Jeferson Tenório, escritor, professor e pesquisador brasileiro, escreveu mais esta importante reflexão sobre dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, propondo aos leitores e leitoras que vista a pele dos negros como um exercício de compreensão sobre a vida que levam e sobre o tratamento que os mesmos recebem da sociedade. Sua coluna foi publicada no dia 15/11/2022 no Jornal Zero Hora.
“Se sua resposta for “não” é porque você tem consciência de como os negros são tratados no Brasil.
Mais uma vez nos aproximamos do 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. Um dia de reflexão proposto pelo poeta gaúcho Oliveira Silveira.
Proponho o seguinte exercício: vista a minha pele enquanto você me lê.
Imagine que você está preparando uma janta e lembra que não tem um item importante da receita. Você pensa em ir ao supermercado com a roupa que está. Mas antes, passa pelo espelho. Não acha bom sair de qualquer jeito. Precisa estar bem vestido. Troca de roupa. Caminha pelas ruas, são quatro quadras apenas. Logo à frente, uma senhora desconfiada olha para atrás, você não quer que ela ache que você é um suspeito que vai assaltá-la.
Decide atravessar a rua. Mais adiante, um carro da brigada passa por você. É um momento tenso, porque você lembra das 15 vezes que foi abordado apenas por ser negro.
Quando entra no supermercado, olha para o segurança e dá “boa noite”. Ele te olha de volta, mas não responde. Você está com pressa, mas não pode ser apressado. Sabe que não pode simplesmente pegar um produto com rapidez e ir para o caixa. Você precisa parecer inocente. Porque você já é naturalmente suspeito. Sua tarefa é sempre provar o contrário. Provar que não é um criminoso, que só quer terminar sua janta.
E se por um acaso não encontrar o item, você não pode simplesmente sair. O segurança vai desconfiar, vai achar que foi ali para roubar. Entre os corredores, você vê o mesmo segurança atrás de você. Fica na dúvida se está sendo seguido. Acaba levando um produto qualquer para não acharem que furtou algo. Vai para o caixa, paga e depois passa pela porta com receio de que aqueles detectores apitem por qualquer motivo e seja acusado de roubo.
Descrever esta cena cotidiana me faz pensar que tipo de mentalidade é essa, que tipo de imaginário tão fundante e profundo que se instalou em nossa psique social e de lá nunca mais saiu? Que tipo de imagem é essa que não se desfaz, que não se transforma em alteridade?
Que tipo de relação cruel e violenta se criou em torno da cor da pele? Que tipo de sociedade é essa que teima em julgar pela aparência?
O processo colonialista foi tão traumático que parece ter moldado nosso comportamento para sempre.
Então, se você sabe como os negros são tratados todos os dias é porque sabe que o racismo existe e que o problema é seu também”.
No mês que se tornou uma referência para atividades que inspiram a luta e a resistência do povo negro, que comemora o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20 de novembro, cenas de extremismo após a vitória do ex-presidente Lula (PT) nas eleições deste ano tomaram conta de rodovias e escolas.
Nas estradas e vias públicas foram feitos atos antidemocráticos questionando a derrota de Jair Bolsonaro (PL) com muita violência e desumanidade – até grávidas em trabalho de parto foram impedidas de passar. Nas escolas, as vítimas da intolerância são os negros e os nordestinos.
“Apesar desses ataques, esse 20 de novembro é o 20 de novembro dos últimos seis anos em que a gente vai, enfim, respirar”, diz a professora da rede pública do Estado de São Paulo e secretaria de Combate ao Racismo da CUT nacional, Anatalina Lourenço, se referindo a vitória de Lula que, segundo ela, foi uma vitória da população negra e dos movimentos sociais.
“Nós conseguimos respirar e vislumbrar a possibilidade de garantia da vida”, diz citando o discurso de vitória feito por Lula em São Paulo, como um discurso em que ele assume uma responsabilidade na luta contra o racismo.
Na Paulista, Lula disse que “o racismo é uma doença que nós precisamos extirpar do nosso país!”, e acrescentou: “Não é possível! Deus nos fez iguais, e não é possível que alguém seja tratado como inferior só porque não tem a cor branca. Não há nenhum branco melhor do que nenhum negro, e não há nenhum negro melhor do que nenhum branco. Nós somos iguais”, disse o presidente eleito.
Racismo e xenofobia nas escolas
Depois das eleições, foram registrados vários episódios de xenofobia e, principalmente, racismo, em escolas de elite do Sul e Sudeste do país, aumentando ainda mais a preocupação de educadores e movimentos negros com a discriminação racial no Brasil.
Armados de uma conduta extremamente agressiva, alunos de algumas escolas de classe média alta protagonizaram, de forma escancarada, casos em que o ódio e o preconceito, característicos dos apoiadores inflamados de Bolsonaro, contra estudantes negros.
Outro caso, em Porto Alegre (RS), estudantes do Colégio Israelita Brasileiro fizeram, às gargalhadas, uma live no TikTok com xingamentos a pobres, cuja maioria (72%) é de negros, e nordestinos, “culpando-os pela vitória de Lula”.
Em Florianópolis, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) afirmou ter recebido uma carta de cunho nazista e racista dizendo que “gays, negros, mulheres femininas, gordas e amarelos” serão “destruídos”. A carta é assinada com as iniciais SS (de SchtutzStafell, a polícia do Partido Nazista alemão) e contém entre outros, ataques à população negra.
“Mulher preta nem para carregar filho serve. Lugar de preto é trabalhando na roça, não em faculdade”, diz trecho da carta.
A raiz do fascismo
Mais da metade dos brasileiros (56%, segundo dados do IBGE de 2020), é de negros e negras. No entanto, a sociedade ainda mantém conceitos predominantes colonialistas que fazem dessa população uma camada oprimida e sem os mesmos acessos a políticas públicas como educação, ‘reservados’ à população não negra. Portanto, essas manifestações nas escolas revelam que a luta antirracista deveria estar no centro dos debates da sociedade – da economia à segurança pública, passando por diversos temas como a saúde.
Na educação, por exemplo, a defesa de políticas essenciais como a implementação de leis como a 10.639/1996 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” nas grades curriculares dos ensinos fundamental e médio seria uma frente eficaz de combate ao racismo. Quem afirma é Anatalina Lourenço.
“É claro que nessas escolas privadas, você tem uma classe média e tem os ricos. Mas tem também uma classe média que acha que é rica e vai reproduzir todo o mecanismo do racismo presente na sociedade. E a opressão começa pela discriminação racial”, diz a dirigente em referência aos alunos terem dirigido suas agressões a estudantes negros.
Somado a isso está o conceito de que o inimigo, para esses agressores, “é o grupo que que foi estigmatizado como inferior e não pode estar na mesma esfera que eles, os privilegiados”, ela complementa.
“A luta contra o racismo é na sua essência uma luta contra o fascismo e o nazismo. É uma luta contra toda e qualquer forma de opressão e discriminação, que prima pela inclusão e que garante a vida” – Anatalina Lourenço.
