Ainda somos os mesmos, embora não o somos do mesmo jeito, mesmo porque não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, como dizia Heráclito de Éfeso.
O olho que foi feito para enxergar bem, já não vê. O ouvido criado para ouvir cuidadosamente e com atenção a todos, escuta só o que e a quem convém. A boca que deveria falar palavras respeitosas, verdadeiras e construtivas, já não se abre para comunicar. A cabeça colocada sobre o corpo para pensar, já não pensa de acordo com a razão.
O coração onde deveriam residir sentimentos de amor, já não é capaz de amar. O corpo inteiro que se queria saudável, está doente. A doença que se resolvia com remédio ou bênção parece que já não tem cura.
O médico que se preparou com muita dedicação para tratar dos pacientes, está ele mesmo doente. O psicólogo que se formou para cuidar da psique ferida e traumatizada, está também ele transtornado. O professor que se esmerou nos estudos por longos anos para ensinar, foi agora desprezado em seu saber. O político que foi eleito para promover o bem comum, acabou por incitar a nação ao ódio. O juiz que foi escolhido para praticar a justiça, passou a cometer crimes contra a democracia.
A escola que tinha por finalidade desenvolver uma educação humanizadora, com visão crítica e compromisso social passou a vender uma espécie de mercadoria de baixa qualidade. A família que foi criada para ser ambiente de afeto e aconchego, tornou-se espaço de difícil convivência e de relações conflituosas.
A religião que acompanha a trajetória humana desde a sua origem e que visa o amor, a paz e a vida, encheu-se também ela de sinais de violência e dominação.
A política que, conforme Aristóteles, tem por finalidade primeira garantir a felicidade das pessoas em sociedade, converteu-se em pesadelo só de falar nela, porquanto induz à intolerância agressiva.
Os meios de comunicação e, mais recentemente, as redes sociais que foram inventados para comunicar, estabelecer conexões e facilitar a nossa vida em todos os aspectos, transformaram-se em canais propagadores de mensagens falseadas ou falseantes, intoleráveis e intolerantes.
A sociedade que se pretendia caminhava num processo evolutivo, parece estar em franca decadência.
O planeta que se almejava fosse a Casa Comum, bem cuidada por todos, dá sinais de cansaço e pedidos de socorro devido à sanha privatista, consumista e inconsequente de muitos. O céu parece ter se rebaixado e as utopias terem se encolhido no tamanho e diminuído de intensidade.
Porém, ainda somos os mesmos, embora não o somos do mesmo jeito, mesmo porque não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, como dizia Heráclito de Éfeso. Sentimos em nós as metamorfoses, enquanto a vida passa. Metamorfoses nem sempre evolutivas.
Na medida em que o corpo de cada ser individual se modifica em sintonia ou dessintonia com o corpo social, nossa alma ainda pode sonhar. Nosso espírito ainda pode ressurgir. Nosso sonho ainda pode se alçar. Nossa esperança ainda pode se esperançar. Enquanto a vida pulsa, é possível mudar a direção dos sentidos e dar aos sentidos nova direção!
“Nossa meta é nossa origem”, a clássica sentença antropológica de Karl Kraus, continua mais atual do que nunca. Para chegarmos a ela, talvez tenhamos de deixar de lado as preocupações com o umbigo de Adão e as certezas do macaco.
Não sabemos de muitas coisas e, dentre elas, uma que (ainda) não sabemos mesmo é esta: de onde viemos? Especula-se entre dois extremos, buscando-se respostas. Um que pressupõe uma origem divina para o homem. E outro, menos nobre, que admite uma raiz zoológica. O primeiro carece de significação filosófica, por isso não se discute. É uma questão de crença religiosa e ponto final. Por ele, fomos criados por Deus à sua imagem e semelhança, só que com menos poderes. O segundo, mais ao gosto dos adeptos do evolucionismo, também tem os seus pontos frágeis.
O evidente, em ambos, é que o homem parece buscar uma explicação, para a sua origem, externa a si próprio. Por essa razão, talvez seja mais interessante preocupar-nos com o princípio da humanidade (desde quando homem se entende como tal) e não com a origem da vida.
De fato, o que define o homem é a práxis. Significa dizer que o homem é um ser que atua. E, por atuar, entenda-se que estamos nos referindo a um ser que quer fazer coisas. E ainda: que faz as coisas que quer, e quando quer. Atuar é mais que se alimentar, se reproduzir, buscar abrigo, se movimentar apenas para satisfazer a um instinto.
A ação humana é completamente diferente do instinto animalesco. Isso não implica que seja necessariamente boa. Ela é delineada a partir de situações virtuais, com base em registros simbólicos, sendo capaz de modificar e, inclusive, criar o futuro. Uma rosa e um leão são “programados” para ser o que são, fazer o que fazem e viver como vivem. Os seres humanos, em certo sentido, são “programados” também, porém de forma diferente. Nossa estrutura biológica é uma coisa e nossa capacidade simbólica (dela depende as nossas ações) é outra. Pode-se dizer que somos programados “enquanto seres”, mas não “enquanto humanos”.
Mesmo que a diferença genética que nos separa de um chimpanzé seja mínima, não sendo muito maior a que nos distancia de um porco ou de uma lagarta, de qualquer forma, qualitativamente, somos muito diferentes.
A similaridade genética entre o homem e os outros animais não explica nada. Apenas mostra, e reforça, que a dotação genética não é decisiva na definição da condição humana. Fica óbvio que a ação humana provém de outros elementos não identificáveis no DNA. Nisso reside o grande enigma humano e o paradoxo da teoria da evolução.
