo em sua área de atuação. Além disso, o surgimento do movimento feminista em Passo Fundo teve destacada atuação do núcleo.

A tradição de organização de eventos políticos, culturais e científicos, assim como a participação nos diferentes movimentos sociais, é marca registrada do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato em Passo Fundo e na região de atendimento do núcleo. Só dos Colóquios Nacionais de Educação Popular tivemos 12 edições, que ocorreram ao longo de 24 anos, com a presença de especialistas na área do Brasil e de vários países. O compromisso com uma educação pública gratuita e de qualidade sempre esteve presente.

Nos últimos anos, a principal tarefa do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato tem sido a da resistência.

Por, pelo menos, uma década que as carreiras da educação, assim como a escola pública, têm sido vítimas de incessantes ataques travestidos de “modernização”. Aumento da carga de trabalho, terceirizações, privatizações de áreas-chave, como currículo e as plataformas de ensino online, perda de direitos e achatamento salarial têm sido a tônica dos governos estaduais. O núcleo, nesse sentido, tem sido fortemente atuante na defesa dos direitos da categoria, na defesa de uma escola pública gratuita, laica, democrática e comprometida com a parcela mais pobre da população. E não o faz sozinho: sempre buscou e busca estar em articulação com os movimentos sociais da cidade, por entender que é pela união da classe trabalhadora e do povo pobre que a educação que desejamos será alcançada.

Homenagem da Câmara de Vereadores de Passo Fundo.

Ocorreu na noite desta segunda (23) Sessão Solene realizada na Câmara de Vereadores. A iniciativa foi da Mesa Diretora, a pedido da diretoria do Sétimo Núcleo do CPERS/Sindicato. Compareceram cerca de 100 pessoas, entre integrantes da categoria, ex-diretores, representantes de outros núcleos do CPERS e convidados.

Foram exibidos dois vídeos: um dos diversas fotos de mobilizações da categoria, com o Hino da Greve do CPERS ao fundo – o que arrancou aplausos das/os presentes, que cantaram junto – e um com momentos e testemunhos da História dos 50 anos da entidade. Fizeram uso da palavra a vereadora Prof.ª Regina (PDT), representando o legislativo municipal, e o diretor-geral, Orlando Marcelino.

Durante a solenidade foi entregue, pela presidente em exercício da Câmara, vereadora Janaína Portela (MDB) uma placa comemorativa pela passagem do cinquentenário do Sétimo Núcleo. Verdadeiramente um momento histórico de um patrimônio de educadoras e educadores, assim como da classe trabalhadora de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul.

Depoimento do Diretor Geral Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo/RS, Orlando Marcelino da Silva Filho:

“Em 14 de setembro de 1974 fundou-se o 7º Núcleo do CPERS-Sindicato em Passo Fundo e Região. A partir daí, nos tornamos referência nas lutas por salário e direitos dos trabalhadores em educação (professores e funcionários de escola). Mas, muito mais do que a luta corporativa, somos impulsionadores das lutas sociais, da organização dos trabalhadores da nossa região por entendermos que a emancipação da classe é um processo coletivo social e transformador. A homenagem da Câmara de Vereadores de Passo Fundo, com a sessão Solene do dia 23 de setembro tem este signo, que, muito além da luta por salário, o 7º Núcleo do CPERS-Sindicato (trabalhadoras e trabalhadores da educação) cumprem um papel social de impulsionar e organizar a nossa classe como sujeitos da História e na construção de uma sociedade justa e igualitária.

Nos sentimos honrados, felizes pelo reconhecimento e, principalmente, pela consolidação da consigna de que os trabalhadores só conseguirão a sua emancipação coletivamente, como já dizia o Velho: “trabalhadores do mundo, uni-vos…”

Fotos: Sétimo Núcleo do CPERS Passo Fundo/ Divulgação

Edição: A. R.

Da Caverna à Primavera

Quando vier a Primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira/ E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada/ A realidade não precisa de mim. (Fernando Pessoa)

Durante o inverno Brado Retumbante hibernou em sua caverna. Baixou as cortinas, fechou portas e janelas, desligou telefones, computador e não recebeu quaisquer tipos de visitas. Aproveitou também economizar nos banhos, na feitura da barba e no corte dos cabelos. Avisou o porteiro que só voltaria no início da primavera. Para o senso comum, Werther que só andava pelas beiradas das coisas, tornou-se um Nonada, no sentido de Grande Sertão Veredas.  

Finda a estação, Brado Retumbante sacudiu-se todo para derrubar seus parasitas interiores e exteriores com chás e banhos de imersão, esfregando-se até gastar sua pele embrutecida. Um novo homem haveria de impressionar positivamente o gado que estava retido nas cercas de um mundo com suas eternas contradições.

Avisou a imprensa sobre a experiência de três meses no interior da bolha da caverna. Ao dar suas primeiras voltas na Pólis, estranhou que ninguém o reconheceu e nem sequer lhe cumprimentou. Talvez pelos óculos escuros para fim de adaptar-se à claridade ofuscante da luz do sol. Despreparado fisicamente, retornou à caverna doméstica cansado e ofegante. Pediu água e recolheu-se ao ninho caótico e mofado até o novo dia cinzento com sol avermelhado. Deu-lhe náuseas e tosses intermitentes o ar com cheiro de cinzas.

Contaram-lhe que uma parte do Brasil estava em chamas: a Amazônia Legal, o Pantanal, os cafezais e os canaviais. A outra parte mais ao sul estava sofrendo com as intempéries: enchentes, temporais, ventanias, raios. Pensou:

– Até parece o Juízo Final. Ou é o tal do Aquecimento Global sobre o qual tanto falam?

– Isso mesmo! Mas não só no Brasil. Aonde olhares, podes verificar o derretimento das geleiras, o aumento da temperatura global, as secas e as enchentes, dentre outras movimentações verificadas na natureza. Porém não é só isso, Brado Retumbante.

– Certas criaturas do planeta Terra parecem que estar em transe. Reinventaram as guerras, novas armas de destruição em massa, venenos que estão causando novas doenças.  Em que mundo estiveste e em qual estás, Brado Retumbante?! E tem mais, caro vivente:

– A pior invenção da humanidade, as guerras, retornaram com tudo. Veja o que acontece entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e Palestina/Líbano!  Dá a impressão de que retornamos aos tempos bárbaros!

– É, pois é, exclamou Brado!

Em todo o Brasil vemos Organizações criminosas promovendo chacinas, dominando bairros e vilas, mantendo famílias reféns dos seus interesses. E, o pior, certos aspirantes ao poder pregam exemplarmente a violência com socos e cadeiraços nos debates eleitorais. Há, inclusive, sugestão de pancadaços nos centros urbanos.

