Com todos os seus defeitos, o regime democrático de direito, com os três poderes independentes uns dos outros, mais o poder da imprensa livre e de tantas associações e entidades, é o único possível de nos proteger de psicopatas sádicos rindo do sofrimento humano nos porões das ditaduras sejam elas ditas de direita ou de esquerda.
Durante mais de dez anos, nas décadas de 1980 e 1990, colaborei intensamente com a Anistia Internacional. Além de ajudar financeiramente, passei, como psiquiatra, a atender pessoas que haviam sido barbaramente torturadas por ditaduras. A maioria era de brasileiros, alguns argentinos e poucos chilenos. Outros colegas, de outras cidades, atenderam uruguaios e cubanos.
Quando abordo esse tema, acho de fundamental importância relembrar que os atuais militares da ativa nem eram nascidos em 1964. E cabe elogiar os nossos generais que não aceitaram a instalação de uma nova ditadura militar.
Como escreveu Denis Lerrer Rosenfield, no Estadão: “Se golpe não houve, isso se deve a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco tenha aparecido na imprensa”. E cita os generais Tomás Paiva, Richard Nunes e Valério Stumpf.
Voltando à Anistia Internacional, os pacientes que me eram enviados se hospedavam gratuitamente em um hotel, por gentileza do proprietário. Mesmo quando a ditadura brasileira já havia terminado, Sarney era o presidente, eu tinha de guardar segredo e sequer registrar os atendimentos, pois havia o temor de que a ditadura, a qualquer momento, retornasse. Nem para outros membros da Anistia se revelava o que se fazia.
No meu caso, só tinha contato com um psiquiatra de Oslo, na época sede da Anistia Internacional, colega bastante experiente e com outro colega do Peru, inexperiente como eu. Usávamos medicação antidepressiva e ansiolítica e psicoterapia. A abordagem ensinada pelo colega de Oslo focava no que se chamava de “gente sente como gente”.
O problema central dos pacientes era a dor da indiferença. A dor física da tortura era insuportável, mas tendia a ir diminuindo com o tempo. Porém, a dor emocional não desaparecia. A dor da indiferença, da frieza, da desumanidade.
Era terrível perceber que os torturadores e os presentes na sala absolutamente não se condoíam. Era terrível não mais ser considerado “gente”. Ouvir as gargalhadas deles, provocadas por assuntos deles enquanto “trabalhavam” eletrocutando, afogando, arrancando unhas… E perceber a risada sádica, o prazer de provocar o pior sofrimento. Na função de torturador, só ficam os que são psicopatas sádicos. Se alguém não é assim, participa uma vez e não consegue continuar.
A terapia teria de devolver a humanidade ao paciente. Ou seja, o mais importante era o terapeuta entender o motivo de tanto sofrimento e sofrer com o relato que ouvia, sofrer com o paciente. Ser “gente que sente como gente”. Impossível não chorar.
Todos os pacientes que chegaram a mim apresentavam pelo menos transtorno de estresse pós-traumático primário. Sigla: TEPT primário.
E o colega de Oslo avisou a mim e ao psiquiatra peruano que, nessa atividade, nós desenvolveríamos o que hoje chamamos de TEPT secundário. Os relatos ouvidos ficariam ecoando dentro de nós, a imagem da dor viria a nossa mente em flashes e seguiria vindo muito tempo depois de concluído o atendimento. Orientava que atendêssemos um paciente por vez para não adoecermos, ou melhor, para adoecermos pouco.
Por vários anos, até perder o contato, troquei correspondência com o peruano e ambos reconhecíamos que havíamos ficado com TEPT secundário. Ainda hoje sinto vestígios do quadro.
Não vou revelar em detalhes nenhum caso, não quero de forma alguma adoecê-los.
Apenas vou dizer que é de uma tristeza insuportável pensar que se vai morrer numa prisão clandestina, longe dos familiares, dos amigos, atrás de uma porta de ferro, com sede, com fome, com frio, com dor, ouvindo o praguejar dos carcereiros e os gritos dos colegas de infortúnio sofrendo tortura.
Com todos os seus defeitos, o regime democrático de direito, com os três poderes independentes uns dos outros, mais o poder da imprensa livre e de tantas associações e entidades, é o único possível de nos proteger de psicopatas sádicos rindo do sofrimento humano nos porões das ditaduras sejam elas ditas de direita ou de esquerda.
Não é o bastante registrar em projetos educativos a exaltação da política e da participação para que, de fato, as instituições de ensino atinjam estes objetivos. É preciso eliminar a diferença e a distância entre a intenção e a ação.
Optar por uma sociedade democrática significa acreditar que o poder deve emergir da maioria (dos pollói) e que todas as decisões políticas devem atender aos interesses da maioria da população; garantir o direito de todos à moradia, à saúde, ao trabalho, à alimentação, à educação, ao transporte, ao lazer, enfim o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Acreditar na existência da contradição, da divergência, das diferenças, na organização dos grupos e na forma de pressão que os grupos organizados devem e podem exercer. Implica um reacender da dimensão política educativa, da cidadania, do compromisso com a sociedade.
Naturalmente, tais opções não podem estar meramente no domínio só do discurso. Elas representam caminhos de vida, de atitudes de desafio no percurso dos educadores (as), reconstrução permanente do sentido e do tipo de utopia. Por isso, a necessidade de uma constante “reflexão-ação-reflexão”, ou seja, partir da prática social e teorizá-la para construir uma nova prática, para orientar a ação educacional.
De posse desses pressupostos, podemos perguntar pela prática educativa que possibilita as instituições de ensino viabilizar uma realidade geradora de novos padrões éticos.
O nosso esforço aqui é evidenciar que a alternativa viável para romper a “reprodução bancária” é a instituição de ensino criar, participativamente, como referencial de trabalho, uma utopia possível de sociedade, de pessoa humana e, consequentemente, de educação, buscando vivê-la com esforço metódico continuado para que, plantada em semente, vivida em antecipação, possa aproximar essa utopia possível da realidade.
Aqui colocamos a ação participativa, definida pelos elementos que integram no processo educativo, como instrumento de transformação e geradora de um novo ser humano e, por isso, de uma “nova ética”.
Como já mencionamos, a prática da educação sempre tende a legitimar a própria sociedade que a originou. Uma educação que provém do nosso modo de ser, não daquilo que se ensina com palavras.
Não é suficiente fazer discurso sobre a política e a democracia, não é o bastante deixar registrado em projetos educativos a exaltação da política para que, de fato, a instituição de ensino atinja este objetivo. É preciso eliminar a diferença e a distância entre a intenção e a ação.
Em várias situações deixamos as nossas crianças envergonhadas. Com isso, elas perdem a vontade de continuarem sorrindo, se divertindo, brincando e se colocam num canto de parede apenas observando as demais crianças.
O nosso querido poeta Pedro Bandeira já dizia em seu poema “Pontinho de vista” os seguintes versos “Eu sou pequeno, me dizem, / e eu fico muito zangado. / Tenho de olhar todo mundo / com o queixo levantado.”
Que possamos ser educados e nos abaixarmos para falarmos com as nossas crianças em respeito a elas e a nós mesmos que já fomos uma, certo dia. É preciso respeitar as crianças em todos os sentidos, principalmente não as envergonhando com coisas ditas à toa que ferem sem nem sentirmos o mal que estamos lhes causando.
Uma coisa é certa: não sabemos cuidar das nossas crianças. Talvez porque não tenhamos mais tempo a perder com elas ou porque não fomos educados para lidar com as suas ansiedades, questionamentos e incertezas.
