As crianças reproduzem o que têm assistido nas ruas e, eventualmente, até uma postura inspirada em comportamentos dos pais. E isso ecoa no ambiente escolar, onde não é tão madura, entre os jovens, a percepção do quanto isso é sério.
O presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Claudio Lottenberg, em entrevista, afirma que são “muito sérios” os episódios de intolerância registrados em ambiente escolar durante e após as eleições. Ele avalia que o cenário “é fruto da polarização” e acrescenta que é preciso “inibir a percepção de que a diversidade não é uma riqueza”.
Por que a intolerância política invadiu o ambiente escolar?
As crianças reproduzem o que têm assistido nas ruas e, eventualmente, até uma postura inspirada em comportamentos dos pais. E isso ecoa no ambiente escolar, onde não é tão madura, entre os jovens, a percepção do quanto isso é sério. Se já havia propagação (de intolerância) a partir de pessoas intelectualizadas, imagina em crianças que não têm noção do que isso representa.
Qual o risco disso?
É algo muito sério porque pode trazer o sentimento de que é correto, de que é bom, de que não tem nenhum tipo de repercussão nas relações sociais. As pessoas devem trabalhar justamente pelo contrário, minimizando a discriminação, minimizando os discursos de ódio e inibindo a percepção de que a diversidade não é uma riqueza.
Manifestantes bolsonaristas fazem atos antidemocráticos pelas ruas e rodovias do país após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
O que as escolas devem fazer?
Ficar atentas. E, dentro do menor movimento, têm que coibir e explicar. E, se possível, inserir ensino sobre o Holocausto. O Holocausto é o maior exemplo da história do perigo que representa a intolerância. Entendo que esse episódio deve ser tomado como uma referência no processo educativo para acentuar os valores de respeito ao próximo, de aceitação à diversidade e de sentimento de compaixão. Tanto que, em vários locais no país, o Holocausto passou a ser tema obrigatório.
Qual é o papel dos pais?
Primeiro, repensar suas atitudes quando pais. Segundo, imaginar que o cenário político é uma das condições de relacionamento de uma sociedade, de uma comunidade.
Algumas pessoas defendem uma liberdade de expressão ilimitada. Onde está o limite?
Na própria Constituição brasileira, que diz que a liberdade de expressão deve existir desde que não crie uma situação de perigo frente ao próximo e, nesse caso, está criando.
Nos últimos dias, um aluno de uma escola de Valinhos (SP) publicou uma foto de Hitler e escreveu: “Se ele fez com judeus, eu faço com petistas”. Como o senhor avalia?
É fruto da polarização que vivemos em nosso país, na qual a posição divergente não é tratada com respeito. Não há problema em pensar diferente. O problema está em não aceitar as pessoas diferentes e, pior, repudiar com violência.
Como a intolerância política está ligada ao nazismo?
Primeiro, precisamos entender que o processo de globalização não diminuiu a desigualdade. Isso construiu todo um processo que levou à defesa de culturas mais nacionalistas, que muitas vezes criam uma visão exagerada de proteção, muitas vezes discriminatória. Nesse ambiente, é bastante fértil a propagação de ideias como o nazismo.
O antissemitismo também aumentou no Brasil?
Está documentado, cresceu muito nos últimos dois anos, assim como células nazistas.
Por quê?
É reflexo da geopolítica global. A reação à globalização é um movimento nacionalista.
O senhor foi presidente da Conib em 2010 e 2014, anos eleitorais. E, principalmente em 2014, a eleição foi muito polarizada…
Mas nunca com essa hostilidade.
Os episódios se intensificaram neste ano?
Não tenho a menor dúvida. Inclusive com o incentivo de alguns líderes, como o presidente (Jair Bolsonaro). Porque ele tem uma bandeira muito nacionalista. O movimento nacionalista o elegeu.
Vemos as instituições muitas vezes repudiando tais ações. Só repudiar é suficiente?
Não. Precisam tomar as medidas judiciais cabíveis.
Sobre crianças e adolescentes, o que precisa ser feito?
Temos que colocar os ministérios públicos para ver o que as escolas estão fazendo. Por serem episódios no ambiente escolar, a responsabilidade também é da escola. É preciso ver se as escolas estão sendo exigentes para evitar que isso se propague ou se estão sendo lenientes. Se estão sendo lenientes, precisam pagar por isso.
Claudio Lottenberg, líder da Confederação Israelita do Brasil
O período eleitoral teve ânimos acirrados. Casos de violência foram contabilizados em todo o Brasil e o medo de mostrar seu posicionamento político também tomou conta do país, um fenômeno que não aparecia com tanta intensidade nos últimos pleitos.
Inúmeros são os relatos, também em Passo Fundo, da violência política que permeia as Eleições de 2022. Um adesivo no carro ou no peito se tornou motivo de apreensão e cuidado. Defender o seu candidato em uma discussão respeitosa virou privilégio.
Intimidações, ameaças, agressões verbais e físicas, chegando até a morte em alguns casos. Como no caso do guarda municipal, sindicalista e tesoureiro do PT, Marcelo Aloizio de Arruda, que foi morto quando um policial penal federal, Jorge Guaranho, invadiu a festa de aniversário do tinha como tema o PT e imagens do ex-presidente Lula, em Foz do Iguaçu (PR). Com gritos de “aqui é Bolsonaro”, o apoiador do presidente assassinou Marceli com três tiros.
A doutora em filosofia e professora Patrícia Ketzer explica que a violência política é toda violência usada com objetivos políticos. Pode incluir violência estatal, por parte dos poderes públicos, por parte do Estado contra civis, incluindo genocídio, tortura, perseguição, cerceamento da liberdade de expressão, brutalidade policial. Também inclui violência de organizações não estatais contra o Estado ou contra civis. Pode ocorrer por parte de um Estado contra outro, em forma de guerra, por exemplo.
“Atualmente, tem como uma de suas principais armas a proliferação da desinformação e da mentira através de notícias falsas, o silenciamento e ataque constante a jornalistas e a criminalização de movimentos sociais. A conivência e, mais do que isso, a iniciativa do poder público, estatal, seja no Executivo, no Legislativo e muitas vezes até no Judiciário legitima a população, nas ruas e lares, a reproduzir a violência contra as mulheres”, afirmou.
Violência política de gênero
Muito antes do período eleitoral os ânimos já estavam alterados e diversos casos de violência, em todo o país, eram registrados. Em Passo Fundo, intimidação, assédio e ameaça foram relatados, especialmente por mulheres.
“Eu estava usando o carro da minha mãe, com bandeiras e adesivo do Lula, e ao parar na sinaleira uma pessoa aleatória começou a me xingar ‘Lula ladrão, sua vagabunda’. Eu estava indo rezar, literalmente,” desabafou uma jovem nas redes sociais. Outra, relatou que estava andando com um adesivo do Lula no peito, quando cinco senhores começaram a se exaltar com o mesmo discurso.
Conforme Patrícia, qualquer ato que vise excluir as mulheres do espaço político, podendo ocorrer antes ou depois de sua eleição a cargos públicos é violência política de gênero. Se enquadram situações em que a mulher é coagida, ridicularizada, desacreditada. “Pode ocorrer por meio virtuais, nas ruas e nos espaços institucionais, por parte de representantes de cargos públicos, eleitores ou mesmo dentro de seus próprios partidos ou de suas casas,” explica.
É o que aconteceu com a vereadora Eva Valéria Lorenzato (PT), na Sessão Plenária do dia 17 de outubro, quando o colega Rodinei Candeia não respeitou o espaço de fala da parlamentar e protagonizou cenas de descontrole.
“Iniciei uma reflexão sobre um tema amplamente divulgado na imprensa nacional que diz respeito à uma fala do presidente da República. Antes que eu pudesse concluir sequer a primeira parte, o vereador interrompeu a minha fala, utilizando o microfone de aparte. Aos gritos e me chamando de criminosa, o vereador pediu à Mesa Diretora que a Procuradoria Jurídica da Câmara analisasse o que eu dizia para ver se eu poderia ou não prosseguir,” contou Eva Valéria.
