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Professor chorou! As professoras choraram também!

Ama-se a profissão, mas não há cartão-amor para cumprir com as despesas básicas de sobrevivência.

Dia 23 de Março de 2023. Dia de intenso calor. 10 horas. Em primeira chamada, iniciara-se a Assembleia deliberativa da categoria de professores municipais da cidade de Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul. Sul do Brasil.

O evento não fora apenas um encontro reivindicatório da data base, índice de reposição salarial, pedido de pagamento da lei do piso nacional dos professores, foi, entretanto, um grito coletivo por respeito àqueles cuja amorosidade inerente à profissão é confundida com saldo bancário.

Sim, ama-se a profissão, mas não há cartão-amor para cumprir com as despesas básicas de sobrevivência.

Assembleia de professores da educação básica! Básica. Essa mesma educação que é bandeira em toda eleição dos gestores públicos, do executivo, do legislativo…uma vez eleitos, pouquíssimos lembram do que escreveram ou disseram nos palanques eleitoreiros em defesa da escola pública e de seus principais agentes: os professores. E toda data básica, professores vão de pires na mão pedir o que lhes cabe por direito: O BÁSICO.

O que de fato seria o básico para os educadores?

Além do essencial para viver, muito precisa o educador para permanecer na sua profissão. Primeiramente, o básico respeito.

O sentimento de colega aposentada diante do desrespeito de quem muito contribuiu na formação básica dos cidadãos desse chão: participar de assembleia na condição de aposentada, foi uma experiência triste.

O olhar marejava, o coração doía e o futuro…ah, para esse, as circunstâncias apontavam -me que a alegria que espalhei, os afetos que conquistei, as horas que trabalhei em casa pela minha profissão, os estudos que fiz, os projetos, os quais participei…fizeram de mim, para os governantes, um número descartável, à espera da lucrativa morte na folha de pagamento. Um desprezo triste, humilhante, injusto e indigno.

Os relatos de colegas sobre desrespeito da profissão foram impactantes. Doentes, necessitam de atestado médico. Estão precarizando ainda mais o salário usando o vale alimentação. Justamente porque o vale alimentação terá maior reposição do que o salário base. Forma de castigo aliado à pedagogia de cabresto que se está enfrentando. 

Com mais de trezentos professores presentes, ativos e inativos, a escuta “materializava” a empatia e a sororidade.

A palavra “soror” quer dizer irmã. Diante do relato de um irmão professor, interrompido pelas lágrimas, várias vezes, a sororidade ficou uma palavra de dois gêneros. Choramos. Todos: professor e professora.

Desse choro veio a força encorajadora de dizer não à proposta salarial do patrão. Todavia, somado a não aprovação do índice de reposição salarial que não contempla o piso nacional, veio o grito de basta de desrespeito!

Ocorrera, nesse dia, não mais uma assembleia, mas uma assembleia da coragem!

Talvez não nos paguem o que nos devem. Talvez ainda o choro seja inevitável, porém a sensibilidade de ser professora e professor é, e sempre será, munição para lutar pelo básico, que é viver numa sociedade justa e fraterna.

Apesar de…a luta continua!

FONTE:https://www.ditosenaoditos.com.br/professor-chorou-as-professoras-choraram-tambem/

Autora: Marta Borba, professora aposentada da rede municipal de Passo Fundo.

Pretexto para falar de cavalos

Bom ladrão é aquele que rouba por necessidade. /Mau ladrão é o “peixe grande”. /Ou seja, aquele que rouba para sustentar seus luxos. (Padre Antônio Vieira)

Penso que a maioria das pessoas têm fascinação por cães. Outras por gatos, pássaros, cavalos, peixes. Prefiro cavalos, pois são paradigmas de força, beleza, virilidade e elegância. Já foram fundamentais aos transportes, guerras, jogos e instrumentos para conquistas amorosas. Hoje nem tanto, pois há outras formas de corcéis.  

Para transportar sementes aos moinhos de trigo, centeio e arroz, meu pai, adquiriu um cavalo manso para crianças e rápido o suficiente para ganhar algumas corridas entre a meninada da Vila das Borboletas. Além do mais foi barato o suficiente para suportar seu bolso. O nome dele era Petiço. Quando vencia uma corrida, era a glória. Porém, quando ia para os moinhos, envergonhava o pequeno Dom Quixote, simplesmente porque empacava nos piores momentos.

Explico. O defeito foi herdado pela mania do seu antigo dono que, conhecendo todo povoado, parava o Petiço para uma prosa de sete minutos com todos os que passavam no seu caminho. Não tinha jeito, pois o homem e seu cavalo paravam e pronto. Quando uma jovem bonita vinha, de longe ele diminuía o ritmo até parar. Sem ainda saber como falar com moça bonita, às vezes ouvia delas:

– Que piá bobo! Vai te criar!

Depois de sete minutos, descansados, cavalo e cavaleiro reiniciavam a pequena viagem. Podem não acreditar, parava até quando passava por um cachorro, boi, outro cavalo. Soube mais tarde que o Valde, o antigo dono, era um fervoroso devoto de São Francisco.