A diferença fundamental entre o homem e os outros animais é a quase que absoluta ausência de especialização de qualquer tipo, no homem.
Os animais, pelo contrário, alcançam níveis de especialização para fazer algumas coisas (saltar, morder, agarrar, etc.), viver em determinados ambientes (suportar temperaturas extremas, alimentar-se de resíduos, procriar, etc.), que são inimagináveis para nós. Os membros, órgãos, sentidos dos animais são instrumentos de alta precisão. Compare a sua capacidade de morder com a de um Pitbull, para ter certeza disso. Ou a sua mão com os tentáculos de um polvo ou a pinça de um caranguejo. Mas, no entanto, como tudo que é ultra-especializado, servem muito bem para o que servem, e para nada mais.
A não especialização dos seres humanos contradiz a visão popular de evolução das espécies. Em geral, se imagina que o homem provenha, por sucessivos refinamentos, de uma espécie animal mais tosca. Tem aquela clássica ilustração que mostra um quadrúmano, depois um chimpanzé, a seguir um antropóide, continuando com um primo neandhertal até chegar, por último, à imagem de um autêntico lorde inglês.
Pelo que vimos até aqui, parece que o caminho evolutivo seguiu um rumo oposto ao dessa figura. Os seres humanos, por qualquer categoria, são menos definidos que o chimpanzé da ilustração. Se a evolução for do indeterminado para a especialização, o chimpanzé é mais evoluído que um ser humano, e não menos.
Então, cabe perguntar: de onde vem a nossa hegemonia sobre os demais seres naturais?
Resposta elementar: de um órgão muito evoluído e sofisticado, que nos torna os mais aptos, chamado cérebro. O nosso cérebro, como o órgão da ação, é o que está no comando e faz a diferença. Não temos um ambiente natural específico como certos animais. O nosso ambiente natural é a sociedade. Graças à ação cerebral, o homem faz coisas (boas e ruins) que nenhum outro animal é capaz de fazer.
“Nossa meta é nossa origem”, a clássica sentença antropológica de Karl Kraus, continua mais atual do que nunca. Para chegarmos a ela, talvez tenhamos de deixar de lado as preocupações com o umbigo de Adão e as certezas do macaco.
Finalmente, cabe dizer que essas idéias não me pertencem. São de Fernando Savater, e podem ser encontradas no livro “El valor de elegir” (Editorial Ariel, 2003). Recomenda-se. Afinal, não fazemos outra coisa na vida que não sejam escolhas (elegir).
Este é um estudo introdutório ao mundo da psicanálise infantil. Nada aqui dito se confirma em afirmações, mas reflexões acerca de um texto que nos motivou a registrar a sua boniteza enquanto iniciantes de uma ciência se preocupa com as pulsões do sujeito, aqui representado na infância.
Começo este pequeno ensaio relatando as minhas impressões do texto de Esthela Solano-Suárez intitulado “A criança em questão no final do século”. Antes de introduzir-me nas reflexões que Suárez nos traz, gostaria de dizer que foi uma grande experiência ler e reler o seu texto e poder pensar na criança não somente como uma educadora, mas como uma estudante de psicanálise que se vê rodeada de conceitos e simbolismos desconhecidos da sua experiência literária.
Espero poder trazer contribuições aos amigos e amigas leitores e continuar estudando a psicanálise com crianças, pois nas diversas repetições de leituras do texto mencionado acima tenho a certeza de que as experiências somadas ao meu pequeno mundo como já se referia o escritor pernambucano Luís Jardim ele se tornou enorme diante das reflexões que vieram se somar aos cajus ainda por amadurecerem.
Sigamos!
Com efeito, o texto fez-me refletir sobre esta criança que pode sentar-se no divã psicanalítico e ser vista como sujeito que traz o sintoma e precisa com isso de receber cuidados que não a rotulem, mas de uma análise que vai fazer do seu sintoma a busca da compreensão e do compreender-se a si mesmo através de associações livres deste inconsciente que se revela a todo instante através das neuroses e psicoses.
O sujeito deixa de ser subdesenvolvido para Lacan porque expressa o sintoma que o afeta, ou seja, sofrimento que vem em forma de gozo esse usufruto que o inconsciente faz daquilo que o sujeito sente e exerce buscando uma certa realização ao seu desejo. Como se a criança que sente, que tem o sintoma, que sofre, estivesse a todo tempo necessitada de uma realização que pode ser encontrada nos seus mais diversos sofrimentos. É aquele que busca saciar-se com algo a partir da sua dor, sendo esse algo o seu próprio desejo.
Aí me vêm a seguinte pergunta: o que seria esse algo? Há idade para o sintoma? A idade do sintoma na psicanálise se difere da psicologia, pois ela não é cronológica, mas lógica. Este sujeito pode até na idade adulta trazer recordações do seu tempo da infância.
Entendo este solidário de Suárez como se a criança também sofresse as suas neuroses e psicoses iguais aos adultos. No inconsciente não se tem idade para vivenciar o sintoma. Ele vai aparecer igual aparece no adulto, por isso a criança não é subdesenvolvida. Ao contrário, o seu inconsciente parece formado tal qual o do adulto apresentando uma linguagem que vem através da imagem porque muitas vezes a criança ainda está na tenra idade e ainda não conhece a linguagem oral se debruçando sobre o que o inconsciente constrói e o que ela vivencia no seu dia a dia, processo este chamado por Freud de condensação e por Lacan de metáfora.