Em nenhum momento, Rodinei pediu que a vereadora concedesse o aparte, o que é a regra dentro da Casa Legislativa. Para um parlamentar fazer comentários durante a fala de outro, esta precisa conceder o espaço.
Ao analisar, a Procuradoria apontou o que é Lei e está inclusive no Regimento Interno da Câmara: as e os vereadores têm garantida a imunidade parlamentar quando estão na Tribuna e, portanto, têm o direito de expressar suas opiniões. Quem julgar que a fala é equivocada, pode acionar os mecanismos judiciais e pedir explicações. Porém, isso deve ser feito após a fala e não enquanto ela acontece.
“Depois do parecer da procuradoria, o vereador, inconformado interrompeu novamente, aos gritos, desrespeitando não só a mim, mas à Mesa Diretora e o Regimento Interno, que é a lei maior dentro da Casa. Usando de agressões verbais com termos como mentirosa, criminosa, dissimulada e injuriosa, tumultuou a Sessão, que foi suspensa pelo presidente da Câmara,” contou a vereadora.
O silenciamento dos colegas parlamentares ao presenciarem a situação, em especial as vereadoras, chocou os passo-fundenses que realizaram um ato simbólico de apoio à Eva Valéria No dia 19 outubro, lideranças ocuparam o plenário dando o recado: basta de violência política de gênero. “É reconfortante saber que a população apoia a postura democrática e repudia todos os atos autoritários”, confessa.
No mesmo dia o presidente do PT no município, Áureo Mesquita, acompanhado de advogados do partido, protocolou pedido para instauração de processo na Comissão de Ética da Câmara de Vereadores contra o vereador Rodinei Candeia por tentar impedir a manifestação da vereadora.
“Além de agredir os princípios da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar, praticou violência de gênero ao impedir uma vereadora de se manifestar, com agressividade que normalmente não utiliza com outros colegas vereadores homens. O PT espera que a Comissão de Ética analise o caso e aplique as sanções previstas regimentalmente e no Código de Ética daquela casa. Não é mais admissível atos desproporcionais como esse cometidos contra vereadoras em suas manifestações, como tem acontecido continuamente nas casas legislativas de todos os níveis do Brasil,” diz a nota do partido.
É preciso superar o ódio
Apesar de ficar estarrecida com a situação, Eva Valéria destaca que a divergência é parte da vida democrática: o problema é o uso da violência, o ataque, o desrespeito. “O ódio é um péssimo modo de orientar a convivência social. Ele aumenta a violência. A amizade e a fraternidade que se alimentam da amorosidade abrem para o diálogo e para mediações restauradas dos conflitos. Precisamos aprender a conviver democraticamente no sentido mais profundo da convivência,” afirmou.
Patrícia recorda que o enfrentamento a todo tipo de violência contra a mulher precisa se dar nos lares, nas ruas, bairros, empresas, escolas, instituições públicas e privadas, no executivo, no legislativo, no judiciário, com o apoio da mídia e dos movimentos sociais, sendo pautado constantemente por todos e todas que se identificam como aliados na luta por uma sociedade justa.
“Implica na revisão de atitudes diárias em todos esses espaços e numa vigilância constante para que não sejamos desrespeitadas ou silenciadas, como se tenta fazer em todos os espaços, inclusive na Câmara de Vereadores de Passo Fundo,” finaliza.
*Esta matéria foi produzida pela jornalista Ingra Costa e Silva e já publicada no Jornal Impresso Rotta, Ano 23, Número 415, de 14 a 27/10/2022.
“Discutir com uma pessoa que renunciou ao uso da razão é como administrar remédio aos mortos” – Thomas Paine (1737-1809)
“No tiroteio da guerra santa, o tiro da intolerância saiu pela culatra e o segmento do eleitorado que se declara sem religião foi decisivo para a derrota da extrema-direita”, escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador de meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 31-10-2022.
Segue artigo.
As eleições presidenciais de 2022 chegaram ao fim com a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 30 de outubro de 2022. Para um eleitorado de 156 milhões de votantes, houve 32,2 milhões de abstenções (20,6%), 118,53 milhões de votos válidos, 1,77 milhão de votos brancos (1,43%) e 3,93 milhões de votos nulos (3,16%). Lula obteve 60,33 milhões de votos (50,9%) e Bolsonaro 58,2 milhões de votos (49,1%).
Foram as eleições mais disputadas e mais polarizadas da história brasileira, com Lula sendo o campeão de votos de todos os tempos da democracia nacional.
Houve divisões marcantes do voto. Na regiãoNorte, Lula ganhou com pequena diferença, mas estabeleceu grande vantagem na região Nordeste, que foi decisiva para o resultado final. O presidente Bolsonaro ganhou nas demais regiões, embora tenha perdido de pouco em Minas Gerais, estado que se manteve como o termômetro eleitoral do país, já que a vitória em Minas Gerais parece ser um pré-requisito para a vitória nacional. Lula teve grande vantagem entre as mulheres, entre a população preta e parda e entre os estratos de mais baixa escolaridade e de baixa renda.
No quesito religião, as clivagens foram marcantes, pois, segundo todas as pesquisas de opinião, Bolsonaro se manteve com proporção majoritária do voto evangélico, enquanto Lula se manteve com a percentagem majoritária dos votos católicos, das outras religiões e do segmento do eleitorado que se declara sem religião.
Entre as diversas denominações religiosas, o presidente Bolsonaro obteve uma pequena vantagem, mas o ex-presidente Lula ganhou as eleições com o voto do segmento sem religião, que foi o fiel da balança e definiu o resultado final das eleições, como veremos a seguir.
A tabela abaixo apresenta, na linha do total (linha vermelha), o resultado das eleições segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Já os números dos segmentos religiosos foram construídos com base na pesquisa Datafolha de 29 de outubro. Nota-se que a última pesquisa antes do segundo turno apontou Lula com 52% dos votos e Bolsonaro com 48%, valores ligeiramente diferentes do resultado efetivo, mas dentro da margem de erro. A meu ver, o pequeno erro do Datafolha ocorreu, não pelos percentuais da intenção de votos, mas em decorrência do perfil da amostra.
O atraso do censo demográfico prejudicou a calibração da amostragem. Por exemplo, o Datafolha contabilizou algo em torno de 27% de evangélicos e 52% de católicos na amostra, quando na minha opinião, evangélicos e católicos representam, respectivamente 32% e 50% do eleitorado em 2022. Desta forma, a tabela abaixo utiliza os mesmos percentuais de intenção de voto da pesquisa Datafolha (29/10), mas recalibra o perfil da amostra. Por conseguinte, dos 118,2 milhões de votos válidos, estimamos 59,1 milhões de votos católicos (50%), 37,8 milhões de votos evangélicos (32%), 7,1 milhões de votos de outras religiões (6%) e 14,2 milhões de votos do segmento sem religião (12%).
Aplicando os percentuais de intenção de voto da pesquisa Datafolha, temos 34,6 milhões de votos católicos, 11,7 milhões de votos evangélicos, 3,8 milhões de votos das outras religiões e 10 milhões de votos do segmento sem religião. Enquanto Bolsonaro obteve 24,5 milhões, 26,1 milhões, 3,3 milhões e 4,2 milhões nos respectivos grupos religiosos.
Desta forma, Lula teve um superávit de 10 milhões de votos entre os católicos, Bolsonaro teve um superávit de 14,4 milhões de votos entre os evangélicos e Lula teve um superávit de 567 mil votos entre as outras religiões.
Considerando apenas estes 3 grupos, Bolsonaro ganharia as eleições com vantagem de 3,8 milhões de votos. Mas como Lula teve superávit de 5,9 milhões de votos entre o segmento sem religião, isto compensou a vantagem de Bolsonaro nos 3 grupos anteriores e propiciou uma vantagem final de 2,1 milhões de votos no resultado final.
