Limpadores das cidades 

As pessoas, que não conhecem este mundo da limpeza, dirão que sua cidade é razoavelmente limpa.

Você já reparou no trabalho de limpeza de uma cidade? Todas têm algum tipo de serviço para retirar o que as pessoas colocam em sacos de lixo na calçada ou em containers. Também no que as casas de comércio descartam para retirar suas mercadorias, em caixas de papelão ou sacos plásticos.

As pessoas, que não conhecem este mundo da limpeza, dirão que sua cidade é razoavelmente limpa.

Em Passo Fundo há dezenas das denominadas carrocinhas de lixo, conhecidos como papeleiros, que todos os dias de manhã cedo até o entardecer, percorrem toda a cidade juntando todo o lixo descartado e que possa ter algum valor comercial (garrafas PET, plásticos, latas alumínio, papelão… ) na venda para os compradores de sucata. Sem eles, os caminhões de lixo das prefeituras não dariam vencimento ao volume e à dispersão, seja nas ruas centrais, seja nas vilas.

Sem esta gigantesca máquina, de pessoas anônimas (muitas acompanhadas de sua esposa, filhos pequenos, e os cachorros da família), a cidade ficaria suja e, certamente, aumentariam as doenças pelo lixo apodrecido ou que retém água para criação de mosquitos. Sem falar na criação de baratas e de ratos. Ganham dinheiro para sustentar suas famílias. Opção de vida ou necessidade pela baixa ou inexistente escolaridade e qualificação profissional?

E os cachorros que acompanham os catadores?

O que os leva a caminhar quilômetros, no sol ou na chuva, junto com seus donos? Certamente não é uma boa refeição, na rua ou onde seus donos trabalham.

Talvez a maior razão seja a liberdade e a atenção que recebem ou a segurança de estar com alguém que os protege. Que lhes dá atenção. Animais, são sensíveis à atenção e ao carinho. Na rua ou em casa.

Também pode ser por, simplesmente, gostarem de passear, de caminhar.

Há outros centenas ou milhares de limpadores das cidades e das áreas limítrofes. Todos esperando um maior reconhecimento e valorização, seja por sua remuneração ou por reconhecimento público de seu trabalho em prol de todos!

“Os sinais são claros, caminhamos para a autocombustão e explosão do sistema atual. A perspectiva é que se não houver mudanças drásticas no modelo de produção, essa civilização se afogará em seu próprio lixo”. (Ésio Francisco Salvetti) Leia mais: www.neipies.com/a-civilizacao-se-afogara-no-proprio-lixo/

Autor: Roque Tomasini. Também escreveu e publicou no site “Escola de pensadores”: www.neipies.com/escola-de-pensadores/

Edição: A. R.

Reflexões de dias iniciais de mais um ano

Em cada ano que começa, fizemos registros de todo tipo. Renovamos propósitos, projetamos ações, temos novas ideias, que se misturam com o saldo das antigas. No horizonte do tempo, aparecem lembranças, nem todas boas, mas são nossas.

Ao contemplar uma natureza acolhedora, sentindo o azul do mar envolto no azul do céu, sinto as melhores emoções. Observar a natureza, leva-me a refletir que, se bem cuidada, pode nos trazer todos os benefícios.

O pensar e o agir em relação à preservação do planeta torna-se um compromisso de sobrevivência nossa e dos que nos sucederem, através dos tempos.

Criar ou estimular uma cultura de cuidado é estabelecer vínculos de valores. Isso se faz necessário em relação à natureza, porque esses vínculos se estabelecem no cotidiano e na história de vida das pessoas, auxiliando na formulação de princípios. Cultivar valores, como o cuidado com a natureza e com todas as suas formas de vida é, sobretudo, estabelecer práticas de solidariedade e fortalecer convívios de cooperação inteligente, além das tecnologias.

Conseguiremos, portanto, deixar uma herança de cuidado e serenidade para as futuras gerações. Elas receberão uma natureza com vitalidade e frutos necessários para o bem viver.

Nossos filhos e netos se sentirão gratificados com essa herança, como um prêmio à vida.

Em cada ano que começa, fizemos registros de todo tipo. Renovamos propósitos, projetamos ações, temos novas ideias, que se misturam com o saldo das antigas. No horizonte do tempo, aparecem lembranças, nem todas boas, mas são nossas. Algumas ficam guardadas, outras esquecidas, na mesma dinâmica que a vida se renova na natureza. Tudo exige cuidado e busca do bem viver para que novas semeaduras, produzam novos frutos.

As dissonâncias, as dicotomias, os desacordos permitem as harmonias, os encontros, as serenidades. Tudo isso é a viagem da vida. Às vezes, calma e célere, escura e luminosa, opaca e transparente, tanto na terra, quanto nos oceanos. Construímos várias sínteses.

Sabemos, como afirma Frei Betto, que não veremos a colheita, mas não podemos desistir de sermos sementes. Semear não será em vão. Alguém irá se beneficiar e colherá os frutos das sementes que plantamos.

Um dos nossos desafios deste tempo é a continuidade do que faz bem. Ao assumirmos plantar as sementes necessárias, responderemos este desafio, tendo em vista os resultados preciosos para a continuidade da vida boa. Poderemos acreditar que a natureza agradecerá nosso legado.

Assim viveremos mais um dos nossos primeiros meses do ano.

Autora: Cecilia Pires. Também escreveu e publicou no site “Questões e reflexões sobre o corpo feminino”: www.neipies.com/questoes-e-reflexoes-sobre-o-corpo-feminino/

Edição: A. R.

Análise sobre a Educação Domiciliar – Homeschooling

O tema da Educação Domiciliar – Homeschooling – há alguns anos vem despertando calorosas discussões na sociedade brasileira, polarizando opiniões a favor e  contra.

A Educação Domiciliar é o formado do ensino feito em casa. Neste caso, os educadores podem ser os próprios pais ou tutores particulares. Dito de outra forma: a responsabilidade do processo do ensino e de aprendizagem das crianças e dos adolescentes recai sobre os pais, não sobre o Estado.

Do ponto de vista jurídico brasileiro, não temos uma lei específica sobre a educação domiciliar, os pais que queiram aderir a esse modelo de ensino precisam pedir autorização à justiça brasileira.