Parece difícil compreender o que uma criança deseja para muitos adultos, mas basta olhar no fundo dos seus olhinhos que logo descobriremos as suas dúvidas e medos em relação a nós, sim, nós mesmos adultos que vivemos ao seu redor e não pessoas estranhas.
E por que as crianças teriam medo dos seus pais ou responsáveis? Porque todos os dias veem suas explosões de raiva, estresse e ansiedade quando voltam do trabalho ou quando falam com alguém ao telefone. Não temos mais o cuidado de esconder das nossas crianças os nossos sentimentos de raiva e muitas vezes até as encorajamos para não brincar mais com os filhos daquelas pessoas de quem deixamos de ser amigos ou confiar.
Estamos ensinando as nossas crianças a serem covardes e inimigas dos seus próprios sentimentos e emoções, da maneira que nos comportamos diante delas. Isso assusta e causa medo nos pequeninos gerando dúvidas se aquele papai ou mamãe realmente merece ser amado por que ele só traz problemas para o mundo da criança. E para quem pensa que criança não tem problema está muito enganado. Talvez ela tenha mais problemas do que nós adultos chatos que só sabemos reclamar e reclamar das coisas da vida. Não damos um passo para mudarmos ou mudarmos as coisas ao nosso redor.
Por mais que as crianças queiram e se esforcem para fazer tudo certinho, elas sempre erram e começam a chorar, principalmente quando estão na frente de pessoas estranhas e os pais acham aquilo horrível e logo fazem com que elas se sintam mais envergonhadas ainda lhes dizendo “que coisa feia você está fazendo chorando na frente de estranhos” ou melhor “veja como aquele menininho se comporta direitinho” ou então comparando uma criança com a outra quando dizemos “faça como ela, seja boazinha e divida o seu lanche”.
Algumas crianças não estão acostumadas a dividirem as suas coisinhas com outras e ficam sem jeito quando na escola os professores as obrigam a compartilharem os seus materiais escolares e até mesmo os seus lanchinhos. Elas foram acostumadas a terem tudo somente seu, principalmente as que não têm irmãozinhos ou irmãzinhas. E, de repente, são pegas de surpresa sendo obrigadas a dividirem o que é tão somente seu, isso precisa ser melhor avaliado e ser algo cuidadoso nas escolas e também em casa ou quando a criança for colocada diante de outras com as quais ela não está acostumada com a convivência, pois muitos brinquedos para elas não podem ser pegos por mais ninguém senão elas próprias.
Sim, em várias situações deixamos as nossas crianças envergonhadas.
Com isso, elas perdem a vontade de continuarem sorrindo, se divertindo, brincando e se colocam num canto de parede apenas observando as demais crianças. Elas ficam de birra ou simplesmente não dizem mais nada até chegar em casa e explodirem num pranto que ninguém cala. Costumamos envergonhar as crianças que são tímidas quando elas não se sentem bem em fazer algo em público.
Os meninos, levados pelo machismo e patriarcado dos pais, são envergonhados por eles quando são obrigados a baixarem as suas calças ou calções e fazerem xixi ali no meio da rua, na frente de todo o mundo que passa. O pai cheio de machismo diz para o menino que homem pode tudo, que não deve ter vergonha de fazer xixi em qualquer local quando se é criança porque ninguém vai reparar nele. Só os adultos que devem tomar cuidado vez ou outra.
Fazemos com que as nossas crianças se sintam envergonhadas quando dizemos “você é muito ingrato, nem agradeceu ao seu coleguinha” Esquecemos que as crianças muitas vezes ficam tão felizes e surpresas com os gestos de outras que nem se dão conta de agradecer o que recebem de presente.
As crianças só pensam em brincar umas com as outras. Ainda não estão maduras o suficiente para agradecerem tudo o que fazemos por elas, mesmo que sejam crianças a se ajudarem mutuamente.
Outra situação em que deixamos as crianças envergonhadas é quando lhes dizemos “você parece um bebezinho chorando desse jeito” . Os pais, quando as crianças estão maiorzinhas, não querem mais as ver chorando por brinquedos, roupas ou objetos que outras crianças pegam emprestado. Pode ser natural para os pais e responsáveis, mas não para as crianças que o amiguinho leve consigo um brinquedo que a criança tanto gosta ou até mesmo os compartilhar.
Imagine que até nós adultos quase sempre sentimos vontade de chorar, principalmente em situações delicadas que mexem com os nossos sentimentos, quando acabamos uma relação amorosa, quando perdemos um amigo ou quando morre alguém que gostávamos. Quando não choramos sentimos algo preso na garganta. E quando conseguimos chorar aliviamos as nossas dores e sofrimentos. Assim ocorre com as crianças. Vamos deixá-las chorar pelas suas dores e emoções que estão aprendendo a vivê-las. A experiência vai nos fortalecendo aos poucos, e aquilo pelo qual choramos hoje, talvez amanhã nem nos afete.
Ninguém quer ser motivo de riso ou piadinha de outras pessoas porque está chorando. Ainda voltando ao machismo e ao patriarcado até os dias de hoje muitos meninos continuam sendo ensinados pelos pais que não devem chorar, que homem não chora, que homem é forte e não chora por nada. Isso é mito. Se brincar homem chora muito mais do que mulher, porque a mulher tem as demais amigas com quem desabafar e os homens têm vergonha de serem tachados de frouxos pelos seus amigos ao chorarem diante deles.
Permita que a sua criança chore sem a julgar e sem a comparar com um bebezinho ou chamá-la de molenga.
As visitas ao dentista são as que mais causam medo nas crianças. É preciso que a criança se sinta confortável e preparada para ir ao dentista. Que possa confiar naquela pessoa para quem vai abrir a boca e mostrar os seus dentinhos. Se a criança chorar no consultório do dentista ou do médico pediatra ela deve ser respeitada e acalmada. Até que pare de chorar não entrará na sala do especialista, somente fará isso quando se sentir segura de que nenhum mal vão lhe causar.
Assim como ocorre ao irem ser vacinadas, as crianças morrem de medo de vacinas porque veem outras chorando e acham que vai doer. Elas não devem ser envergonhadas ou tachadas de medrosas e muito menos ouvirem “você tem que ser forte, veja o seu amiguinho, nem chora”. Cada criança é uma pessoa diferente e tem que ser respeitada na sua subjetividade. Chorar não é mimo, chorar é uma forma de defesa da pessoa.
Do mesmo jeito é nos primeiros dias de aulas da criança. Ela não deve ser comparada com as outras que não choram e fazem aquela bagunça alegre por chegarem à idade escolar. Algumas crianças não estão preparadas para aquele momento e existem várias razões para isso, muitas estão acostumadas a ficarem em casa, outras não se sentem maduras o suficiente para saírem de perto dos seus pais e ainda existem aquelas que prefeririam estar brincando com os seus próprios brinquedos.
É o caso de tirar a criança que está acostumada a passar o tempo todo no aparelho celular e quando terminam as férias chora para não ir à escola ou quer levar junto o aparelho sem poder. Elas não choram porque foram mimadas e são fracas demais, elas não devem ser julgadas, o simples fato de chorarem já as deixam confusas e assustadas. Quem chora sente uma dor ou um sofrimento. Quem chora quer carinho e afeto. E não o contrário.
Respeitar as crianças que choram é dever do adulto e não dizer para elas “nossa, como você é chorona” ou “você só sabe chorar” ou muito menos ameaçá-las de palmadas ou castigos porque estão chorando. Muitas pais costumam dizer para os seus filhos “se você não parar de chorar sem motivo vai apanhar para ter um” quando na verdade para todo choro existe um motivo. Alguns pais dão amor de uma forma diferente aos seus filhos, de uma forma grosseira e eu diria que estúpida. Como não amar aqueles rostinhos lindos que nos pedem colo chorando por que estão com medo do bicho papão?