Como já mostramos em outros artigos (Alves, 2017, 2018 e 2019), existe uma forte relação entre o voto nos candidatos e a percentagem dos grupos religiosos nos estados. O gráfico abaixo apresenta a associação entre a razão de votos válidos para Lula em relação a Bolsonaro (RLB) e a soma do percentual de católicos e sem religião no Brasil e em todas as Unidades da Federação, segundo os dados do censo demográfico de 2010 (que são os últimos dados disponibilizados pelo IBGE). Ou seja, o gráfico testa como o desempenho do candidato Lula está correlacionado com maior proporção de católicos e sem religião e o desempenho de Bolsonaro está correlacionado com a proporção da presença evangélica.
Como pode ser visto pela curva logarítmica vermelha do gráfico, existe uma relação positiva entre o voto em Lula e a maior proporção de católicos e sem religião nos estados (com R2 de 71,9%). Obviamente, a variável religião não é a única que explica o resultado eleitoral de 2022, mas ela tem uma associação inquestionável.
Por exemplo, no Piauí, o percentual de católicos e sem religião é de 88,5%, o maior percentual do país. Não sem surpresa, foi onde Lula teve o maior percentual de votos tanto no primeiro, quanto no segundo turno das eleições de 2022. O percentual de católicos mais os sem religião está acima de 75% em todos os estados do Nordeste, local onde Lula teve uma vitória inconteste. Já Acre, Rondônia e Roraima são os estados com menor percentual de católicos e sem religião (e maior percentagem de evangélicos), em consequência foram as Unidades da Federação que deram a maior vantagem eleitoral para Bolsonaro. Mas como a religião não explica tudo, o caso de Santa Catarina mostra que uma das UFs com grande proporção de católicos e sem religião (semelhante à de Pernambuco) sufragou majoritariamente o presidente Bolsonaro.
Em síntese, a proporção de católicos, evangélicos, outras religiões e sem religiãoinfluenciam o voto brasileiro. Mas entre o eleitorado cristão – que são os dois maiores grupos religiosos do Brasil, com cerca de 82% do total do eleitorado – houve uma vantagem de Bolsonaro. Já entre o segmento sem religião (que representa 12% do eleitorado) Lula teve uma vantagem de 5,9 milhões de votos, o que garantiu a vantagem final de 2,1 milhões de votos que deram a vitória ao candidato do Partido dos Trabalhadores. Portanto, católicos e sem religião foram fundamentais para superar o bolsonarismo da maioria do segmento evangélico, mas o fiel da balança foi indubitavelmente o segmento sem religião, que compensou as diferenças no voto cristão.
Retrocesso econômico, Estado Laico e “Guerra Santa”
As eleições gerais de 2022 ocorreram em um quadro de retrocesso econômico do Brasil, pois tem havido um processo de desindustrialização do país, reprimarização da estrutura produtiva e da pauta de exportações, além da economia brasileira ter crescido menos do que a média da economia global e a renda per capita do país tem permanecido estagnada na última década. Em consequência, tem aumentado os problemas sociais, como a pobreza, a fome, a inflação, a violência, o aumento da população de rua, o desemprego e a informalidade do trabalho.
Mas ao invés de discutir racionalmente um projeto de resolução dos problemas nacionais, dentro dos parâmetros do Estado Democrático de Direito, o atual Presidente da República – candidato à reeleição – privilegiou a campanha junto ao público religioso, dando ênfase à uma pauta marcada pelo conservadorismo moral (priorizando temas como aborto, casamento homoafetivo, legalização das drogas, ideologia de gênero, etc.) e pela alegação de que o seu o principal adversário pretenderia fechar igrejas e destruir a família tradicional.
Desta forma, o debate eleitoral se deslocou dos temas socioeconômicos para os assuntos da religiosidade. A religião transbordou da esfera privada para ser instrumentalizada em função de objetivos eleitoreiros.
A primeira semana do segundo turno foi protagonizada pelo embate envolvendo cristianismo, maçonaria, forças ocultas, canibalismo e satanismo. Na segunda semana do segundo turno, a polêmica ficou por conta da presença do Presidente da República nas festividades do Sírio de Nazaré, em Belém (Pará) e nas celebrações do dia da Padroeira do Brasil, no feriado nacional de 12 de outubro, no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida (em São Paulo), onde houve atrito entre os apoiadores do presidente e os clérigos católicos. No mês de outubro houve repetidos ataques em igrejas, interrupções de missas e assaltos às sacristias em diversas partes do país.
A ex-ministra Damares Alves (senadora eleita pelo Distrito Federal) utilizou o púlpito de um templo para espalhar mentiras sobre pedofilia na ilha de Marajó e para difundir o medo e angariar votos para o atual presidente. Mas em uma fala infeliz, o próprio Bolsonaro foi envolvido na denúncia de pedofilia ao dizer que “pintou um clima” ao encontrar garotas venezuelanas menores de idade.
O autodenominado padre Kelmon utilizou a religião para participar dos debates eleitorais do primeiro turno e se envolveu nas conversações do triste episódio de ataque à polícia federal por parte do ex-deputado Roberto Jefferson no domingo 23 de outubro de 2022. Assim, o maniqueísmo entre o bem e o mal e entre a luz e a treva apequenou a democracia, obnubilando as possíveis formulações propositivas da campanha.
Por conseguinte, a tênue linha da laicidade, que separa estado e religião no Brasil, foi ultrapassada em vários momentos pela mobilização de dogmas religiosos, mentiras e desinformações. O debate eleitoral virou uma espécie de guerra santa, com acusações de heresia contra aquilo que é considerado sagrado pelas diversas religiões. Há relatos de pastores fazendo pressão por voto e ameaçando fiéis com punição divina e medidas disciplinares. Houve também perseguição política dentro das igrejas, deixando claro que, o vilipêndio da fé, vilipendia a própria democracia.
Todavia, no tiroteio da guerra santa, o tiro da intolerância saiu pela culatra e o segmento do eleitorado que se declara sem religião foi decisivo para a derrota da extrema-direita e para a vantagem de cerca de 2% do candidato da esquerda.
O obscurantismo foi derrotado e a tarefa daqui para frente é garantir a laicidade do Estado e o predomínio da racionalidade, da ciência e da democracia sobre as forças do atraso, da superstição e do preconceito. O século XXI está apenas começando e há muito a ser construído.
Autor: José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador de meio ambiente
Os ataques são de natureza material e simbólica, vêm se intensificando especialmente a partir da eleição de Bolsonaro e consistem em propagação de informações falsas, negacionismos, corte de verbas, intervenção na nomeação de reitores, bem como destruição da carreira docente.
Todos que trabalhamos com a educação e a ciência nos reconhecemos na máxima de Paulo Freire proferida na obra da Pedagogia da Esperança de 1992: “Não sou esperançoso por pura teimosia mas por imperativo existencial e histórico. A esperança é necessidade ontológica”.
Ter esperança, sempre e enquanto vivermos, é essencial para todos os seres humanos, particularmente aos jovens, que sonham com uma vida digna e feliz. Sem esperança, não haverá o amanhã com mudanças.
A educação, como a ciência e a cultura, no governo Bolsonaro (2019-2022), foram profundamente impactadas pelo negacionismo e por um pensamento fascista estruturado conscientemente e intencionalmente, com apoio e/ou conivência de milhões cidadãos brasileiros.
Mentiras e distorções sistemáticas foram assistidas e aplaudidas pelos cúmplices. Apostou-se na ignorância, incentivou-se a negação do livre exercício de pensar e, atacou covardemente a ciência, a autonomia intelectual e política dos docentes e estudantes.
Entre a promessa falaciosa inicial que seria um governo “sem viés ideológico” e que o “Brasil voltaria a ser um país livre das amarras ideológicas”, a gestão federal, especialmente a gestão atabalhoada de cinco ministros no MEC, já é a mais ideológica da história da educação brasileira.