Quando ia aos moinhos os motivos do atraso sempre eram atribuídos ao pobre Petiço. Sempre algumas paradinhas para um banho nos rios Amandaú e Laranjeira. Um sorvete na vila. Não me importava se fazia calor ou frio, porque sorvete é sempre gostoso! Ah, como sorvete e Petiço combinavam!  O Petiço só não falava porque era cavalo, mas que gostava de ouvir prosas era um fato.

Outro cavalo que conheci na forma de livro, foi o famoso Cavalo de Troia. Dentro dele cabia um pequeno batalhão de soldados, inclusive, o Ulisses, o Odisseu, que lembra o título do livro ODISSEIA escrito pelo grego Homero. Na verdade, era um imenso cavalo de madeira edificado para ser dado de presente aos inimigos troianos. Por isso a expressão “presente grego”.

A guerra já durara 10 anos, sendo que os gregos/espartanos não conseguiam ultrapassar as instransponíveis muralhas de Troia. Pensando estrategicamente, eles, os gregos, simulam um acordo de paz, ofertando o “Cavalo de Troia” como símbolo de um “armistício” entre os dois reinos. A encrenca envolvia uma linda mulher, Helena, sequestrada por Páris, príncipe de Troia.

Aceito o presente grego edificado sobre 04 rodas, sem revistá-lo na Aduana, o grande e pesado Cavalo de Troia foi adentrado com facilidade na cidade inimiga. À noite, enquanto os troianos dormiam, o recheado e oculto batalhão de soldados, armados até os dentes, toma a cidade de assalto. A cidade foi destruída, sendo que finalmente o Rei Menelau resgata Helena, a mulher mais linda do mundo.

Outra história de cavalo ainda não terminada é a do Cavalo de Guarulhos. Vindo da Arábia Saudita em uma caixa de presentes a uma Primeira Dama do Brasil de Antão, nas mãos de um Ministro amigo do Presidente de Antão, deveria ir direto a Troia, digo, a Brasília. Ele, ao contrário do Cavalo de Troia, foi revistado ao ingressar no Aeroporto Internacional de Guarulhos e retido na Aduana. Nem Almirante e outros pau-mandados de Brasília conseguiram retirar o presente vindo das arábias. Devidamente desencaixotado, lá estava um cavalinho de ouro com três pernas decepadas. Dentro dele não havia soldados. Mas joias de diamante do mais alto quilate com valor estimado de R$ 16,5 milhões na moeda atual. Se fosse presente do governo saudita ao governo brasileiro deveria ser registrado na Aduana como tal. Porém, ninguém da comitiva governamental seguiu o protocolo oficial.

Algumas perguntas ainda não foram serão elucidadas: por quais motivos o registro não foi feito? Por que joias de tão alto valor?

Existem razões de Estado à doação de joias de forma tão obscura.  Shakespeare já escrevera: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.   

–  Mertha! Diria meu vô paterno.   

Bom foi meu Petiço que parava no meio do caminho para ouvir as conversas entre o povo da Vila das Borboletas! O que mais me admirava era a atitude dele em parar por mais tempo quando as passantes eram mulheres. Nada falava. Olhava, sacodia as orelhas e se agitava todo com o perfume daquelas lindas mulheres. Aliás, as mulheres são lindas em todos os lugares e situações.

Naquela época de menino, eu já sentia as indomáveis energias de Teseu! Um tempo depois também foi entender que “sem tesão não há solução”. E isso vale para todas as coisas.

Sobre o Cavalo de Troia uma ensinagem: fica de olho em quem já te aprontou uma. Sempre um pé atrás! As conspirações estão mais vivas do que nunca, leitor(a)!   

Enfim, com exceção do Petiço, o Cavalo de Troia e o Cavalo de Guarulhos foram instrumentos para saquear nações enquanto o povo dormia o sono dos justos. Restam elogios à imprensa e à literatura pela busca da verdade, mesmo com seu jeito “gauche” de serem tão múltiplas na revelação da verdade.

Autor: Eládio V. Weschenfelder

Sua senhoria, o dinheiro!

Seja para qual finalidade for, nisso reside o poder escondido do dinheiro. Ele pode comprar o necessário, o supérfluo, o lícito e até aquilo que não se imagina.

Na padaria, meu amigo Pedro, em conversa sobre a vida cotidiana, proferiu uma frase emblemática: “O dinheiro é um péssimo patrão e um excelente escravo”. Aquela máxima formulada pelo filósofo inglês Francis Bacon não me saiu da cabeça. E fui percebendo que se trata de uma chave de leitura que pode ser utilizada na macroeconomia, na microeconomia, na economia familiar, na economia pessoal, etc. Pode servir de parâmetro para analisar a política, as relações sociais e também muitas psicoses individuais e/ou coletivas.

O dinheiro detém poder objetivo/material, mas, ao mesmo tempo, subjetivo/simbólico. E, na maioria das vezes, esses poderes não são equivalentes entre si.

Alguém pode possuir pouco dinheiro e absolutizar o seu valor. De outra parte, pode acontecer que alguém possua grande quantidade de bens (trocáveis por dinheiro) e não se apegue de forma absoluta ou doentia a eles. Entretanto, isso parece ser mais raro. 