Quando Suárez nos diz que é do significante que depende a produção da significação, penso como se este significante fossem aquelas impressões subjetivas formadas no inconsciente e que a criança apresenta através das suas birras, choro, dor ou emoções que não sabe revelar.
O sintoma define a criança assim como nós adultos.
Ele se apresenta nas mesmas características do dos adultos, por isso pode ser tratado pela psicanálise. Características essas não terminantemente iguais, mas parecidas nas neuroses e psicoses que muitas vezes deixa o adulto sempre na infância. Assim, o gozo que a criança vive é o mesmo do adulto, ele busca saciar-se no sintoma que pode ser neurótico ou psicótico.
É através do sintoma que o analista passa a conhecer a criança, pois à medida que a análise vai ocorrendo ao passar do tempo, descobre-se um pouco mais da subjetividade dessa criança podendo ajudá-la no encontro da descoberta de si enquanto sujeito que se encontrava incompleto e poderá achar no seu gozo uma quase completude porque para mim sempre existirá um pouco de castração no sujeito que sente e o sentir aqui refere-se ao sintoma de Lacan.
Na metáfora, eu tenho experiências vivenciadas que se misturam com outras que não conheço dando lugar a novas impressões subjetivas em relação ao que o meu inconsciente esboça como sintoma exterior. A criança que sabe algo junta a isso outras coisas que ela não conhece e cria a partir daí suas próprias impressões que podem vir em forma de neurose ou psicose porque está a afetando de forma que ela não consegue lidar com o sofrimento desconhecido.
A mensagem é opaca para a criança porque ela não a conhece ainda, ela não sabe expressar de onde vem o seu sintoma ou por que ele está ocorrendo. Dá-se daí o encontro com a realidade que se satisfaz ao ser descoberta a sua causa? Ou seja, uma realidade que sente o gozo a partir de se extravasar no sintoma?
Não se pode buscar encontrar apenas a mensagem que o sintoma tenta passar, mas como ele se apresenta no gozo tentando se estabilizar no usufruto de algo que o sujeito neste caso a criança sente e não sabe como lidar ou por que sente aquilo, sonha com aquilo, imagina aquilo, vive aquilo.
A mensagem que se encontra no inconsciente e tenta se realizar no sentimento através do gozo. Seria como se a criança estivesse sofrendo de terrível febre e ninguém soubesse de onde ela vem. Ou até mesmo que a criança desenhasse monstros para apresentar o seu sintoma ao analista e a partir desses desenhos o analista junto com ela pudessem encontrar um caminho para uma análise cada vez mais necessária e afetiva.
O falo não sendo o pênis é o que a criança tem em si, próprio do seu eu, que se caracteriza por uma falta a partir da castração. Como ocorreria esta simbolização? Por que o falo é imaginário? Seria ele algo que a criança faz de conta que existe, mas não pode tocá-lo ou senti-lo? Penso que este falo se movimenta no inconsciente da criança como o ciúme por um irmão mais novo ou um apego a algum brinquedo ou parente próximo.
Mesmo na presença do filho, a mulher não se sente completa, ou seja, vai sempre lhe faltar algo, quer seja isso imaginário ou não. Ela toma posse dessa incompletude e segue necessitando da presença do pai e do filho menino para sentir-se realizada. É essa mãe que necessita traz a criança para análise e chega cheia de dúvidas querendo que o analista resolva o sintoma do seu filho, quando na verdade ela precisa desse encontrar o seu falo antes mesmo do que a sua própria criança.
Ademais, gostaria de deter-me um pouco no mito que a criança cria para aliviar o seu sintoma.
O mito é necessário para fugir daquilo que os homens costumam chamar de real, ou seja, do que se apresenta para gente através dos sentidos. A criança cria este mito para dá uma resposta ao seu sintoma, para aliviar a sua dor, para fugir do real e passar a conviver a partir do seu mito lugar confortável que faz parte do sujeito analisando. Enquanto o mito não é substituído por algo melhor a análise tende a continuar, pois ela é o elemento essencial que traduz a criança ao estar no divã.
Como exemplo de mito, eu simbolizaria a criança que cria faz do seu mundo imaginário uma fuga desse real que tanto a assusta apresentando-o através das brincadeiras, do desenho ou até mesmo da invenção de historinhas que tanto lhe agrada.
Este é um estudo introdutório ao mundo da psicanálise infantil. Nada aqui dito se confirma em afirmações, mas reflexões acerca de um texto que nos motivou a registrar a sua boniteza enquanto iniciantes de uma ciência se preocupa com as pulsões do sujeito, aqui representado na infância.
Uma das características do ser humano é sua contínua insatisfação, o que o leva a sentir-se inacabado e até mesmo desafiado pela imensidão das coisas novas que conhece. Mas isto indica que todo prazer, alegria ou objetivo procurado vem de dentro de seu ser mais íntimo. E é por isso que toda ação externa -como expressão do caminho da realização- de procurar satisfazer as próprias necessidades se baseia em decisões que tocam o próprio núcleo da existência humana. Portanto, cada ação implica uma decisão na qual a mente, o coração, a alma e o corpo de cada mulher e de cada homem estão em jogo. Uma decisão de ser feliz ou não, de ser livre ou não, de viver ou não viver.