Esse posicionamento anti-intelectualista, contra a ciência e contra a cultura nacional é típico de governos autoritários que chegam ao poder por vias populistas, mas se sentem ameaçados pela liberdade de pensamento, especialmente a liberdade de imprensa e a liberdade de cátedra.
O professor e historiador Luiz Antônio Cunha, um dos maiores especialistas em história da educação brasileira, em 2016 já identificava um movimento que pretendia conter os processos de secularização da cultura e de laicidade do Estado no Brasil.
Esse processo nega o presente que vivemos e compreende o futuro como ameaçador, desejando, portanto, voltar ao passado com a intenção de regenerar a moral da sociedade.
Segundo o historiador, esse movimento de retrocesso, assumia feições mais ou menos institucionalizadas em projetos e tem sido acionado por seis vetores: o ensino religioso nas escolas públicas, o combate à “ideologia de gênero”, o programa escola sem partido, a educação moral e cívica, a militarização das escolas públicas e a educação domiciliar, constituindo um “Projeto Reacionário de Educação”.
Pensamento fascista
Esse projeto educacional colocado em marcha nos últimos quatro anos insere-se num projeto mais amplo de poder sob orientação de um pensamento e de uma política fascista.
Conforme Jason Stanley elucida na obra Como funciona o fascismo: a política “nós” e “eles”, a política fascista inclui muitas estratégias diferentes: o passado mítico, a propaganda, o anti-intelectualismo, a irrealidade, a hierarquia, a vitimização constante, a lei e ordem, a ansiedade sexual, apelos à noção de pátria e desarticulação da união e do bem-estar público.
Embora a defesa de certos elementos seja legítima e, às vezes, justificada, há momentos na história em que esses elementos se reúnem num único partido ou movimento político, e esses momentos são perigosos.
Nos Estados Unidos, os políticos republicanos ainda utilizam essas estratégias com cada vez mais frequência.
Sua crescente tendência a se envolver nesse tipo de política deve obrigar os conservadores honestos a refletir, adverte Stanley.
Os perigos da política fascista vêm da maneira específica como ela desumaniza segmentos da população.
Ao excluir esses grupos, limita a capacidade de empatia entre outros cidadãos, levando à justificação do tratamento desumano, da repressão da liberdade, da prisão em massa e da expulsão, até, em casos extremos, o extermínio generalizado.
O sintoma mais marcante da política fascista é a divisão. Destina-se a dividir uma em “nós” e “eles”. Muitos tipos de movimentos políticos envolvem tal divisão.
Para fazer uma descrição da política fascista é necessário descrever a maneira muito específica pela qual a política fascista distingue “nós” de “eles”, apelando para distinções étnicas, religiosas ou raciais, e usando essa divisão para moldar a ideologia. E, em última análise, a política.
Todo o mecanismo da política fascista trabalha para criar ou solidificar essa distinção por meio de várias estratégias, entre as quais, a promoção de diversos negacionismos.
Negacionismos
Na obra Dicionário dos Negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako e José Luiz Ratton, especialistas de todas as áreas – da ciência, da política, do direito, da história – apresentam uma reflexão interdisciplinar e sistemática sobre o fenômeno do negacionismo na perspectiva paradoxal e o propõem, como desafio estratégico a ser enfrentado por todos os campos das ciências, da cultura, da educação, da cidadania e da democracia.
Dicionário básico dos negacionismos
Abordaremos, na sequência, a título de ilustração, os negacionismos ligados à educação: do anti-intelctualismo, da universidade, do Escola Sem Partido e do Antigênero, entre outros. No dicionário são abordados mais de uma centena deles.
O anti-intelectualismo, além de uma expressão da política fascista, pode ser compreendido como uma atitude de aversão ou um sentimento de hostilidade à comunidade universitária e ao estilo intelectual de vida nutrido em espaços de formação acadêmica e cultural.
São basicamente três lógicas que permeiam o sentimento hostil face a intelectuais e ao pensamento reflexivo: a lógica do irracionalismo, do instrumentalismo e do populismo, que se apresenta como “antielitista”.
No Brasil possui relação com o período de 21 anos de ditadura e tende a misturar continuidades e rupturas com relação a essa história pretérita.
Enquanto as universidades públicas brasileiras são responsáveis por 95% da produção científica brasileira publicada em bases internacionais, segundo estudos realizados pela Clarivate Analytics, elas foram alvo prioritário do negacionismo que reivindica novas fontes de autoridade intelectual.
Os ataques são de natureza material e simbólica, vêm se intensificando especialmente a partir da eleição de Bolsonaro e consistem em propagação de informações falsas, corte de verbas, intervenção na nomeação de reitores, bem como destruição da carreira docente.
As notícias falsas propagadas pelos seus ministros da educação e a redução de R$ 7,8 bilhões do orçamento da pesquisa em 2015 para R$ 4,5 bilhões na última década, são algumas das evidências.
Oescola sem partido (ESP) é um contramovimento social de caráter conservador-cristão fundado em 2004 com o objetivo de atuar contra o que chama de “doutrinação político-ideológica” nas escolas.
Na verdade, trata-se de uma reação a um conjunto de direitos conquistados por movimentos sociais e representantes políticos, em luta pela garantia e ampliação de direitos humanos, nas últimas décadas.
Na escola, o movimento ESP, combate discussões e reflexões sobre temas como evolucionismo, as desigualdades, a pluralidade religiosa e a educação sexual e ignora o fato de que o Brasil possui altíssimas taxas de gravidez precoce, não planejada, que leva adolescentes ao abandono escolar.
Já o movimento político antigênero é aquele que acusa a teoria do gênero – como os feminismos e movimentos LGBTQI+ –, de constituírem uma “teoria de gênero”.
Gênero é um termo conceitual muito utilizado nas ciências humanas na última década do século 20 que se esforçou em desnaturalizar as relações sociais e as desigualdades.
Esse movimento contra o que chamam de “ideologia de gênero” é, no caso brasileiro, a expressão do aumento da participação de lideranças evangélicas e católicos conservadores na esfera da política e no movimento escola sem partido, voltando-se contra o ambiente escolar e a educação.
Advertia Paulo Freire: “não existe educação neutra, toda neutralidade afirmada é uma opção escondida”.
Um projeto, uma proposta, uma intenção ou ideia torna-se ideológica quando é ocultada, camuflada, não explicitada, escondida nas entrelinhas, introjetada no inconsciente coletivo.
Cabe aos processos educativos críticos, científicos, filosóficos e culturais promoverem e exercitarem o pensar livre e a conscientização individual e coletiva. Quando a escola emancipa, os conservadores reagem atacando-a.
Portanto, a partir de janeiro de 2023, a retomada de políticas educacionais estruturais que viabilizem o direito à educação de todas crianças, adolescentes, jovens e adultos, cidadãos brasileiros, com liberdade de opção e pensamento é uma necessidade sócio-histórica e política inadiável, com ampla participação da sociedade brasileira, com sua pluralidade e diversidade.
Retomadas das políticas públicas
Há imensa expectativa, esperança e necessidade que o novo governo restaure, a partir de janeiro de 2023, várias políticas educacionais estruturais de Estado – não de governo.
Essas políticas devem abranger todas as áreas, escutando e legitimando as iniciativas pela participação da sociedade, em regime de colaboração com os entes federados, instituindo um Sistema Nacional de Educação e reafirmando um projeto de nação autônomo, justo e ambientalmente sustentável.