Apenas no Distrito Federal (DF) há a regulamentação do Homeschooling, que foi instituida pelo então governador Ibaneis Rocha (MDB) em 2021. Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi enviado um projeto de lei para regulamentar a educação domicilar no Brasil. O projeto não avançou por falta de articulação política e estagnou com a pandemia de COVID-19.

A defesa da Educação Domiciliar começou a ser realizada por segmentos conservadores evangélicos e católicos de forma bem enfática. A leitura religiosa desses grupos a respeito deste tema consiste em afirmar que as escolas públicas brasileiras, por meio das suas diretrizes, sistemáticas de avaliação, metodologias, ideologias e gestão, não estão adequadas aos valores cristãos.

Outros argumentos utilizados por lideranças religiosas são que o ensino público brasileiro é essencialmente marxista. Os conteúdos ministrados seriam pensados por educadores de esquerda e influenciados por Paulo Freire. Logo, a escola brasileira, no processo de ensino-aprendizagem não estaria de acordo com os valores bíblicos e não permitiria a visão religiosa no contexto escolar.

A entrada desse tema no universo religioso, nada mais é do que a tentativa de domínio, por parte de setores religiosos-conservadores, das escolas brasileiras.

Argumentar que os conteúdos ensinados não estão de acordo com os valores bíblicos, implica em dizer que o debate da pluralidade de ideias, da democratização do conhecimento e da construção dos saberes entre professores e alunos, não pode ocorrer sem o aval dos ideólogos religiosos católicos ou evangélicos.

Segundo o pensamento cristão reacionário, o que ensinar, como ensinar e para que ensinar é uma prerrogativa da religião, cabendo ao Estado, por meio do ensino público, apenas executar. Isto é, a educação brasileira precisa ser subordinada aos interesses das instituições religiosas, dos seus padres e pastores. A ideia é formar crianças e adolescentes de acordo com os ditames confessionais das instituições cristãs conservadoras brasileiras.

A defesa da escola domiciliar por religiosos consiste, portanto, em ensinar a visão religiosas sobre os mais variados conteúdos e em demonizar aquilo que não comunga com seus ideais.

Autor: Dr. Marcos Vinicius de Freitas Reis

Pós-Doutor em Estudos de Fronteira pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Docente do Curso de Mestrado Acadêmico em História Social da UNIFAP. Docente do Mestrado Profissional em História da Universidade do Estado do Maranhão (UEMA). Docente do Curso de História da UNIFAP. Líder do Centro de Estudos de Religião, Religiosidades e Políticas Públicas (CEPRES). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: Religião e Política, Diversidade Religiosa na Amazônia.

Também escreveu e publicou no site “Presença da religião na política”: www.neipies.com/presenca-da-religiao-na-politica-brasileira/

Edição: A. R.

Novos e velhos desafios da educação em 2025

O ano de 2024 não terminou bem para a educação pública brasileira. Aliás, estamos percebendo que, especialmente, a partir de 2014, as escolas públicas brasileiras e os professores têm sido alvo de intensas ofensas. Esta última década foi um período de crescentes ataques à educação pública e democrática. E pior, em 2025, nada indica que será diferente.

Recente Dossiê da Revista Retratos da Escola (Brasília, v. 18, n. 42), que busca, por meio do olhar de diferentes pesquisadoras e pesquisadores, analisar, compreender e combater diferentes projetos, políticas, ações e formas de conservadorismo na educação básica, aponta que vivenciamos um cenário de desconfiança em relação ao trabalho de profissionais da educação, com políticas de controle do seu trabalho docente, avanço da militarização escolar, investidas visando a regulamentação da educação domiciliar e popularização do discurso antigênero na arena social.

Por outro lado, o Projeto de Lei (PL) do próximo Plano Nacional de Educação (PNE 2025-2035) precisa de melhorias estruturais. A PEC do corte de gastos atingiu o Fundeb ao permitir destinar até 20% da complementação da União ao fundo para fomentar exclusivamente a educação em tempo integral. Diversas regulações dos Conselhos de Educação (âmbito nacional, estaduais e municipais) impactam no direito à educação e colaboram com estes retrocessos.

Nesta perspectiva, em escala global, o Relatório de Monitoramento Global da Educação 2024 (GEM), lançado pela Unesco em 31 de outubro em Fortaleza (Ceará), aponta que “o nível de aprendizagem caiu, o número de estudantes fora da escola não está diminuindo e a prioridade dada à educação pelos governos também reduziu. Com tantos desafios para a educação, precisamos de mais líderes, não só dentro das escolas, mas em todos os setores da sociedade civil”, afirmou diretor do relatório GEM, Manos Antoninis.

As desigualdades regionais continuam acentuadas: 33% de crianças e jovens em idade escolar nos países de renda baixa estão fora da escola, em comparação a apenas 3% nos países de renda alta. Considerando o contexto mundial, mais da metade de todas as crianças e adolescentes fora da escola vivem na região da África Subsaariana. “A equidade e a inclusão na educação e por meio da educação são fundamentais para a visão de desenvolvimento social do Brasil”, disse Camilo Santana, ministro de Estado da Educação, durante o lançamento do referido relatório.

Muitos são os desafios educacionais para 2025 e próximos anos, entre os quais destacamos e reforçamos: o desafio do aumento do financiamento público, o desafio da valorização dos professores, o desafio do direito à aprendizagem, do acesso as tecnologias e os desafios das mudanças climáticas. Estes temas constam dos relatórios da Unesco e do relatório do G-20 tornados públicos em final outubro de 2024 aqui no Brasil.

Financiamento está diminuindo na educação

O investimento nacional e internacional na educação está diminuindo. Em âmbito mundial, entre 2015 e 2022, os gastos com educação pública caíram 0,4 ponto percentual do PIB: o nível mediano caiu de 4,4% para 4%. A participação da educação no total dos gastos públicos diminuiu 0,6 ponto percentual, de 13,2%, em 2015, para 12,6%, em 2022. O peso cada vez maior do serviço da dívida tem implicações para os gastos com educação.

Em 2022, os países da África Subsaariana gastaram quase o mesmo valor em serviço da dívida do que em educação. Quanto às duas metas referenciais internacionais de se gastar pelo menos 4% do PIB e pelo menos 15% das despesas públicas com educação, 59 de 171 países não alcançaram nenhuma delas.

Os gastos com educação por criança permanecem praticamente os mesmos desde 2010. A participação da ajuda internacional destinada à educação caiu de 9,3%, em 2019, para 7,6%, em 2022.