Na cultura individualista em que vivemos, cometemos o erro de ver a autodeterminação como o único valor. É um erro que leva a perder a riqueza da comunidade, do bem-estar coletivo. Neste sentido, o homo eligens (homem eleitor), antes de escolher por todos, decide escolher por si mesmo, dissociando-se de todos os laços com seus semelhantes, mesmo que ele aparentemente viva junto com eles. Tudo se torna pouco, limitado, líquido: “…a vida líquida se alimenta da insatisfação do eu com si mesmo…”[1]. E se as necessidades pessoais não são combinadas com as necessidades comunitárias, os horizontes se tornam mais estreitos e a existência perde seu sabor, torna-se insustentável. As maiores perversões humanas nascem desse vazio.
Existir em liberdade é pertencer a um lugar
Existir significa estar em pé hoje, mas com uma projeção para o amanhã. Existir vem do latim e significa “sair de, ser orientado para fora, aberto para”[2]. Portanto, existir significa viver, mas viver nem sempre é existir. Estar vivo não é necessariamente ser existente. Existir é viver em liberdade. A liberdade é a capacidade de viver de acordo com a existência.
Ser livre é ser dono das próprias decisões e realizar ações que nos constroem como pessoas e que colaboram na construção de um ambiente favorável a todas as criaturas. Esta liberdade é educada dentro da pessoa, é vivenciada, amadurece e é posta em ação em atos externos, mas que também têm a ver com a construção da consciência interior dos outros.
Neste sentido, ser livre implica estar enraizado no lugar que ocupamos no mundo, e este lugar não é apenas um espaço hipotético ou espacial, mas também tem a ver com um espaço físico concreto, o lugar onde vivemos. Tem a ver com o chão que pisamos, com a paisagem onde nascemos, com as pessoas ao nosso redor. Tudo isso compõe a cultura. Para sermos livres, devemos reconhecer a cultura da qual fazemos parte e com ela o solo que a constitui. O solo é o lugar onde pisamos, onde aprendemos a nos mover e de onde nos impulsionamos para o futuro. É o domicílio seguro que temos no mundo, como diz Kusch: “…não devemos realmente entender as transformações, exceto neste sentido único que a cultura proporciona, como algo que aponta apenas para minha vida aqui e agora”[3]. E o aqui é o meu terreno, o meu lugar.
Da privação ao não-lugar
O que acontece quando uma pessoa é violentamente arrancada de seu lugar, do espaço vital do qual faz parte, sendo privada de sua liberdade? Quem não puder ser o dono de suas ações, poderá tornar-se o dono de seus pensamentos. Mas isto é muito difícil, especialmente quando se é vítima de uma situação de total falta de escolha. Quem é forçado a deixar seu habitat vital, cai em uma situação de privação. Esta privação implica inação, a impossibilidade de reagir para se libertar. A tática a que se está sujeito é o isolamento, onde “…estar isolado é o mesmo que não ter capacidade de agir…”[4].
Aqueles que são obrigados a ir onde não querem ir sofrem uma contradição com sua própria natureza, porque ser livre é uma condição fundamentalmente humana, mas este direito nem sempre pode ser exercido.
A maior dor daqueles que estão sujeitos a esta situação é a sensação de estar fora de seu próprio lugar, o lugar onde realmente pertencem. É um não-lugar: a própria negação do ser, pois estar é estar em um lugar escolhido, amado, cuidado. Não-lugar implica a rebeldia do coração, do corpo e da alma para estar onde não se quer estar e onde não se está. É a sensação de viver, mas não existir, de respirar, mas não estar consciente do ser.
Martin Bubber disse: “O destino e a liberdade são solenemente prometidos um ao outro. Somente o homem (e a mulher) que torna a liberdade real para si mesmo, encontra o destino”[5]. E nesta situação, como o destino e a liberdade podem ser unidos? Quando a liberdade é tirada, o destino se perde, se esbate, deixa de existir. A única maneira de superá-lo é o caminho para a própria casa: voltar à terra do próprio nascimento.
O medo como fonte de tanta violência
Ao longo da história as grandes revoltas revolucionárias tiveram que superar o maior dos inimigos humanos: o medo; mas dentro do medo há uma que é a grande causa de todas as outras: o medo que sentimos de nós mesmos[6], dos sentimentos que nos causam dor e angústia e que é a causa de ações posteriores. Mas enquanto os povos nativos educaram gradualmente este medo em uma força de resistência e luta contra tudo o que os oprime, as sociedades modernas transformam o medo em violência. Violência que dá livre curso aos sentimentos mais sombrios do ser humano, daí os maus-tratos de outros vistos como um inimigo a ser subjugado e -se isto não puder ser feito- eliminado.
A violência pode ser analisada de três maneiras[7]: em nível pessoal, pelos próprios sujeitos, um contra o outro; em nível estrutural ou social e também por uma racionalidade como fruto da cumplicidade com o sistema que maltrata e mata indiscriminadamente tantos irmãos e irmãs em todo o mundo. Este sistema exclui aqueles que não entram na cadeia do consumismo, na qual as próprias pessoas são objetos de consumo.
A violência contra cada ser que é maltratado e arrancado de seu lugar implica sempre sua objetivação e de não ser admitido como igual, mas como um produto. Esta apropriação do outro como algo que eu posso lidar de acordo com minha vontade revela o grau de violência no trabalho na consciência de muitos de nós que, sem ir tão longe quanto a violência física, basta apertar uma tecla de computador para decidir sobre a vida de nossos semelhantes.
Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas. Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande. Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
Os tamanhos variam conforme o grau de envolvimento…
Uma pessoa é enorme para ti, quando fala do que leu e viveu, quando te trata com carinho e respeito, quando te olha nos olhos e sorri. É pequena para ti quando só pensa em si mesma, quando se comporta de uma maneira pouco gentil, quando fracassa justamente no momento em que teria que demonstrar o que há de mais importante entre duas pessoas: a amizade, o carinho, o respeito, o zelo e até mesmo o amor.
Uma pessoa é gigante para ti quando se interessa pela tua vida, quando procura alternativas para o seu crescimento, quando sonha junto contigo. E pequena quando se desvia do assunto.
Uma pessoa é grande quando perdoa, quando compreende, quando se coloca no lugar do outro, quando age não de acordo com o que esperam dela, mas de acordo com o que espera de si mesma. Uma pessoa é pequena quando se deixa reger por comportamentos da moda.
Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas. Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande. Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
É difícil conviver com esta elasticidade: as pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos. O nosso julgamento é feito não através de centímetros e metros, mas de ações e reações, de expectativas e frustrações.
Uma pessoa é única ao estender a mão e, ao recolhê-la inesperadamente, torna-se mais uma.
O egoísmo unifica os insignificantes. Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande… é a sua sensibilidade, sem tamanho…
Autora: Martha Medeiros, é escritora, jornalista e cronista brasileira. É colaboradora do jornal Zero Hora e da revista Época.Entre outros trabalhos, publicou: “Divã”, (2002) romance que originou um filme e uma série de TV, estrelado pela atriz Lília Cabral, “Coisas da Vida” (2003), “Selma e Sinatra” (2005), “Tudo Que Eu Queria Te Dizer” (2007), “Doidas e Santas” (2008), “Fora de Mim” (2010), “Noite em Claro” (2012), “Um Lugar na Janela” (2012) e “A Graça da Coisa” (2013).
Cabe ao estado, em todas as suas expressões, criar espaços para a expressão das emoções, para a sublimação do ódio, para que crianças, adolescentes e jovens sejam ouvidos e não tornem suas dores e frustrações anteriores em atos violentos.
Ninguém acolhe os meninos e meninas tristes, frustrados, com ódio no coração. Crianças e adolescentes que passam o dia na internet, sentem-se sozinhos, e a mãe e o pai não sabem onde eles andam. O corpo está ali no quarto. Mas o coração e a mente está muito longe, na web, em algum lugar onde alguém o acolhe, alguém o compreende, alguém lhe dá atenção e o torna importante.
Já temos crianças e adolescentes envolvidos pelo tráfico, lugar onde se tornam importantes e valorizados. Nem as famílias, nem as escolas, abrem-se para ouvir. Famílias e escolas ditam regras, ordens, punem, disciplinam, mas não acolhem, não dão afeto, não compreendem, não possibilitam a fala, o diálogo.
Assassinatos nas escolas são sintomas, ao meu ver, de três causas: uma sociedade que depreciou a escola e os professores, discursos de violência e falta de acolhimento dos adultos às crianças e adolescentes sem rumos. Detenho-me nessa última que, me parece, poderia minimizar as outras. Parece.
Logo vem as soluções simples e erradas: subir os muros das escolas, colocar policiais armados, revistar mochilas e sacolas. Não se resolve o problema das doenças fechando os hospitais. Não se resolve um incêndio escondendo a fumaça. Não se para um vulcão tapando sua cratera. Não se extirpará a violência, com a simples aplicação das leis penais às crianças e adolescentes que cometem erros, ou criando penas mais duras.
Como formiguinhas que saem de um grande formigueiro, prender uma, sairá outra, e depois outra… E o jardineiro senta-se debaixo da árvore matando cada formiguinha que sobe para cortar folhas. Como evitar as doenças? Como prevenir incêndios? Como saber onde, no fundo da terra, os vulcões começam a se formar? Onde moram e se reproduzem as formigas? Como criar crianças amorosas e empáticas?
O poder transfigurador da arte há muito vem sendo experimentado na psiquiatria, e também em favelas e em comunidades com problemas de violência e marginalização.
Ao contrário da religião e da política, que acirram diferenças e divisões de todas as espécies, a arte consegue, pela sensibilização profunda do espírito, enredar as pessoas em seus sonhos mais profundos, embora nem sempre conhecidos.
A arte, que não possui utilidade prática, tem uma mágica que aflora e purifica afetos, sentimentos, sonhos, medos. A arte – cinema ou literatura, pintura ou música, escultura ou dança –, ao mexer com o imaginário, pode tornar homens e mulheres de um grupo, cúmplices de seus projetos mais íntimos.
Crianças e adolescentes têm direito a serem ouvidos, a terem afeto e amor, a serem acolhidos em seus medos e horrores, em suas dores e seus ódios.
Cabe ao estado, em todas as suas expressões, criar espaços para a expressão das emoções, para a sublimação do ódio, para que crianças, adolescentes e jovens sejam ouvidos e não tornem suas dores e frustrações anteriores em atos violentos.
Falar, dizer, contar, é o modo mais simples de se evitar que violências contidas aflorem em facas, revólveres, e outros tipos de vingança. Recordo Yolanda Reyes em seu livro “A Casa Imaginária: leitura e literatura na primeira infância”: que a arte permite à criança, pela arte, como a literatura, exteriorizar seus monstros interiores, para que sejam domados.
Crianças e adolescentes não precisam ser domados. Seus monstros, sim. Com afeto, escuta, empatia e um ambiente amoroso.