Entidades educacionais e científicas, de reconhecimento nacional e internacional tem analisado e sistematizado, importantes sínteses que apontam a necessidade de algumas revisões e retomada de políticas (entre tantas outras) que devem considerar:
– Respeito da Constituição Federal de 1988, da Justiça Social e da Democracia e contra os desmontes das políticas sociais e educacionais feitas principalmente por meio de medidas econômicas que acirram ainda mais as desigualdades no país;
– Retomada e cumprimento integral do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014) e dos Planos Estaduais e Municipais de Educação em vigência;
– Revogação da Emenda Constitucional 95/2016, do Teto de Gastos, com a retomada do investimento público adequado em políticas sociais e ambientais;
– Recomposição do orçamento da educação, da ciência e da cultura, bem como ampliação dos recursos da assistência técnica e financeira da União na educação básica, com fortalecimento dos programas universais e retomada de critérios e processos transparentes na alocação dos recursos e serviços da assistência voluntária;
– Plena regulamentação e implementação do novo e permanente Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb);
– Financiamento e Assistência Estudantil para os jovens do ensino médio, educação profissional, graduação e pós-graduação;
– Revisão e rediscussão da BNCC e revogação da reforma do novo ensino médio que está em implementação sem participação e escuta dos jovens e das comunidades escolares e desencadeada em plena pandemia no período de 2020-2023;
– Implementação de uma Política Nacional de Educação Ambiental na perspectiva da transição ecológica, sustentabilidade socioambiental e do enfrentamento das mudanças climáticas e do racismo ambiental;
– Retomadas do Fóruns Permanentes de Educação, das Conferências Setoriais e Fóruns de Formação Inicial e Continuada de Professores;
– Escuta dos estudantes e das Juventudes;
– Respeito e valorização da docência, dos pesquisadores e das escolas enquanto espaços públicos das comunidades.
Enfim, muitos desafios à vista que deverão ser sabiamente negociados, retomados e implementados com ampla participação e colaboração do conjunto da sociedade brasileira.
A história demonstra que nações somente superaram crises estruturais quando investiram maciçamente em educação, ciência, tecnologia, cultura e, consequentemente, prosperam na economia, em inovação, e retomaram o caminho do desenvolvimento.
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperançar é agir e participar das transformações necessárias!
Estes dois religiosos são grandes referências da vivência cristã católica no Brasil e esta imagem comunica muito sobre as convicções pela Doutrina Social da Igreja que ambos defendem e vivem, na prática, de modos diferentes. Padre Zezinho focando na música, na comunicação e nos ensinamentos catequéticos. Padre Júlio Lancelotti focando na vivência de práticas de caridade junto aos mais humildes e desprezados socialmente, nas ruas da cidade de São Paulo.
Padre Zezinho, em uma das suas primeiras postagens no seu perfil do Faceboock (depois de um período sem nada publicar por conta dos ataques sistemáticos a ele dirigidos durante as eleições de 2022), reaparece junto com Padre Júlio Lancelotti. Segue o texto que Padre Zezinho escreveu junto ao registro fotográfico com Padre Júlio Lancelotti.
Quando aquela urna eletrônica vale mais do que aquela fila de comunhão!
“Alimentar o povo de Deus com o pão da Bíblia, da reflexão, da catequese, da canção e da explicação diária sobre os fatos que mexem com o povo…
Alimentar com ânimo, pão, água, e remédio todos os dias, milhares de pobres e enfermos ou drogados que vivem debaixo de viadutos e marquises, e em esquinas onde eles se matam aos poucos, tudo isto é tarefa de um padre católico.
E também é tarefa dos padres professores, párocos, e padres comunicadores que arriscam a fazer mídia para ensinar fraternidade …
E há muitos servidores de Deus, que em outras religiões e igrejas fazem o mesmo! A gente se respeita porque cremos no mesmo Senhor e Pai.
Enfim, todos eles saíram do seu conforto para IR AO POVO, e lá cuidar dele, ensinar a orar, motivar a partilha e defender os feridos pela vida e pela pobreza.
Milhares de padres vivem isto. Milhares de sacerdotes vivem isto! E eu nunca pergunto em quem eles votam.
Sei que a maioria deles não se curva a partidos ou ideologias e, sim, que todos estão lá, onde a fé pediu que fossem amar e pensar e viver como Jesus viveu!
E se forem de outra fé, também servem a Deus do jeito que aprenderam a servir.
****
É triste ler que um sacerdote ou pregador da fé e da fraternidade foi rejeitado tal piedoso fiel, porque tal piedoso fiel acha que seu sacerdote votou no 22 ou no 13!
Não lhe bastou saber que já faz anos que ele serve a alguém maior do que qualquer líder político que na última eleição subiu a algum palanque pedindo seu voto?
Sua fé está amarrada a um partido ou a uma urna eletrônica e não a uma pia batismal, um sacrário, um altar ou a uma mesa comum onde ninguém mais passa fome!
(1Tm 6,7-11 )”Com efeito, não trouxemos nada para este mundo, como também dele não podemos levar coisa alguma. Então, tendo com que nos sustentar e nos vestir, fiquemos contentes. Pois os que querem enriquecer caem em muitas tentações e laços, em desejos insensatos e nocivos, que mergulham os homens na ruína e perdição. Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé e se afligem com inúmeros sofrimentos”.
Saudades e esperanças. Que nossas saudades sejam suavizadas e nossas esperanças fortalecidas. Busquemos as forças necessárias para fazer as devidas lutas nossas de cada dia. Lutas para dar conta da própria subsistência. Mas também para promover a justiça social, a democracia plena, a fraternidade universal, a paz ativa e pela ecologia integral!
Há tempo para tudo debaixo do céu, como afirma o autor do livro do Eclesiastes (cap. 3). Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para viver e tempo para pensar sobre a vida e sobre a morte. Tempo para ficar triste e tempo para se alegrar. Tempo para fazer o luto e tempo para empreender a luta. Tempo para se isolar e tempo para se abraçar. Até tempo para colocar máscaras e tempo para tirá-las. Tempo para estar angustiado e tempo para ser feliz.
Em qualquer tempo, não é adequado fazer luto onde se deve fazer a luta; assim como não convém lutar quando apenas cabe fazer luto. Luto é um sentimento dilacerante, de dor extrema. Ele é experimentado quando morre um familiar, um amigo, um vizinho, parente ou uma pessoa pela qual tínhamos muito carinho e admiração.
O luto é também um sentimento experimentado pelas pessoas que são sensíveis e solidárias, que amam o próximo mesmo que ele seja desconhecido, simplesmente por ser humano. Assim, podemos estar em luto pelos mortos da guerra, da Covid-19, dos acidentes nas estradas; pelos mortos pela fome, pela violência e por doenças diversas. Quem pensa na morte e no grande sentido da vida, não vive de maneira fugaz e desrespeitosa com as outras vidas.
Fazer luto por divergência de ideias e de formas de ver o mundo; pela derrota no campo político e democrático; pela perda do campeonato do time favorito, ou por situações similares, é descabido e inadequado. Aí tem-se o direito de ficar triste, de buscar entender as causas; direito de fazer algum tratamento; de esperar a próxima eleição, a próxima partida, etc.
A luta pela luta também não faz sentido e não se justifica. Toda luta tem ou precisa ter sua causa. Mas, as causas podem ser muito diversas e até antagônicas. A luta para ofender, agredir, destruir ou excluir o outro acaba sendo luta diabólica. Por outro lado, há lutas que valem a pena, que fazem a diferença.
A luta de Jesus Cristo, por exemplo, foi pela vida em plenitude para todos (Jo 10, 10). Foi para que todos amassem a Deus (que está no meio de nós) e ao próximo como a si, não para que houvesse ódio acima de tudo e de todos!
Diante do cortejo que levava ao cemitério o jovem, filho único da viúva de Naim (Lc 7, 11 – 17), Jesus ficou triste, enlutou-se. Mas, não só isso. Moveu-se pela compaixão. Agiu para que o jovem retomasse a vida e vivesse plenamente. Essa deve ser também a luta dos que pretendem levar a sério a sua fé cristã. Luta para construir as condições a fim de que todos vivam com direitos e dignidade.
Vamos, pois, neste mês de novembro, também mês dos finados, além de ir ao cemitério, fazer o devido, respeitoso e recomendado luto diante dos que partiram desta vida. Vamos agradecer a Deus pela vida que, apesar de tantos percalços, desencontros, dores e doenças, “é bonita, é bonita e é bonita” (Gonzaginha).