O papel que o dinheiro exerce sobre a vida das pessoas coloca em xeque questões de ordem ética. No alvorecer do pensamento filosófico, Aristóteles afirmou que “o dinheiro é a medida de todas as coisas”. E pode sê-lo para o bem ou para o mal.

Ainda de forma embrionária, nas obras Ética a Nicômaco e A Política ele aponta que o dinheiro assume três funções: como meio de troca, como medida de valor e como reserva de valor. Tais conceitos serviram de base para múltiplas teorias complexas sobre esse senhor chamado dinheiro, que, de algum modo, nos governa ao longo da história.

Acerca do dinheiro e, por extensão, sobre todos os bens e riquezas, pairam diversas exortações de cunho religioso. Nas palavras de Jesus, “ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). O apóstolo Paulo, por sua vez, sentenciou: “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (ITm 6,10). Em geral, as religiões concordam que o dinheiro não é um mal em si, mas a forma de obtê-lo e de usá-lo pode levar à corrupção da alma humana.

Na sociedade de mercado, quem não tem dinheiro fica privado de produtos e serviços essenciais.

O dinheiro (no caso, a falta dele), não raras vezes, se configura como um determinante da escravidão, da opressão, da exclusão, da fome e da miséria. No limite, impõe a desumanização. De outra parte, a tomada do dinheiro como um patrão com poderes absolutos, mantém os impérios, a ganância, o lucro e a concentração da propriedade privada. Sobre essa máxima se afirma o capitalismo.

Enquanto isso, o diálogo seguia na padaria. Não demorou a que surgisse um rapaz. De pronto, disse ter fome, o que segue sendo uma grande chaga social. Ao invés de pedir pão, como seria de se esperar, pediu dinheiro. Muitos logo dirão que o utilizaria para outras finalidades.

Seja para qual finalidade for, nisso reside o poder escondido do dinheiro. Ele pode comprar o necessário, o supérfluo, o lícito e até aquilo que não se imagina.

Nessas variações de patrão e empregado é que se esconde seu poder misterioso a que cada um pode atribuir, usufruir ou a ele se submeter. Pelo dinheiro podemos nos escravizar a nós mesmos ou a outros. Por isso, bem advertia o filósofo francês Montesquieu: “O dinheiro é valioso desde que saibamos desprezá-lo”.

Nessa altura, veio à memória a filosofia de bolso que o amigo Valter costuma repetir. Segundo ele, se é verdade que “o dinheiro é do diabo, viver sem ele é um inferno”.

Na verdade, diante do dinheiro, alguns poucos vivem uma espécie de “paraíso terrestre” por serem senhores de muitos bens; uma grande parcela da sociedade experimenta um contínuo “purgatório”, por precisar controlar muito bem seus recursos limitados a fim de satisfazer as necessidades básicas. Entretanto, a grande maioria da população enfrenta realidades infernais ante a impossibilidade de adquirir o mínimo necessário para manter-se vivo.

Para construir uma sociedade mais igualitária, sem carências nem excessos, sua senhoria, o dinheiro, não pode governar de forma absoluta, nem funcionar como um patrão perverso que subjuga, corrompe e domina. Daí a necessidade de fortalecer a política do bem comum, a democracia econômica, a justiça social e a cidadania plena para que a vida e a dignidade humana de todas as pessoas estejam acima do senhorio do dinheiro e do império do capital!

Autor: Dirceu Benincá

Que teremos para o jantar?

Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade.

Eis uma pergunta (para muitas pessoas) trivial: que teremos para o jantar? Todavia, a trivialidade desse questionamento reside só na aparência de naturalidade com que é, na maioria das vezes, formulado.  Na sua essência, aquilo que o psicólogo e pesquisador da Universidade da Pensilvânia, Paul Rozin, chamou de “dilema do onívoro”. Ou seja, quando se pode comer qualquer coisa que a natureza pode nos oferecer, decidir o que se vai comer, racionalmente ou não, é causa de ansiedade. Especialmente porque alguns alimentos podem nos fazer mal ou, até mesmo, nos matar.

Nos dias de hoje, em que (para quem tem dinheiro) abundam alimentos como jamais visto na história da humanidade, o dilema do onívoro torna o ato aparentemente simples de comer em uma coisa complicada. A tal ponto, de muita gente necessitar ajuda de especialistas (médicos e nutricionistas, por exemplo) para decidir o que comer (a par do modismo de dietas, que duram até o lançamento do próximo livro).

A situação existencial de um onívoro contrasta radicalmente com a de um comedor especializado, para quem a questão do que comer na próxima refeição não poderia ser mais simples. No caso de um comedor generalista (onívoro) aquilo que pode ser uma aparente vantagem também se torna um desafio, especialmente para os humanos, em que entra em jogo a racionalidade e valores morais.

A nossa vantagem frente a outros onívoros não racionais (um rato, por exemplo) é a nossa cultura, que nos permite ter acesso a uma farta experiência acumulada em relação à comida. São muitas as regras de alimentação codificadas em tabus, rituais, receitas, costumes e tradições culinárias que nos eximem (ou eximiam) de reviver o dilema do onívoro a cada refeição.