Também acontecem situações desagradáveis quando as crianças estão na rua com os pais ou na casa de conhecidos onde elas se sentem desconfortáveis ou até mesmo sem receberem a atenção necessária porque no local só existem adultos e a criança fica deslocada num canto qualquer. Sem saber como lidar com a situação a criança começa a chorar e o pai ou a mãe chega para ela e diz “você só me faz passar vergonha na frente dos outros”.
A criança nunca nos fará vergonha na frente de ninguém se soubermos dar-lhes afeto e cuidados.
Se lhe dermos a atenção merecida e conversarmos com ela sobre como precisam se comportar diante de visitas, amigos ou na casa de algum conhecido. E se ainda assim a criança não conseguir compreender e acabar chorando devemos acalentá-la. Muitas vezes ela se sente entediada por não ter com quem brincar e estar rodeada somente de adultos que nem ligam para ela ou está com sono ou mesmo com saudades de casa. Sim, porque criança também sente saudades do seu lar quando fica muito tempo longe dele, principalmente quando é um lugar confortável e onde ela se sente segura e protegida.
As crianças se esforçam para nos oferecerem o melhor que elas podem fazer ou falar quando estão em processo de aprendizagem de fala. Se a sua criança chama um palavrão na casa de vizinhos ou amigos não a diga que ela lhe causou vergonha, mas procure descobrir como ela teve acesso aquele palavrão e com quem aprendeu porque tudo o que a criança diz ou faz é imitação do que ela vê. Não julgue a sua criança sem antes parar e pensar em como está se comportando na frente dela, em casa.
Se você é um pai ou uma mãe que quebra tudo quando está irritado ou joga tudo no chão quando é contrariado, a criança vai achar que aquilo é normal e todas as vezes que se sentir irritada ou for contrariada agirá igual a você.
Conviver com crianças exige uma autoavaliação de si próprio todos os dias. É buscar saber no que erramos para a criança agir com tanta agressividade na frente de estranhos a ponto de chegarmos a dizer-lhes que são uma vergonha para nós.
Uma outra coisa que envergonha as crianças é quando lhes dizemos “você faz tudo errado” ou “você não consegue fazer nada sozinho”. Sabemos que errar faz parte da aprendizagem. Só aprendemos errando. Já existe um ditado famoso “errar é humano.” Até as máquinas erram. Os robôs falham. Quem de nós não causa um erro quase todos os dias? Os nossos erros são aprendizagens que nos fazem crescer.
Devemos ajudar as crianças a não desistirem nunca de continuarem tentando e buscando soluções para as coisas que fazem. Elas não devem desistir no primeiro erro. E também precisamos estimulá-las a fazerem as coisas com autonomia, mas se elas pedirem a nossa ajuda estaremos sempre a disposição para ensinar-lhes. A criança pequenina depende dos pais e professores para quase tudo. Até mesmo para tomar banho é necessário a presença de um adulto ou também para fazer as suas necessidades físicas quando da ida ao banheiro.
Não queiramos que as nossas criancinhas ajam sozinhas em coisas que elas nem sabem como fazerem e sejamos gratos por nos pedirem ajuda quando for a primeira, segunda ou milésima vez que forem fazer tal coisa. O trabalho coletivo dignifica o homem. Não ser individualista é uma coisa que a criança deve aprender desde cedo. Aos poucos ela vai criando autonomia e se desapegando de você, papai, mamãe ou professor.
Uma outra fala dos adultos que deixa as crianças bastante envergonhadas é quando dizemos para elas “você já é grande o suficiente para aprender sozinho”. Ninguém aprende nada sozinho. Todos nós precisamos de ajuda para aprendermos algo mesmo que seja fácil. Mesmo que a criança já saiba ler as instruções do brinquedo ou de um objeto que gosta de usar e não quer mexer nele sem que o papai ou a mamãe o ligue. Ter alguém por perto para nos ajudar a fazer algo do qual temos medo de fazer errado pode ser mais confortável e até mesmo seguro.
Não deixemos as nossas crianças envergonhadas com as nossas falas ameaçadoras de “vou bater em você se continuar com medo”. Toda criança tem direito a ter medo, principalmente do escuro e de pessoas vestidas com roupas intrigantes das quais elas não estão acostumadas como palhaços, guardas de trânsito e até mesmo o velho e bom Papai Noel. O medo faz parte da essência do homem.
A criança não precisa guardar o medo no peito e demonstrar coragem quando na verdade está toda trêmula por ter de enfrentar uma situação da qual não está preparada. É preciso respeitar o seu tempo de maturidade.
E por último uma fala que escuto muito os pais dizerem para as suas crianças “vou deixar de amar você se continuar agindo assim”. As crianças se sentem tão envergonhadas quando escutam essa frase e tão assustadas com medo de perderem o amor dos pais ou dos seus professores que acabam fazendo algo que não gostam apenas para agradá-los.
Quando ameaçamos um adulto de que não o amaremos mais se continuar bebendo ou se drogando e vemos esse adulto fazer de tudo para não nos perder, dessa mesma forma acontece com as crianças, ou seja, elas fazem de tudo para não perder o nosso amor e nunca mais ouvirem esta frase ameaçadora.
Para muitos pais, responsáveis e professores algumas coisas ficam só nas ameaças e são supérfluas. Dizer que vai bater até a criança se cansar de chorar sempre, é num momento de raiva ou estresse porque muitos não fariam isso em sã consciência. O que quero alertar mesmo é que não causemos vergonha nas nossas crianças com as nossas falas, porque isso tende a prejudicar os seus crescimentos emocionais e físicos.
A criança envergonhada passa a desconfiar dos pais, começa a desacreditar no que lhes dizem e teme um ataque de fúrias dos que cuidam dela a qualquer momento.
É necessário muito cuidado para educar uma criança sem deixar nela traumas para o resto das suas vidas porque se choram não é porque são bebezinhos, mas porque estão necessitadas de colo e afeto.
E assim termino este pequeno ensaio com o poema da nossa querida Ruth Rocha intitulado “Pessoas são diferentes” que nos diz “São duas crianças lindas / Mas são muito diferentes! / Uma é toda desdentada, / A outra é cheia de dentes…” que cada criança tenha a sua individualidade e subjetividade respeitadas, pois somos todos diferentes no jeito de ser e pensar e ficamos envergonhados muitas vezes com um simples apertar de bochechas por pessoas estranhas ou nos envergonhamos quando nos dizem que precisamos aprender a crescer, como se crianças não aprendessem isso todos os dias.
Sem docência dignificada e valorizada não teremos educação e, sem educação, não teremos um país justo e democrático!
Uma lei federal de 2008, que está completando 15 anos em julho próximo, produz controvérsias e reações contrárias todo início de ano: trata-se da Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008, que regulamenta o inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica.
A lei nº 11.738 determina no Art. 5o que o “piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009” e, que esse piso salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não poderão fixar o vencimento inicial das carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 horas semanais.
Manifestações de entidades municipalistas, como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), contra a Portaria do MEC nº 17/2023, que atualizou o piso do magistério de 2023 em 14,95%, retomam argumentos infundados como já fizeram por ocasião da publicação da Portaria MEC nº 67, o qual atualizou o piso em 2022. O Supremo Tribunal Federal (STF), em passado recente, já considerou constitucional, legal e direito dos docentes.
O piso do magistério de 2022 era R$ 3.845,63. Em 2023, com o reajuste de 14, 95%, passou para R$ 4.420,55, para uma jornada de 40 horas semanais.