No Brasil, segundo a economista Maria Lucia Fattorelli, no ano de 2023, R$ 1,89 trilhão foi destinado ao gasto com juros e amortizações da dívida pública, correspondente a 43,23% de todos os gastos. Enquanto isso, a Educação recebeu apenas 2,97%, a Saúde 3,69%, Ciência e Tecnologia 0,29 %, Gestão Ambiental 0,0895%, Organização Agrária 0,0596%, e assim por diante.

Falta de professores

Nas condições profissionais dos professores evidencia-se que o número de professores é insuficiente nas salas de aula decorrente da escassez de candidatos ou da falta de vagas. O primeiro caso é mais comum em países de renda mais alta: apenas 4% dos adolescentes de 15 anos que vivem nos países de renda mais alta querem se tornar professores; o segundo caso é mais comum em países de renda mais baixa: no Senegal, houve um excedente de mais de mil professores qualificados apenas no ano de 2020.

Muitos professores, por diversas razões, não têm as qualificações mínimas exigidas. Na África Subsaariana, a proporção caiu de 70%, em 2012, para 64%, em 2022. Na Europa e na América do Norte, caiu de 98%, em 2010, para 93%, em 2023.

Os padrões variam entre as regiões. A maioria dos países exige que os professores tenham um diploma de bacharelado ou licenciatura para lecionar na educação primária, enquanto 17% dos países da África Subsaariana aceitam um certificado de conclusão do primeiro nível da educação secundária.

No cenário brasileiro, professores temporários atingiram, pela primeira vez, em 2022, as redes estaduais tinham mais professores temporários do que efetivos. Este cenário se manteve em 2023, com 51,6% de temporários e 46,5% de efetivos. Estudos recentes demonstram que em 15 estados há mais docentes temporários do que efetivos e, de 2020 a 2023, 67% dos estados aumentaram a quantidade de temporários e diminuíram a de efetivos.

“A cada eleição, a lenga-lenga se repete. A Educação está lá, entre as prioridades sempre citadas mas nunca realizadas. Os candidatos prometem melhor ensino público, melhor preparação dos estudantes, escolas mais bem equipadas e por aí vai. O que se vê, porém, é o oposto disso”. (Chico Alves, jornalista) Leia mais: www.neipies.com/governantes-querem-educacao-sem-professores/

Impactos nas aprendizagens

Os níveis dos resultados de aprendizagem continuam caindo. Antes mesmo da COVID-19 estavam em queda, mas a pandemia agravou essa tendênciaEvidências de 70 países de renda média-alta e alta que participaram do PISA de 2022 (no final do primeiro nível da educação secundária) mostram que, de 2012 a 2018, a proporção de estudantes proficientes em leitura caiu 9 pontos percentuais, e desceu ainda mais 3 pontos, reduzindo essa proporção para 47% em 2022.

De 2012 a 2018, a proporção de estudantes proficientes em matemática aumentou 2 pontos percentuais, mas caiu 8 pontos, para 36%, em 2022. Um declínio de longo prazo pode estar acontecendo desde 2009. A Covid-19 pode ter acelerado essa queda e mascarado outros fatores estruturais.

Tecnologias reproduzem desigualdades

A utilização de tecnologias apresenta grandes desigualdades entre os países em relação à familiaridade com atividades básicas realizadas em computadores: em países de alta renda, 8 em cada 10 adultos conseguem enviar um e-mail com um anexo, mas em países de renda média, apenas 3 em cada 10 adultos são capazes de fazer o mesmo.

A educação formal está ligada à maior aquisição de habilidades digitais. Quanto às atividades relacionadas a smartphones, em países de renda alta, 51% de jovens e adultos são capazes de configurar medidas de segurança para dispositivos digitais, em comparação com 9% em países de renda média.

Desastre planetário e climático  

A mudança climática impõe, também, desafios à infraestrutura e aos currículos. Em todo o mundo, quase 1 em cada 4 escolas primárias não tem acesso básico a água potável, saneamento e higiene. Porém, governos também devem realizar investimentos mais amplos para oferecer aos estudantes e às escolas mais proteção relativa ao aumento das temperaturas e dos desastres naturais. Entre tantas urgências e novas agendas que se apresentam no contexto atual é fundamental retomarmos a Educação Ambiental e Climática com a seriedade em todas as instituições de ensino.

No Brasil, segundo Censo Escolar de 2023, cerca de 1,4 milhão de estudantes estão matriculados em escolas públicas que não contam com fornecimento de água tratada, própria para o consumo. A maior parte desses alunos é negra. Em todo o país, cerca de 5,5, milhões de estudantes estão em escolas sem qualquer abastecimento de água pela rede pública. Desses, 2,4 milhões frequentam escolas predominantemente negras e 260 mil, escolas de maioria branca. Os 2,8 milhões estão em escolas mistas.

De acordo com o professor Marcelo Tragtenberg (UFSC), “Em geral, não se tem um olhar racializado sobre os indicadores sociais, mas, quando se racializa, o que acontece é que as escolas onde predominam estudantes negros são escolas com pior infraestrutura de água e saneamento. Onde predominam brancos, as escolas têm melhor infraestrutura.

A educação ambiental foi praticamente extinta

A Educação Ambiental foi praticamente extinta pelas recentes reformas educacionais nos currículos escolares. No seu espaço está sendo priorizada a educação financeira, empreendedora e inovadora. Precisamos, agora, retomar a educação ambiental formal e não formal, integral, crítica, comprometida com a justiça climática, com a ética socioambiental e proteção de todos os seres vivos da natureza.

Em outra publicação, já apontamos a necessidade urgente da volta da educação ambiental nos ambientes escolares: www.neipies.com/retomar-a-educacao-ambiental-e-climatica-e-tentar-superar-o-capitalismo/

A escritora, professora e ativista Bell Hooks aponta que os sistemas institucionalizados de dominação e, portanto, de produção e manutenção das desigualdades (econômicas, raciais, religiosas, gênero, sexualidade etc.) usam o ensino para reforçar valores dominadores e conservar a estrutura de sociedade pautada em valores patriarcais, machistas, racistas, classistas, imperialistas.