Uma visada panorâmica nas gôndolas de um supermercado e, principalmente, uma leitura um pouco mais atenta das embalagens dos alimentos industrializados talvez não nos deixe tão seguros assim quanto ao dilema do onívoro ser algo do passado da humanidade. Somos todos vulneráveis, especialmente aos olhos dos marqueteiros, que percebem, na questão da alimentação, o dilema do onívoro como uma oportunidade de negócio.

Novos produtos (alguns com promessas milagrosas), em tese da propaganda, podem aliviar a ansiedade que sentimos frente aos nossos hábitos alimentares.

Na mesa de jantar ou no corredor de um supermercado, não é difícil nos defrontarmos, mesmo sem perceber e atentar para a denominação, com o dilema do onívoro: produto orgânico ou convencional? Peixe do mar ou criado em tanques? Alimento com ou sem gordura trans? Gado criado em confinamento ou sob pastagem? Devo virar vegetariano?  E se virar vegetariano, um do tipo moderado ou um vegano radical? Açúcar ou adoçante? É seguro comer um alimento que contém produto transgênico? Gordura vegetal ou banha de porco? Que significa “saudável para o coração”?  Que é TBHQ ou goma xantana? Afinal, para onde vão me levar todos esses questionamentos?

Possivelmente, a melhor maneira de enfrentarmos o dilema do onívoro desse começo de século XXI é o entendimento das cadeias alimentares que nos sustentam, desde o início do processo de produção do alimento, passando pelas fases de processamento industrial, armazenamento e comercialização até chegar à mesa na forma de comida.

Compreender o nosso lugar nessa cadeia alimentar e ter consciência que a nossa condição de onívoro moldou a postura que temos em relação ao mundo natural, particularmente frente às espécies que nos servem de comida.

As adaptações que o homem sofreu ao longo da evolução das espécies serviram para que conseguíssemos derrotar as defesas de outras criaturas e pudéssemos comê-las (inclua-se a capacidade de caça, a invenção da agricultura e o ato de cozinhar utilizando fogo, que permitiu tornar os alimentos mais palatáveis, digeríveis e eliminar toxinas).

Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade. Uma criatura para quem era possível comer qualquer coisa (inclusive outros seres humanos, que o diga o bispo Sardinha, deglutido pelos Caetés em 1556) necessita especialmente de regras éticas, costumes e rituais no que tange aos alimentos e à alimentação.

Comer talvez seja algo que nos define (o quê e como comemos). Por isso é muito mais que um mero “ato agrícola”. É, ao mesmo tempo, também um ato ecológico e um ato político. Não é outra a razão, que leva muitas pessoas a comerem como autômatos na extremidade da cadeia alimentar industrial: pensar no assunto pode estragar o apetite.

Autor: Gilberto Cunha

(Do livro Galileu é meu pesadelo, 2009.)

85 anos de existência da APL (Academia Passo-Fundense de Letras)

A Academia Passo-Fundense de Letras é uma instituição muito importante para a formação cultural e literária de nossa estimada cidade Passo Fundo. Esta instituição marca a história da cidade há 85 anos.

Conversamos com a presidente da Academia Passo-Fundense de Letras Marilise Brockstedt Lech sobre questões pertinentes quanto à comemoração dos 85 anos de existência desta importante Academia de Letras. Quisemos saber sobre importância de celebrar esta data, sobre a entrada de seis novos acadêmicos e sobre os desafios de manter uma Academia com tanta relevância e destaque cultural em nossa cidade.

“O relato sobre a história de uma instituição é sempre um espelho bem pouco nítido dos fatos reais que aconteceram nos diferentes momentos vivenciados. Contudo, olhando para tudo que passou, é possível visualizar os grandes feitos da Academia Passo-Fundense de Letras e dos acadêmicos que por ela passaram, e os que, hoje, compõem seu quadro de ocupantes das 40 cadeiras deste sodalício.

Ser acadêmico, embora represente um reconhecimento ao trabalho como escritor, está longe de ser apenas uma honraria ou um título. É, sim, uma função e um compromisso para com a comunidade.

Os acadêmicos cumprem um estatuto que inclui, dentre as finalidades, incentivar as letras e as artes, concorrendo para o seu aperfeiçoamento. Para tanto, dentre os inúmeros motivos para comemorarmos os nossos 85 anos, está o desenvolvimento dos 14 projetos literários e culturais. Tudo isso é feito de forma voluntária, já que a APLetras é uma entidade sem fins lucrativos e que se mantém unicamente com as anuidades pagas pelos acadêmicos, bem como com doações de pessoas da comunidade que sabem valorizar a literatura como caminho de formação humana.

A entrada de seis novos acadêmicos

“Neste ano de 2023 estamos tendo a alegria de receber seis novos acadêmicos, selecionados a partir de um processo que inclui, dentre outros requisitos, a análise do currículo vitae e das publicações. São eles: Alexandre da Rosa Vieira, Alex Antônio Vanin, Janaína Rigo Santin, Luiz Carlos Dale Nogari dos Santos, Marco Antônio Bomfoco de Almeida e Nei Alberto Pies. Com isso, a APLetras se renova, amplia seu valor e expande o seu alcance e influência para que aconteçam as necessárias transformações na sociedade”.