Nos Estados Unidos, onde as escolas são as mais vigiadas do mundo, e há pena de morte em alguns estados, os ataques em massa continuam sendo os maiores do mundo. Faz bem aprender com erros dos outros.
As respostas ao medo que assola as comunidades escolares não têm receita pronta, mas podemos buscar alternativas para o fortalecimento de um ambiente democrático e o auxílio de profissionais capacitados para a prevenção e a gestão adequada de ameaças e conflitos.
Acompanhamos as tristes notícias dos ataques ocorridos às escolas no país e no Rio Grande do Sul. Algumas das causas associadas a esses ataques são o bullying e a exposição da criança ou adolescente a situações violentas do cotidiano que o discurso de ódio, coordenado por grupos extremistas, busca canalizar.
Desde 2013, existe um avanço da política de interdição do debate sobre a diversidade, valorização de mulheres e da educação sexual nas escolas. Isso gerou uma política de vigia sobre as e os profissionais da educação, cerceou debates importantes que visavam a justiça, o combate às violências, a democracia e a construção de cidadania plena. Assim, a escola virou um alvo também desprotegido pelo desinvestimento em formação, estrutura física e tecnologia.
As respostas ao medo que assola as comunidades escolares não têm receita pronta, mas podemos buscar alternativas para o fortalecimento de um ambiente democrático e o auxílio de profissionais capacitados para a prevenção e a gestão adequada de ameaças e conflitos.
O governo Lula, em resposta aos recentes ataques, anunciou medidas para o enfrentamento do problema da violência nas escolas.
Garantir a capacitação de profissionais em educação para a formação em direitos humanos, retomar a gestão democrática nas escolas com o protagonismo da juventude valorizado, é urgente para a recriação de um ambiente saudável, acolhedor e democrático em que todas e todos possam participar e serem sujeitos da construção de uma sociedade solidária, justa e igualitária.
É urgente a responsabilização das empresas de Internet para que impeçam que a rede de ódio angarie adeptos e crie o efeito buscado: popularidade pelo pânico e medo!
Estamos desencadeando a Jornada pela Segurança nas Escolas que buscará envolver gestores da educação e da segurança, estudantes e educadores/as, produzindo escutas e construindo políticas que possam proteger as escolas das violências que são da sociedade e ali se transformam em terrorismo por atingir inocentes indefesos.
Jornada pela Segurança nas Escolas foi lançada em Rio Grande
A violência nas e contra as escolas também é efeito das bibliotecas escolares fechadas, como aqui no Rio Grande do Sul a exemplo do Instituto Estadual de Educação Juvenal Miller em Rio Grande, onde a deputada estadual Sofia Cavedon (PT), presidenta da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, realizou o lançamento da Jornada pela Segurança nas Escolas nesta última quarta-feira (12/04/2023).
A nossa escola tem Biblioteca? A pergunta foi de um aluno do Instituto, presente na reunião pública, após a manifestação da Deputada que também é presidenta da Frente Parlamentar Estadual em Defesa do Livro e da Leitura, e que desde 2019 luta pela abertura de todas as bibliotecas escolares, fechadas pelo governo Eduardo Leite.
Livros Sim, armas Não. Assim, Sofia Cavedon finalizou sua intervenção no primeiro encontro da Jornada pela Segurança nas Escolas que reuniu expressiva presença da juventude rio-grandina, além da comunidade escolar e autoridades da Segurança. “Foi uma grande oficina de formação dos alunos que escutaram a versão da Polícia Civil e da Brigada Militar, diferenciando o que é crime e o desafio das escolas neste momento. Fizemos uma escuta também da escola que além das ameaças, está com o refeitório interditado, não tem servidores para a limpeza, faltam professores e coordenadora pedagógica, monitores e porteiros, e a Biblioteca está fechada! Vamos ter que mudar isso tudo”, destaca a parlamentar anunciando que a escola entrará no relatório da Operação Dever de Casa e no monitoramento online da Comissão de Educação.
Seguem registros desta importante atividade na Cidade de Rio Grande.
(Fotos: Denis Soares)
Por Deputada Estadual Sofia Cavedon e Aline Seixas, Historiadora
Group of children with female teacher walking in school corridor. Back view. Education or back to school concept
Qual é a melhor maneira de enfrentar a violência e garantir maior segurança e tranquilidade nas escolas?
Como mostra recente pesquisa realizada pela Nova Escola com mais de 5 mil educadores no período pós-pandemia, sete em cada dez professores relataram casos de violência nas instituições onde trabalham.
Estranhamente, mais uma vez, depois de graves acontecimentos que envolvem o uso de violência e morte dentro de escolas, todo mundo discute soluções, mas sem ouvir e considerar as vozes e as percepções das comunidades escolares (estudantes, pais e mães, professores e professoras, funcionários e funcionárias).
Precisamos, enquanto escola e sociedade, enfrentarmos a violência que envolve também os ambientes escolares na perspectiva de atacar as suas causas; não apenas as suas consequências. A escola precisa ser organizada e reconhecida como um ambiente social seguro para todos. Neste sentido, a comunicação, a transparência e o permanente diálogo ajudarão na construção de vínculos de confiança entre escolas e famílias.