Para a autora, expor os fundamentos políticos conservadores que moldam o conteúdo do material utilizado nas escolas, bem como a maneira pela qual as ideologias de dominação estabeleceram a prática de ensino e a atuação de pensadores/as em sala de aula, permite a educadores e educadoras considerarem o ensino de um ponto de vista voltado a libertar a mente dos/das estudantes em vez de doutriná-los/las.

Já filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey disse que a democracia deve renascer a cada geração, e a educação é sua parteira – logo, a democracia e o modo democrático de viver precisam ser ensinados e apreendidos. A democracia tem um vínculo visceral com a igualdade, pois sociedades democráticas pressupõem condições dignas de existência para todas as pessoas, e as instituições escolares e os processos educativos constituem-se espaços essenciais de construção e aprendizado do modo democrático de viver.

Autor: Gabriel Grabowski, professor e pesquisador. Também escreveu e publicou no site “A juventude não é preguiçosa; ela pensa o mundo diferente”: https://www.neipies.com/a-juventude-nao-e-preguicosa-ela-pensa-o-mundo-diferente/

Edição: A. R.

A tarefa de vizinho

Repercutimos, nesta coluna, uma interessante reflexão sobre a importância e a necessidade de bons vizinhos, especialmente em regiões ou localidades onde as distâncias exigem maior zelo, companheirismo e cuidado entre os habitantes. Esta crônica é de autoria de Guido Lang, que mantém página no Faceboock: https://www.facebook.com/guidolang.escritor

“As famílias, como moradoras das retiradas localidades/linhas (em especial), valem-se deveras da “tarefa de vizinho”.

O isolamento geográfico, em função das distâncias e do escasso número de residentes, cria o “espírito e hábito da boa vizinhança”.

As necessidades, de muitas e variadas formas, favorecem as aproximações e interações sociais: onde “um auxilia o outro nas ‘extremas emergências'”.

Os afazeres, num “especial co-irmão”, envolvem “atender estranhos (nas ausências), auxiliar em tarefas (nas doenças), ceder excepcionais ferramentas/utensílios, externar um bom cumprimento, prestar socorro nos percalços, intercambiar artigos coloniais, prestar solidariedade (nas ocasiões de luto), vigiar o afluxo de estranhos”…

Os empecilhos, para “denegrir ou subtrair uma amistosa relação”, consistem em: “alterar rumos das demarcadas áreas, complicar com esporádicas incursões (de animais soltos na propriedade), descartar inconvenientes na terra alheia, externar comentários impróprios, demonstrar egoísmo/inveja (sobre as conquistas alheias), proibir o acesso a água (de fontes e riachos naturais), inibir passagens esporádicas por estradas (de roça), subtrair bens alheios”…

O adágio popular, através das convivências, comprovou: “melhor um vizinho próximo do que um parente longe”.

A “política da boa vizinhança”, como recomendação, consiste em “ser amigo de todos e de ninguém (ser íntimo) por demais”.

A realidade evidencia: “Um bom vizinho possui ‘aspecto de irmão’, enquanto um péssimo vizinho detém feitio de ‘pedra no sapato'”.

“A esperteza, para ‘conquistar bons assistentes’, está em ser um ‘excelente próximo'”.

“Os bons vizinhos, mesmo não se falando diariamente (e se visitando esporadicamente), sabem que têm alguém para contar quando precisam numa emergência” 

(Crônicas das Colônias/Vivências)

Recomendamos também leitura de crônica “Vida na roça”: www.neipies.com/vida-na-roca-2/

Edição: A. R.


O dia a dia das crianças judias no holocausto

Para Nanette Blitz Konig, minha eterna criança.

Em “Valsa para uma menininha”, o poeta Vinícius de Moraes nos traz os seguintes
versos “Menininha do meu coração / Eu só quero você / A três palmos do chão /
Menininha, não cresça mais não / Fique pequenininha na minha canção / Senhorinha
levada / Batendo palminha / Fingindo assustada / Do bicho-papão…”. Gosto de ouvir
esta canção, mas também me lembro das dores de muitas crianças incompreendidas no
mundo inteiro e isso dói no meu coração.

Hitler, o bicho-papão, matou criancinhas e as que se salvaram tiveram roubadas as suas
infâncias cheias de bonitezas e sonhos, e diferente da canção de Vinícius de Moraes,
elas não fingiam estar assustadas, elas viviam assustadas nos guetos e onde se
escondiam para não serem pegas pela polícia nazista.

Tantas crianças foram vítimas do nazismo e perderam seus pais, seus familiares e
deixaram para trás memórias e histórias de vidas que antes do nazismo era bonitas e
cheias de risinhos verdadeiros. O medo tomou conta delas naqueles vagões de trens
fétidos e cheios de uma gente assustada clamando a Deus pela salvação, por algum
milagre, por piedade e orando em voz alta para que não fosse morta.

Crianças foram arrancadas dos seus pais, outras foram colocadas para trabalhos
forçados e ainda tiveram aquelas que foram levadas para câmeras de gás ou fuziladas
sem a menor piedade. Uma maldade que chega a doer, a dar medo, a nos assustar
terrivelmente nas noites de insônia e quando lemos os vários depoimentos dos
sobreviventes hoje com mais de noventa anos de idade e poucos ainda vivos.

Já escrevi sobre esta temática em outra publicação neste site: www.neipies.com/as-
criancas-de-auschwitz/

Já escrevi sobre esta temática em outra publicação neste site: www.neipies.com/as-criancas-de-auschwitz/

Ainda há pouco completamos oitenta anos do holocausto e o mundo inteiro viveu de novo as memórias tristes contadas pelos seus sobreviventes. A história não pode ser repetida nunca mais. Eles ainda estão vivos para nos lembrarem dos seus sofrimentos e dores. Nós precisamos acordar para um futuro melhor e cheio de sonhos às nossas crianças sem discriminação ou preconceito.

Crianças não somente judias, mas filhas de ciganos ou aquelas que não eram consideradas de raça pura alemã foram brutalmente mortas ou castigadas pela polícia nazista. Algumas serviram para experimentos científicos horríveis. O medo corria pelos seus pequeninos olhos assustados daqueles soldados de cara fechada que as levavam para serem mortas sem a menor piedade ou misericórdia. Eles diziam seguir ordens. Matar criancinhas para eles não era mal nenhum, pois as ordens vinham de seus superiores e eles apenas as cumpriam.