– Não acredito! A que nível chegamos… Dá até vontade de me recolher definitivamente à caverna! Mas não! Sou resiliente e confiante, pois nada melhor do que apreciar o riso espontâneo e puro de uma criança. Admirar o desabrochar das flores dos ipês e ver assegurados os direitos humanos entre as pessoas e os países. Preservar os mares, os rios, a terra e o ar é, sobretudo, preservar a vida que pulsa em tudo. 

Vai com tudo, Brado Retumbante!

Autor: Eládio Vilmar Weschenfelder. Também escreveu e publicou no site crônica “Rios do céu e da terra”: www.neipies.com/rios-do-ceu-e-da-terra/

Edição: A. R.

Com chantili, com afeto

O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.

— Vai ter chantili? — Essa pergunta, aparentemente fora de contexto para o ambiente escolar, é frequente entre as alunas do projeto SOFIA – Leitura e Escrita Criativa.

O SOFIA vai além da leitura e da escrita. Ele propõe a construção de um espaço onde cada um pode ser o que é, cercado por uma rede de afeto. Embora tenha começado como um projeto de leitura, rapidamente se tornou um círculo de convivência.

Logomarca do projeto

Nesse espaço, não há imposição de matérias, nem pressão por alto desempenho. O ingresso é voluntário, e quem decide sair o faz sem problemas. As únicas exigências são bom comportamento, boas notas e o compromisso de ler ao menos parte dos livros disponíveis. No entanto, o que prevalece é o afeto.

Os alunos, ao oferecerem essas “moedas de troca”, ganham mais do que livros emprestados ou sorteados para chamar de seus. Eles têm a oportunidade de se expressar em bate-papos literários, sem a pressão de notas, ou de simplesmente ouvir, se preferirem.

Também participam de passeios a livrarias, eventos e oficinas, além de receberem visitas de artistas e pesquisadores, que vêm à escola para compartilhar experiências. Um dos primeiros gestos do SOFIA, por exemplo, foi uma sessão de fotos com as alunas iniciais, realizada por um fotógrafo particular — algo que, talvez, tenha um impacto positivo na autoestima das estudantes.

E ganham chantili. Desde o início, as alunas pediram comida nos encontros, porque sabem, intuitivamente, que a comida une. Compartilhar uma refeição não sacia apenas a fome física, mas também a da alma. Quando paramos para tomar um café e conversar, sentimos segurança e esperança. Afinal, só quem tem esperança se alimenta; só quem tem esperança lê um livro.

O chantili, nas confraternizações do SOFIA, virou sucesso. Embora delicioso no café, acredito que o sucesso vai além do sabor. Servir chantili é uma forma de mostrar afeto, de demonstrar cuidado. Às vezes, são os pequenos gestos que mais marcam. Como professor, espero que associem esses momentos à leitura e, um dia, façam seu próprio chantili, enquanto saboreiam um café com um bom livro.

Talvez se lembrem do SOFIA. Talvez se lembrem de mim. Talvez aprendamos melhor quando nos sentimos seguros. Talvez a educação seja — ou deveria ser — como tomar um café com amigos. Com chantili, com afeto.

O SOFIA – Leitura e Escrita Criativa é um projeto desenvolvido na EMEF Daniel Dipp, de incentivo à leitura. Em torno da leitura, os alunos realizam bate-papos, passeios, oficinas, confraternizações e muito mais.

Autor: Aleixo da Rosa. Também escreveu e publicou no site a crônica “Projeto Sofia: onde a leitura e a escrita iluminam os sonhos”: www.neipies.com/projeto-sofia-onde-a-leitura-e-a-escrita-iluminam-os-sonhos/

Edição: A. R.

“A questão ambiental é a maior urgência que vivemos”

Autora de romance sobre luta ambiental, Morgana Kretzmann reivindica temas sociais
e climáticos para sua literatura. Autora trata literatura como ferramenta didático-
pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo
com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores.

Por Luiza Zauza

Um ecossistema ameaçado por um empreendimento predatório. Uma comunidade à
mercê da ambição mesquinha e maliciosa de políticos e empresários corruptos. Um
esquema de contrabando marcado por violência, heranças e prejuízos ambientais. Essas
são algumas premissas do enredo de Água Turva, romance recente de Morgana
Kretzmann. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A
proximidade entre ficção e realidade faz parte do projeto literário da atriz e escritora
gaúcha.

“Eu venho de um lugar onde quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na
ficção”, afirma. Esse lugar de que Morgana fala é onde se passa a trama de seu livro e
de onde ela conversa com Radis (https://radis.ensp.fiocruz.br/ ) por chamada de vídeo:
sua região natal, próxima ao Parque Estadual do Turvo, no interior rural do Rio Grande
do Sul. Foram quatro anos dedicados a construir com detalhes factuais o cenário fictício
ao redor dessa unidade de conservação ambiental, localizada na fronteira entre Brasil e
Argentina, no Noroeste do estado.

A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com seu romance de
estreia Ao pó foi atrás de se especializar em Gestão Ambiental no Instituto Federal
de Santa Catarina, entrevistar profissionais da área e visitar pessoalmente o
Parque do Turvo diversas vezes para contar essa história, que se desenrola em
torno da ameaça de uma hidrelétrica, cuja construção irá alagar a reserva
ambiental, sumindo com o Salto do Yucumã, a maior queda d’água longitudinal do
mundo, e o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.

O pano de fundo turbulento movimenta as ações das três protagonistas: Chaya, guarda-
florestal que vive pela proteção do Turvo; Olga, jornalista e assessora parlamentar do
machista e criminoso deputado Heichma; e Preta, líder do grupo de caçadores e
contrabandistas, Pies Rubros, que atuam pelo Rio Uruguai no lado argentino. O destino
das três se cruza em meio a conflitos familiares e heranças geracionais, numa trama ágil
que evoca a literatura policial para discutir o colapso climático e ambiental.

O que foi rotulado como thriller ecológico, hoje também integra o que tem sido
considerado pelo mercado editorial de cli-fi, climate fiction, ou ficção climática, um
gênero literário que se preocupa em tematizar a emergência climática e os impactos da
ação humana sobre o meio ambiente. Para a autora, Água Turva é o resultado de uma
realidade que é prioridade também para a ficção — “o que vejo como a maior urgência
que vivemos no planeta e que não vai acabar agora”.

No bate-papo de quase uma hora, no fim de junho, Morgana conta sobre o processo de
criação do seu segundo romance, o convívio da natureza com a espiritualidade e como a
literatura pode ser uma ferramenta de mudança. Emocionada, ela também dá um
testemunho sobre a tragédia que, poucos meses depois da publicação de Água Turva,
devastou o Rio Grande do Sul exatamente por consequência do desequilíbrio ecológico.
“Hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana”.
Descubra na entrevista a seguir.

Conte um pouco da sua trajetória até chegar na literatura. Como a escrita se
tornou cada vez mais frequente na sua vida?