Anatalina reforça que a luta contra o racismo é uma luta pela vida e desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), que levou a extrema direita ao poder e destruiu todas as políticas de inclusão e ações que vinham sendo implementadas no país para o combate à discriminação racial, “sobreviver” foi a palavra de ordem da população negra.
“Passamos os últimos seis anos desde o golpe tentando sobreviver, tentando garantir a vida e garantir alguns direitos, garantir saúde mental também. E durante todo esse tempo de luta, inclusive por democracia, os episódios de racismo foram cada vez mais frequentes”, ela diz
A dirigente afirma ainda que os assassinatos de negros e negras não só continuaram como crescerem. Dados do 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicados em julho deste ano mostram que 78% das mortes violentas intencionais foram de negros.
“Os episódios recentes nas escolas só reforçam que precisamos estar atentos e precisamos incorporar a luta antirracista como uma luta primordial de garantia da vida. Quem está desempregado, no trabalho precarizado, quem passa fome e quem morreu de covid-19 é a população negra e é a população alvo desses ataques que temos vistos após o resultado das eleições”, diz Anatalina Lourenço.
Para a dirigente, em seu discurso, Lula “apontou os problemas cruciais para além da economia e da miséria que atingem a população negra, permitindo que a gente possa vislumbrar, de fato, políticas radicais antirracistas”.
Entre as ‘políticas radicais’, ela cita uma reformulação das cartilhas seguidas pelas políticas de abordagem violenta e estereotipagem de pessoas negras, tratando-as acima de tudo e de antemão, como ‘suspeitas’. Cita também políticas de gestão empresarial que reflitam a realidade brasileira. “Se uma empresa tem 10 gerentes, por exemplo, ao menos a metade deveria ser negra, já que somos mais de 50% da população”, ela pontua.
Ações desta natureza, ela finaliza, evitariam que extremistas se sentissem no direito de agredir e propor a morte de pessoas, no caso os negros, em nome de uma suposta ‘liberdade de expressão’, como costumam justificar.
Somente quem tenha envergadura moral e ética é capaz de abrir mão de algo que lhe seja vantajoso, pois entende o privilégio sempre priva alguém de seus direitos.
O que distingue um privilégio de um direito legítimo? Imagine uma gangorra. Se de um lado dela estiver o direito, do outro estará o dever, e ambos se equilibram. Tanto um, quanto outro deve ser aplicado indistintamente a todos. Mas se de um lado da gangorra estiver o privilégio, do outro estará o preconceito. Onde impera o direito, todos ganham. Mas o privilégio contempla apenas alguns.
Onde houver privilégios e preconceitos, haverá clamor por direitos.
A equação pode parecer simples, mas envolve muitos fatores. Quem estaria disposto a abrir mão de seus privilégios? Aliás, muitos nem sequer os reconhecem. Por estarem tão acostumados a usufruí-los, parece-lhes algo absolutamente natural.
Nem todo privilégio pode ser renunciado, porém, deve ser constantemente denunciado até que se torne motivo de constrangimento e não mais de vanglória por parte de quem o desfruta.
Paulo, por exemplo, poderia se considerar um privilegiado por causa de sua confortável posição social. Em vez disso, ele mesmo denuncia seus privilégios, considerando-os como excremento, o resultado final de um processo de promoção e manutenção da segregação.
Na apresentação de seu invejável currículo, ele diz integrar a linhagem de Israel a quem pertence as promessas divinas, a tribo de Benjamim de onde procedeu seu primeiro monarca, a mais popular facção política e religiosa de seu tempo, os fariseus, além de ser defensor intransigente das tradições, da lei e da ordem, o que levou-a a perseguir vorazmente os cristãos. “Mas o que para mim era lucro”, arrematou, “considerei perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como excremento, para que possa ganhar a Cristo” (Filipenses 3:4-8).
Qualquer coisa que nos faça sentir melhores que os demais deve ser ressignificada. A graça nivelou-nos a todos de modo que ninguém é melhor que ninguém. Nenhum privilégio tem o reconhecimento dos céus. Todos são frutos da injustiça.
O que seria considerado privilégio em nossa sociedade contemporânea? Ser branco? Homem? Hétero? Cristão (católico ou evangélico)? O que nos confere vantagens imediatas com relação a outros? Se não podemos reverter isso, alterando nossa posição privilegiada, estaríamos dispostos a abrir mão das vantagens que dela decorrem?
Não posso, por exemplo, alterar minha orientação sexual. Sou hétero. Isso é inerente à minha condição existencial. Mas entendo que isso me confere vantagens sobre os homossexuais. Refiro-me, obviamente, a vantagens do ponto de vista social. Não conheço ninguém que tenha sido despedido do emprego sob a alegação de ser hétero. Mas conheço muitos homossexuais que têm sérias dificuldades de se posicionar no mercado de trabalho devido à sua orientação sexual.
Se quero “ganhar a Cristo”, como disse Paulo, devo expor meus privilégios, denunciando-os e considerando-os perdas.
E por que deveríamos considerá-los perda, se na verdade, se constituem em vantagem e lucro? Pelo simples fato de outros saírem perdendo devido às vantagens advindas de nossa posição privilegiada. Não posso mudar a cor da minha pele.
Mas tenho o direito de não me sentir nada confortável pelo fato de ser preferido numa entrevista de emprego por ser branco. Não devo endossar preconceitos só porque não sou vítima dos mesmos. Tampouco devo apoiar privilégios por me beneficiar deles.
Outro exemplo pode ser encontrado nas páginas do Antigo Testamento. Trata-se do episódio em que Davi, depois de haver cometido adultério, mandou chamar a Urias, o esposo traído que estava no campo de batalha, para outorgar-lhe um privilégio inusitado. Evidentemente, o objetivo de Davi não era a concessão de um privilégio a um dos seus mais leais soldados, e sim, um ardil para tentar livrar sua própria cara. Quando Urias chegou ao palácio, Davi lhe deu uma merecida folga para que pudesse passar a noite na companhia de sua esposa. Com isso, a embaraçosa gravidez de Bate-seba seria atribuída ao próprio marido, e Davi, seria poupado de uma exposição desnecessária que poderia até destituí-lo do trono.
Mas, surpreendentemente, Davi se vê diante de um homem de envergadura moral e ética superior à sua. Como ele poderia desfrutar das benesses e prazeres do leito conjugal sabendo que seus companheiros seguiam arriscando suas vidas no campo de batalha? Sua ética ilibada fez com que abrisse mão do privilégio e voltasse para o front. Nem mesmo embriagando-o, Davi conseguiu dissuadi-lo de reunir-se a seus companheiros. Aquela havia sido a primeira vez que Davi ficara em casa enquanto seus homens lutavam pela expansão do seu reino.