Algumas ideias para trabalhar o tema da violência nas escolas e no entorno delas: *Divulgue em suas redes sociais #paznasescolas. Aborde o tema da violência na perspectiva propositiva/reflexiva e de prevenção; *Fale da violência na perspectiva da prevenção e proteção com toda comunidade escolar: estudantes, pais e mães, professores e professoras, funcionários e funcionárias; *Acredite e desenvolva, cada vez mais e com mais convicção, projetos que valorizem a cultura de paz nas escolas; *Crie protocolos e cuidados específicos para a sua escola, pensando na maior segurança dos estudantes e dos professores e professoras, a partir da realidade e das condições que já existem; *Cobre das autoridades maior zelo e responsabilidade por políticas públicas de segurança, capazes de garantir a todos o direito à segurança pública. *Não alimente ilusões de que somente com mais policiamento e forças de segurança que resolveremos as questões que envolvem a violência na sociedade e nas escolas. Ataques a escolas estimulam projetos de vigilância armada, mas especialistas não veem benefícios. Pesquisadores defendem medidas como monitoramento em redes sociais mais efetivo do que policiamento ostensivo junto às salas de aula.
Cultura de paz e papel das escolas A esperança é a força mobilizadora que nos faz olhar para o nosso lado (e para a história), com o propósito de perceber quem luta e quem já lutou por uma cultura de paz. Cremos que a cultura da tolerância e da paz nasce justamente nos esforços diários e perseverantes que afirmem o diálogo como pressuposto maior dos entendimentos humanos.
Martin Luther King, líder negro, religioso e pacifista, afirma que “nós não podemos nos concentrar somente na negatividade da guerra, mas também na positividade da paz”.
A paz não está e nem se realiza em contextos sem conflitos. Os conflitos fazem parte da natureza humana, mas cabe à sociedade e, às escolas, de modo particular, estabelecerem dinâmicas de convivência onde se experimentem a resolução de conflitos e diferenças pelas vias da escuta, do diálogo, do respeito mútuo e da aceitação das diferenças.
Quando escolas favorecem maior diálogo sobre o tema da violência, ajudam a desenvolver senso crítico em seus alunos e ganham força as ideias do respeito, da solidariedade e da convivência entre seres humanos, considerando que todos que chegam à escola tem origens, histórias, bagagens e limitações muito diferentes.
Inicia nesta quarta-feira, 12, a Jornada pela Segurança nas Escolas, uma ação da deputada estadual Sofia Cavedon (PT), presidenta da Comissão de Educação da AL/RS. O primeiro encontro será em Rio Grande no Instituto Estadual de Educação Juvenal Miller, às 14h na sede da escola, Rua Andrade Neves, s/n, Centro. Conforme Sofia, a reunião contará com a participação da comunidade escolar, Brigada Militar e Polícia Civil.
A Jornada pela Segurança nas Escolas é uma ação que buscará envolver gestores da educação e da segurança, estudantes e educadores/as, produzindo escutas e construindo políticas que possam proteger as escolas das violências, ressalta a deputada.
Entidades estudantis e movimentos sociais participaram da sessão e entregaram à presidenta da Comissão, deputada Sofia Cavedon (PT), uma carta apresentando suas reivindicações. O documento intitulado “Por uma escola democrática e acolhedora” traz sugestões e cobra iniciativas do governo do estado para combater todas as formas de violência, opressão, discriminação e intolerância. Foto: Marta Resing “Reforçamos que o papel do estado é acompanhar as ameaças, atuando ativamente no combate e desmobilização de grupos e comunidades virtuais que promovem o ódio e a violência, bem como na identificação e punição dos autores das mensagens que circulam nas redes sociais”, diz um trecho da carta. Outra cobrança é para que se cumpra a lei que assegura a presença de psicólogos e assistentes sociais dentro das instituições escolares.
Segue um belo exemplo de uma situação vivida que alguém aproveitou para enxergar o que não estava enxergando; para vivenciar a sensação maravilhosamente gratificante de ser empático.
Há situações que mudam nossas vidas. Uma delas é quando percebemos em nós, de repente, a humana beleza de ser empático. Até o nosso céu, como na foto, ganha cor.
Aleixo da Rosa conta, na crônica “Em todos os lugares” (CANALS, A.R. Coletânea: 2017. PPF), de uma “experiência modificadora de vida” que se passou com ele quando na escola.
Havia uma menininha, com seu vestidinho branco, com uma fita no cabelo, tímida, da qual todos zombavam por ser negra, por ser pobre. “A turma tinha um apelido para ela, um dos mais cruéis já ouvidos e repetidos por mim: Tição do Inferno”.
Certo dia, alguém derrubou o estojo dela no chão. Aleixo abaixou-se com intenção de pegar o estojo e jogar longe. Mas, nesse exato momento, ouviu a voz da professora a elogiar sua atitude de juntar o estojo para a coleguinha. Ele não sabia que a professora estava na sala. “Não tive outra opção, assim, a não ser juntar os materiais para minha colega. A menina não percebeu minha intenção inicial, ficou profundamente tocada, e disse-me obrigada, muitas vezes. Seus olhos se encheram de lágrimas por aquele gesto, tão simples. Senti-me a pior pessoa do mundo…”.
Uma lição para a vida, descreve Aleixo em sua magistral crônica.
“Naquele dia, sem querer, eu comecei a aprender o que é ter ética. Também aprendi que, comumente, a multidão está errada. É preciso tomar cuidado ao seguir a turba, ao fazer o comum simplesmente por que é comum”.
Um belo exemplo de uma situação vivida que alguém aproveitou para enxergar o que não estava enxergando; para vivenciar a sensação maravilhosamente gratificante de ser empático. Aleixo alertou que a tristeza do racismo, e outras tantas discriminações, podem existir “em todos os lugares”, daí o título de seu texto.