Nasci no interior do Brasil, na fronteira com a Argentina, num lugar muito ermo — que
é onde eu estou nesse momento, por sinal. Estudei, porém, em escolas que sempre
incentivaram esse meu lado artístico. A arte surgiu na minha vida muito cedo: dança, teatro e escrita. Com 9 anos, comecei a escrever meus primeiros e pequenos livros.
Inclusive, eu os fabricava: grampeava as folhas e fazia os desenhos. Era uma maneira de
criar o mundo que eu queria estar.

E como você foi da carreira de atriz para a de escritora?

Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre, comecei a trabalhar como atriz.
Estudei no Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre) e, depois, na Escola de Atores. Fui
para o Rio de Janeiro fazer CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), uma das escolas mais
conceituadas e importantes do Brasil. E foi no Rio que comecei a ter menos vergonha de
mostrar o que escrevia. Nunca havia publicado nada, a não ser em blogs, onde deixava
alguns textos, poemas e coisas muito loucas que não tinham nem gênero específico.
Quando casei com o Paulo Scott, que também é escritor, eu já estava morando no Rio
de Janeiro de novo e comecei a fazer um curso de extensão de Roteiro Cinematográfico
na PUC-Rio. É nele que realmente começo a escrever e surge meu primeiro livro, Ao
pó, com o qual ganhei o Prêmio São Paulo. Esse livro nasce como um roteiro, mas
começa a virar um romance e eu passo sete anos escrevendo-o, tentando encontrar a
linguagem, reescrevendo-o várias e várias vezes. Quando eu já era finalista do Prêmio
[São Paulo de Literatura], começaram a surgir convites para editoras maiores.

E como nasceu o romance Água Turva?

Acabei optando pela Companhia das Letras, onde publiquei, então, o Água Turva, que é
esse livro que fala sobre crimes ambientais e tem pinceladas do que é o aquecimento
global. E os próximos livros, que já assinei com eles, também terão questões ambientais
e sociais, que permeiam a minha arte. Nesse meio tempo, também me formei em Gestão
Ambiental, não para trabalhar como gestora, mas para poder colocar [em Água Turva]
os temas ambientais que o planeta vive, o que hoje vejo como a maior urgência que
vivemos e que não vai acabar agora. Eu vou morrer e isso vai continuar sendo uma
urgência. Queria estudar para poder escrever, não falar bobagem; para ter um pouco
mais de domínio das coisas. E foi imprescindível, tanto que o meu trabalho de
conclusão de curso era literatura e meio ambiente: a importância da literatura como
ferramenta didático-pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica
e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores. O que
posso dizer é que Água Turva seria a aplicação da pesquisa que fiz.

A literatura se torna então um instrumento para refletir sobre a realidade,
correto?

Hoje, três meses depois do lançamento, percebo que o meu projeto de pesquisa não
estava errado, já que realmente o livro está chegando em pessoas que, inclusive, diziam
que não liam nada sobre meio ambiente porque parecia chato. Tem gente que na
literatura compara [as discussões sobre] meio ambiente com ficção científica, como se isso estivesse longe da realidade. De repente, você começa a ver coisas reais, como o
que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e pega um livro que trata de problemas
ambientais e que também se passa aqui. Um livro que tem uma linguagem ágil. É um
thriller que fala de assuntos afetivos, de uma saga familiar. Quando eu dizia que, através
da literatura, as pessoas poderiam ter um novo tipo de afeto em relação ao planeta,
percebo que, com Água Turva, isso está acontecendo.

Como foi transformar sua pesquisa acadêmica em ficção?

Eu não transformo pesquisa acadêmica em ficção. Eu faço ficção, como sempre
trabalhei. Porém, os conhecimentos que adquiri durante a faculdade estão ali dentro,
como as leis ambientais, sobre caça e unidades de conservação. Só para o Parque do
Turvo eu viajei cinco vezes para entrevistar guardas florestais, funcionários, ribeirinhos,
pessoas que moram do lado argentino e do lado brasileiro do parque. Tudo isso para
entender os crimes ambientais que acontecem nessa região. Considero a geografia do
Parque Estadual do Turvo perfeita para essa história, não só porque é uma unidade de
conservação, mas porque está numa fronteira, dividida por um rio. Consigo tratar, então,
não só de crimes ambientais, mas de toda uma gama de crimes que permeiam uma
fronteira. Uma fronteira que não tem policiamento e tem as próprias leis. Quando crio
os Pies Rubros, um grupo de caçadores de animais silvestres e contrabandistas que
moram do lado argentino, é porque sabemos que nesse lugar há um acordo entre as
pessoas do local, que vai além das leis que temos na nossa ou na constituição argentina.
Queria escrever um livro policial que falasse de crimes ambientais e fronteiriços. E esse
era o lugar mais propício para fazer isso.

O que a abordagem policial trouxe para o livro?

Tenho um incômodo muito grande quando colocam livros policiais como um gênero
menor. Não é de maneira nenhuma. Quando digo que é uma obra policial, não estou
diminuindo a minha história. Passei quatro anos escrevendo. Ele tem quase 300 páginas,
foi feita uma baita pesquisa. Entrei dentro do Parque Estadual do Turvo com o meu
irmão, num lugar muito ermo, junto com um guarda-florestal, para encontrar os
acampamentos desativados de caçadores, as cevas, os trepeiros [caçadores que sobem
em cima das árvores para preparar armadilhas e capturar animais]. Tudo isso foi super
perigoso. Os caçadores estavam lá, tivemos que fugir. Toda essa sensação de fuga e de
busca está no livro. Optei por essa linguagem por acreditar que faria as pessoas se
interessarem ainda mais por uma obra com uma temática ambiental. Não é um livro
“chato” sobre o meio ambiente — como algumas pessoas antigamente falavam.

Seu livro apresenta aspectos fantásticos e espirituais interessantes, tendo esse
misticismo ligado predominantemente à natureza. Por que combinar essas duas
abordagens?

Às vezes, as pessoas falam em “Brasil profundo”, “realismo mágico ou fantástico” e
vários outros termos. Acredito que elas pensam que isso está muito longe, quase algo
irreal, enquanto para mim, meus irmãos, minha sobrinha, meus avós e todos que
vivemos aqui, é a realidade. Quando estou dentro do Parque do Turvo e um panapaná
[nuvem de borboletas] se forma ao redor de mim, como no livro Cem anos de solidão
do Gabo [Gabriel García Márquez], não descrevo algo que imaginei e sonhei. Eu vivi
isso. Entrei no Parque do Turvo e uma nuvem de borboletas voou ao meu redor, e elas
não fogem, não vão embora, você fica tomado por elas. Quando falamos de um
personagem como o Sarampião, existem várias figuras aqui no interior, nessa fronteira
— e não só aqui, mas em outras regiões também — que morreram e as pessoas rezam
por elas. As pessoas realmente têm fé nelas. É claro que invento: o meu Sarampião não
existe, mas poderia ter existido. Existiu um guarda-parque no Turvo há muitos e muitos
anos atrás, meus avós chegaram a conhecê-lo, que tinha esse apelido, chamavam-no de
Sarampião de brincadeira. Achei um nome tão incrível que criei uma família inteira e
um santo ao seu redor.