Urias, porém, recusou a oferta. Sentindo-se encurralado, Davi recorreu ao mais covarde expediente. Enviou pelas mãos de Urias uma carta a Joabe, seu general, para que este o pusesse à frente da batalha, de modo que, quando os inimigos avançassem, os demais soldados recuassem e o deixassem sozinho. Morrendo Urias, Davi se livraria de um grande problema. A confiança de Davi na idoneidade de Urias era tão grande que em momento algum ele considerou que ele pudesse abrir a carta e se deparar com sua sentença de morte (2 Samuel 11:7-17). Funcionou. Mas isso custou muito caro a Davi. Deus não o deixaria impune.
Somente quem tenha envergadura moral e ética é capaz de abrir mão de algo que lhe seja vantajoso, pois entende o privilégio sempre priva alguém de seus direitos.
Se me vejo detentor do direito de usufruir de certos privilégios, passo a olhar para outro como quem está abaixo de mim. Isso se chama preconceito.
Geralmente, privilégios são concessões, enquanto direitos são conquistas. Ninguém concede direito a ninguém. O máximo que se pode fazer é reconhecer o direito e buscar protegê-lo. Diferentemente de quem goza de um privilégio, aquele que desfruta de um direito não pode negá-lo aos demais. Isso seria uma contradição.
Moisés, por exemplo, abriu mão de sua posição como príncipe do Egito para sofrer ao lado do seu povo. O próprio Jesus abriu mão de recorrer aos seus atributos divinos, esvaziando-se, assumindo a posição de servo daqueles que deveriam servi-lo. Que Ele seja nosso maior exemplo, de modo que, jamais nos estribemos em nossa posição social, religiosa, eclesiástica, étnica, intelectual, ideológica; mas que nos posicionemos pelos direitos de todos, sem discriminar quem quer que seja.
Num mundo invadido por fake news, por fanatismos de todos os gêneros, por autoritarismos que se manifestam de várias formas, a leitura e o estudo da República de Platão pode se apresentar com um bom antídoto para evitar o império da opinião que tem causado tantos estragos na condução dos rumos da sociedade e uma ameaça ao processo civilizacional.
Platão foi um dos grandes filósofos da humanidade que influenciou fortemente os pensadores ocidentais da cristandade e dos tempos modernos. Sua vasta obra continua sendo estudada não só no campo da filosofia, mas se estende para outras áreas do conhecimento como literatura, psicanálise, direito, religião, artes dentre outras.
Dentre as diversas obras escritas por Platão, uma das mais estudadas e conhecidas é A República. É nesta obra que Platão trata de um conjunto de temas do seu pensamento, dentre os quais destacam-se o papel que o filósofo deve ocupar na cidade ideal, quais são as ciências necessária para a formação do filósofo, a relação entre filosofia e política, a distinção entre opinião e ciência.
A República é composta de dez livros e um dos mais lidos e conhecidos é o livro VII, pois é nele que didaticamente o filósofo grego apresenta a alegoria da caverna e seus amplos e complexos significados. É nesta alegoria que Platão faz uma distinção entre mundo inteligível e mundo sensível, entre ciência e opinião, entre mundo das aparências e mundo das essências.
Para Platão, as ideias ou essências são percebidas unicamente pela inteligência, pelo esforço do pensamento dispensando o testemunho dos sentidos e o recurso da experiência sensível. As opiniões, por sua vez, são múltiplas e contraditórias, não possuem precisão e estabilidade, pois são fruto da experiência sensível de cada um.
A título de exemplo, podemos pegar a beleza: quando alguém emite uma opinião sobre a beleza de uma coisa (uma paisagem, um obra de arte, um rosto de homem ou de mulher), emite tal opinião porque está sensível a certos aspectos que lhe agrada e por isso diz que algo é belo. Mas o que agrada a um, pode desagradar o outro que talvez seja sensível a outros aspectos. Se a opinião é parcial, incompleta, superficial e mutável, o que hoje lhe agrada, pode desagradar em outro momento; o que agrada para uns, pode desagradar a outros.
O mesmo pode ocorrer com a justiça: uma pessoa pode acreditar estar elaborando uma opinião livre, verdadeira, honesta, pessoal sobre alguma coisa; mas na verdade, pode estar apenas baseando-se numa impressão passional sobre uma determinada situação, ou seguindo o opinião da maioria.
Em tempos de redes sociais e fake news, alguém pode estar emitindo juízos de valor sobre algo falso, acreditando estar emitindo um julgamento justo e verdadeiro sobre alguém ou sobre um acontecimento.
Para Platão, tanto a Beleza quanto a Justiça não podem estar baseadas na opinião, pois dificilmente compreenderíamos o que é Beleza ou Justiça, se nossos juízos estiverem baseados na nossa forma sensível de compreender o que é o Belo e o Justo.
Os sentidos, para Platão, constituem obstáculos ao conhecimento verdadeiro das coisas, pois retêm a compreensão no estágio das opiniões parciais e precárias, fazendo com que se torne verdadeiro o que nada mais é do que a aparência fragmentada e mutável da realidade.
Tanto a Beleza quanto a Justiça não podem ser reduzidas a opinião, pois cairíamos num relativismo infinito e dificilmente teríamos condições de compreender tanto uma quanto a outra.
Há certamente um valor pedagógico inestimável na forma como Platão coloca o problema da relação entre opinião e ciência, pois nos ajuda a perceber que não se pode basear a educação da nossas futuras gerações tendo por fundamento a opinião.
Num mundo invadido por fake news, por fanatismos de todos os gêneros, por autoritarismos que se manifestam de várias formas, a leitura e o estudo da República de Platão pode se apresentar com um bom antídoto para evitar o império da opinião que tem causado tantos estragos na condução dos rumos da sociedade e uma ameaça ao processo civilizacional.
Quando pretendemos que ocorra uma mudança em alguém, melhor seria descobrir primeiro o que precisa ser modificado em nós, pois a insatisfação com o outro pode ser uma projeção de nossa própria infelicidade.
É clássica a expressão de que ninguém muda ninguém, pois toda a mudança que se possa entender por útil e desejada acontece somente numa direção: de dentro para fora. Quando pretendemos que ocorra uma mudança em alguém, melhor seria descobrir primeiro o que precisa ser modificado em nós, pois a insatisfação com o outro pode ser uma projeção de nossa própria infelicidade.
Temos tendência a apontarmos os defeitos estendendo o dedo para fora como quem diz “Está lá, não está vendo?”. Nosso inconsciente é pródigo nisto. Na tentativa de defender o ego, ele lança mão de variados mecanismos de defesa que mais servem para aliviar uma tensão, diminuir uma ansiedade, do que propriamente defender-nos.
Somente nos daremos conta da realidade quando endereçarmos a busca ao nosso interior, um trabalho de autodescobrimento que resulte em autoconhecimento, e consequente crescimento.
Enquanto o olhar ficar voltado para o outro, é lá que pensaremos estar o problema.
O sociólogo Zygmunt Bauman ensina que uma das tantas dificuldades nos relacionamentos é aquela que se dá por fracassos na comunicação, daí surgindo o comportamento pervertido de tentar modificar o outro.