Um raro soldado salvou uma criancinha da polícia nazista escondendo-a no galinheiro da sua casa. O professor dono de um orfanato de quem sou fã verdadeira Dr. Janusz Korczak que escreveu o livro “Como amar uma criança” não deixou as suas sozinhas e quando elas foram presas ele também foi junto e morreu ao lado delas. Talvez o amor exista, ele existiu no coração do Dr. Korczak. Ele existe nos corações de professores que dão as suas vidas pelas crianças em atos terroristas como a professora Heley de Abreu Silva Batista de Janaúba em Minas Gerais.

O dia a dia das crianças judias que viviam escondidas da polícia nazista não tinham o direito de ir à escola ou brincarem em parques e praças. Viviam escondidas como Anne Frank a desenharem e lerem alguns livros que seus protetores lhes traziam. Os esconderijos eram os mais diversos até mesmo dentro de barris de madeira.

I

Nos campos de concentração, as criancinhas guardavam os seus brinquedos com afeto e como se fossem algo a que podiam se apegar na hora de dormir para esquecer a dor e a saudade dos pais e demais familiares. Os nazistas castigavam as crianças mais fracas imprensando suas unhas contra alicates. Elas tinham as cabeças raspadas para não criarem piolhos e tomavam apenas uma sopa horrível que mal servia para nutrir seus corpinhos, por isso muitas morriam de desnutrição. 

As criancinhas tiveram que conhecer a morte de perto ao verem seus pais serem fuzilados nos campos de concentração. Nem quero lembrar do sofrimento do Primo Levi em depoimento no seu livro autobiográfico “É isto um homem?” sobrevivente do holocausto que já era um adulto, fico a imaginar uma criança vivendo os mais terríveis sofrimentos dentro de Auschwitz.

Aquelas criancinhas que eram presas pelas ruas da Polônia, Alemanha e outros países que viveram o holocausto de perto, não sabiam o motivo de tanto ódio e violência pela polícia nazista quando tinham seus brinquedos tomados abruptamente das suas mãos e quando era levadas embora de perto dos seus pais. Elas choravam e isso causava raiva nos soldados que só sabiam castigá-las e xingá-las como se fossem culpadas por serem especiais com problemas emocionais e físicos, judias e ciganas.

Escondidas em orfanatos, escolas e igrejas que tinham piedade delas, as criancinhas choravam assustadas e perguntavam a todo instante por que não podiam voltar para casa ou onde estavam seus pais. Assim conta a história, assim dizem os sobreviventes, assim lemos nos livros e graças a Deus nunca mais deixaremos existir outro Hitler.

Essas crianças judias que viveram na época do holocausto viviam assustadas andando pelos guetos escondidas dentro de caixas ou caixotes que as escondiam, quietas, tremendo de medo, cheias de interrogação e sem saberem o motivo de terem que viver o tempo todo presas dentro de um galinheiro ou chiqueiro. Quem chora é porque sente a dor, o medo, a saudade… eu já chorei por tudo isso, mas nunca estive lado a lado com um sobrevivente do holocausto porque se Deus me permitisse este encontro daria um forte abraço e um urso de pelúcia para esta pessoa. Tantas crianças brutalmente mortas com fuzis, com falta de ar, desnutridas, vítimas de castigos severos! Tantas infâncias levadas pelo tempo e deixadas de serem vividas no acaso de um tempo bruto e malvado! Hitler parece que nunca foi criança e se foi ele não experimentou o amor de um pai ou uma mãe que o cuidasse verdadeiramente e o ensinasse a respeitar o próximo.

No dia em que comemoramos os oitenta anos da Memória do Holocausto, 27 de janeiro, devemos lembrar também que essa história não pode ser repetida como nos diz o filósofo Alain Badiou e devemos ficar vigilantes a todo instante. As crianças que foram mortas pela polícia nazista inocentemente mereciam uma vida plena e cheia de sonhos com príncipes e princesas, todavia, sofreram as mais brutais violências que um ser humano pode viver. Sem brinquedos, sem bolas de futebol, ursinhos de pelúcia, sem bonecas e sem pijamas elas dormiam em camas duras e lugares escuros. Elas não tinham vida de criança e nem de bicho, elas não viviam simplesmente. Estavam ali porque existiam como gente contando os dias para o sofrimento acabar. E que dor! E que dor!

Em seus dias de sol lindo as crianças não podiam brincar nos pátios ou parques porque poderiam ser presas pela polícia nazista a qualquer descuido, e por isso viviam escondidas em lugares desumanos onde mal podiam se mexer para correrem atrás de uma bola, não podiam criar gatos ou cachorros para não chamarem atenção dos nazistas e não podiam ver seus amiguinhos costumeiramente e viviam sozinhas…sozinhas. 

Há dor estranha no meu peito quando falo de solidão e medo! Eu me sinto como uma criança assustada presa no escuro todas as noites quando apago as luzes e tento dormir… dormir enquanto criancinhas foram mortas brutalmente pelas mãos de soldados malvados… dormir… eu choro.

Anne Frank ainda pôde criar e ter a companhia do seu gatinho Mouschi, contudo muitas delas não podiam criar nenhum bichinho, pois eram escondidas por pessoas de bom coração que tinham medo de serem presas também e todo o cuidado era pouco para não deixar pistas à polícia nazista. 

Se o tempo nos conta bem a história, a cada dia os sobreviventes do holocausto estão morrendo e já são poucos no mundo inteiro. Eu quero mandar um abraço apertado para criança que mora dentro dos seus corações. Talvez se eu disser para esses velhinhos e velhinhas que escaparam de tanto sofrimento possa levar um pouco de carinho e afeto aos seus dias de memórias cruéis e malvadas.

Outro dia estava lendo a biografia do poeta português Fernando Pessoa e não sei por que me veio a lembrança das crianças vítimas do nazismo, talvez por ele também não ter tido amiguinhos na infância, ter levado uma infância solitária ao lado da sua mãe sem a presença do seu pai. Penso que Pessoa reescreveu a frase famosa dos antigos navegantes para nos deixar uma mensagem “tudo vale a pena se alma não é pequena”. Que Deus salve as vítimas do holocausto que ainda estão vivas e que as nossas crianças sejam amadas sempre! Eu choro e as minhas lágrimas caem em cima do meu gato deitado aos meus pés. Deus nos abençoe!