Desafios de manter uma academia com tanta relevância e destaque cultural em nossa cidade

“Os desafios são constantes, começando pela busca de recursos para fazer acontecer os nossos importantes projetos. Aos olhos de quem vê de fora, o nosso prédio ainda guarda mistérios…

Como não temos funcionários contratatos pela APLetras, infelizmente a porta mais alta do estado não fica aberta todos os dias da semana. No entanto, estamos sempre em atividades, organizando eventos (Congresso Estadual das Academias de Letras do RS, Momentos Culturais,…), preservando o bom uso da Língua portuguesa (Guardião das Letras), propondo oficinas para estudantes (Identificando Talentos), escrevendo (livros e a nossa Revista Água da Fonte), gravando entrevistas (Literatura Local – TV Câmara), incentivando os jovens para a escrita (Acadêmicos mirins), contando histórias junto à ONGs e Escolas, realizando o Concurso Literário, o Café Filosófico, a Mateada literária,…

E neste ano teremos a realização da VI Semana das Letras e retomaremos o projeto Academia nas Escolas, o qual prevê encontros de debates entre auotres da academia e estudantes passo-fundenses. Projetos como Cine-Literatura e Desafio Literário também estão sendo planejados.

Dentre os desafios também está ampliar a divulgação de tudo isso, para que mais pessoas possam ser beneficiadas com a nossa atuação”.

Cátedra Unesco: A cidade educa e transforma

A UPF, membro fundador do Programa, esteve presente no lançamento realizado em Lisboa, no final de fevereiro de 2023.

Lançada oficialmente no dia 28 de fevereiro, a Cátedra Unesco: A cidade que educa e transforma integra o Programa de Cooperação Internacional Rede Internacional Cidade que Educa e Transforma (RICET). Liderada pelo ISEC Lisboa, a rede conta com 12 instituições de ensino superior de Portugal, do Brasil e da Guiné-Bissau, e tem entre seus membros fundadores a Universidade de Passo Fundo (UPF). 

Aprovada pela UNESCO, a Cátedra, tem entre os principais eixos a promoção de um sistema integrado de atividades de investigação, formação e documentação na área das Cidades Educadoras e a divulgação de conhecimentos sobre o conceito de uma cidade educadora, a fim de permitir modelos de governação em linha com os ODS; a investigação e reflexão sobre as práticas baseadas em modelos de governação inspirados no conceito de Cidades Educadoras e suas respostas aos problemas emergentes das sociedades, especialmente na perspectiva da consolidação de democracias; a criação de uma rede de conhecimento que permita aos governos locais oferecer uma oferta diversificada de respostas equitativas e justas para os problemas da sociedade contemporânea; e a cooperação e colaboração na construção de sociedades do conhecimento através de diferentes estratégias de cidades educadoras.

De acordo com a professora Dra. Adriana Bragagnolo, na UPF, haverá o desenvolvimento do trabalho a partir do envolvimento do ensino, pesquisa e extensão.

“A proposta surgiu de um processo que foi se constituindo de diálogos entre universidades que apoiam e pensam nas cidades enquanto espaços de educação. A UPF está envolvida desde o início das discussões e da proposta, em meados de 2020.  Agora, após o lançamento, o grupo segue reunido em Lisboa, realizando o planejamento do projeto geral, no qual está envolvido o plano de ação e todos os desdobramentos dos próximos quatro anos”, explica.

Adriana lembra que na UPF já existem ações que vão se articular com o grande projeto, como, por exemplo, o projeto UniverCidade Educadora nas ações formativas acerca da temática com municípios da região e também com projetos integrados, especialmente na perspectiva de infância e cidade.

A reitora da Universidade de Passo Fundo Bernadete Maria Dalmolin manifesta-se acerca do papel das universidades no fomento e na qualificação das Cidades Educadoras:

“Fomentar os pressupostos das Cidades Educadoras pelas universidades é uma estratégia de aprofundar, fortalecer e acelerar esse movimento mundial em prol de uma educação cidadã, plural, inclusiva e transformadora. É um processo que precisa envolver e contagiar a todos, nos diferentes lugares em que a vida acontece, qualificando-a e ressignificando-a para as pessoas”.



A Rede Internacional Cidade que Educa e Transforma é constituída pelos seguintes membros fundadores:

Instituto Superior de Educação e Ciências – ISEC, Lisboa, Portugal

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI, Brasil

Universidade Passo Fundo, UPF, Brasil

Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil

Universidade Federal da Bahia, UFAB, Brasil

Universidade Franciscano, UFN /Santa Maria, Brasil

FACED/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Brasil

Instituto Politécnico Nova Esperança da Guiné Bissau

Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

Centro Universitário Internacional, Uninter/ Curitiba/PR, Brasil

Fundação Anísio Teixeira, Brasil

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, Brasil

A crise da razão

Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude?