As queixas das relações entre casais que são faladas (quando não, choradas) diariamente nas sessões de psicoterapia, não ganham a verdadeira importância no cotidiano, tanto que o senso comum criou – e abreviou simplificando – o termo “De Erre” para a complexa discussão da relação.
Discutir, no sentido do termo debater (e não brigar) é a única fórmula para o entendimento e a solução de problemas conjugais. E se a discussão traz bons resultados é porque o casal chega à conscientização de que o crescimento deve ser mútuo, e isto implica necessariamente em mudanças de ambas as partes.
Dito isto, vem a pergunta: Como a psicoterapia pode auxiliar para que um relacionamento dê certo e valha o convívio quando a sessão não é feita pelo casal, mas sim, individualmente? Simples, pois para que haja vontade em mudar é imprescindível persistência, paciência e autoconfiança, e quando um integrante do casal muda, muda o outro.
Avalie o quanto você dispõe destes atributos e quanto os utiliza no seu dia a dia olhando para si. Com o apoio psicoterápico, estas qualidades necessárias para melhorar o relacionamento afetivo também, se bem empregadas, servirão para seu crescimento pessoal e para maturidade psicológica, fortalecendo-o ante os desgastes da vida.
A raiva é uma emoção necessária ao desenvolvimento da criança que precisa expressar o que sente e não fingir que tudo está bem quando ela própria não sabe como lidar com certas emoções que a frustra e causa medo.
É com alegria que trago o nosso amado poeta português Fernando Pessoa para abrilhantar o início deste meu texto com os seus versos:
“A criança que fui chora na estrada. / Deixei-a ali quando vim ser quem sou. / Mas hoje, vendo que o que sou é nada, / Quero ir buscar quem fui onde ficou.”
Que nenhuma criança seja largada em uma estrada ou cantinho de castigo. É preciso respeitar o direito de ser criança.
O ser humano é feito de sentimentos e emoções. Muitas vezes ficamos tristes e nos recolhemos num canto para chorarmos as nossas dores e mágoas, noutras explodimos e somos tomados pela raiva quebrando tudo o que está à nossa frente, chutando o pau da barraca e xingando quem nos provoca. Cada um reage do seu jeito a sua raiva. E com as crianças não é diferente.
As nossas emoções sempre nos surpreendem e nunca sabemos como vamos reagir diante de alguém que nos grita ou diante de uma vitória. É por isso que as crianças são pegas de supetão quando sentem raiva por coisas que elas não conseguem compreender e precisam de cuidados para aprenderem que a raiva é algo que precisa ser compartilhado com os pais para que não se repita de novo.
A criança tem todo o direito de sentir raiva e jogar seus brinquedos para tudo quanto é canto, se jogar no chão ou até mesmo gritar. Elas também precisam expressar as suas fúrias ou ficarão com aquelas raivas presas dentro de si que mais tarde não saberão como resolver. Toda emoção deve ser extravasada para que não vire doença.
Existem aquelas crianças quietinhas e dóceis que nunca perdem a calma, que quando sentem raiva simplesmente se recolhem e não dizem nada para quem as machucou e devemos compreendê-las também. Mas, falar sobre o que fizeram com a criança é uma tentativa de aliviar a raiva que está presa no seu pequeno espírito e não consegue ser expressa em forma de explosão.
É preciso cuidar da criança que sente dificuldades de expressar as suas emoções, pois pode combinar junto com outras em situações delicadas de ansiedade e depressão mais tarde.
Todos nós sentimos raiva alguma vez na vida. Seja porque alguém não nos compreende ou porque não fazem o que desejamos. Mechem nas nossas coisas sem que autorizemos ou nos dizem coisas desagradáveis. A raiva das crianças deve ser respeitada. Assim como as suas formas de as expressarem. Tem criança que com tudo fica zangada e isso precisa ser investigado por que pode ser alguma falta ou excesso de cuidado por parte dos pais.
Quando ficamos com raiva de alguém ou de alguma coisa só queremos ir para bem longe daquilo, por isso as crianças devem ser respeitadas e quando pedirem para ir embora de um determinado lugar onde sentiram raiva e não tiveram os seus direitos respeitados os pais devem escutá-las e atendê-las, imediatamente. É desconfortável para criança ficar fingindo que tudo está bem para quem lhe provocou uma raiva mesmo porque criança não sabe lidar bem com mentiras e fingimentos.
As crises de raiva são frequentes na infância e podem surgir por vários motivos: cansaço, fome, frustração. Elas também podem sentir raiva por falta de atenção, cuidados ou por desejarem algo que os pais não as podem dar naquele momento.
Os pais, geralmente, se culpam por essas frequentes crises na tenra idade que vai diminuindo com o passar dos anos, trazendo para si uma responsabilidade que não lhes cabe por completo, pois faz parte do desenvolvimento da criança.
Algumas crianças podem prender a respiração voluntariamente por alguns segundos e depois voltar a respirar normalmente. Tudo o que elas querem é demonstrar as suas raivas. E para alcançar isso elas vão fazer as mais diversas formas que encontrarem para demonstrar que as suas raivas são importantes e que precisam de cuidados. Muitas delas se jogam no chão e fazem aqueles escândalos de gritos em meio a um público de pessoas estranhas que logo as vão chamá-las de mimadas.
As pessoas adultas não compreendem que se pudessem fariam a mesma coisa que as crianças quando estão com raiva. A gente só tem vontade de se jogar no chão e gritar bem muito, não é mesmo? Assim são as crianças. Elas não sabem o que fazer com as suas raivas e precisam colocá-las para fora de algum jeito. Externalizá-las é a melhor forma para não adoecer de raiva.
Apesar de muitas crianças conseguirem acalmar a si mesmas em alguns minutos quando colocadas em algum lugar confortável há outras que não sabem como lidar com a raiva e ela se prolonga por mais tempo. Na maioria dos casos, concentrar-se na origem da crise de raiva somente a prolonga. Assim, é preferível redirecionar e distrair as crianças oferecendo uma atividade alternativa na qual se concentrar. É possível que a criança se beneficie ao ser fisicamente removida da situação.
A raiva é uma emoção como qualquer outra, e o que é mais importante é conversar com a criança, saber quais os gatilhos que a fazem ocorrer com mais intensidade, acalmar a criança no momento certo e ouvi-la sempre que necessário. O impulso da raiva precisa ser controlado, pois a criança muitas vezes não sabe sozinha como lidar com essa emoção que desencadeia sempre que é contrariada.
Não é errado a criança ter raiva. Os pais devem aprender a lidar com essas situações. Errado é ignorar a raiva da sua criança. Fazer de conta que ela está sendo mimada ou birrenta por demais. A raiva pode demonstrar uma falta ou excesso de alguma coisa que está desagradando a criança. A raiva é o sintoma de algo que não está indo bem e preciso ser investigado pelos pais junto com a criança.