Vamos comparar com outros aumentos bem superiores concedidos no serviço público no mesmo período e não questionados: os ministros de STF, que é referência para os demais poderes, teve um reajuste de 18%, passando o salário para R$ 41.650,92 em 2023, com reajustes escalonados anualmente, chegando em 2025 a R$ 46.366,19. Os servidores da Câmara e do Senado tiveram aumento de 18,13%, também escalonados, entre 2023 e 2025.
No Rio Grande do Sul, um dos cinco estados que questionou no passado a constitucionalidade da lei do piso, o salário do governador passou de R$ 26.841.71 para R$ 35.462,22 mensais, aumento de 32%. O vice-governador e os secretários tiveram um reajuste de 47%, com seus salários passando de R$ 20.131.29 para R$ 29.594.45. A Câmara Municipal de Porto Alegre propôs um aumento de 70% para vencimento do prefeito e 50% para o vice-prefeito e secretários. A proposta foi barrada pela oposição.
A docência e o piso
A reação contrária de parte de gestores públicos estaduais e municipais é descabida por inúmeras razões. O novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) prevê o aumento gradativo de sua complementação pela União dos atuais 10% para 23% até 2026; sendo que, para 2023, já será 17%; 2024, 19%; totalizando os 23% em 2026. Além disso, o Fundo determina que 70% dos valores sejam investidos no pagamento de profissionais da educação básica.
Importante rememorar que em 2020 e 2021, em plena pandemia, vários estados e municípios não investiram os percentuais constitucionais previstos nas constituições estaduais e Leis Orgânicas Municipais na educação, reduziram gastos em momentos de calamidade pública e, inclusive, defenderam a flexibilização dos percentuais para a educação devido a sobra de recursos.
A ausência de um salário digno é um dos principais, senão o principal, indicadores da desvalorização da carreira docente no Brasil. A reversão desse quadro é imprescindível para que a carreira tenha maior atratividade.
Porém, a agenda está sendo inviabilizada pela PEC-95 e por concepções neoliberais da economia, sendo frequentemente avançada a proposta de condicionar salários dignos ao cumprimento de metas pouco realistas de desempenho dos alunos em testes padronizados, num país campeão em desigualdades sociais, regionais, tecnológicas e educacionais.
Metas que tratam da valorização dos profissionais da educação estão previstas nas leis que instituíram o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 – Metas 15, 16, 17 e 18, nos Planos Estaduais de Educação (PEEs) 2015-2025 e nos Planos Municipais de Educação (PMEs) de 2016-2026. Aliás, leis e metas que na sua grande maioria estão sendo descumpridas pelos entes federados sem a devida responsabilização dos gestores.
Questionar e descumprir a lei do Piso, a Lei do Fundeb e as demais leis que instituem os planos e políticas educacionais é tão ou mais relevante que atender as metas de superávit e teto de gastos públicos. A sociedade precisa tomar consciência e lutar pelos seus direitos sociais e educacionais, até por que a educação é um dever do estado, da sociedade e das famílias.
O que as metas determinam e o que foi descumprido
Referente as Metas e Estratégias previstas no PNE 2014-2022, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em seu Balanço Nacional de Educação de 2022, apontou a seguinte condição:
Meta 15 – Garantir, em regime de colaboração entre a união, os estados, o Distrito Federal e os municípios, no prazo de 1 ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.
Conforme balanço da Campanha Nacional, em nenhuma das etapas da educação básica o avanço no percentual de docências com formação adequada tem sido rápido o suficiente para que se atinja até 2024 o nível estipulado no plano.
Meta 16 – Formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da educação básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos os profissionais da educação básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino.
Porém, desde 2014, essa porcentagem vem aumentando a 1,9 pontos percentuais por ano, em média, o que é pouco maior do que o ritmo necessário para atingir o nível disposto no PNE, mas para materializar o cumprimento do objetivo é necessário manter o ritmo observado. Também, o formato restrito de divulgação do Censo da Educação Básica implementado no início de 2022 não permite mais o cálculo dos indicadores desta meta. Assim, os dados de 2021 tiveram que ser obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Sobre a formação continuada em suas respectivas áreas de atuação dos 2.230.891 docentes em atividade na educação básica, 1.233.192 ainda não haviam recebido qualquer tipo de formação continuada. Sem mudanças na trajetória de evolução deste quadro, deve-se chegar a 2024 ainda muito distante do objetivo prescrito na meta.
Meta 17 – Prevista para 2020, a meta de equiparar o salário médio dos professores ao dos outros profissionais de mesma idade não foi cumprida no prazo, tendo avançado a cerca de um terço do ritmo necessário ao seu cumprimento. Sem alteração desse padrão de evolução, a tendência é que ao fim da vigência do atual PNE a situação ainda esteja irregular.
Meta 18 – Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos de carreira para os profissionais da educação básica e superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira dos profissionais da educação básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido em lei federal, nos termos do inciso VIII do art. 206 da Constituição Federal.
Considerando todos os dispositivos em conjunto, 13 entre as 27 redes dos estados e do distrito federal e, aproximadamente, 76% das redes municipais estão em situação irregular segundo a meta 18 do Plano Nacional de Educação.
Meta 20 – Além do descumprimento das quatro metas relativas a valorização do trabalho docente, o mais grave é o descumprimento da Meta 20 que prevê ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país no 5º ano de vigência desta Lei 92019 e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio (2024). Nos governos Temer e Bolsonaro tivemos redução dos investimentos em educação.
Subproletarização do trabalho
A subproletarização do trabalho não está restrita apenas aos trabalhadores da educação, mas abrange profissionais de diferentes setores e tem se agravado nos últimos anos em decorrência das sucessivas reformas trabalhistas no contexto das relações trabalho-capital.
Porém, no campo da educação, além da relativização das conquistas que muito fortaleciam a condição docente no trabalho educativo, como a participação dos professores nos processos decisórios e a formação inicial em cursos de licenciatura, percebe-se um recrudescimento nos processos de precarização de sua condição com a crescente desvalorização salarial. Também, na destruição dos planos de carreira, na não reposição salarial em contextos inflacionários, no aumento de contratos temporários de trabalho e contratos de horistas e a utilização do notório saber como forma de banalizar os conhecimentos pedagógicos próprios do trabalho do professor.
Segundo Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) , precisamos que a sociedade assuma de fato a importância da educação, visto que ela historicamente nunca foi valorizada.
A primeira Constituição Brasileira que estabelece quais os anos de educação obrigatória é somente a de 1946. Hoje, estabelecemos 14 anos de ensino obrigatório (dos 4 aos 18 anos), porém, nem todos cumprem e responsabilizamos ninguém pela negação do direito à educação de nossas crianças, adolescentes e jovens.
Mais desmonte e teoria da conspiração
Os professores Fernando Pena (UFFRJ) e Renata Aquino (FFP-UERJ) denunciaram, em artigo no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, que as instituições de ensino modificaram currículos, suprimiram disciplinas e rearranjaram turmas para demitirem em massa professores e aumentarem os lucros. Agora, ampliam a denúncia no sentido de que o bolsonarismo dos últimos quatro anos se formou a partir de teorias da conspiração e usou como estratégia a formação de grupo de ataques constantes a sistemas de verificação e de construção de conhecimento entre pares.
Logo, jornalistas e docentes foram usados como alvos por meio do medo e do ódio. Teorias da conspiração foram tomando o lugar do pensamento crítico no entendimento da realidade social brasileira, cuja prova de pura ignorância e barbárie se expressaram nos ataques contra a democracia no dia 8 de janeiro de 2023.