Talvez um dos sentimentos mais compartilhados e evidentes do recente cenário de pandemia é o de crise. De todos os lados escutamos, percebemos, respiramos, somos absorvidos por sua presença: crise de governo, crise institucional, crise econômica, crise do desemprego, crise humanitária, crise existencial, crise da razão, crise da ciência, crise sanitária … e a lista poderia ser imensa ou até infinita.

No início de 2020, o planeta inteiro foi sacudido por um gigantesco avalanche chamado COVID-19 que alterou e continua alterando a vida de todos nós, das instituições que fazemos parte e da forma como se dão as relações humanas. Possivelmente, estejamos vivendo uma das maiores crises do século XXI.

Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude? Crise da vida pautada pela ética ou crise da prática de uma forma de fazer política que está nos destruindo?

Crise do consumismo ou crise de identidade? Crise do vazio existencial que se agiganta quando nos isolamos ou crise sanitária que ameaça a sobrevivência da espécie? Crise da banalização da morte ou crise de um sistema ultraliberal que transformou tudo em dinheiro?

As perguntas são muitas e complexas. As respostas, parciais e pouco convincentes.

Como diz Adauto Novaes na coletânea A crise da razão, a crise exige de nós reflexão, pensar não apenas sobre os acontecimentos históricos, mas também os fundamentos, os percursos, as escolhas, as opções, as crenças e os valores que orientam nossa vida. Ter a capacidade de refletir sobre a crise não é tarefa simples e pouco desejável pela grande maioria das pessoas.

A reflexão por si só nos coloca de volta a nossa própria condição primeira, de vermos o quanto somos limitados, frágeis, finitos, vazios e, por tudo isso, também responsáveis por aquilo que acontece, por aquilo que defendemos. Se vivemos o caos e se a realidade nos ameaça, inclusive de morte em tempos de pandemia, então é necessário dar-se conta que poderia ter sido diferente se tivéssemos feito outras escolhas, optado por outros projetos, deliberado de outra forma.

A palavra crise ou o que ela designa, geralmente é traduzida por algo negativo, ou “algo que não vai bem”. Quando uma determinada sociedade vive um alto índice de desemprego, queda no consumo, perda expressiva de renda da maioria das pessoas, economia em baixa, precarização das condições de trabalho e recessão geralmente se diz que estamos passando por uma crise econômica. Quando alguém se sente vazio, sem perspectiva de vida, sem projetos e sonhos, geralmente dizemos que este alguém vive uma crise existencial.

Quando um determinado governo tem dificuldade de articular um conjunto de políticas (econômicas, sociais, comerciais, internacionais), tem dificuldade de se relacionar com outros poderes, causa escândalos, está em permanente guerra com a imprensa ou com outros partidos políticos, está ameaçado de sofrer um processo de impeachment atribuímos a essa situação a ideia de crise política. E os exemplos poderiam ser extensivos a todas as outras crises.

No entanto, a palavra crise também pode significar oportunidade.

É o que nos diz com propriedade João-Francisco Duarte Junior em seu livro O sentido dos sentidos, quando lembra que na cultura chinesa “o conceito de crise é wei-ji, locução composta pela junção dos ideogramas perigo e oportunidade”. Compreendida dessa maneira, crise não é somente uma situação arriscada, delicada, ameaçadora, perigosa, causadora de medo, insegurança, vulnerabilidade, morte; a crise pode ser também uma oportunidade para repensarmos nosso rumo societário, nossas relações, nossos projetos de vida, nossa própria existência, nosso estar no mundo.

A crise se torna, dessa perspectiva, um sinal de alerta para revermos os rumos, as escolhas, os valores, as prioridades, o que realmente importa. Que a pandemia indesejada se seja uma grande oportunidade para fazermos uma profunda revisão de nossa trajetória civilizacional e talvez sermos mais prudentes e inteligentes nas nossas escolhas.

Autor: Dr. Altair Alberto Fávero

A alimentação como experiência formativa

Quem respira e vive a escola, vê e sente a alegria das crianças quando são chamadas para comer. Quando questionadas sobre o que mais gostam na escola, citam a merenda escolar como um dos melhores momentos do período, seja manhã ou tarde.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 é um marco no que se refere às normas e direitos comuns do ser humano. Em seu artigo 25º ela delibera que toda pessoa tem o direito à alimentação. O que infelizmente ocorre é que a fome ainda atinge quase 830 milhões em todo o mundo, situação agravada pela pandemia de Covid-19, a guerra na Ucrânia; a mudança climática, a infraestrutura insuficiente, a baixa produtividade agrícola e outras questões específicas de cada nação. Aqui podemos incluir a má gestão das nações.

O estudo indica que o número de famintos aumentou de 811 milhões para 828 milhões entre 2021 e 2022. A guerra na Ucrânia aparece como principal fator determinante do aumento dos preços globais dos alimentos, da energia e dos fertilizantes, o que desencadeará o aumento da fome em 2023 e nos próximos anos. Neste cenário sombrio direcionamos nosso pensamento, nossa preocupação às crianças.