Quando a criança sente muita raiva provoca o surgimento do hormônio chamado de cortisol que é responsável pelo estresse. Geralmente, tem um motivo ao fundo, que pode ser totalmente diferente daquele que ativou a explosão. É o que estava alimentando antes que precisa ser investigado com atenção. A criança pode apresentar raiva até mesmo para se defender de algo.
O simples fato de saber que vai ficar sozinha com uma pessoa estranha ou que lhe faz mal pode desencadear na criança uma raiva que explode com gritos e esperneios porque é assim que ela sabe explodir a sua emoção. Os pais sem saberem que essa pessoa traz mal para a criança acabam achando que ela está sendo mimada por demais quando na verdade deveriam conversar com ela e procurar saber o motivo que a leva a ter tanta raiva de ficar ao lado daquela pessoa.
Durante a crise de raiva, a capacidade de compreensão fica muito prejudicada. Aí, qualquer explicação, sermão ou censura coloca ainda “mais lenha na fogueira”. Mas o que fazer durante a explosão? Como passar por esse momento sem reprimir as emoções?
Não adianta querer castigar a criança no momento de raiva. O ideal é que esperemos ela se acalmar para só depois conversarmos com ela sem julgamentos ou ameaças. A criança precisa o tempo todo saber que pode confiar em nós.
Uma coisa que podemos combinar com a criança é pedir para que ela extravase a sua raiva dentro de limites, ou seja, ela pode dar socos num pufe, numa almofada, numa poltrona confortável, desde que não se machuque e nem machuque ninguém. Outra forma de mostrar à criança que você se importa com as suas emoções é validar o que ela sente se permitindo conversar francamente e até mesmo dizer que entende o que ela está sentindo e tentar acalmá-la com carinho e cuidado.
Não é colocando a criança de castigo que vamos resolver a sua raiva. Ao contrário, isso provoca mais raiva nela que será desencadeada a qualquer momento ou que a levará a custar mais ainda a se curar da sua raiva.
Se a criança for acolhida com carinho e uma boa conversa essa raiva logo passará, mas se ao invés disso ela for abandonada num canto de parede, for tirado os seus brinquedos preferidos ou for impedida de fazer a sua alimentação isso só trará mais desconforto para ela.
Mudar o foco da raiva da criança é uma boa sugestão para que ela esqueça aquela emoção mais rapidamente. Pode ser um momento para se sentar no tapete da sala e respirar devagarzinho, ficar em silêncio total ouvindo os sons da rua ou da natureza. Ouvir uma música instrumental de ninar, brincar com um brinquedo que ajuda a acalmar a raiva, como massinhas de modelar, desenhar, pintar ou colar figuras. Se a raiva ainda continuar a criança pode ser convidada a fazer uma atividade física como nadar, correr, pular corda, brincar de amarelinha.
Sentar-se com a criança e perguntar se ela quer verdadeiramente dizer o que está sentindo para você, de repente falar sobre os seus sentimentos pode ser uma tarefa terapêutica para a criança. Ela vai se sentir aliviada falando das suas dores, medos e frustrações. Os pais podem pedir para elas falarem o que acham deles, do que fazem por ela, da forma como cuidam dela e do que ela gostaria que eles fizessem mais para que ela se sentisse feliz e nunca tivesse raiva.
Se a criança ainda estiver com muita raiva e não quiser falar neste momento, diga para ela que tudo bem, você vai aguardar o momento da raiva passar e dela querer conversar. Mostre para ela que o importante é o seu bem-estar, que você se preocupa com a felicidade e saúde dela. Deixe-a perceber o quanto é importante para você saber o motivo da raiva na tentativa de ajudá-la a nunca mais passar por aquela emoção tão fortemente.
Aqui vem uma dica valiosa para os pais de como lidar com as suas próprias raivas, vergonhas e decepções em relação as suas crianças quando fazem escândalos de raiva em público. Primeiro, aprender a lidar com a sua agressividade, você pode não perceber, mas muitas vezes um grito, uma ameaça, um pegar mais forte no braço da criança podem ser gestos agressivos que machucam não somente o corpo, mas o espírito do seu pequenino. Se for o caso se afaste por alguns minutos da situação, respire fundo, se tranquilize e peça para alguém da sua confiança ficar com a criança enquanto a sua raiva passa.
Alguns estudos mostram que, a partir dos 4 anos de idade, a criança tende a diminuir as crises de raiva. Se continuarem muito frequentes, pode ser um indicativo de que algo não vai tão bem. É difícil especular uma causa e vale avaliar o entorno das relações, na escola e na família.
Algumas condições neurológicas também podem provocar maior irritabilidade. É o caso do TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), do TOC (transtorno obsessivo compulsivo), da depressão infantil, da síndrome de Tourette, do TOD (transtorno opositor desafiador) e de autismo. O importante é tentar não tirar conclusões precipitadas. Todo e qualquer diagnóstico precisa ser dado por um profissional da saúde, que pode acompanhar o processo de pertinho e ajudar com mais eficácia.
Na inteligência emocional, existem algumas técnicas que ensinam aos pequenos a lidarem melhor com as suas emoções. O diálogo é sempre muito importante. Ele nos ajuda a colocar para fora o que sentimos com alguém que confiamos. Incentive a fala da criança.
Mostre que o diálogo é a base de tudo. Reconhecer os nossos sentimentos e emoções é importante até mesmo para o nosso crescimento e para quando acontecer novamente algo que nos deixou muito aborrecidos uma vez, que não nos aborreça mais com tanta força. Afinal, errar é humano, mas devemos aprender com os nossos erros.
Reconheça as qualidades do seu filho e incentive que ele faça o mesmo: adquirir esse hábito ajuda a aumentar a autoestima, além de estimular a criança a reconhecer seus defeitos e trabalhá-los de forma saudável. Evite cobranças excessivas, para a criança não se sentir pressionada: isso pode afetar um pouco da autoestima também. É claro que é preciso impor limites e regras, mas o tom com que isso é passado faz toda a diferença.
Para esclarecer mais uma vez que os gritos, o castigo e a ameaça de bater na criança não resolvem a raiva, mas só desencadeiam mais medo e angústia e que é preciso evitar esse tipo de comportamento para educar a sua criança. Não é como um tirano que você educará a sua criança para o bem-viver. Saiba que tudo começa a partir de você, da sua compreensão e do seu jeito de lidar com os diversos momentos da sua criança.
Permita que a sua criança brinque mais e possa espalhar os brinquedos no meio da sala durante um horário que tem pouco movimento, que ela possa fazer o que gosta. Claro que tudo isso com limites. O pediatra Donald Woods Winnicott criou um termo bastante importante para o cuidado com os bebês que trago para as crianças de todas as idades chamado de holding.
O holding segundo Winnicott envolve um padrão empático e uma rotina nos cuidados do bebê e se expressa como um conjunto de comportamentos afetivos relacionados ao alimentar, limpar, proteger, uma vez que o bebê precisa estar fisicamente seguro e psicologicamente acolhido. Assim como os bebês são protegidos nos braços dos pais, devem ser também as crianças que só cresceram um pouco mais.