Essa abordagem que mistura o místico e a natureza parte, portanto, de suas
próprias vivências?

Quando falamos de plantas medicinais, ontem mesmo, eu estava catando espinheira
santa, quebra-pedra e funcho para fazer um chá. Meu pai quando está com pressão alta,
toma os seus remédios, mas antes de dormir vai aqui fora, cata as folhinhas certas, lava,
faz um chá e toma. Quando colocamos isso num livro, as pessoas, principalmente da
cidade grande, veem como algo muito mágico, quando para nós é a realidade.
Crescemos nesse Brasil que muitos nem acreditam existir e com o tempo vamos
aprendendo com os mais velhos sobre essa medicina familiar, que está dentro do pátio
da nossa casa e nunca mais esquecemos. O Sarampião nasce disso, quando ele salva as
netas com os emplastos, os remédios e os chás. Eu entendo o termo realismo mágico. O
livro vai ser publicado na Alemanha e, para eles, é realmente outro mundo. A palavra
que eles usam é “encantados” e penso que é, em todos os sentidos da palavra: do
arrebatamento e da magia. Eles não conseguem imaginar o que é o rio Uruguai, por
exemplo. Eu escrevi uma crônica com uma lenda sobre esse rio para uma revista alemã
e eles achavam que era tudo fantasia, e eu falo que não, o Rio Uruguai existe, gente! [risos]

Chaya, uma das personagens centrais do seu livro, delega para si o compromisso
de cuidar e salvaguardar o Parque do Turvo. Que nível de poder uma sociedade
pode ter sobre as questões ambientais ou das mudanças climáticas?

No livro, vemos a Chaya mais ativa, mas essa é uma luta comunitária. Existe um projeto
de uma hidrelétrica no Rio Uruguai que se chama Garabi Panambi. Ele custaria 5
bilhões de dólares e existe desde a década de 1970. Se fosse construída — no livro,
mudo o nome e crio a Gran-Roncador, já que faço ficção em cima de uma notícia —,
essa hidrelétrica iria gerar uma quantidade de energia muito pequena para todo investimento financeiro, desgaste e crimes ambientais dispensados. O salto do Yucumã,
por exemplo, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ficaria debaixo
d’água. Perderíamos o último reduto da onça-pintada do Sul do Brasil, que fica entre
Brasil e Argentina. A onça desce pela floresta e tem os seus filhotes no Turvo, atravessa
o rio Uruguai a nado — é uma ótima nadadora. Espera a cria estar mais ou menos
pronta para a caça, atravessa de volta, e ensina a oncinha a caçar dentro do Turvo. Isso
tudo se perderia debaixo d’água, sem contar a região dos ribeirinhos, cidades e
comunidades agrícolas ao redor.

A literatura pode ajudar a sociedade a reagir contra interesses que ameaçam a
preservação ambiental?

Em vários lugares falam a mesma coisa: “Vou construir uma hidrelétrica, e daí trazer
universidade, empresas, asfalto, isso e aquilo”. É a mesma desculpa do investimento. Só
que com 5 bilhões de dólares, constroem-se quantas universidades, empresas e asfalto?
Quantas cidades podem se reerguer? O quanto se pode girar a economia desses
municípios com 5 bilhões sem precisar colocar em risco o Salto do Yucumã, a Reserva
do Turvo, o último reduto da onça-pintada? E não é dinheiro só de instituição privada.
Na medida em que as comunidades se unem e entendem as discussões econômicas, sem
serem enganadas, elas vão dizer ‘não’ para tudo isso. É o que tento colocar no livro,
especialmente na cena da primeira reunião sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
Tento colocar isso na boca de alguns personagens. É por isso que precisamos lutar
social e politicamente no Brasil: pelo conhecimento.

“Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos.”

O conhecimento liberta, não é mesmo?

Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos. E a literatura entra nessa
questão. Quando entregamos um livro que trata de questões ambientais, raça ou
colorismo, como o Água Turva, o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e o Avesso da
Pele, do Jefferson Tenório, e alguém lê e estabelece uma relação afetiva com esses
temas, sabemos que essa pessoa constrói outro pensamento. Para conseguir dominá-la,
sejam políticos, igrejas ou patrões, será mais difícil. Quando essas pessoas começam a
pensar por si, seja por meio da literatura ou dos estudos, elas vão reivindicar o que elas
querem. Precisamos lutar pelo estudo e pela leitura para que as pessoas pensem por si e
não deixem uma meia dúzia de poderosos que mandam no nosso continente decidirem
por nós. A gente pode decidir. No Água Turva, quando todos se levantam e vão embora
com a Chaya, é uma comunidade inteira lutando contra meia dúzia de poderosos. E eles
vão vencer. Nem sempre isso acontece na realidade, mas a minha esperança é que cada
vez mais essas coisas aconteçam.

“Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção.”

Você acha, então, que a literatura pode servir a um propósito?

Acho muito complicado colocarmos o artista num lugar de imposição. O artista não
deve nada, deve à sua própria arte. Ele faz aquilo que acredita, seja qual for o caminho.
Eu, por exemplo, estou num momento da minha vida que cheguei a estudar gestão
ambiental porque quero continuar falando sobre assuntos ambientais e sociais. São
questões caras para mim. Eu venho de uma cidade muito pobre, de uma região
paupérrima do Rio Grande do Sul. Aqui, nesse momento, por causa das enchentes, está
faltando tudo. Falta comida, remédio, gasolina. As pessoas estão realmente passando
fome e necessidade. Estou vendo isso agora, mas já vi tantas outras vezes. Venho de
uma família de agricultores, muito pobres. Quero fazer a luta social e ambiental, nem
que seja na ficção. É o que eu posso fazer. Mas você pode escrever um livro por puro
entretenimento, e isso abrir as portas para quem nunca leu na vida ler outros livros.

E como a sua literatura dialoga com o protagonismo feminino?

Quero continuar falando sobre questões sociais, ambientais e, também, femininas. Me
perguntam, mas você só vai escrever livros com protagonistas mulheres? Gente, tem
milhares de livros com protagonistas homens. A porcentagem de livros com
protagonistas mulheres é infinitamente menor do que com protagonistas homens. Por
que vou escrever mais um livro com um protagonista homem? Quero escrever sobre
mulheres. Em matéria de ficção, o meu prazer é muito maior em criar personagens
femininas fortes, que lutam, que estão com um facão na mão, estão defendendo a sua
comunidade e as suas famílias. Eu me sinto muito mais à vontade fazendo isso.

Suas personagens são complexas, não são maniqueístas. Elas também têm relações
complicadas e têm seus lados imperfeitos, como todos nós temos.