Aqui no Brasil, estamos amparados pelo Estatuto da criança e do adolescente que, desde 1990, estabelece princípios e diretrizes fundamentais ao bem viver destas etapas da vida. Neste ordenamento consta o papel do Estado, da família, da comunidade e da sociedade em relação à garantia de educação, justiça, liberdade e tratamento digno, o que inclui a alimentação adequada. E aqui chegamos ao ponto central da discussão: A essencialidade da alimentação escolar!

Se compararmos a alimentação escolar de anos e décadas atrás, podemos perceber que houve significativa evolução no modo de pensá-la e organizá-la! O grande avanço é o fato de terem surgido várias legislações desenvolvidas, com apoio de outros domínios (nutrição, medicina) que demonstraram preocupação e reivindicaram mudanças em benefício do estudante.

A concepção de vida saudável ampliou a reflexão para a necessidade de uma alimentação adequada, do consumo de alimentos essenciais, das práticas de atividades físicas, da aproximação com espaços naturais etc. Todo esse conhecimento ocasionou, de modo progressivo, a mudanças de hábitos de vida da sociedade de modo geral e, isso mobilizou as gestões públicas.

O modo de viver das famílias e na sociedade como um todo parece estar mais consciente em relação ao que é saudável. E, a partir dessa ótica que prima pela saúde, aliadas a outros objetivos, as políticas alimentares foram polidas. Claro! Ainda é um processo inicial, pois como apresentamos antes, muita gente está distante desses avanços e vive em condição de vulnerabilidade ou miséria.  

O fato é que: Quem respira e vive a escola, vê e sente a alegria das crianças quando são chamadas para comer.

Quando questionadas sobre o que mais gostam na escola, citam a merenda escolar como um dos melhores momentos do período, seja manhã ou tarde.  Ao escutar isso, emergem alguns questionamentos como: O que a alimentação escolar comunica? Qual a relação da alimentação com a educação? O que significa para o estudante o momento de comer? O que precisamos, enquanto educadores, é entender sobre  o momento do lanche. O que já sabemos é que a comida toca o âmago! E se toca, causa efeito!

Se voltarmos ao passado, numa breve reconstrução temporal, constatamos que o ritual de comer e beber juntos já era compreendido como possibilidade formativa. Como exemplo citamos os gregos, inclusive a obra O banquete de Platão traz muitas contribuições no sentido da formação humana. A reunião grega era constituída em um espaço social e político, com o sentido ético e categorias normativas circunscritas de acordo com as características e especificidades da sociedade.

Nessas ocasiões eram tratadas as questões pertinentes ao contexto e ao interesse dos participantes (o que é muito semelhante com a escola).  No caso da referida obra, o assunto a ser discutido entre os presentes era o Amor. Cada um, a partir do seu ponto de vista, argumentou o que compreendia acerca deste sentimento. O debate, o diálogo, o aprendizado ocorria de modo mais exitoso se houvesse a combinação entre comida e bebida.  

Obviamente, notamos a presença desta herança no nosso cotidiano fora da escola também, pois quando se menciona um encontro, logo se pensa na alimentação. Ela torna-se parte orgânica da interação que nele acontece e, assim preserva o sentido formativo. 

A alimentação é amor! A alimentação é vida. É também cultura e história! Transferência de um ser para outro, de geração em geração, desde quando o ser humano ainda é pequeno, quando recebe o leite da mãe.

A alimentação é um elo que enlaça a tripartite vida-cultura-história pertencentes em uma comunidade local e também global. O ato de alimentar-se permite a conexão com o outro, com a própria consciência e desta forma, expande-se o olhar. Junto da experiência sensorial que envolve a faces do sentir, estão os afetos, os vínculos, o crescimento saudável e o desenvolvimento. Por isso as memórias em relação aos sabores, cheiros, sons, texturas estão presentes e são reverberadas com tanta satisfação e, até encantamento, pelos estudantes. Por isso que ir à merenda provoca tanto bem-estar.

Parece pertinente afirmar que a sensibilidade é difundida entre os atos de nutrir, pelas mãos dos que preparam o alimento; e o do se nutrir, pelo desejo daqueles que dirigirem ao refeitório para comer.

Tudo revela algo muito especial: o cuidado do outro, da parte de quem prepara com tanto afeto e compromisso; e o cuidado de si, da parte de quem demonstra apreço pela saúde e pelo momento de confraternização. Ambas as dimensões do cuidado são compartilhadas de modo intenso e profundo. Como dizer que não é uma forma de amor?

Para que ocorra essa concretização, a informação e a formação representam atitudes fundamentais, pois só o conhecimento é capaz de gerar e manter ativo nos envolvidos com escola (cozinheiras, professores e famílias) os saberes necessários para mobilizar nos estudantes, a parte mais favorecida, hábitos alimentares saudáveis. Neste sentido, a união em torno de um discurso único torna-se imprescindível. A ênfase em torno destes hábitos começa em casa e tem continuidade na sala de aula, pelas diferentes vozes da equipe escolar. O desfecho final é no refeitório, com ele lotado de crianças, em busca da saborosa comida saudável, em busca de uma forma de amor. O que se consolida assim, é a estreita relação entre o bem-estar físico, psicológico; a forte satisfação; e a possibilidade formativa no ato de comer.