No holding de Winnicott a proteção e o cuidado deve ser uma permanente vigília para com o bebê e essa vigília eu peço que os pais a mantenham com suas crianças.
Afinal, a raiva é uma emoção necessária ao desenvolvimento da criança que precisa expressar o que sente e não fingir que tudo está bem quando ela própria não sabe como lidar com certas emoções que a frustra e causa medo. A criança pode e deve sentir raiva quando algo lhe desagradar ou lhe for negado e os pais precisam estar preparados para saberem o que fazer nestes momentos.
Abro um pequeno parêntese para pedir aos pais que não castiguem os seus filhos quando eles sentirem uma raiva prolongada, como também não os gritem ou os ameacem. Eu tenho tanto medo de pais que fazem isso com as suas crianças porque nas minhas andanças pelas cidades do nosso país já ouvi muitas crianças receberem gritos, serem xingadas e jogadas brutalmente em cantos de paredes porque simplesmente ficaram com raiva. Não façam isso com as suas crianças, eu lhes peço.
Para finalizar, deixo vocês com as palavras de Winnicott que já citei acima, mas para enfatizar o quanto o cuidado com os nossos pequenos deve ser sempre colocado em primeiro lugar, assim ele nos diz “quando o ato de segurar o bebê é perfeito (e de um modo geral assim é, já que as mães sabem exatamente como fazê-lo), o bebê pode adquirir confiança até mesmo no relacionamento ao vivo, e pode não integrar-se enquanto está sendo seguro.
Esta é a experiência mais enriquecedora. Freqüentemente, no entanto, o ato de segurar o bebê é irregular, e pode até mesmo ser desperdiçado pela ansiedade (o controle exagerado da mãe para não deixar o bebê cair) ou pela angústia (a mãe que treme, a pele quente, um coração batendo com muita força, etc.), casos em que o bebê não pode dar-se ao luxo de relaxar. O relaxamento acontece então, nestes casos, apenas por pura exaustão. Aqui, o berço ou a cama oferecem uma alternativa muito bem-vinda.”
Que toda criança continue a ser protegida e ninada nos braços dos pais com esse cuidado que Winnicott nos descreve logo acima por que amar uma criança é compreendê-la em todos os momentos da sua vida passando pelas emoções, sentimentos e curiosidades de quem cresce observando um mundo que todos os dias tem uma coisa nova para nos mostrar.
Esta publicação é uma homenagem a uma amiga, lutadora social, mãe dedicada à sua família, militante de direitos humanos, uma das primeiras mulheres formadas em Direito e que atuou no exercício da advocacia por mais de 30 anos, na cidade de Passo Fundo, Maria Sirlei Flor Vieira e que nos deixou, aos 64 anos, nos últimos dias de outubro de 2022, entregando a vida na luta contra um câncer.
Vamos falar um pouco das histórias e das lutas com as quais construímos solidariedade, amizade e parceria, através das lutas por um mundo e uma sociedade mais humanos, por mais solidariedade, por mais justiça e por mais amor. Estas últimas lutas, talvez, hoje, mais atuais do que nunca.
Maria Sirlei Flor Vieira deu entrevista ao site, através da jornalista Márcia Machado. Márcia Machado assim apresentou a matéria, há 06 anos.
Nos despedimos de 2016 com a última entrevista da Série “Profissões Educadoras” falando sobre direitos, quebra de paradigmas, lutas, conquistas e garantias. Nossa entrevistada, que no nome traz flor, na vida se destaca pela luta em defesa dos direitos sociais: a advogada Maria Sirlei Flor Vieira, pós-graduada em Direito do Trabalho e em Processo do Trabalho. Ela advogou e assessorou movimentos sociais há mais de 30 anos. Maria Sirlei lutou pelo direito das pessoas, numa época em que defender direitos era considerado um ato subversivo, quebrando paradigmas, fundou a Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF).
Pois é. Sirlei, junto com outros amigos, militantes e entidades da época, com muita coragem, fé e ousadia, resolveu empreender a organização da CDHPF (Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo), há 38 anos atrás. Muitos destes que a ajudaram já partiram, assim como ela parte do meio de nós, hoje. Mas ficam como legado, a coragem e a ousadia de construir uma Comissão de Direitos Humanos justamente numa cidade que, até hoje, é conservadora e, muitas vezes, avessa aos direitos humanos e sociais.
Vejamos o contexto daquela época:
Neste período de início dos anos 80, surgem em todo o país iniciativas em vista da reafirmação dos direitos humanos. Organizam-se entidades com o objetivo de lutar pelos direitos humanos, organizar, conscientizar e assessorar grupos e pessoas. Inserido nesse processo mais geral de mobilização e organização da sociedade em torno da luta pelos direitos humanos, pela reabertura política, pelo fim da repressão e pela construção de uma sociedade mais justa que surge a CDHPF. Ela é fruto desse processo mais amplo que mobilizou a sociedade brasileira, mas também é fruto da iniciativa e da vontade de pessoas comprometidas e imbuídas de objetivos comuns e que estavam dispostas a contribuir e realizar, de forma mais consistente, os anseios e demandas da sociedade. Era o momento da redemocratização. Logo no calor da luta pelas “Diretas Já!
Segundo a Ata de fundação
Aos cinco dias do mês de junho de um mil novecentos e oitenta e quatro, às dezoito horas, reuniu-se nos fundos da Catedral Nossa Senhora Aparecida, um grupo de cidadãos passofundenses para fundar a Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo.
A partir de grupos da igreja católica e de grupos de juventude e, a partir da sua formatura, ocorreu esta importante decisão.
“A CDHPF em Passo Fundo e no Brasil, tinha a função de denunciar as disparidades e os abusos de poder, abuso contra as pessoas. Foi então, que a gente começou um trabalho de divulgação dos direitos humanos”, falou na sua entrevista.
“Qualquer pessoa que escrevesse sobre direitos das pessoas era considerada subversivo, e nessa época já havia abertura política. Isso só mudou a partir da nova Constituição em 1988 com a garantia de direitos. Hoje, a Comissão é mais educativa e menos de luta”.
Disse ainda:
“Hoje não cabem mais ditadores, pois levaria a uma guerra civil. Cabe a CDHPF e, acho que será uma luta dela, esclarecer à população sobre essa diferença entre democracia e ditadura. Se a democracia não está sendo boa para as pessoas, a ditadura é pior, porque na ditadura ninguém tem direitos garantidos. É preciso que as pessoas façam valer os direitos conquistados pela Constituição de 1988, luta dos movimentos sociais que ficaram na clandestinidade por mais de 20 anos”.