Teve uma pessoa na rede social que disse: “mas em Água Turva as personagens
femininas são todas boas e os masculinos são todos maus”. Um cara que tinha feito uma
ótima resenha respondeu: “Querido, você não leu o livro” [risos]. Quando as mulheres
[do livro] têm que ser más, elas são muito más. O livro começa com a Chaya matando
um homem sem pensar duas vezes.

Exato. A Preta também é uma personagem interessante nesse sentido. Ela tem uma raiva
vinda de herança da avó, uma angústia muito grande por conta da família. Ela também é
uma caçadora, então, de certa forma, ela prejudica o parque. Porém, é a sua maneira de
sobreviver. É difícil julgar completamente esses personagens, não é?

A minha ideia era essa, principalmente a Preta, que é a minha personagem favorita. Ela
surge por último durante o processo de criação. Eu defendo a Preta, inclusive. Ela faz o
que tem que ser feito para defender aquilo que ela acredita. Agora, é correta a maneira
que ela faz as coisas que ela precisa fazer? Não, não é.

O que podemos fazer para quebrar o ciclo trágico que acompanha a crise
climática?

Veja o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Estamos em ano de eleições
municipais e precisamos pensar em pessoas que amem as suas cidades. Estamos cheios
de prefeitos em cidades grandes e do interior, de todas as vertentes políticas, que
parecem odiá-las. Se começássemos a votar em pessoas que amam o seu chão, o seu
território, elas estariam hoje pensando em soluções ambientais para manter esses
lugares. Vemos o que aconteceu em Porto Alegre. É um absurdo que o prefeito tenha
colocado sacos de areia em cima de bueiros para que não abrissem as tampas e a água
voltasse a alagar a cidade. Alguém precisa odiar demais a sua cidade para pensar nesse
tipo de solução. Sinceramente, não tenho resposta para essa pergunta. Mas continuo
achando que agora as coisas vão ser pautadas pela crise climática, e se tornar questões
econômicas e, assim, mobilizar um número maior de pessoas. Quando digo um número
maior de pessoas, são os poderosos, as pessoas que realmente mandam no mundo.
Quem sabe, [a emergência climática] comece a ser vista de outra maneira.

Como tem sido vivenciar o cotidiano após as enchentes no Rio Grande do Sul?

Cheguei aqui no Rio Grande do Sul na terça-feira [em junho], e hoje é o primeiro dia
que parou de chover desde que cheguei. Tive que descer de avião em Chapecó [SC].
Não tem voo mais para o estado. As estradas estão horrorosas. Além da chuva, são
estradas que não foram construídas para aguentar esse volume tão grande de caminhões.
Você vê que está tudo muito destruído. Tem uma tristeza tão grande no ar que só
estando aqui para entender. Tenho vontade de chorar. O Mário Quintana tem uma frase
maravilhosa que diz que a gente sempre está voltando para casa, mesmo que ela não
exista mais. Você vê o seu lar destruído, mas, ao mesmo tempo, é o seu lar. É uma
tristeza muito grande ver tudo debaixo d’água: as estradas destruídas, os morros caídos
e a tristeza das pessoas. Então, hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem
sabe essa do Mário Quintana.

“Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os
nossos rios sem fazer uma luta de classe também.”

Que tipo de herança você quer que seus personagens e seu livro deixem para as
gerações futuras?

Somos responsáveis pelas próximas gerações. É aquele ditado africano, que diz que
quando uma criança nasce, a comunidade toda é responsável por ela. Precisamos pensar
que mundo vamos deixar e como eles vão sobreviver nele. Se esse livro for lido daqui a
20, 30 anos, espero que ele leve a mensagem de que nem todos foram negligentes no
Brasil e no mundo de hoje. Tivemos comunidades e indivíduos que tentaram lutar com

as armas que tinham para melhorar e deixar o mundo habitável para as próximas
gerações. Como disse Chico Mendes, ecologia sem luta de classes é jardinagem. Penso
que não adianta lutarmos só pelas questões ambientais sem pensar nas sociais. É o que
acontece no Rio Grande do Sul. As pessoas mais pobres estão vivendo um sofrimento
que não conseguimos imaginar. No frio, na chuva, sem comida, muitos ainda sem lar.
Perderam absolutamente tudo, ainda não conseguiram ajuda governamental para
comprar o básico. Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas
florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também. Espero realmente que as
próximas gerações entendam a história de Água Turva, da região de Dourado, da
família Sarampião e de como a comunidade que vive ao redor do Parque do Turvo lutou
para barrar essa construção que permeia o livro.

FONTE: https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista/a-questao-ambiental-e-a-maior-
urgencia-que-vivemos/

Edição: A. R.

Edição: A.R.

A política brasileira no limiar da necropolítica: reflexões críticas sobre o espaço público e o desgaste da democracia

O esvaziamento das esferas de participação política é uma forma de morte
democrática. A política, em sua essência, deve ser o espaço de construção de
consensos, de debates plurais e de busca pelo bem-estar comum
.

Nos últimos anos, a política brasileira tem experimentado uma transformação que, longe
de ser uma evolução democrática, representa um retrocesso ao seu papel fundamental: o
de zelar pelo bem público. A praça pública, historicamente o lugar de debate e
deliberação, tem sido tomada pelo espetáculo da antipolítica, esvaziando a essência do
que é ser político e governar em prol da sociedade. A emergência da necropolítica,
conceito do filósofo Achille Mbembe, torna-se cada vez mais visível, sinalizando a
morte da política como força vital e transformadora da vida em sociedade.

O Abandono da Ágora mostra o Espaço Público em Ruínas, na Grécia Antiga, a
ágora era o espaço central das cidades, onde os cidadãos se reuniam para discutir
questões de interesse comum, tomando decisões sobre o futuro da polis (cidade).

No Brasil contemporâneo, este espaço simbólico da ágora foi gradualmente erodido por
uma retórica de polarização, desinformação e um apelo ao individualismo exacerbado.
Em vez de discussões racionais e produtivas, o debate público se transformou em um
palco de discursos violentos e excludentes, incapazes de construir pontes entre
diferentes setores da sociedade. A polarização, que se ampliou exponencialmente nas
últimas eleições, transforma cada vez mais a praça pública em um campo de batalha
onde prevalece o ataque pessoal em detrimento do diálogo construtivo.

O abandono desse espaço de debate é sintomático de um fenômeno maior: a corrosão da
confiança nas instituições democráticas. A população, insatisfeita com a ineficácia das
políticas públicas e com a corrupção desenfreada, volta-se para alternativas que
promovem um discurso autoritário, anti-institucional e, em alguns casos,
antidemocrático. Ao invés de revitalizar a política, o que temos visto é o surgimento de
uma antipolítica, que se coloca como o antídoto ao sistema vigente, mas que, na
realidade, colabora para o aprofundamento da crise.