Vamos nos alimentar da espiritualidade capaz de ver no outro um irmão e uma irmã a ser amado e não um inimigo a ser combatido.
Convivamos com saudades e com esperanças. Que nossas saudades sejam suavizadas e nossas esperanças fortalecidas. Busquemos as forças necessárias para fazer as devidas lutas nossas de cada dia. Lutas para dar conta da própria subsistência. Mas também para promover a justiça social, a democracia plena, a fraternidade universal, a paz ativa e pela ecologia integral!
O psicólogo Paulo Cesar dos Santos Braga faz uma interessante análise sobre as diferentes maneiras de cada pessoa encarar o luto, sobretudo, ao passar por diferentes fases. Aborda, também, como a direita e a esquerda brasileira lidam com o luto em função de perdas eleitorais.
“Os estudiosos do luto no mundo nomeiam cinco fases que as pessoas passam ao vivenciar o luto. São elas: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Ao contrário do que se acredita popularmente, o luto é vivenciado em várias situações da vida das pessoas, não apenas ao perder uma pessoa próxima ou um animal de estimação, por exemplo.
O luto pode ser vivenciado ao encerrar um relacionamento, ao receber um diagnóstico de uma doença incurável e potencialmente mortal, como câncer, ao perder um emprego, ao perder uma condição econômica/social (status), e até mesmo em situações que aparentemente são menos complexas, como por exemplo, ao não passar em um vestibular, quando seu time do coração é rebaixado para divisão inferior ou quando disputa uma final de campeonato e perde.
Um exemplo disso também é quando ocorre uma eleição, onde os apoiadores de candidato X ou Y disputam voto a voto. Então, sim, as fotos de luto nos perfis de redes sociais dos apoiadores do candidato Jair não estão erradas, pois sim, muitos dos seus eleitores podem estar passando também por um luto a partir da derrota eleitoral.
A fase da negação do luto é vivenciada geralmente após a notícia. As pessoas se isolam, negam o ocorrido, mesmo que de fato vejam seu ente querido sem vida, ou percebam em si este adoecimento.
O silêncio do atual presidente por exemplo, pode também ser justificada por esta negação, afinal, existia uma expectativa muito alta de se reeleger. O choque da derrota é enorme, e isso também é visto em times de futebol, por exemplo, que ao perder um campeonato ninguém da entrevista.
A fase da raiva é quando extrapolamos o nosso luto para fora de nós mesmos. A dor é tão grande que é impossível deixá-la somente do lado de dentro. É quando recebemos um diagnóstico difícil de lidar ou a notícia da morte de alguém e “explodimos”, chutamos a lixeira do hospital, damos soco na parede, chingando o médico, etc. É um exemplo também quando as pessoas bloqueiam as estradas queimando pneus, deixando a raiva extravasar os limites.
A fase da barganha é quando negociamos com uma divindade ou um “ser superior”. Ao receber um diagnóstico de câncer em estado terminal, a barganha ocorre quando o paciente tenta negociar com o médico ou deus por um pouco mais de tempo de vida. Mas e seu eu me alimentar bem e parar de beber, eu não consigo mais uns aninhos? Deus, se o senhor me livrar desta doença, fazendo um milagre, prometo que irei servi-lo até o final dos meus dias…
É uma busca pelo milagre. E, neste exemplo, encontram-se os atos de hoje dos apoiadores do Jair Bolsonaro, que se ajoelham em frente aos quartéis do Brasil, rezam e oram, pedindo pelo milagre, por mais um tempo livres daquilo que eles não gostam. Estão barganhando com uma divindade, com um ser supremo.
A fase da depressão é quando se vê a realidade desnuda a frente dos olhos, e se percebe que não terá negociação. É quando um paciente de câncer se dá conta que seus cabelos estão caindo devido a quimioterapia intensa, e a tristeza abala tanto que não encontra forças para fazer o básico. Esta fase ainda não chegou para a maioria dos manifestantes, mas possivelmente vai chegar, e tem potencial de trazer dificuldade para cada sujeito.
A fase da aceitação é geralmente o último estágio, e nesta fase as pessoas compreendem o ciclo natural da vida e do tempo, aceitam a realidade e tentam tirar proveito do que ainda resta. É quando um paciente tenta reunir a família, realizar momentos agradáveis e bonitos nos últimos instantes de vida, por exemplo. Ou quando um estudante não passa no vestibular e após vivenciar as demais fases, compreende que a vida não acaba ali e tenta encontrar outras formas de viver ou tentar novamente em alguns meses um novo vestibular.
Os eleitores da esquerda por exemplo, tentaram viver junto aos seus amigos e familiares durante estes 6 anos, já que o golpe ocorreu em 2016. Tentaram se aproximar do que é importante para eles, e assim viveram relativamente bem com seu luto. O que temos visto agora, desde o domingo da eleição, pode se explicar as diferentes reações que passam por cada uma destas fases, mesmo que alguns também possam explicar como birra.
Eu sei que muitos que estão do outro lado são sensatos, e por isso acredito que tão logo vivenciem estas fases do luto, também irão se reorganizar para seguir em frente. Porém, nós psicólogos e profissionais da saúde mental também lidamos com pessoas em luto patológico, que é quando uma pessoa fica em um ciclo que se repete nas fases do luto ou, o que pode ser ainda mais grave, quando a pessoa entra em uma fase e por muito e muito tempo não consegue sair e elaborar em si aquela fase.
Neste caso, eu indico um acompanhamento profissional, para ser cuidado e entender melhor quais os dispositivos psíquicos estão atuando em sua mente.
“O adulto que perde a criança interior envelhece rapidamente. O ser humano saudável é aquele que mantém sua capacidade de brincar. Nas relações afetivas isso é essencial” (Dr. Sérgio da Silva Lopes – in “O Código do Monte” – Ed. Fergs)
O período de infância, rico de possibilidades, de aprendizados espontâneos, de construção da identidade moral, do caráter, está sendo negligenciado pela família. As crianças precisam ser estimuladas a brincar, jogar, praticar o lúdico. Etimologicamente, brincar significa criar vínculos, socializar-se, conviver com o outro de forma prazerosa, de trocas e formação de regras que surgem naturalmente e que ajudam a consolidar a personalidade a em formação de maneira positiva.
Brincar com os filhos, entrar na brincadeira deles, sem instituir regras, desenhar, pintar juntos, criar histórias, cantar, dançar, encorajar a curiosidade natural da criança, caminhar, passear lado a lado, num parque, correr, jogar bola, peteca, dar risada uns dos outros, tudo feito naturalmente, sem pressa e sem celular, são folguedos saudáveis que promovem o sentimento de felicidade genuína para a criança. São momentos que a imunizam emocionalmente para o envolvimento com a drogadição e delinquência na adolescência.
Utilizando brinquedos simples, muitas vezes improvisados que se transformam, pela rica imaginação infantil, promovida pela plasticidade de seu pensamento, em navio, palácio, carro, casa, animal ou pessoa, e assim por diante, o infante vai se preparando para enfrentar os desafios da vida no futuro. Estas atividades lúdicas promovem a interação entre ele e outras crianças e também com os adultos que entram na brincadeira, e é atividade plena de sentido.
Nas cidades, existem poucos espaços para a atividade infantil. A criança é cercada dentro do lar, nos condomínios, pátios pequenos ou em escolas com locais naturais reduzidos. Ela precisa brincar com coisas simples como pauzinhos, pedrinhas, areia, água, folhas secas, pedaços de papel, lápis, giz, tinta, e assim vai deixando sua marca, seus desenhos nos lugares por onde passa, repetindo a história de seus antepassados. Nesta brincadeira, ela está se descobrindo e descobrindo seu espaço.
O período da infância, por equívoco da cultura atual, está diminuindo; crianças são estimuladas a queimar etapas importantes da infância e adolescerem mais cedo. A adolescência está invadindo o período da infância e da idade adulta, acompanhando outro fenômeno social que é o desaparecimento da adultez.