Ataques à Lei do Piso do Magistério, por entidades municipalistas e mesmo gestores públicos, afrontam não só os professores e a educação, mas o regime democrático, o estado de direito e decisões do Supremo Tribunal Federal.
É hora de pensar políticas de reparação à categoria profissional que o bolsonarismo transformou em inimiga. Descontinuar as políticas educacionais de Estado, inviabilizar a escola pública, perseguir professores e destruir a dignidade e a carreira docente, através de relações precárias e líquidas, atinge dimensões catastróficas.
Sem docência dignificada e valorizada não teremos educação e, sem educação, não teremos um país justo e democrático!
A vigilância que nos torna melhores não é aquela que vem de fora, imposta autoritariamente, mas a melhor vigilância é “a lei moral dentro de mim” que se desenvolve por meio de um processo autêntico de formação e por escolhas livres de uma cidadania autêntica que somente cria raízes se vivermos numa sociedade democrática.
O que seria de nossa liberdade, do nosso comportamento, das nossas atitudes e das nossas relações se fôssemos vigiados o tempo todo e em todos os lugares?
Há os que defendem que, se assim fosse, haveriam menos crimes, vandalismos, comportamentos indecentes, corrupção, desonestidade, falta de caráter, enfim, “as pessoas andariam na linha”, pois estariam sendo vigiadas e qualquer atitude imprópria seria mais facilmente punida. Alguns chegam a se entusiasmar com a ideia e pensam que instalar câmeras em todas as ruas das cidades nos daria segurança e tranquilidade para evitar o indesejável. Mas será isso mesmo? Não haveria algo de perverso nesse processo de vigilância total?
No mundo da ficção e da literatura já tivemos esse tipo de situação ilustrada de várias formas. O livro intitulado 1984 do britânico George Orwell, por exemplo, é uma distopia escrita em 1949 no qual o escritor projeta como seria a vida no futuro distante de 1984 onde tudo seria vigiado.
George Orwell, na verdade é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, nascido em 1903 em Bengala na Índia, filho de um funcionário britânico e de uma francesa. Publicou diversos livros, dentre os quais destacam-se “Na pior em Paris e em Londres e “A revolução dos Bichos” em 1945. Foi um visionário em suas obras, pois antecipou um conjunto de situações que se fizeram realidade na segunda metade do século XX e no início do século XXI.
No romance distópico de 1984, o totalitarismo é o percurso que embala a narrativa passada em Londres. Trata-se de um mundo fictício onde existem inúmeros televisores monitorando e controlando toda a população e onde ninguém tem mais direito à privacidade.
Wiston Smith (principal personagem do romance), um solitário funcionário do setor de documentação do Ministério da Verdade, responsável pela propaganda e pela reescrita do passado, é o protagonista da história. Ele detesta seu trabalho, pertence à classe média-baixa, e sua função é reescrever os jornais e documentos antigos de modo a apoiar o partido no poder. Tudo o que não for favorável ao governo e ao seu partido é destruído. O Governo é regido pelo Grande Irmão (Big Brother), um ditador e líder do partido que nunca foi visto pessoalmente, mas que tudo vê e tudo controla. No Estado não existe leis e impera uma única ordem: todos devem obedecer. A propaganda é a base do regime e garante a manutenção do poder. Vigilância total, inclusive do pensamento.
Um dos elementos importantes a serem destacados no romance distópico de Orwell é a forma como ele faz a construção psicológica do trama, ou seja a maneira de como o Partido consegue influenciar a mente dos indivíduos que garante poder ao Grande Irmão.
A delação, a censura, a desintegração humana, a falsidade, a tortura, a crueldade dos homens vão sendo mostrados no decorrer da obra descortinando a perversidade que pode haver quando somos engolidos pelo poder autoritário e pelo pleno controle.
1984 não deixa de ser uma obra profética em termos da quebra da privacidade. Sem saber, graças ao avanço tecnológico e a forma como cada um expõe seus dados de inúmeras formas, estamos sendo monitorados o tempo todo.
A simples criação de uma conta no Facebook, as compras no cartão de crédito, o preenchimento de um cadastro para acessar gratuitamente um serviço, se transforma numa servidão voluntária em que estamos revelando nossos dados que são amplamente comercializados por grupos econômicos, ideológicos e políticos. Com base nestes dados, estes grupos nos oferecem produtos e nos induzem ao consumo, as escolhas, as ideologias, as preferências.
Muitos perdem sua própria identidade, pois o que pensam, o que acreditam e o que defendem foi sutilmente influenciado por estes mecanismos perversos de indução de pensamento e de atitudes provenientes da vigilância.
A obra de Orwell certamente nos apresenta um gigantesco desafio educacional: como evitar que o fanatismo (religioso, político, ideológico) se transforme num mecanismo perverso de submissão das pessoas?
Talvez a escola, a universidade e as instituições educacionais de modo geral ainda possam ser um espaço importante de pensamento crítico, de autonomia e experiência formativa.
É necessário compreender que a vigilância que nos torna melhores não é aquela que vem de fora, imposta autoritariamente e que nos condiciona pela psicologia do medo a um comportamento inautêntico: a melhor vigilância é “a lei moral dentro de mim” que se desenvolve por meio de um processo autêntico de formação e por escolhas livres de uma cidadania autêntica que somente cria raízes se vivermos numa sociedade democrática.
Nas nossas vidas pessoais, quais ideias estão nos prejudicando?
As ideias que introjetamos podem nos parasitar, nos enfraquecer e até nos matar. Podem ter mais valor, muito mais valor que a nossa existência. Nos submetemos com facilidade à elas. E as transmitimos para os outros.
Como escreveu Yuval Noah Harari:
“Elas se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e até mesmo os matando. Uma ideia cultural – tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra – pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como seu preço”.
De cada dez alpinistas que tentam chegar ao cume do Monte Everest, um morre. Acima dos 8 mil metros, há bem mais de cem corpos congelados: o cemitério mais alto do mundo. Alguns desses cadáveres são vistos pelos alpinistas. Mesmo assim, a ideia de subir o monte persiste. Muitos mais irão morrer devido a ela.
O bom senso nos manda abandonar ideias que vão encurtar nossas vidas, mas não é o que vemos acontecer. E elas já contaminaram muitas pessoas e essa contaminação se retroalimenta.
A Copa do Mundo de Futebol, para citar outro exemplo, é uma fábrica de sofrimentos. Só os torcedores de um país ficarão felizes. Todos os outros amargam a tristeza da derrota. E, assim, acontece com todos os esportes competitivos profissionais, mas eles vão persistir.
Crístofe, personagem de “A noite das tartarugas”, com facilidade, expõe-se ao risco de morrer ao enfrentar bandidos para salvar desconhecidos, ao se colocar na mira de tiro de bilionários traficantes de drogas.
Por quê?
Por duas ideias que comandam e se tornaram donas dele.
A primeira, veio de seu pai. Quando viu que não mais se livraria da dependência do crack e que, devido a ela estava se tornando violento, optou pela morte. Viver para fazer o mal? Melhor morrer.
A segunda, pelo bom vizinho que o pai arrumou antes de morrer para adotá-lo: não vale uma vida não dedicada ao bem.
Crístofe, com o exemplo dos dois, com essas ideias dentro dele, deixou de lado a qualidade de sua vida e a quantidade de tempo que irá existir. Tem de fazer o bem, mesmo que morra ao fazê-lo.
Nas nossas vidas pessoais, quais ideias estão nos prejudicando?
Autor: Jorge Alberto Salton, no seu livro “Convivendo com pessoas difíceis”, Passo Fundo: Physalis Editora, 2018.
“Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.” (Martin Luther King)
Os discípulos estavam preocupados. Motivo? Alguém estava usando o nome de Jesus para fazer milagres. Ao contar a Jesus o que estava acontecendo, imaginaram que Ele daria um basta naquilo, exigindo que se respeitasse os direitos autorais de Sua mensagem. Mas para a surpresa deles, Jesus disse: “Não lhe proibais. Ninguém há que faça milagre em meu nome, e logo a seguir possa falar mal de mim, pois quem não é contra nós, é por nós” (Mc.9:39-40).
Jesus jamais exigiu royalties ou direitos autorais de suas obras ou mensagem. Ele queria que a mensagem fosse propagada.
Paulo também captou o mesmo espírito, e por isso, declarou: “Verdade é que também alguns pregam a Cristo por inveja e porfia (…) mas que importa? contanto que Cristo, de qualquer modo, seja anunciado, ou por pretexto ou de verdade, nisto me regozijo, sim, e me regozijarei” (Fp.1:15a,18).
A mensagem de Cristo não é monopólio de quem quer que seja.
Quanto as motivações, deixemos que Deus as julgue no momento certo. Por agora, o que importa é que a mensagem seja anunciada.
Não importa se em uma igreja protestante histórica, ou em uma paróquia católica, ou numa igreja neopentecostal, ou mesmo em um centro espiritualista ou numa mesquita. Verdade é verdade, não importa por quem esteja sendo anunciada. E quem ama a verdade, reconhece-a de cara, ainda que anunciada pelos lábios de um cético. Assim como podemos reconhecer a mentira, mesmo quando dita por aqueles que julgamos estar acima do bem e do mal.
Diferentes, mas nem tanto.
Em vez de realçarmos o que nos distingue, por que não realçamos o que temos em comum? Nem que para isso tenhamos que descobrir quais as ameaças ou inimigos que temos em comum. Talvez, assim, as diferenças já não façam tanta diferença.
Por exemplo: em um país muçulmano, não faz diferença se você é evangélico ou católico. Ambos se reconhecem mutuamente como cristãos.
Numa classe universitária na França, onde a maioria dos alunos se diz ateia, a diferença entre muçulmanos e cristãos perde a importância. O ateísmo pode ser visto como um “inimigo” comum para ambos os grupos, haja vista serem monoteístas.
E quando somos ameaçados por um inimigo comum a toda a humanidade? Quiçá, um inimigo externo?
Se fosse anunciado que um asteroide estivesse prestes a chocar-se com a Terra, pondo em risco a civilização humana, todas as diferenças religiosas, raciais, étnicas, culturais, perderiam totalmente sua relevância. Ateus, cristãos, espíritas, hindus, budistas, dariam as mãos num esforço coletivo para evitar a tragédia.
Pode ser que não estejamos ameaçados pela queda de um asteroide mas, certamente, há outras ameaças que nos assediam, e que demandam que nos unamos em um esforço comum para enfrentá-las. Entre elas, destacamos a violência urbana, o aquecimento global, as injustiças sociais, e por último, a crise financeira global.
Estaremos fadados ao fracasso, caso não nos disponhamos a deixar nossos guetos ideológicos e darmos as mãos.
Parafraseando Agostinho: “No essencial a unidade, no não essencial a liberdade, em tudo a caridade”.
Faz bem escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.
Não devemos esconder os “malfeitos”. Como professor de Ética Médica, levo aos alunos os processos sofridos por médicos devido a comportamentos inadequados na profissão. Porém, o hábito de só criticar, de muito apontar os aspectos negativos gera desesperança e faz parecer que o único caminho é o dos “malfeitos”.
Melhoramos com bons exemplos. Sempre procurei contar aos meus alunos os melhores momentos revelados por médicos atuais e passados. Não é assim que se faz com o futebol? Se priorizássemos a divulgação não dos “melhores momentos” e sim dos piores continuaria ele sendo o esporte que mais admiramos?
O mal é falar muito no mal.
Pesquisadores já fizeram levantamentos – Martin Seligman, Katherine Dahlsgaard, entre outros – sobre quais atributos pessoais consideramos dignos, éticos, formadores de um bom caráter:
1. Capacidade de estabelecer relacionamentos honestos, leais e tolerantes;
2. Ter boa empatia;
3. Gostar, amar as pessoas e a vida;
4. Agir de forma construtiva e querer sempre fazer o que é certo;
5. Ser inteligente e capaz sem deixar de ser humilde;
6. Revelar senso de dever e senso de justiça;
7. Ser um otimista e não um crítico;
8. Perceber que a beleza existe e saber retê-la na memória: exemplo, a foto que me foi cedida por Claudete Menegat.
Admiramos quem possui algumas das qualidades referidas e também aqueles que, não as possuindo, revelam vontade de tê-las e se esforçam para tanto.
Há, inclusive, comprovação científica de que os bons exemplos nos fazem melhorar.
Dan Ariely, pesquisador norte-americano, perguntou-se: “O que nos leva a fazer o certo?” E, através de pesquisas, chegou a algumas constatações. Cada um de nós tem um nível x de “capacidade” para fazer o errado. Há um Fator Pessoal de Enganação (FPE). O FPE diminui quando ficamos sabendo de pessoas que agem de forma correta, que fazem o certo. Há uma contaminação positiva.
Faz bem escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.
Diante de tantas exigências que nos fazem o mundo e a sociedade em que vivemos estamos sendo levados a exigir das nossas crianças que elas cresçam o mais rapidamente possível e passem a fazer coisas de adultos quando ainda são pequenas demais.
Uma vez existiu uma poeta chamada Cecília Meireles que nos criou uma poema intitulado “O menino azul” e nos seus versos ela nos diz
“O menino quer um burrinho / para passear. / Um burrinho manso, / que não corra / nem pule, / mas que saiba conversar.”
Que possamos oferecer um pouco de aconchego às nossas crianças sendo esse burrinho na sua imaginação ou sonhos.
Compreendendo que a criança que é ouvida consegue desenvolver o seu lado social muito mais rapidamente interagindo e perdendo a timidez diante das outras crianças. Um bom diálogo é sempre necessário para o crescimento espiritual da criança que se sente acolhida quando é ouvida sem esperar nada de quem a ouve.
E esperar para quê? A criança já sabe que tem afeto e cuidado de quem está a ouvindo, mas será que nós não estamos esperando dela que nos dê o mesmo? Sabemos lidar com os nossos sentimentos? Ou ficamos confusos todas às vezes que trocamos de parceiros ou precisamos tomar decisões em relação às nossas vidas?
As crianças gostam de brincar, pular, correr e fazer perguntas. Elas são curiosas por vida.
Na tenra idade, o brincar é a única coisa que a criança precisa fazer para ser feliz. Brincando ela descobre o mundo real e cria os seus mundos imaginários, passa a conhecer mais as pessoas ao seu redor e descobre novas coisas que despertam o seu pensamento crítico e reflexivo.
É necessário deixar a criança livre, ou seja, criar a sua autonomia e aprender que pode fazer muitas coisas sozinha como calçar uma meia, um sapato ou vestir um vestido. Coisinhas pequenas do dia a dia que são simples atividades devemos permitir que as crianças aprendam sozinhas a realizarem. Nada é mais gratificante do que saber que algo foi feito por nós quando vemos o seu resultado positivo. Assim, também se sentem as crianças.
Muitos de nós, adultos, exigimos demais da gente e nestas exigências acabamos esquecendo que estamos convivendo com espíritos ainda em formação, com uma gente miúda que não pode ser responsável pelos nossos erros, angústias, perdas e problemas. Muito menos devemos colocar sobre elas um peso maior do que podem carregar.