Antipolítica e o Caminho para a Necropolítica, a antipolítica se alimenta da insatisfação
popular, e sua ascensão é um reflexo da incapacidade do sistema político de oferecer
soluções para os problemas sociais. No entanto, em vez de promover uma renovação
dos mecanismos democráticos, essa postura reforça a ideia de que as instituições são
incapazes de prover respostas adequadas. O resultado é uma forma de governança que,
em vez de se preocupar com o bem comum, legitima a marginalização de certos grupos,
a concentração de poder e a exclusão do debate público.

A necropolítica, em sua essência, é a política da morte, onde o Estado decide quem vive
e quem morre, quem tem direito à vida e quem é descartável. No Brasil, vemos essa
lógica aplicada de diversas formas.

A violência policial nas periferias, a negligência com populações vulneráveis como os
povos indígenas e quilombolas, e a falta de uma política sanitária eficaz durante a
pandemia de COVID-19 são exemplos claros da necropolítica em ação. Em vez de
proteger os cidadãos, o Estado se omite ou age de forma violenta, perpetuando a
desigualdade e a exclusão. Essa necropolítica não é apenas física, mas também
simbólica.

O esvaziamento das esferas de participação política é uma forma de morte
democrática.

A política, em sua essência, deve ser o espaço de construção de consensos, de debates
plurais e de busca pelo bem-estar comum. Quando esses princípios são abandonados em
prol de um espetáculo de violência e polarização, estamos, de fato, testemunhando a
morte da política.

A Urgência de Reocupar a Praça Pública. Se o destino da política no Brasil parece
sombrio, é justamente na resistência ao avanço da necropolítica que reside uma possível
saída. Reocupar o espaço público – não apenas o físico, mas o simbólico – é uma tarefa
urgente para aqueles que acreditam na democracia e no poder transformador da política.
Essa reocupação passa pela construção de uma nova ética política, onde o diálogo, a
transparência e o compromisso com o bem comum sejam valores centrais.

A política deve voltar a ser vista como a “arte do possível”, um meio para melhorar as
condições de vida da população, e não como uma arena de disputas mesquinhas e
violentas. Também é essencial que o cidadão comum retome seu papel ativo na política.

O desencanto com os partidos e a política institucional não pode levar à apatia,
mas sim a uma revitalização das formas de participação popular. Movimentos
sociais, ONGs e outras formas de organização civil têm um papel crucial em
pressionar o Estado a retomar sua função primária de promover o bem público.
Urge refletir sobre o cenário político brasileiro atual para entender que ele é um
reflexo de uma crise mais profunda que atinge a própria ideia de política.

A necropolítica, com sua face de violência e exclusão, tem se infiltrado nas práticas de
Estado, colocando em risco a vida e a dignidade de milhares de cidadãos. Reverter esse
quadro passa pela reocupação simbólica da ágora, pela retomada do espaço público
como lugar de debate e construção coletiva, e pela reafirmação de que a política, em sua
essência, deve servir à República, isto é, à coisa pública, ao bem de todos.

Autor: José André da Costa , msf. É Padre dos Missionários da Sagrada Família,
Integrante da Comunidade de Vida Religiosa dos Padres Saletinos, Professor de
Ciências Sociais, Estudos Sociológicos em Educação, Atividade de Extensão em
Educação Ambiental, Filosofia Geral e do Direito, Tópicos Avançados em Agronomia,
nas Faculdades Integradas da América do Sul – INTEGRA – Caldas Novas – GO. Também escreveu e publicou no site “A busca da vida ética”: www.neipies.com/a-busca-da-vida-etica/

Edição: A. R.

“Idiotes” ou “politikós”: a questão nas eleições de SP

O candidato protofascista a prefeito de São Paulo proclama que se comporta
como idiota com o objetivo de subir nas pesquisas eleitorais
.

Em tal atitude, até agora bem sucedida, se revela a estratégia que aposta na
idiotia como atalho para a conquista do poder político.

O professor Muniz Sodré, ao analisar o destampatório que abala o debate
eleitoral paulistano (FSP-1/9), pode ter nos oferecido uma preciosa chave de
decifração para a lógica que preside, nos quatro cantos do mundo, a
degradação atual do processo civilizatório.

Para explicar o sucesso momentâneo de semelhante aberração, Muniz
Sodré foi buscar no berço da civilização ocidental as origens da palavra
idiota.

Na Grécia antiga, os “idiotes” eram aqueles centrados em negócios privados,
totalmente alheios ao ordenamento da vida pública. No polo oposto, estavam
os “politikós” que, na Ágora, se ocupavam das ideias, programas e projetos
coletivos que definem as várias dimensões da vida humana.

Com o significado dissecado em sua origem, as duas palavras atravessam os
séculos como expressão perene da luta política.

Os “idiotes” da política sempre estacionam seu pato amarelo na Paulista ou na
Faria Lima. O fogo de palha irresponsável só prospera articulado aos “idiotes”
da supremacia absoluta do poder privado.

Não é, portanto, só disputa eleitoral, mas a contraposição, eterna e atemporal,
entre civilização e barbárie. “Idiotes” ou “Politikós”, eis a questão!

Filósofo Mario Sérgio Cortella explica a origem da palavra idiota e faz reflexão
sobre a política: https://youtu.be/er2aem_Zax0?t=62

Autor: Chico Alencar. Também escreveu e publicou no site “Compro, logo existo?”:
https://www.neipies.com/compro-logo-existo/

Edição: A. R.

As eleições de diretores nas escolas estaduais do RS

É interessante pensar na vinculação entre gestão e resultados escolares. Souza (2019)
destacou que nas escolas com mais condições democráticas e pedagógicas os alunos
apresentaram melhores resultados, indicando relação positiva entre ambientes
democráticos e aprendizagem estudantil
.

A eleição de diretores tem sido um dos dispositivos que sustentam a gestão democrática
da escola no Brasil. No entanto, o processo democrático não se esgota nela e precisa ser
fortalecido pela participação. A Lei no. 16.088/2024, o Decreto nº 57.775/2024 e, mais
recentemente, o Edital no. 01/2024 publicado pelo executivo estadual põem centralidade
na figura do diretor, colocando na arena de disputas o seu papel e o aparato normativo
que o circunda. Tal centralidade indica uma concentração de poder no interior da escola;
a autonomia da escola pode ser entendida como a autonomia do diretor. Mais, estamos
frente a disputas políticas por entendimentos diferentes de democracia.

O Edital nº 01/2024 para a seleção de diretores e vice-diretores da rede estadual gaúcha
faz parte da implementação da nova Lei de Gestão Democrática, recém sancionada.
Essa lei trouxe mudanças significativas no processo de escolha de diretores escolares,
adotando critérios técnicos e de desempenho num processo de seleção. Tal movimento
não é exclusividade da rede estadual gaúcha; a rede municipal de educação de Porto
Alegre, por exemplo, tem nova regulamentação para eleição de diretores desde janeiro
de 2020.