Autora: Rosângela Trajano. Também escreveu e publicou no site “As crianças das guerras”: www.neipies.com/as-criancas-das-guerras/

Quais os limites da nossa empatia? Sentir o desamparo do outro ou viver a sua dor?

“Traziam contra ele algumas questões referentes à sua própria religião e, particularmente, a certo morto, chamado Jesus, a quem Paulo afirmava estar vivo” (Declaração de Festo ao Rei Agripa em Atos 25:19)

Todos os tempos são tristes, mas o nosso parece ser o mais triste de todos porque nele vivemos. ¹

 A noite estava muito quente, como todas as noites de um verão que se atrasou. E parece que para compensar seu tempo, subiu a pressão.

Terminando a minha caminhada arrastada, resolvi passar em um mercado para compra do pão de todos os dias.  Não é propriamente pelo pão a razão de vermos tanta fila; é porque ele está quentinho.  O que é uma ilusão, pois assim que os seus consumidores o compram, entram em seus carros e, ao chegar em casa, ele já estará frio.

Tenho por hábito ir ao mercado pelo final das tardes e comprar uns 5. Mas a graça está em tirar o pão quentinho da sacola e o comer pelo caminho.  Aí sim! Por dois motivos: um deles, o de caminhar e comer. Uma delícia! A outra razão é pelos curiosos pelas calçadas. Caminhar pela rua com um pedaço de pão nas mãos é quebrar protocolos e torcer olhares.  E como é bom quebrá-los! Os outros receiam ver alguém se deliciando.

Já subindo a rampa do mercado, uma surpresa!

Duas mulheres e uma criança sentadas à beira da calçada. Quase que as desvio. Mas voltei. E para o seu espanto, falei a elas:

_Estou entrando no mercado para comprar pães.  Posso comprá-los pra vocês?

Uma delas, um pouco receosa, olhou pra mim carregada de medo e disparou: 

_Você pode comprar também uma Coca-cola?

Que franqueza, que sinceridade! Adorei.

Ambas as mulheres, de estatura pequena, sentadas ao chão, com uma criança de colo, no momento fora do seu colo, como as jovens índias que vemos pelas calçadas, com seus bebês, forçados que são a ‘engatinhar’, prematuramente.

Povos de alguma aldeia próxima, decerto. Mas aí a outra mulher acrescentou:

_Você pode comprar também um pouco de mortadela?

Hahaha! Achei corajosa a sua pergunta, pois estamos sempre acostumados a dar sempre o mínimo.

É porque somos tentados a achar que quando alguém nos pede algo, temos de dar o diminuto para aliviar a sua dor, mas não o seu prazer, como quem não tem direito de sorver, no seu desespero, um alívio com quaisquer prazeres que diminuam seu desamparo. Para quem pede, fica proibido. Ao pedinte, que se contente com o básico!

Entrei no mercado e comprei: pão, mortadela, queijo, água e uma coca, muito gelada.

Quando fui entregar as sacolas é que percebi que não eram apenas duas, três, mas uma família completa. A noite me tisnou o olhar.

Bem, eles não pediram nada. Eu os provoquei.  Mas como não provocar as duas senhorinhas, que me olhavam como que pedindo socorro?  Bastava ver em seus olhos o desconsolo!  Sua imensa tristeza ao sentir fome e abandono, agora que saíram de sua aldeia e não param de se admirar pela riqueza aparente que as cerca. Tanta riqueza e tanta pobreza, na mesma quadra, na mesma noite, em um mesmo verão.

Os nossos tempos são tristes demais! Nem foi possível comer o pãozinho de costume que exibia pelas ruas.  E quer saber?  Tomara que aquela índia sincera tenha tomado a coca toda, em goles feios, para a sua sede abandoná-la. Ainda dentro da hipocrisia em que contraía, pedi a elas que não dessem coca para o menininho. E concordaram. Que diferença isso faria, meu Deus.

O que eu poderia fazer mais? O que faltou nessa cena?

Pensei um pouco mais no caso e imaginei se Jesus estivesse andando por aí, em uma noite de verão qualquer; o que ele faria? É uma pergunta obrigatória!

Falamos de boca cheia que somos todos cristãos, mas a maioria dos que passavam pela frente das senhoras não davam a mínima.  Bem, ninguém é obrigado a dar nada, assim como ninguém é obrigado a ser cristão.

Mas as Igrejas estão cheias das mesmas pessoas que não paravam na frente das duas indiazinhas, mães ainda jovens, e tomadas por uma sede própria das madrugadas de verão mal dormidas. Mas Deus é invocado nas mesmas Igrejas, todas as semanas, como ele fosse um deus à sua maneira e segundo o interesse de cada um.

Muitas vezes perco a paciência comigo mesmo por não ajudar mais, não sentir toda a dor alheia pelas calçadas nesses tempos de tantos deuses, igualmente solitários. E penso, em muitas ocasiões, que andamos pelas ruas como seguidores de um Cristo morto.  Isso tudo, depois do Apóstolo Paulo nos alertar que dar é melhor que receber e que é mister socorrer aos necessitados. ²

Sabe de uma coisa:  acho que Jesus, no lugar do meu pobre andar por um verão de tantas solidões, isso mesmo, o Jesus que lemos e ouvimos, retornasse a elas. E penso que Ele se sentaria ao seu lado, na calçada, talvez com o indiozinho em seu colo e pediria até que contassem sobre a sua vida na aldeia e as razões de terem abandonado tão grande dádiva, para sentir vontade de comer e beber coisas estranhas, neste exílio permanente em sua própria terra. E nós, de certa forma, exilados de nossa própria empatia.

Quem sabe ele não permanecesse ao seu lado, até o amanhecer, eles todos, índios, indiozinhos e até o próprio Jesus, acostumados que estão com a nossa indiferença. Sim, nós, seus seguidores de ocasião.

Todos os tempos são tristes, como falou o poeta, mas nunca tivemos tantos recursos para que nossas noites fossem amenizadas com um mínimo de piedade.

Mas é dar com a mão esquerda sem que a mão direita o veja, ³ de modo que não haja tentação de que uma delas poste nas redes sociais… um simples pão dividido.

Referências:

1) Mauro Santayana/

2) Atos 20:35/

3) Mateus 6:3

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site a crônica “O dia em que Deus se arrependeu de nós. Será que somos o erro de Deus”?: www.neipies.com/o-dia-em-que-deus-se-arrependeu-de-nos-sera-que-somos-o-erro-de-deus/

Edição: A. R.