Sobre sua profissão, escreveu:
Márcia Machado: Quais os desafios da sua profissão? Maria Sirlei respondeu: A nossa profissão de advogado é muito individualista, o maior problema é a individualização. Eu me preocupo com o meu problema e não com o do meu colega, nós não lutamos por direitos iguais dentro da nossa profissão. Existem grupos de advogados ligados a movimentos sociais, mas não grupos que defendam os trabalhadores da justiça, que defendam melhores condições de trabalho. Existe uma Ordem de Advogados (OAB), mas não uma associação de advogados. Nós somos os buscadores da justiça, os buscadores do direito. Sem advogados, não existe justiça!
MARIA SIRLEI FLOR VIEIRA, PRESENTE!
Amiga Sirlei!
“O que mais me marcou neste tempo de convivência com a Dra. Maria Sirlei Flor Vieira foi a garra com a qual defendia as pessoas e seus direitos! Todo o processo era uma causa e, em todos dava o seu melhor. Defendeu a todos com extrema dedicação, mas dedicava especial atenção quando estavam envolvidos direitos dos menos favorecidos, das mulheres, dos doentes, das crianças. Nunca se afastou da luta pela construção dos “direitos humanos”. Fez da advocacia missão de vida. Obrigado por tudo o que nos ensinou! Fica o exemplo de uma vida, de trabalho, de solidariedade! Maria Sirlei, presente! (Rosiclér Terezinha Dalchiavon, advogada).
“Nesse momento do meu último adeus a você, o faço com o coração apertado, tudo que faço neste momento é agradecer você, o presente de sua amizade de anos (1983-2018), tempos de minha vivência em Passo Fundo. Agradeço pela oportunidade de ter conhecido alguém tão especial como você, agradeço pelos momentos lindos que tivemos nas várias frentes de luta em defesa da vida, principalmente das mulheres, agradeço pela sua bondade e pela sua afeição nos momentos que mais precisei. A notícia de sua Pascoa mexeu demais comigo, mas guardarei você no meu coração, pela vida inteira.
Continuarei lembrando seu exemplo e empenho em defesa dos Direitos Humanos, numa determinação ímpar. Lembro de suas convicções fortes e de sua alegria de viver, sempre expressadas no seu doce sorriso. Amiga Sirlei, a morte nos lembra como a vida é um sopro, como somos tão pequenos e frágeis e como é rápido perdermos aquelas pessoas que amamos.
Sei que será difícil aprender a conviver com sua ausência, porém, a morte é uma sabia conclusão de vida. Continuarei dando meu melhor, correndo atrás dos meus projetos e desfrutando de cada momento de nossa amizade. É meu compromisso com você, até o nosso encontro definitivo no Reino de Deus”. Com amizade, Pe. André da Costa, msf. (Caldas Novas, 28 de outubro de 2022)
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“Aprendi a fazer atuação em direitos humanos com Sirlei. Chegue muito jovem à CDHPF, alguns anos depois de sua fundação. Com ela entendi que o mais importante é ouvir as vítimas, compreender profundamente suas dores e seus anseios. Uma escuta amorosa e cuidadosa. Esta escuta é que nos leva a analisar as situações e a encontrar os melhores caminhos para proteger as pessoas e para denunciar as violações. Sirlei marcou presença na vida de muitos/as da CDHPF. Obrigado pela tua colaboração e pela tua proximidade sempre cuidadosa. Seguiremos levando teu legado. Em tua memória e por ela seguiremos em luta para avançar na realização dos direitos humanos. Sirlei, presente, agora e sempre!” (Paulo César Carbonari, militante de direitos humanos de Passo Fundo e do Brasil)
Dura realidade, há uma contradição persistente que merece redobrada atenção. Organizados pela FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, os dados a seguir, com base no ano de 2020, longe de apresentar alguma novidade, são alarmantes e nos deixam perplexos: enquanto 811 milhões de pessoas passam fome e 132 milhões sofrem com as ameaças da insegurança alimentar, 14% da produção alimentar (para o caso de frutas e verduras, perde-se mais de 20%) mundial – equivalente a 400 bilhões de dólares – são desperdiçados todos os anos entre a colheita e a venda no varejo.
Apenas três anos atrás, em 2019, 3 bilhões de pessoas (quase metade da população mundial) não podiam pagar por uma dieta saudável. Em termos gerais, desde 2014, ainda que lentamente, tem aumentado o número de pessoas afetadas pela fome.
Ainda assim, a escala de perdas de alimentos, para não perder de vista esse odioso problema, deixa qualquer um entre perplexo e estarrecido, uma vez que, numa conta geral, representa inaceitáveis 931 milhões de toneladas de comida (o equivalente a 321 mil Maracanãs) que vão parar no lixo. O problema é que isso, falando o óbvio, se repete todos os anos.
O Índice Global do Desperdício de Alimentos da ONU, de 2021, com base de dados apurados em 2019, estima em 121 quilos o desperdício de comida per capita anual. No todo, são 17% da produção total de alimentos do mundo que terminam na lata de lixo, ou 23 milhões de caminhões de 40 toneladas totalmente carregados de alimentos. Para um comparativo ainda mais assustador, se alinhados, esses caminhões dariam a volta na Terra sete vezes.
No caso brasileiro, e isso também não é nenhuma novidade, somos um dos dez países que mais desperdiçam alimentos em todo o mundo: 30% da nossa produção é desperdiçada na fase pós-colheita (ou porque estão fora do prazo de validade ou porque apresentam aparência fora do padrão estabelecido pela legislação do Ministério da Agricultura).
Mas há ainda outro detalhe não menos estarrecedor a ser mencionado.
Seguindo de perto a perda final de alimentos, num planeta já deteriorado por tantos desajustes ecológicos, há o desperdício sequencial de vários recursos utilizados na produção alimentar. Quer dizer, uso da terra, enorme volume de água, energia e trabalho humano que jamais retornarão à cadeia produtiva. Portanto, o impacto ambiental e a extensão dos problemas, bem sabemos, são enormes e aumentam a preocupação com a questão ecológica que afeta – e muito – nosso lar coletivo.
De toda maneira, sem abandonar a questão climática, tem mais um problema de igual importância, se não maior: A FAO/ONU estima que entre 8% e 10% das emissões globais de gases de efeito estufa (notadamente óxido nitroso e metano) estão associados a alimentos que não são consumidos.
De perto ou de longe, igualmente estarrecedor aqui, para além de todas as fortes evidências mostradas, é se dar conta que, se fosse um país, o desperdício de alimentos seria o terceiro maior emissor do planeta, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.
Inútil dizer, esse problema em particular, muito mais que um dilema cotidiano, arrasta consigo a possibilidade de se buscar alternativas plausíveis, tanto que o programa ambiental da ONU tem como meta reduzir pela metade o desperdício global de alimentos até 2030. Ainda assim, é preciso sempre identificar os pontos mais nebulosos que contribuem para ameaçar a estabilidade ecológica.
Nessa mesma direção, infelizmente, longe da prática de consumo consciente (bandeira fundamental de nosso tempo que precisamos levantar a todo o momento), a maior parte do desperdício de alimentos, 61%, vem das famílias. 13% vem do comércio (supermercados e pequenos estabelecimentos) e 26% vêm do setor de serviços, por exemplo, restaurantes e hotéis.