Tal normativa responsabiliza exclusivamente os diretores pelos resultados dos
estudantes em avaliações de larga escala sob o pretexto de garantir uma suposta
qualidade educacional ( Massena, 2023 ). Suposta porque estudos como o de Riscal
(2016), mostram que as maiores médias do Ideb se referem às escolas em que os
Conselhos Escolares sempre definem e validam os aspectos pedagógicos, financeiros e
administrativos. Além disso, a pesquisa por ele realizada evidenciou outros fatores
relacionados à gestão democrática que influem positivamente no Ideb.

E é interessante pensar nessa vinculação entre gestão e resultados escolares. Souza
(2019) destacou que nas escolas com mais condições democráticas e pedagógicas os
alunos apresentaram melhores resultados, indicando relação positiva entre ambientes
democráticos e aprendizagem estudantil. No entanto, os últimos governos estaduais e
municipais de Porto Alegre parecem não estar alinhados com as melhores práticas
apontadas por pesquisas científicas.

Além do já sabido sucateamento das escolas, do desmantelamento dos planos de
carreira, da precarização do trabalho docente, da atomização dos processos, o
esvaziamento dos espaços de participação e decisão coletivos atrelados a uma
concepção de sociedade que se distancia da perspectiva de educação cidadã, na
qual estão implicadas não só as condições da oferta educacional, mas sobretudo as
condições de vida na cidade e no estado.

O Edital retoma a nova Lei de gestão democrática quanto às atribuições dos diretores e
vices: representar, coordenar, apresentar e submeter, organizar, manter, gerir, dar
conhecimento… Um escopo de gestor, numa perspectiva gerencialista, que coloca o
diretor em posição de subordinação em relação à mantenedora. Também, na inscrição
no processo seletivo, os candidatos podem indicar três escolas para atuação,
possibilitando que o executivo crie um banco de recursos humanos, com “talentos” na
área da gestão escolar.

O risco?

A consolidação de uma carreira de gestão, apagando a ideia de professor, de
compromisso político-pedagógico no qual toda comunidade está implicada.
Considerando essa mesma hipótese, amplia-se o tempo do mandato, de três anos para
quatro anos com possibilidade de reconduções independentemente do número de
mandatos.

No Edital no. 01/2024 os critérios técnicos e as avaliações objetivas passam a ter maior
peso na escolha de diretores. A seleção prevista pelo edital consiste em 5 etapas; do
curso autoinstrucional ao pleito eleitoral, aproximadamente 3 meses. Ainda, as
mudanças foram apresentadas por meio de uma live no Youtube, sem espaço para
debate.

Houve um aligeiramento do processo?

Ao que parece, sim. Nenhuma discussão com as comunidades escolares, com as
universidades, no último trimestre do ano letivo. Professores que somos, sabemos das
múltiplas e intensas demandas dessa época no ambiente escolar. Esse é o modus
operandi autoritário da Seduc/RS (Saraiva; Chagas; Luce, 2022) – e o grande jogo
político parece ser o da entrega de responsabilidades para a sociedade desorganizada,
sem um claro projeto de mundo; cria-se um campo de disputa que limita e conforma a
própria disputa. Da mesma forma, a escola!

O conteúdo das provas e a bibliografia indicada contemplam funções gerenciais, tipos
de liderança (incluindo líder-coach), ferramentas para melhoria de desempenho de
equipe, proatividade e feedback. Tais elementos possivelmente basearam-se na crença
da irracionalidade em termos de gestão e no déficit de liderança, é latente um tipo de
compreensão do fracasso escolar como decorrente da precariedade da administração de
recursos e da gestão.

Contudo, tenho outras hipóteses para esse dito fracasso: teria relação com a
precariedade em termos de infraestrutura? Com o percentual muito significativo de
contratos temporários em detrimento de profissionais efetivos – há apenas 41% de
professores efetivos na rede (Brasil, 2023) (aliás, fator que impacta também nas
eleições, considerando que somente profissionais efetivos estão aptos a concorrer)?
Sobrecarga docente? Desvalorização da carreira (incluindo, obviamente, as questões
salariais)? Questões para pensarmos…

Tendo sido aprovados na prova, os profissionais ao se inscreverem para a eleição,
devem apresentar um plano de gestão para melhorar a qualidade da educação. Aqui, me
repetirei: ora, poderá o diretor planejar e implementar ações que deem conta das
condições da oferta educacional que sustentam uma educação de qualidade?

Não esqueçamos da nova Lei. Tudo indica que plano de gestão e projeto político-
pedagógico serão entendidos como similares. Como instrumento de determinado
mandato. De acordo com a Lei no. 16.088/2024, o projeto político-pedagógico será
o principal instrumento de gestão de determinada equipe e não da escola. Logo, o
projeto político-pedagógico não representará a expressão da autonomia da
instituição com legitimidade administrativa na comunidade.

Por fim, a votação, quarta etapa do processo de seleção, será realizada no formato
eletrônico, por meio de aplicativo criado para tal fim pela Seduc/RS. No entanto, o
processo eleitoral ainda será regulamentado, por Portaria, a ser publicada em outubro.
As normativas publicadas até agora não dizem do cálculo do resultado: será ele
paritário? A acompanhar.

Com uma concepção restrita de educação, mantém-se a eleição de diretores no
esvaziamento de uma cultura escolar mais democrática. Por enquanto, um “novo
modelo de governança” que se utiliza do termo “gestão democrática” para aplicar algo
que já vem estruturado em modelos antigos, sob uma nova configuração, ainda
fortemente ligada ao modelo empresarial. Esse “novo modelo” pode implicar em pouca
participação das comunidades nos processos decisórios, mascarando tensões, dissensos
e disputas em torno de diferentes projetos de educação e sociedade.

FONTE: https://sul21.com.br/opiniao/2024/09/as-eleicoes-de-diretores-nas-escolas-
estaduais-do-rs-por-juliana-hass-massena/

Autora: Juliana Hass Massena. Doutora em Educação, Pós-doutoranda na
Faced/UFRGS

Edição: A. R.

Semipresencialidade na Escola Secundária?

A improvisação, a pressa ou a distância entre gabinetes ministeriais e escolas, professores
e alunos podem fazer naufragar as melhores tentativas, assumindo que se trata de uma
tentativa cujos motivos são efetivamente pedagógicos.

Em relação à virtualidade na escola, há muito mais preconceito do que conhecimento certo
da sua implementação e das suas conquistas. A experiência da pandemia não foi muito útil,
tornou-nos pessimistas quanto aos seus resultados. Em relação à presencialidade, com a
qual estamos historicamente familiarizados, temos amplo conhecimento das suas
condições, da sua implementação, das suas modestas conquistas e ainda assim há muito
preconceito em relação a ela, só que de natureza diferente.

Neste momento o GCBA (Governo da Cidade de Buenos Aires) aparentemente pensa, entre
outras mudanças, em reintroduzir o ensino virtual, online, de algumas disciplinas no ensino
secundário.