Com isso, podemos pensar também no quanto a história, a cultura e as tradições interferem no ato de comer, isso porque há também o grande valor prática relacional que ocorre enquanto as pessoas se reúnem para alimentarem-se. A comida, neste sentido, além de formar, acolhe!

É em torno de uma mesa, seja na escola, em casa ou em festividades, que as ideias são acolhidas e compartilhadas. Novos projetos nascem. O sentido colaborativo se consolida. Então, que a gente possa cultivar a acolhida e o cuidado momento da alimentação, especialmente na escola, para que ela continue sendo especial, marca amorosa na memória e no corpo saudável que se forma com a experiência do encontro com os outros e com a comida.

Assista também: https://youtu.be/B_HbOJk7ydU?t=40

Autora: Ana Lúcia Vieira

Referências:

– Estatuto da criança e do adolescente; Declaração dos direitos humanos; O banquete de Platão

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2022/10/13/fome-atinge-quase-830-milhoes-em-todo-o-mundo.htm?cmpid=copiaecola

Que é ser um ser humano?

Razão e emoção constituem o nosso viver humano. Não nos damos conta que todo sistema racional tem um fundamento emocional.

Somos seres eminentemente emocionais, embora abundem referências de que a nossa racionalidade é o que nos distingue dos outros animais. E os argumentos neste sentido são tantos e tão bem justificados que, sem uma maior reflexão, até acreditamos neles. Inclusive, insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais, fazendo com que vivamos uma cultura que desvaloriza as emoções em função de uma supervalorização da razão. Nada mais falso que isso, conforme demonstra a biologia do conhecimento e as teorizações formatadas pelo neurobiologista chileno Humberto Maturana.

Por emoções, na teoria de Maturana, há que se entender os diferentes domínios de ações possíveis, nas pessoas e nos animais, e as distintas disposições corporais que os constituem. É em função das disposições corporais que emoções são fenômenos próprios do reino animal. E o que chamamos de humano é basicamente o entrelaçamento do racional com o emocional, na linguagem, fazendo desabar o imperialismo da razão.

O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no emocionar. Acima de tudo, aceitar que não é a razão que nos leva a ação, mas a emoção.

A emoção fundamental que define o ser humano é o amor. E, no contexto da biologia do conhecimento, o amor é entendido como a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência.

Parece complicado de entender, mas não é. Basta a adoção de uma postura reflexiva no mundo em vivemos, com respeito por si mesmo e pelos outros, deixando de lado o sentimento de competição, marcado pelo eufemismo mercadológico da “livre e sadia competição”. A competição não é e nem nunca poderá ser sadia, porque se constitui na negação do outro.

A competição é um fenômeno cultural e humano e não, como se supõe, uma característica biológica intrínseca. Queiramos ou não, a vitória se constitui na derrota do outro.

A competição se ganha com o fracasso do outro. O derrotado tolera o vencedor esperando por uma oportunidade de revanche. Assim, a tolerância é uma negação do outro suspensa temporariamente. Em razão disso é que foi cunhada a expressão: “as vitórias que não exterminam o inimigo preparam a guerra seguinte”.

O que chamamos de racionalidade, quase sempre, não passa de uma atuação baseada em premissas previamente aceitas, a partir de certas emoções (aceitas porque sim, porque agradam a alguém, aceitas pela preferência de alguém, etc.). A discordância entre pessoas se dá quando a diferença está nas premissas fundamentais que cada um tem sobre determinados temas. Em que cada qual aceita ou rejeita algo não a partir da razão, mas da emoção. São exemplos clássicos, discussões ideológicas ou religiosas.

As premissas fundamentais de uma ideologia ou de uma religião são aceitas a priori e, portanto, não tem fundamentação racional. Não existindo erro lógico nos argumentos, estes são, obviamente, racionais para aqueles que aceitam as premissas fundamentais em que eles se baseiam; reforça Humberto Maturana na sua teoria. Por isso, em situações de conflitos ou de discordâncias, os chamados discursos racionais não convencem ninguém quando o que se fala e o que se escuta tem como referência emoções diferentes.

Nem todas as relações ou interações entre seres humanos são sociais. É o caso daquelas baseadas na obediência, na exclusão, na negação e no preconceito, pois negam a condição biológica básica de seres dependentes do amor, que é aceitar os outros como legítimos outros na convivência. As relações hierárquicas, quase sempre, não se fundamentam na aceitação mútua e sim na negação mútua. Essas são instituições e práticas baseadas meramente no argumento da racionalidade e da obrigação. Nada mais que isso.

Razão e emoção constituem o nosso viver humano. Não nos damos conta que todo sistema racional tem um fundamento emocional. Um chefe mal humorado, por exemplo, vive num domínio emocional no qual só são possíveis certas ações e não outras. É com base nisso que a secretária, amigavelmente, costuma avisar aos incautos: “hoje, nem ouse pedir um aumento!”

Sem a aceitação do outro no espaço de convivência não há fenômeno social. Razão pela qual, na vida, a maior parte do sofrimento humano vem da negação do amor ou da emoção que permite a aceitação do outro como legítimo outro na convivência.

Autor: Gilberto Cunha

(Do livro A ciência como ela é, 2011.)

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