No mundo contemporâneo em que vivemos, nesta correria louca de trabalho e outros compromissos profissionais esquecemos que às crianças cabe tão somente a responsabilidade de estudar. Tendo o brincar como uma diversão que não pode ser tirada da sua vivência de maneira nenhuma. A criança que brinca descobre novos mundos, cresce mais rapidamente, seu pensamento cognitivo é desenvolvido com muito mais velocidade e os seus anseios são reduzidos.
O brincar acalma as emoções e distrai a criança das incompreensões do dia a dia.
Neste constante ritmo em que vivemos, no mundo da tecnologia e das mídias digitais, deixamos a criança se virar sozinha dentro de casa presos nos nossos aparelhos eletrônicos esquecemos de dar-lhes a atenção necessária para o bem-viver. A criança passa da hora de se alimentar, de tomar banho e até mesmo de dormir. Isso acaba criando hábitos não saudáveis à vida do pequeno espírito em crescimento.
Vivemos num mundo de intensas cobranças e a competitividade no mercado de trabalho cresce a cada dia. Só os melhores sobreviverão nas grandes empresas. Vemos todos os dias gigantes do mercado tecnológico realizarem demissões em massa. Mesmo os bons profissionais perdem seus empregos e precisam ir em busca de outros. Para isso é necessário que ele esteja preparado para enfrentar a concorrência.
Não existe mais aquela história de especialista em apenas uma área. O mercado busca agora profissionais que conheçam e caminhem por todas as áreas, que saibam três ou cinco idiomas, que saibam escrever e calcular com facilidade. As exigências são muitas.
Ficamos perdidos num mundo que nos cobra o tempo todo que estejamos estudando e fazendo cursos, assistindo palestras, reuniões e lendo revistas e jornais das nossas áreas e de outras também. Somos tomados pelas cobranças do mundo financeiro, econômico, político e social. Até mesmo nos templos religiosos precisamos nos renovar todos os dias para sermos bem aceitos entre os fiéis.
Com tantas cobranças ao nosso redor, acabamos angustiados e, muitas vezes, entramos em desespero caindo numa depressão ou ansiedade que não sabemos aonde vamos parar. Ficamos doentes, cegos e mudos em relação aos pedidos de socorro dos nossos corpos e almas. Vivendo uma vida cheia de compromissos e de cobranças, achamos que daremos conta de tudo mas, quando a conta chega, ela é alta e pagamos um preço muito maior do que esperávamos.
Diante de tantas exigências que nos fazem o mundo e a sociedade em que vivemos estamos sendo levados a exigir das nossas crianças que elas cresçam o mais rapidamente possível e passem a fazer coisas de adultos quando ainda são pequenas demais.
Sugestão: Vídeo sobre a importância das brincadeiras na formação das crianças.
Esperamos delas o que não conseguimos em nós porque sabemos que fraquejaremos uma hora ou outra, pois já estamos cansados de um mundo que só nos cobra e não nos oferece nada de graça.
Habituados a tantas cobranças e exigências tememos que as nossas crianças cresçam despreparadas e acabamos esperando delas o que nem mesmo esperamos de nós, ou seja, achamos que elas vão nos salvar qualquer dia desses. Dessa forma, as colocamos para estudar tudo quanto é disciplina e procuramos as melhores escolas para elas, exigimos que aprendam três ou mais idiomas, que pratiquem esportes, que toquem instrumentos musicais, que participem de competições e sejam sempre as vencedoras em tudo.
Ah, mundo difícil este que estamos oferecendo às nossas crianças! Dói saber que esperamos delas o que não podemos esperar nem de nós mesmos!
Muitos pais e responsáveis se animam ao verem a criança se destacar em uma arte ou disciplina qualquer e já começam a fazer mil planos para ela. Iniciam as exigências, a dedicação exclusiva, uma rotina de estudos pesada, sérias atribuições e esquecem que a criança só quer mesmo fazer as suas tarefas escolares e brincar. Que ela ainda é muito pequena para dar conta de tanta responsabilidade.
Não é à toa que consultórios de psicólogos e psiquiatras estão lotados com gente adulta e criança. Os adultos porque esperaram demais de si e tiveram seus sonhos e planos fraquejados e as crianças vítimas dessas esperas dos adultos acabaram adoecendo fisicamente e espiritualmente porque não souberam como lidar com tantas cobranças.
O que esperar de uma criança senão o riso e a vontade de ser amada? Esperar mais do que isso é tirania. É prender a criança dentro de uma caverna subjetiva que nós criamos para ela à nossa maneira e opressão.
É um mundo difícil o nosso. As batalhas que temos que vencer todos os dias são grandes. Chegamos em casa enfadados e cansados. Não damos conta sequer daquela pequena criança sentada no sofá da sala à espera de atenção, carinho e afeto. Já não temos mais tempo para contar histórias, fazer um desenho ou conversar com os nossos filhos. Parece que vivemos sozinhos dentro de uma bolha.
Estamos tão robotizados que já não pensamos criticamente. Não sabemos tomar decisões sem a ajuda de um profissional. Sempre pedimos a opinião de outras pessoas para termos a certeza de que não estamos fazendo a coisa errada, quando sabemos que estamos certos. Estamos cada vez mais indecisos, ansiosos e medrosos. Os homens fortes como Hércules, Davi e o sábio Salomão já não existem mais. Estes ficaram na história do tempo.
Baseados nestas histórias de heróis e super-heróis exigimos que as nossas crianças se tornem gigantes diante dos problemas e dificuldades, que enfrentem seus medos e angústias sozinhas e se “virem” para tomarem decisões que nós mesmos não saberíamos o que escolher ou fazer. Atualmente, esperamos que as crianças nos salvem do bicho papão.
Mundo cão, mundo devastador, mundo dos cronômetros e do tempo escasso. Da rapidez das informações e da pressa de ir e vir de um lugar a outro sem nem darmos conta das paisagens naturais e pessoas que deixamos para trás. Não seremos os próprios culpados desta crueldade que estamos fazendo conosco? Por que esperamos das nossas crianças o que não esperamos de nós? Acredito que é preciso pausa, o momento é de descanso, de um fôlego, de uma respiração profunda e um pensamento reflexivo sobre tudo isso que estamos vivenciando.
Não é certo que criancinhas sejam motivadas a competirem com os seus amiguinhos em tudo.
Sugestão: Vídeo sobre o direito ao brincar.
Esperar que as nossas crianças façam tudo certinho quando nós não conseguimos acertar em nada é exigir muito delas. Errar é necessário para o crescimento espiritual de todo ser humano. Quem erra é porque tentou. O segredo não está no que a criança vai ser quando crescer, mas no que ela é no presente, pois na sua vida adulta ela se lembrará de tudo o que lhe fizeram na infância e poderá sofrer distúrbios psicológicos com essa falta de cuidado que não recebeu quando era pequenina.
Não, não senhores pais e responsáveis por criancinhas. Não esperem que elas sejam o poço dos seus desejos. Que elas acertem os números da loteria ou salvem o mundo de grandes tragédias. Diante de tanta incompreensão, as crianças mal estão conseguindo lidar com os seus próprios medos e angústias. Elas não sabem mais o que fazer diante das suas dúvidas, pois não têm a quem recorrer. Os pais passam o tempo todo no trabalho e os professores devem cumprir as cargas horárias das disciplinas, dos diversos projetos que a coordenação pedagógica elegeu para aquele ano letivo.