Se assim for, e mesmo que não o seja assim, justifica-se uma reflexão séria porque a
improvisação, a pressa ou a distância entre gabinetes ministeriais e escolas,
professores e alunos podem fazer naufragar as melhores tentativas, assumindo que se
trata de uma tentativa cujos motivos são efetivamente pedagógicos.

Não se trata de leviandades, nem de experiências massivas ou proibições obrigatórias; é
preciso pensar nas condições objetivas das nossas escolas, ou seja, suas infraestruturas, seus
recursos tecnológicos, seus professores e os seus alunos, e pensar a partir daí que mudanças
razoáveis ​​podem ser introduzidas e quais seriam as condições para que essas mudanças
permitam aos alunos aprender mais, aprender melhor e compreender a natureza do
conhecimento do mundo em que vivem, seja ele a sua casa, o seu bairro, o cidade, etc.

Dispostos como somos nós, os educadores, estamos a criticar quase a priori qualquer
mudança, levemos em conta alguns fatos entre os quais não menos importante é que a
presencialidade histórica do nosso sistema educativo não tem garantido mais ou melhor
aprendizagem; na verdade, se a virtualidade entra em cena – para além de razões políticas–
é porque a presença simultânea de professores e alunos nesta invenção moderna que é a
sala de aula já não garante mais nada. É necessário voltar aos índices das avaliações já
conhecidas?

Obviamente, a virtualidade devidamente implementada requer modificações pedagógicas,
tecnológicas, administrativas, recursos económicos e tempo; requer também a revisão de
algumas representações imaginárias, como a ideia de que com a presença de alunos e
professores na sala de aula é, em si, uma atividade de aprendizagem interativa, construtiva
e colaborativa; a verdade é que isso raramente ocorre, não é acumulando crianças que
ocorre a famosa interatividade pedagógica.

Existem outros imaginários docentes em dança, por exemplo, que, de alguma forma, a
simultaneidade de alunos e professores permite ou facilita um controle de corpos e
mentes que não é apenas uma ficção, mas também é impossível e desnecessário e
colide com a autonomia e formação crítica que a escola deveria teoricamente
incentivar em seus alunos.

O que nos leva a pensar que os alunos da sala de aula estão realmente lá?

Há muito tempo sabemos que os alunos na sala de aula se encontram num local que
raramente os atrai; sabemos que em geral a parte mais atrativa da sua experiência escolar
acontece dentro da escola, mas fora da sala de aula; não é obrigando-os a ficar sentados
durante horas que as quatro paredes da sala se transformam em sala de aula e o tédio se
transforma em aprendizagem; não podemos continuar a ignorar que a obrigação é uma faca
de dois gumes.

Leia também esta reflexão: https://www.neipies.com/escola-perdida-alunos-ausentes/

Um fato irrefutável pode ser argumentado a favor da mudança: as cabeças das crianças
matriculadas na escola hoje são formatadas por tecnologias com as quais a escola está
muito atrasada. Ainda hoje, há muitos professores que não sabem utilizar o Classroom,
plataforma que, quando bem utilizada, pode ser extremamente um valioso aliado. A relação
entre as crianças e a tecnologia alterou o tempo dos alunos e dos professores, enquanto o
tempo escolar permaneceu praticamente inalterado; a organização do tempo escolar é,
justamente, de outro tempo; os responsáveis ​​por essa organização deverão ser notificados!

O tempo na escola é um verdadeiro obstáculo pelo seu descompasso com o tempo
cultural, mas, sobretudo, e como parte dele, com o tempo dos sujeitos. Acontece que o
tempo cronológico da presencialidade não coincide com o tempo lógico e subjetivo das
crianças, nada garante que meninos e meninas estejam dispostos a prestar atenção e
aprender das 8h às 8h40, por exemplo.

É complexo, mas momentos de presença e encontro de alunos e professores na escola e
momentos de virtualidade em que as crianças têm maior vontade subjetiva de se conectar
com as propostas de seus professores poderiam muito bem ser vivenciados em algumas
escolas, em alguns anos, com alguns professores.

Se aspiramos que um aluno que está na sala de aula esteja simultaneamente na aula, é
necessária uma articulação entre o tempo da criança e o tempo escolar, e a virtualidade e
especialmente alguma forma híbrida pode ser uma resposta a um problema com o qual o
sistema educativo, pelo menos em algum momento, terá que se envolver.

Autor Eduardo Corbo Zabatel. Ensayista, Psicólogo, Profesor de Historia, Magist en
Ciencias Sociales. Mora em Buenos Ayres, Argentina. Também escreveu e publicou no site
“De empreendedores e falhas”: www.neipies.com/de-empreendedores-e-falhas/

Edição: A. R.

A dor maior e a dor menor de Rebeca

Para quem escreve, a beleza da vida está em ser lido pelos que estão próximos. Como é
bom escrever para os amigos do Facebook! A beleza da vida não está longe de
nós.

Uma mulher de quarenta e poucos anos, vou chamá-la de Rebeca, queixava-se de dores
musculares generalizadas. O médico não encontrava causa para sua dor até que,
ouvindo-a mais e mais, descobriu a grande frustração vivida por ela.

Ambicionava ser escritora publicada nos Estados Unidos. Enviou manuscritos para
editoras de cidades que julgava de grande beleza: Nova Iorque e Chicago. As respostas
sempre negativas doeram muito. Desistira de escrever e adoecera.

Quando fazemos algo só pelo resultado exitoso, em acordo à expectativa que críamos,
talvez não gostemos muito da atividade, pois, quando gostamos, quando somos “do
ramo”, o resultado importa bem menos.

No caso de um escritor, o insucesso frente às editoras não o fará desistir. Por quê?
Porque a atividade em si é prazerosa para ele.

Talvez Rebeca seja do “ramo”, mas a sensação de que a “beleza” está lá longe a faz
perder o gosto. Sofreria pela falsa crença de que só estaria realizada se fosse escritora
reconhecida em belas cidades norte-americanas.

Então, o médico conversará com ela sobre a dor menor, as musculares, e a dor maior, a
frustração. E colocará duas questões para ela pensar: o ato em si de escrever não é o que
lhe deixa realizada; ou deixa realizada, mas está sendo prejudicado pela expectativa
inadequada que criou.

No segundo caso, livre dessa expectativa apropriada para quem é norte-americano,
inapropriada para quem é brasileira, a frustração cederá a uma nova visão. E as dores
irão cedendo.

Para quem escreve, a beleza da vida está em ser lido pelos que estão próximos. Como é
bom escrever para os amigos do Facebook! A beleza da vida não está longe de nós.

Autor: Jorge Alberto Salton. Também escreveu e publicou no site “Nossas ilusões, há
como pesam nossas ilusões!: www.neipies.com/nossas-ilusoes-como-pesam-nossas-
ilusoes/

Edição: A. R.

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