Devemos estimular a criança a ouvir, a criar e contar histórias. As histórias tornam-se um guia para o conhecimento da alma da criança. Podemos pedir às crianças que já estejam alfabetizadas que escrevam a história de sua vida, ou desenhem. Podemos ajudá-las a descobrir novos termos, enriquecer seu vocabulário, desta forma seu pensamento vai fluir através das palavras ou imagens. Elas gostam de receber mensagens escritas ou com desenhos, sempre se emocionam com estas manifestações. As palavras dos adultos devem brotar do coração, ser carregadas de sentimento e irão provocar momentos felizes para elas. Mesmo que tenhamos que corrigí-la.
Evitar depreciar com palavras a criança e o jovem porque as energias emitidas são a capturadas pelo psiquismo dos mesmos na forma negativa em que foram emitidas. Antes da corrigenda, o adulto deve se acalmar, respirar fundo e, de forma harmônica, analisar com infrator o equívoco e procurar corrigi-lo.
Tanto na fase infantil quanto na juvenil, a mente é repleta de sonhos, esperanças para o futuro, projetos de vida que irão se concretizar ou não. Sonhar passa a ser tão natural quanto respirar.
Os adultos devem questionar, carinhosamente, sobre estas futuras projeções: O que você está fazendo hoje para conseguir realizar o que sonha? Como pensa que será sua vida daqui a dez anos? Ajudar a aliar o sonho com a realidade sem destruir a esperança em seus corações pois os desejos e a imaginação precisam ser estimulados para que possam ser expressados.
A criança desobediente e mal comportada revela uma alma atormentada e desajustada, que se considera, inconscientemente, rejeitada, não amada. O desprezo pelos sentimentos expressos na infância e que são sufocados leva à dificuldade de comunicação na idade adulta. Quando o adulto silencia e se dispõe a escutar o infante, dar-lhe toda a atenção, acolher e ouvir o que ele tem a dizer, de forma receptiva, ele vai externar livremente que está sentindo e se aliviar emocionalmente.
A inteligência, que se expressa através do cérebro, tem fases de maturação e evolui por etapas. O senso moral vai se formando antes dos quinze anos. Se a criança ou adolescente apresentar um comportamento delituoso antes dos quinze anos e não for corrigido a tempo e reeducada, a chance de apresentar comportamentos e atitudes equivocadas e tornar-se adulto problemático é muito grande.
A criança tem muito entusiasmo por tudo que é normal, comum e natural. O espírito infantil é essencialmente imaginativo, criativo, a princípio tudo tem vida para ela. Atualmente os pais, por comodismo, estão embotando essa tendência natural quando oferecem somente brinquedos eletrônicos, movidos à pilha, barulhentos ou programas televisivos, jogos de videogame, celulares e outros. Alguns desses aparelhos possuem programas ou jogos inadequados, indecentes, violentos, contaminando a tendência natural da criança ao que é bom, belo e verdadeiro.
Os estudos sobre este assunto apontam que o uso indevido, prolongado de assistência destes programas artificiais ofusca a capacidade criativa e imaginativa da criança, que se torna passiva, fria e, às vazes, violenta.
Muitas ficam condicionadas, viciadas, ao som e imagens de certos programas e a tela dos vídeos passa a comandar suas vidas; elas não têm mais vida própria, não sonham, não acalentam esperança, nem têm imaginação para colorir suas vidas. Ficam alienadas. Os professores enfrentam este problema em sala de aula com o celular dos alunos….
Interessante ressaltar que o espírito de caridade existe naturalmente na criança. Ela é altruísta por natureza. A medida que cresce, por causa da cultura, ela vai se distanciando desse sentimento. Ela pode ser despertada para o valor de sua colaboração em um trabalho de grupo onde se sentirá útil dentro de um projeto coletivo. Se ela está emocionalmente educada apresenta maior capacidade de empatia e habilidade para resolver problemas de relacionamentos.
Os pais e professores podem estimular mais atividades ao ar livre e momentos descontraídos de arte, como: desenhar, pintar, ler, ouvir música, dançar, faze r escultura, dobradura, cantar, declamar, observar o tempo pela janela que é um quadro vivo e aproveitar todo o encanto e a magia que a infância oferece.
Uma questão importante é ensinar a criança a relaxar pois seus enrijecimentos musculares são comuns nesta fase, ela reclama de dor de cabeça, de barriga, cansaço, irritação, mau humor. Para atenuar estas tensões o adulto precisa orientá-la a descontrair pois o relaxamento provoca repouso e calma interior, mais harmonia e equilíbrio diante das exigências da vida.
A respiração superficial reduz o equilíbrio do corpo e da mente. Ensiná-la a relaxar através da respiração, fazendo isto de forma consciente: inspirar profundamente pelo nariz, encher os pulmões, alargar o diafragma, segurar a respiração, expirar, soltar o ar pela boca suavemente: repetir o exercício várias vezes. Esta ação inunda a criança de novas energias e de paz. Ao se exercitar dessa forma consciente ela vai se autoconhecendo, ajudando seu organismo a se harmonizar e se abrindo a novos aprendizados. Este exercício pode ser utilizado como experiência gostosa de encher balões e esvaziá-los, várias vezes, explicando que nosso pulmão é como o balão. A respiração é um aspecto importante da consciência corporal.
É normal que as crianças sofram de ansiedade sempre que tiverem de enfrentar situações novas. Se estiverem treinadas, saberão respirar profundamente e expulsarão a ansiedade, sentirão bons pensamentos que irão proporcionar a sensação da segurança e equilíbrio emocional e físico.
Conter a respiração é um mecanismo natural de defesa e expressa os estados emocionais que revelam ansiedade, temor de algum perigo, insegurança. A respiração deficiente gera sentimentos de derrota, impotência e medo. Respirar é oxigenar o cérebro. Ao respirar pouco, por expectativa de alguma coisa ou medo, o cérebro recebe pouca oxigenação, por consequência, vem apatia, desatenção e insegurança. Se a respiração ofertar grande quantidade de oxigênio ao cérebro somos induzidos a agir e reagir.
A raiva acelera a respiração, o medo paralisa, há bloqueio da ação, o corpo paralisa. Ao contrário, os estados de tranquilidade provocam uma respiração mais profunda, resultando em serenidade e paz.
Na escola, o exercício ritmado da respiração no grupo de alunos, em sala de aula, ajuda a estabelecer o contato emocional entre todos, de forma descontraída, despertando a criatividade e a camaradagem. Todos, a partir daí, vão se envolver na proposta de atividade do professor.
Nossa reflexão sobre a questão do valor do brincar e do ensinar a criança a descontrair tem por objetivo destacar a grande importância na vida do ser humano da fase infantil. A criança de hoje que é amada, protegida, nutrida, orientada, respeitada nos seus direitos vai desenvolver os sentimentos da afetividade, da harmonia, da saúde e do discernimento que lhe tornarão uma pessoa emocionalmente equilibrada e feliz no futuro, sua vida será plena de sentido. Que bom se tivermos contribuído para que isto aconteça.
O Estado não pode se intrometer na vida privada das pessoas, mas deve, por outro lado, garantir que as escolhas pessoais da religiosidade possam ser livremente exercidas, sem a sua intervenção ou de outrem.
Nas democracias contemporâneas, consequentemente, nas sociedades liberais[1], tanto o Estado quanto as demais instituições a ele relacionadas têm um dever prestacional frente a obrigações a ele inerentes, como o atendimento às demandas sociais, que, constitucionalmente, são sua responsabilidade. Portanto, um dever positivo de ação e direção frente ao conjunto da sociedade.
Por outro lado, há um dever de omissão, de afastamento, de não ingerência naqueles assuntos que não envolvem uma obrigação prestacional, mas que estão na esfera da individualidade de cada cidadão. Assim, uma responsabilidade negativa, incluída no rol do que, modernamente, se observa como a liberdade do cidadão frente ao Estado. Liberdades que são de livre exercício do cidadão, considerando a sua independência e liberdade ética pessoal.