Neste amontoado de atividades que a escola lança para a criança os professores não têm mais tempo para as ouvirem se não for para tirar dúvidas das disciplinas, conversas sobre seus medos, seus sonhos, seus desejos ficam para depois, amanhã, outro dia, nunca… e assim a infância vai passando com as diversas cobranças rondando o mundo da criança que não sabe mais o que fazer na solidão em que se acha dentro de casa e na escola com as suas dúvidas em relação a um mundo que não foi feito para ela.
O maior problema que encontro nas escolas por onde passei é o tanto de disciplinas que as crianças precisam estudar com material didático que nada tem a ver com os seus mundos. No meu tempo da infância estudei todas as ciências necessárias para o bom aprendizado, mas tudo estava dentro da língua portuguesa e da matemática.
Tive professores maravilhosos que ensinaram geografia com uma poesia, ciências com um conto de fadas, história com um cordel e por aí vai. Por que as escolas estão enchendo de disciplinas escolares as grades curriculares das crianças? Não estão esperando demais delas? São apenas crianças dispostas a aprender tudo o que lhes ensinarem através do lúdico e da brincadeira. Esperar muito do outro acaba nos frustrando e frustrando o outro. É um jogo perigoso para ambos.
Sabemos da nossa missão de preparar as nossas crianças para um mundo diferente do nosso e dos nossos pais. Agora é cada um por si. O individualismo está cada vez maior, as pessoas já não se olham mais nos olhos, já não têm mais tempo para conversarem e muito menos ficarem sentadas nas calçadas conversando sobre as suas vidas. Nem calçadas existem mais nas grandes cidades. Isso não quer dizer que devemos exigir que as nossas crianças passem a se comportar como adultos desde cedo.
Como vejo nas minhas andanças pelas cidades do Brasil crianças adultizadas pelos seus pais com cabelos pintados, unhas pintadas, sapatos de saltos altos e meninos sendo estimulados a trabalharem e namorarem cedo demais. Que mundo é este que estamos oferecendo às nossas crianças, me digam? Eu temo que amanhã não existam mais crianças.
Se vimos uma criança acreditar em Papai Noel, bruxas, dragões ou fadas acabamos a ridicularizando e destruindo os seus mundos imaginários. Não estamos preparados para educar os nossos filhos, os nossos alunos, os nossos primos e sobrinhos. Somos ranzinzas e perdemos a doçura e inocência da infância que alguns adultos conservam dentro de si mesmo depois de tantos abalos e decepções.
Até mesmo Jesus Cristo se comportou como uma criança ao bagunçar e quebrar tudo o que havia no templo em que eram comercializados animais e mercadorias. No seu momento de raiva, Jesus Cristo virou mesas, espalhou moedas pelo chão, gritou com os mercadores e fez o que qualquer criança faz num momento de birra. Por que as julgamos sempre de mimadas? Será que Nossa Senhora mimou seu filho, também?
Deixemos de lado as nossas arrogâncias e queixos altos. Baixemos as nossas cabeças para ouvirmos as vozinhas das nossas crianças que só desejam um pouco de atenção. Não esperemos delas o que não esperamos de nós porque sabemos que o mundo é duro e mais tarde vai cobrar delas o que nos cobra todos os dias. Que possamos educá-las de uma forma que cresçam preparadas para lidar com as decepções, os medos, as incertezas e sempre confiando em si próprias.
Não podemos ficar sob a sombra das nossas crianças. Elas são árvores que precisam de cuidados. Elas não podem nos oferecer flores e frutos se não estiverem alimentadas com proteínas e carboidratos necessários para uma vida saudável. Até as árvores morrem de angústia quando esperamos que elas nos deem sombra e frutos da melhor qualidade quando não estão preparadas para isso.
Aprendamos que cada ser é único. Assim são as crianças. Elas não devem receber da escola um ensino-aprendizagem que não explore os seus pensamentos críticos e reflexivos, introduzindo-as no coletivo, mas cuidando do seu individual. Tratando-a com respeito e afeto no que concerne ao seu jeito de ser e compreender as coisas.
Que cada professor possa ter um tempo para com o seu aluno. Que o número de alunos em sala de aula seja reduzido para que os professores possam cuidar das nossas crianças com mais atenção, respeito aos seus limites e diálogos não somente sobre a escola, mas também sobre a sua vida lá fora. O nosso querido filósofo e educador Paulo Freire já rezava sobre este respeito ao conhecimento de mundo da criança.
Em tudo o que buscamos nas nossas crianças esteja o nosso aprendizado de que elas não estão preparadas ainda para nos salvarem das tempestades, mas podem enxugar as nossas lágrimas sem se darem conta do quanto é grande os nossos sofrimentos diante das suas inocências. Uma inocência que precisa ser mantida e alimentada. Não é feio falar de um duende para o vovô, vovó ou até mesmo para a professora assim como não é feio fazer cartinhas para o Papai Noel e pendurá-las à janela da casa.
A vida precisa de fantasias para se tornar melhor. Acreditarmos em coisas sobrenaturais é necessário. Quantas crianças não vão dormir todas as noites desejando que uma fada boa venha resgatá-las daquela casa onde ninguém as compreende, não recebe atenção e nem carinho? Já pensaram nisso, senhores pais?
A escritora Ruth Rocha em seu livro “O direito das crianças” já dizia “Toda criança no mundo / Deve ser bem protegida / Contra os rigores do tempo / Contra os rigores da vida.”
É assim que devemos proteger as nossas crianças contra esses rigores da vida que nos são colocados todos os dias e esperamos que elas se comportem como nem mesmo nós sabemos como nos comportar diante da dor e das adversidades que surgem na passagem do tempo.
Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado.
A categoria cuidado mostrou-se a chave decifradora da essência humana. O ser humano possui transcendência e por isso viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e contenta-se apenas com o infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão, pois dele recebeu o espírito.
O ser humano possui imanência e por isso se encontra situado num planeta, enraizado num local e plasmado dentro das possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da Tellus/Terra dentro de si; é feito de húmus, donde deriva a palavra “homem”.
O ser humano encontra-se sob a regência do tempo. Este não significa um puro correr, vazio de conteúdos. O tempo é histórico, feito pela saga do universo, pela prática humana, especialmente pela luta dos oprimidos, em busca da sua vida e libertação.
Constrói-se passo a passo; por isso, é sempre concreto, concretíssimo. Mas, simultaneamente, o tempo implica um horizonte utópico, promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excluídos e para o cosmos. Somente buscando o impossível se consegue realizar o possível. Em razão dessa dinâmica, o ser humano possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.
Mas não basta dizer tais determinações. Elas, na verdade, dilaceram o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado entre o céu e a terra, entre o presente e o futuro, entre a injustiça e a luta pela liberdade.
Que alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz, para que construam o humano plenamente?
É o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da terra e coloca a terra dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda a ordem. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência.
O cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito humaniza-se e o corpo vivifica-se quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o espírito perde-se nas abstracções e o corpo confunde-se com a matéria informe.
O cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que permite a revolução da ternura, ao tornar prioritário o social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, conectado com tudo e com todos no universo.
O cuidado imprimiu a sua marca registada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano far-se-ia inumano.
Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado. As ressonâncias do cuidado são a sua manifestação concreta nos vários aspectos da existência e, ao mesmo tempo, o seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primordial, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado , o ser humano, como um tamagochi, definha e morre.
Hoje, na crise do projecto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda a parte. As suas ressonâncias negativas evidenciam-se pela má qualidade da vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.
Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido na sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa de se voltar para si mesmo e de redescobrir a sua essência, que se encontra no cuidado. Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos nós.
Autor: Leonardo Boff, em conclusão de seu livro Saber Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis, Ed. Vozes, 1999