Autores:
Marcus Eduardo de Oliveira, economista (1994), pós-graduado em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1995) e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.
Gilberto Natalini, médico cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017), e candidato à Governador do Estado de São Paulo, pelo Partido Verde, em 2014.
Eduardo Jorge, médico sanitarista, por duas vezes foi secretário municipal de saúde e secretario do meio ambiente. Foi candidato a presidente da República em 2014.
Sempre falamos com alguém. Mesmo que nem sempre saibamos com quem estamos a falar. Viver é conversar. Com alguém. Alguém que está aqui ou que já se foi.
Há, creio, uns dez anos, fui procurado por uma mulher de mais de noventa anos; quase cem, na verdade. Ela desejava uma medicação que a fizesse, quando assim decidisse, dormir e não acordar mais. Não estava com depressão. Temia perder a autonomia que ainda tinha, veio sozinha até mim. Mais do que isso: as pessoas com as quais tinha assuntos em comum não estavam mais aqui.
Por mais que estivesse rodeada de familiares, sentia-se só, a não ser quando, em imaginação, conversava com o marido, com um irmão, uma amiga, um filho – todos já falecidos.
Dias depois, lembro-me dela ao sentar-me em um banco da Praça Tamandaré e ver, dali de onde estava, um velho a caminhar lentamente. Parecia-se com o doutor J. Tive a impressão de que falava sozinho.
De imediato, me veio à mente uma crônica de Rubem Braga sobre um velho que falava sozinho… Devia estar conversando com algum amigo morto. A certa altura ficou quieto, com o ar contrariado de quem está ouvindo alguma coisa de que não gosta. Quem sabe o morto estava lhe dizendo poucas, porém boas?
Imagino que o doutor J. continuará a cruzar a calçada da Praça Tamandaré a conversar com seus amigos mortos. Provavelmente, sente-se mais próximo deles do que dos jovens vivos que encontra em suas caminhadas. Quem vai lhe escutar quando contar que foi trabalhar logo que se formou numa pequena cidade e encontrou lá uma epidemia de tifo? Dos dez doentes, salvaram-se cinco, e, destes, dois tornaram-se amigos para sempre. Quem vai lhe ouvir com prazer? Seu neto adolescente ou os amigos da sua geração, que já se foram?
E se as vozes com os as quais o doutor J. conversa forem se apagando? Como vai ele continuar a viver se viver é sempre o diálogo com alguém?
Quando estamos de mal com uma pessoa, por questões políticas, por exemplo, a “conversa mantida em pensamento” se faz em tom áspero. Mas a gente pode perder nas urnas e, mesmo assim, pessoalmente ter a vitória mental de parar de “conversar” interiormente com a pessoa ou as pessoas nossas adversárias. Sem conversa não há vida, no caso, entre nós e elas.
O badalo dos sinos da igreja e os gritos festivos das crianças que, com entusiasmo desenfreado correm pela praça, sempre conversando – as crianças estão sempre conversando -, me fazem exclamar: “É bom viver!”.
O fato é que é mesmo bom viver. Dou-me conta de que estou a falar sozinho. Sozinho não! Sempre falamos com alguém. Mesmo que nem sempre saibamos com quem estamos a falar. Viver é conversar. Com alguém. Alguém que está aqui ou que já se foi.
A atitude mais coerente, no momento, é tranquilizar a vida em torno de nós e dos outros. Seguir adiante, avante, cumprindo seus deveres, certos de que a felicidade verdadeira significa paz em nossa consciência.
“Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” Jesus – M. 5:9
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou, não vo-la dou como o mundo a dá…” Jesus – João, 14:27
A paz é dinâmica, gloriosa, não é a paz do ócio, do descanso. Ela ajuda a pessoa a desenvolver a autoconsciência e se tornar solidária e fraterna.
A voz silenciosa da pessoa pacífica, que não revida a agressão, não discute e nem se envolve em conflitos desnecessários, conclama com mais vigor a verdade do que a gritaria inconsequente dos equivocados, muitas vezes agressivos e presunçosos. É uma forma de agir de fulgurante coragem. É trabalho íntimo de abnegação em favor do próximo.
A compreensão da ignorância do outro e o não revidar o ataque, a grosseria, causam surpresa e provocam reflexão na pessoa equivocada. Ter paciência, dar tempo ao tempo, que no momento certo a verdade surge soberana. A paz no mundo é dom de Deus.
A razão precisa romper a noite da ignorância que ainda paira sobre muitos de nós, pois não superamos o processo de transição entre o mundo civilizado e a barbárie. A verdadeira paz é o serviço do bem, da caridade, do esclarecimento em favor da coletividade.
A atitude mais coerente, no momento, é tranquilizar a vida em torno de nós e dos outros. Seguir adiante, avante, cumprindo seus deveres, certos de que a felicidade verdadeira significa paz em nossa consciência. Evitar a divulgação da guerra nervosa, da aflição, da mentira. A propaganda da mentira (fake news), quando for repetida constantemente na cabeça do incauto, torna-se verdade.
Precisamos compreender que paciência, serenidade, calma, não significam aprovação do desequilíbrio, do abuso, da delinquência nem conivência com o erro deliberado mas a capacidade de verificar as dificuldades e buscar, sem alarde e irritação, a solução dos problemas, a transposição dos obstáculos, onde a verdade foi omitida e a perturbação se estabeleceu.
O momento de crise é o tempo de luta, do bom combate, da busca da harmonia.
Considerando o momento atual, a pessoa pacífica enfrenta muitas lutas por causa da agressividade e violência das paixões de muitos iludidos que se comprazem nestas propostas equivocadas e que servem a interesses mesquinhos de grupos específicos, porém ela está fortalecida e confia no triunfo do bem.
A coragem da fé lhe dá resistência para não recuar em sua posição. Poderá até sofrer as consequências da sua opção mas não vai se submeter nem revidar as agressões.
Segundo a mentora Joanna de Angelis, no livro Diretrizes para o Êxito, de Divaldo Pereira Franco, página 38:
“A sua resistência pacífica é silenciosa e resoluta, facultando o estabelecimento de operosa força do poder do amor que aquece as vidas, dá-lhes sentido e apresenta-lhes rumo feliz que deve ser percorrido. A pessoa de paz não é tímida, embora comedida, porque sempre se encontra onde sua presença se faz necessária, emulando a perseverança no empreendimento libertador. Viver em paz de espírito, não obstante a agitação, os enfrentamentos, a diversidade dos acontecimentos agressivos, é a meta. Não permitir que os transtornos de fora perturbem o equilíbrio interno”.
A palavra PAZ é portadora de energia muito positiva, a audição deste som promove harmonia íntima. Deveríamos verbalizá-la e escrevê-la mais seguidamente buscando introjetá-la em nós e nos outros. Não é por menos que a saudação de Jesus era sempre: “A paz seja convosco”!