Ansiedade: a palavra síntese eleita de 2024

A palavra que simboliza o sentimento dos brasileiros em 2024 foi revelada pela pesquisa ‘Palavra do Ano’, conduzida pela CAUSE em parceria com o Instituto de Pesquisa IDEIA e o PiniOn app. Em sua nona edição, o termo ‘Ansiedade’ liderou com 22% das menções, seguido por ‘Resiliência’ (21%), ‘Inteligência Artificial’ (20%), ‘Incerteza’ (20%) e ‘Extremismo’ (4%). Leia mais:https://roraimaemtempo.com.br/cidades/ansiedade-e-eleita-a-palavra-do-ano-no-brasil-mostra-pesquisa/)

O encerramento de um ano é tradicionalmente marcado por balanços e projeções. Revemos os planos traçados, avaliamos os resultados alcançados e elegemos a direção para o próximo ciclo.

Mas e quando a palavra que define o espírito do ano é “Ansiedade”? Como projetar o futuro sob a influência de uma sensação que, em sua essência, é caracterizada pela inquietude, pela pressa e pela dificuldade em lidar com a espera?

A ansiedade não é apenas cansaço mental ou emocional. Ela é uma perturbação que afeta profundamente a nossa relação com o tempo.

Quando estamos ansiosos, não preparamos o futuro com calma; ao contrário, colidimos com ele, muitas vezes sem planejamento, deixando-nos vulneráveis a frustrações e desilusões. Esse “choque com o futuro”, como bem pode ser descrito, reflete não apenas nossas tensões internas, mas também ameaças externas significativas: as mudanças climáticas, as desigualdades sociais crescentes, a perda de biodiversidade e as crises geopolíticas que redefinem constantemente o cenário global.

Esses desafios coletivos demandam respostas que transcendam a ansiedade individual e exigem colaboração, solidariedade e a “pressa de fazer caridade”. Essa pressa, diferentemente da ansiedade paralisante, é movida por um senso de urgência positiva, pela busca de soluções que não apenas remendam o presente, mas plantem sementes de esperança para o futuro.

No entanto, a esperança é um ato paradoxal.

Ela exige que reconheçamos os desafios com clareza, sem negá-los, mas também que acreditemos em nossa capacidade coletiva de superá-los. Como construir um futuro sustentável, socialmente equitativo e com isonomia cidadã diante de um mundo em turbulência? A resposta pode residir na diferença entre ansiedade e pressa de esperançar.

Enquanto a ansiedade atropela as vibrações retroativas de vida, desorganizando a continuidade das nossas experiências, a pressa de esperançar é proativa. Ela nos impulsiona a agir com intencionalidade, equilibrando urgência e planejamento. Essa abordagem demanda uma reavaliação dos valores que nos guiam. É necessário cultivar a paciência ativa, aquela que nos permite agir no presente com a consciência de que cada pequeno gesto tem impacto no futuro.

Enfrentar a ansiedade significa aceitar que a incerteza é parte da vida.

Isso envolve criar espaços para reflexão e diálogo, onde medos possam ser compartilhados e ressignificados coletivamente. Nenhum futuro é sustentável se construído de forma individualista. A colaboração entre diferentes setores da sociedade é crucial para resolver problemas globais e garantir justiça social. Em tempos de crises sistêmicas, manter a esperança é, em si, um ato revolucionário. A esperança nos convida a olhar além das dificuldades imediatas e imaginar o que pode ser alcançado com esforço e determinação.

O ano de 2024, com a ansiedade sendo a palavra síntese, nos desafia a ressignificar o conceito de tempo e de planejamento. Mais do que um estado mental ou emocional, a ansiedade pode se tornar um catalisador para a mudança, desde que não nos rendamos a ela. A transição da ansiedade paralisante para a pressa de esperançar exige coragem, organização e uma consciência ampliada de que somos todos coautores do futuro.

Assim, que possamos encerrar o ano 2024 com a compreensão de que o verdadeiro desafio não está apenas em enfrentar nossas inquietudes, mas em transformá-las em energia criativa e construtiva. Afinal, a ansiosa espera pelo futuro pode ser substituída por uma esperança ativa e coletiva, na qual cada passo à frente seja guiado por valores que promovam uma vida digna e harmoniosa para todos.

Autor: José André da Costa, msf. Também escreveu e publicou no site em 2024 “Tapera: espaço das lembranças vividas”: www.neipies.com/tapera-espaco-das-lembrancas-vividas/

Edição: A. R.

Prefaciando Amor: encantos e desencontros, de Laercio Fernandes dos Santos

Uma das mais instigantes características humanas é a busca pelo encontro. No caminho pelo qual cada um se conduz para essa busca, há o amor. E não só. Há de se saber que a perda se esconde nesse caminho, que é parte dele, que está tão presente como qualquer outro acontecimento, mesmo sendo difícil de percebê-la.  É essa uma primeira ideia que surge na leitura de Amor: encantos e desencontros, de Laércio Fernandes dos Santos, uma história sobre o ato de viver a aproximação amorosa entre adolescentes e jovens. Nesse romance, despertando questionamentos e entendimentos interessantes, a perda, imperceptível por um tempo, aparece em todos os encontros das personagens, tornando-se singular em seus efeitos. 

Da companhia dos pensamentos, dos sentimentos, das experiências e até mesmo de outros escritos, o livro surge daquelas coisas que, de algumas ideias, viram muitas e se organizam pela linguagem, querendo do autor um lugar de abrigo. Então, leitor, é bem possível que você, ao ler a história narrada nas páginas que seguem, encontre a ficção que faz pensar enquanto evoca memórias e lembranças e perceba que há uma imensa variedade de coisas na vida que escapam à compreensão.

Afinal, você vai viver imaginariamente uma vida que não é sua, mas que, atingido pelos efeitos de identificação, passa a ser um pouco sua também.

Recebemos do autor uma literatura que, sonhada por ele há muito tempo, toma forma concreta de uma obra em prosa longa. Em seu espaço de criação, estruturado em capítulos, a narrativa flui, envolvendo o leitor nas vivências das personagens e nos episódios que dão forma ao drama que vivem. Tudo isso é possível pela linguagem, que, instauradora da realidade ficcional, nos chega repleta de significado. Por certo, foi por mergulhar com coragem e habilidade no universo da escrita que o autor conseguiu acolher alguns fenômenos da complexidade das relações humanas permeadas pelos sentimentos.