Há humanidade na menininha, ela agradeceu. Há humanidade em Aleixo que teve, inclusive, a bondosa coragem de contar o que se passou. E há humanidade em nós que desejamos fazer o possível e o impossível para que “menininhas de vestidinho branco e fita no cabelo” nunca mais sofram o que já sofreram.
Haja o que houver, jamais desista de seus filhos. Mas não tente impor-lhes sua fé.
Sim, sei o quanto dói cria-los no caminho da fé e vê-los se afastar da igreja ao ingressar na vida adulta. A gente se vê tomado de culpa, perguntando-se: Onde foi que errei?
Perdemos noites de sono. Perguntamo-nos onde eles estarão naquele momento. Se pudéssemos, retrocederíamos no tempo para poder colocá-los no colo novamente e protegê-los das ameaças deste mundo hostil.
Às vezes, erramos. Quase nunca, intencionalmente. Noutras vezes, simplesmente acontece sem que tenhamos feito nada para contribuir para o seu afastamento.
Mil coisas se passam pela nossa cabeça.
Como posso continuar pregando o evangelho se meus próprios filhos já não o seguem? Que credibilidade terei para ensinar a outros o que nem eles mesmos vivem?
Tais questões têm alguma pertinência, porém, devo salientar que estão longe de serem as mais importantes.
Esqueça o que os outros vão falar. Deixe de lado seu orgulho e preocupação com sua imagem. Pense neles, exclusivamente neles.
Não será com indiretas pelas redes sociais que você vai trazê-los de volta. Muito menos com sermões sobre o “filho pródigo” ou sobre “voltar ao primeiro amor.” Lembre-se de que eles cresceram ouvindo estes e tantos outros sermões.
O que fazer, então? Como reagir ao vê-los encantados com o que o mundo lhes pode oferecer?
Primeiro, vamos entender quais as possíveis razões de haverem se afastado.
Alguns se afastaram ao verem suas igrejas se comprometendo politicamente com o que consideram mais incongruente com os valores que abraçaram.
Outros se afastaram por enfrentarem uma crise legítima de fé. De repente, o que ouvem na igreja parece não fazer mais sentido diante das demandas do mundo que lhes cerca, ou diante do que têm aprendido na escola ou faculdade.
Outros ainda, se afastaram por desejarem experimentar aquilo que a igreja proíbe.
Há, também, os que se afastaram por razões ligadas à sua orientação sexual ou identidade de gênero.
E há os que se afastaram por problemas relacionados à sua própria família, como desentendimento com os pais ou o divórcio dos mesmos.
Certamente, há outros motivos que poderíamos relacionar aqui. Sejam eles quais forem, não devem ser motivo para questionarmos a legitimidade da experiência que tiveram com Cristo.
Jamais ponha em xeque a conversão deles. Só Deus conhece profundamente os seus corações e as razões que os levaram a se afastar.
Evite expor em redes sociais os eventuais conflitos enfrentados por vocês. A intromissão das pessoas só prejudicará ainda mais a relação de vocês, podendo, inclusive, inibir qualquer reaproximação da fé.
A menos que você tenha sido um pai ou uma mãe completamente relapso (a), não se culpe pelo afastamento deles.
A verdade é que cada um precisa percorrer sua própria jornada espiritual. Não dá para terceirizar nossa espiritualidade. A subjetividade é solo sagrado, onde ninguém deve se atrever a pisar sem estar descalço de suas suposições, preconceitos, ou mesmo, certezas.
Você já deve ter se perguntado: “Por que justamente comigo?” ou “Por que não com outros pais menos zelosos que eu?” Sugiro que substitua esta questão por outra: Por que não comigo? Afinal, ninguém é melhor do que ninguém. Aconteceu até com Billy Graham, considerado o maior evangelista do século XX, que enquanto fazia cruzadas evangelísticas reunindo multidões ao redor do mundo, seu filho se drogava e se entregava aos prazeres desenfreados da carne. Foi este mesmo filho que o sucedeu no ministério após sua morte.
Haja o que houver, jamais desista de seus filhos. Mas não tente impor-lhes sua fé.
Independentemente de estarem ou não na igreja, os princípios e valores que você lhes ensinou os acompanharão pelo resto de suas vidas, e isso é a evidência inconteste de que você cumpriu e tem cumprido sua missão.
Console-se com o fato de que “aquele que começou a boa obra, há de completa-la até o dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6). Deus jamais abandona uma obra pela metade.
O que você pode fazer? Orar, amar, acolher.
Ore por seus filhos diuturnamente. Peça que o Espírito Santo se encarregue de colocar as pessoas certas em seus caminhos, e de dirigir-lhes os passos.
Se antes, você buscou protegê-los do mundo, possivelmente agora terá que protegê-los da maldade fermentada na própria igreja.
Não permita que rotulem seus filhos. Confronte a hipocrisia daqueles que se aproveitam do momento para tripudiar como se estes tivessem a família perfeita. Defenda sua cria!
Eventualmente, o mundo vai decepcioná-los. Quando isso acontecer, não jogue na cara deles. Não diga algo do tipo “eu não te disse?” Isso só vai piorar as coisas. Quando todos os decepcionarem, abrace-os fortemente. Cubra-os de amor.
Eles podem até resistir aos seus argumentos, mas serão absolutamente vulneráveis ao seu amor.