O espaço de criação do texto também demonstra que o autor sabe transitar entre as formas literárias. Observe, leitor, que a história é contada numa estrutura narrativa que se transporta para o lugar do poético, com alguns versos que iniciam capítulos e outros que compõem o discurso da personagem, permitindo, assim, que a imaginação de quem lê se amplie. Há uma riqueza de linguagem nas palavras que se juntam pela finalidade estética e produzem, assim, o efeito de sentido.

Nessa construção de linguagem, encontramos a transposição do drama amoroso no qual as personagens mergulham, criam suas memórias e refazem o que ela fez, hesitando entre o lugar da felicidade individual e a dois e, por vezes, esquecendo-se em si. Isso leva a pensar se tudo o que passar da vida para a alma é inesperado ou é eterno. E não esquecer, leitor, que a imaginação sempre desequilibra.

Reflexões surgem com os encontros e desencontros, no eterno embate da vida a dois.

Uma delas, inerente à temática da relação amorosa de contornos juvenis, é sobre a gravidez de mulheres jovens e os dilemas que advêm do abandono. E é certo que “De muitos amores temos os encantos, mas também os desencontros.” E pensar que tudo, para todas as personagens, vem do coração. A progredir na formação dos casais que amam, as fases do amadurecimento surgem, trazendo com elas o desejo que cala no corpo e nele fica, tornando intensa a entrega na própria carne, como a criar marcas para dizer que “Aquilo era a plenitude humana.”

E os mistérios que rondam o amor? O que acontece no íntimo de cada um? Como se resolve a volubilidade? Entre outras perguntas que a narrativa suscita, essas dão uma ideia do humano que perpassa a construção das personagens. O que há, também, é uma pergunta sobre o significado de amor. Outra, forte demais, é sobre a existência do amor.

Caros leitores! Recomendar-lhes Amor: encantos e desencontros, de Laercio Fernandes dos Santos, é uma responsabilidade que assumo com tranquilidade, sentindo-me honrada, haja vista a qualidade da narrativa. E seu autor? É um aluno que se tornou meu amigo. Conheci-o quando ele fazia o curso de Letras na Universidade de Passo Fundo. Como aluno de graduação já reunia condições extremamente caras e necessárias ao desenvolvimento da formação intelectual, as quais se ampliaram na pós-graduação. Hoje, cursando o doutorado, desafia-se à escrita literária, dando os devidos traços de real ao que foi imaginação.

Como o Laercio diz, “A escrita é uma forma de organizar o discurso de quem a gente é”. Ocorre aqui, querido amigo, uma bela e instigante organização sua.

Passo Fundo, abril de 2022.

Fotos: Divulgação/arquivo pessoal Laércio Fernandes dos Santos

Autora: Ivânia Campigotto Aquino. Pós-Doutora em Letras – Estudos de Literatura. Professora do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo

Edição: A. R.

O maior desejo do mundo

O que há de melhor no Ano Novo é o exercício da esperança. De minha parte, acho esta festa melhor do que o Natal.

– Papai, onde é a piscina?

Foi o que disse a menina, quatro ou cinco anos, enquanto a família tirava do carro cadeira e guarda-sol, e a tia lhe passava protetor solar, e a vó teimando em ir de calça comprida. A trinta metros estava o mar da Praia de Ingleses.

O que há de melhor no Ano Novo é o exercício da esperança. De minha parte, acho esta festa melhor do que o Natal.

O Natal tem um clima propício para a falsidade, obrigação de dar presentes para familiares de quem não gostamos, ou fazer caridade para o porteiro do prédio e a empregada doméstica. Ninguém consegue fugir do constrangimento de colaborar com o Natal dos papeleiros ou dos garis, ou arrecadar dinheiro para uma creche. Mesmo quem nunca foi solidário se vê obrigado, de uma hora para outra, passa a ter bom coração. Nada pior que coação à bondade.

O Ano Novo, por ser uma festa mais pagã, nos libera de obrigações da consciência. È uma festa da vida por si mesma, da passagem natural das estações. Mais amigos e menos parentes chatos, a praia ao invés das igrejas. Ademais, contrário de um “Feliz Natal” que serve apenas para um dia, desejamos “Feliz Ano Novo” com a obrigação de ajudarmos a tornar feliz doze meses. Ou seja, os desejos de Ano Novo devem ser, no mínimo, trezentos e sessenta e cinco vezes mais intensos que os de Natal. Isso se o ano não for bissexto, caso em que será preciso uma intensidade maior ainda.

Outra vantagem do Ano Novo é que os desejos são mais realistas, “paz e dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Embora a paz venha em primeiro lugar no pedido, coisa que no mundo nunca acontece, segue o dinheiro no bolso, e saúde, pra dar e “vender”. Combina muito mais com o espírito do capitalismo. E vêm lá os desejos reais: um automóvel, um emprego, a casa nova, concluir a faculdade, um parceiro para sexo e… amor.

Por fim, Ano Novo é menos ridículo. Não aparece um personagem gordo num tempo de dietas, nem há árvores de Natal com algodão ou bolinhas de isopor num calor de quarenta graus.

Como tudo, o Ano Novo tem lá seus inconvenientes. Será preciso imaginar formas de ganhar dinheiro de modo mais rápido e eficiente, além de precisarmos dos porteiros, das faxineiras, dos catadores de papel. Quem se preocupa com em ganhar dinheiro não pode cuidar da portaria do prédio, lavar a roupa, ou gastar tempo com faxina da casa ou da cidade. Assim, mesmo não querendo, seremos conduzidos a dezembro do próximo ano, com o castigo de sermos solidários e benevolentes outra vez.

A menina da Praia de Ingleses toma seu baldinho, pega na mão do pai, e segue para a beira-mar pela primeira vez. Segui atrás, cheio de expectativas para a colheita de alguma frase desconcertante quando ela visse o oceano. Mas a criança, sem deslumbramentos, quase como eu ante tantas esperanças de Ano Novo, olha para o pai e lhe conta:

– Eu já sonhei com uma piscina muito maior que essa!

Autor: Pablo Morenno. Também escreveu e publicou no site “Receita para amar gente e bichos”: www.neipies.com/receita-para-amar-gente-e-bichos/

Edição: A. R.

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