Essa distinção demonstra uma delimitação necessária entre o público e o privado. O espaço púbico[2] é a arena da coletividade política, das relações dos indivíduos ou de grupos com o Estado. E o espaço privado é aquele em que o Estado não deve ter interferência. Pertence ao mundo do indivíduo – na própria condição individual ou de determinado grupo a que pertence ou com quem convive, no âmbito privado. É neste cenário que se encontra a religiosidade.
O exercício de determinada crença religiosa pertence ao campo da vida privada do cidadão, sem qualquer possibilidade de intromissão do Estado. Essa é uma condição necessária e fundamental para o exercício independente e responsável da vida privada das pessoas, algo que fundamenta a ideia de autodeterminação pessoal. É base, inclusive, para a defesa da própria democracia. Pertence, portanto, ao campo da responsabilidade ética pessoal de cada um.
Assim, o Estado, que não pode se intrometer na vida privada das pessoas, deve, por outro lado, garantir que as escolhas pessoais possam ser livremente exercidas, sem a sua intervenção ou de outrem. Não é por outro motivo que, no Brasil, essa condição recebeu proteção constitucional, fazendo parte do rol dos direitos individuais e coletivos, garantidos pelo pacto republicano.
Assim, a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício de cultos e a proteção aos seus locais de exercício, a prestação de assistência religiosa e a garantia de que ninguém será privado de seus direitos por motivos de crença religiosa constam de forma clara como garantia inviolável na Carta de 1988[3].
Entretanto, essa prescrição teórica liberal nem sempre se compatibiliza com a vida cotidiana, principalmente em democracias incipientes, como é a brasileira. Na prática, o Brasil tem em sua história uma profunda confusão entre o público e o privado. Basta ver a relação patrimonialista que uma casta social privilegiada tem mantido com o Estado desde os primórdios da colonização. Atualmente, porém, mais um ingrediente tem sido inserido nessa (con)fusão entre as coisas da vida privada e a coisa pública.
Com a estreita relação entre a igreja e a política, por meio do ingresso de líderes religiosos tanto na política quanto no Estado, principalmente os da atualmente chamada Bancada Evangélica[4], ocorre um fenômeno de desprivatização desse aspecto da vida, ou seja, da religiosidade de cada um.
Há uma espécie de sacralização do que antes era profano (ou profanação do que antes era sagrado), com o ingresso da política nos templos religiosos, cuja cisão poderia ser claramente identificada entre as coisas de Deus, de um lado, e as coisas do mundo, de outro.
A democracia é o melhor de todos os regimes políticos! Essa afirmação, com todas as variações possíveis, é encontrada na argumentação de qualquer um que a defenda. Uma variação, talvez não tão comum, mas importante para a nossa análise, é a de que a democracia promete ser a melhor forma de proporcionar uma vida boa para todos os membros de determinada comunidade política. Leia mais: https://www.neipies.com/a-democracia-no-espelho-como-os-predadores-fragilizam-a-democracia-expondo-a-ao-populismo/
Esta reflexão é parte do livro A democracia no espelho: como os predadores fragilizam a democracia expondo-a ao populismo, lançado em 2022.
Autor: Edson Luís Kosmann
[1] No sentido do liberalismo prescrito por Ronald Dworkin.
[2] Para evitar confusão, utiliza-se, aqui, a terminologia que distingue o espaço público do espaço privado como sendo o primeiro o público-estatal. Ou seja, o espaço público é o que está sob a responsabilidade do Estado. Já por espaço privado entende-se o conceito em seu sentido amplo: desde o espaço privado mais restrito, como a casa das pessoas, como, também, aqueles espaços privados que pode ser frequentado pelo público ou têm acesso ao público. Portanto, não se ignora que há espaços privados que são de uso público, como cinemas, museus, igrejas, shopping centers etc. Contudo, não são espaços públicos-estatais.
[4] A Bancada Evangélica foi constituída na Câmara dos Deputados com a principal finalidade de exercer influência moral conservadora nas políticas públicas. Foi denominada de “Frente Parlamentar Evangélica”, e atua como uma sociedade civil de caráter não governamental, com estatuto e regimento interno próprios. BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume, 2009.
Podemos mudar o rumo do estado com a nossa participação. #Vamosjuntas.
Precisamos de mais mulheres na política.
E elas precisam saber que são capazes de ser líderes!
Eu acredito que não existe qualificação da democracia e do debate público sem o fortalecimento do Poder Legislativo por meio da presença de mais mulheres na política. Acredito que nós, mulheres, somos fortes, principalmente quando caminhamos juntas.
No entanto, Passo Fundo ainda é uma cidade extremamente machista.
Por tudo isso, coloquei meu nome a disposição do meu partido, o PT, para disputar uma vaga e ser a primeira mulher trabalhadora de Passo Fundo na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. A Assembleia gaúcha tem 187 anos e nosso município completou, em 2022, 165 anos de emancipação político-administrativa. Mesmo com quase dois séculos de história, até hoje, NUNCA elegemos uma mulher da nossa cidade como Deputada Estadual.
Foi pensando em disputar e modificar essa realidade que, junto com o coletivo de lideranças que me acompanha, eu aceitei o desafio e me candidatei à ALERGS em 2022. Fiz quase onze mil votos e, destes, cerca de sete mil foram aqui em Passo Fundo. Fui a única mulher entre os dez mais votados na cidade e a segunda mais votada entre os e as vereadoras candidatas da Câmara de Vereadores de Passo Fundo. Fui votada em mais de trezentos municípios gaúchos.
Ocorre que uma campanha feminina, muito mais do que as masculinas, para ser competitiva, demanda de um grupo de apoio forte, com voluntariado organizado, equipe de profissionais contratadas para a área jurídica, contábil, comunicação, mídias, panfleteação, infraestrutura, mobilização, material impresso, entre tantos outros fatores.
Segundo a pesquisa Gênero e Raça nas Eleições de 2022, realizada pelo Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP), da Universidade de Brasília, a campanha eleitoral é extremamente desigual entre os gêneros. As mulheres candidatas enfrentam muitas barreiras e precisam superar obstáculos que não estão no caminho dos candidatos homens.
Quando observamos apenas as candidaturas eleitas, ou seja, aquelas que foram muito competitivas e conquistaram uma cadeira, a média de recursos gastos é consideravelmente superior ao financiamento dos homens para viabilizar o seu sucesso eleitoral. A pesquisa apurou também, que para manter-se na carreira política elas precisam contar com maior qualificação e também renda.
No Rio Grande do Sul os números confirmam a pesquisa: o valor investido por voto pelas candidaturas à Assembleia Legislativa em 2022, por exemplo, é muito mais caro para as mulheres candidatas. Isso porque, enquanto os homens eleitos gastaram, em média, R$ 4,21 para cada voto conquistado, as mulheres eleitas precisaram investir em média R$ 11,37.
Ressalto, ainda, que a maioria dos partidos políticos não incentivam e nem apoiam a participação das mulheres nos espaços de organização e de comando partidário, não garantem recursos financeiros para as candidatas, não proporcionam o preparo político das mulheres para uma campanha eleitoral e muitas vezes acabam usando as mulheres como “laranjas”.
Outro fator que impacta diretamente na caminhada das mulheres rumo à conquista de uma cadeira é a violência política de gênero, que pode ser física, sexual, simbólica, psicológica e econômica.
Para além disso, a sobrecarga de trabalho assumida pelas mulheres com o casamento, em especial quando elas têm filhos, é um obstáculo adicional para a sua participação na política, sem que o mesmo aconteça para os homens. Códigos culturais de natureza patriarcal podem também se traduzir em maior apoio familiar para eles, quando decidem trilhar a carreira política.
Porém, mesmo com todos esses obstáculos que se colocam no caminho das mulheres que desejam disputar espaços na política institucional, nesse ano, no Rio Grande do Sul houve um aumento no número de representantes mulheres em cargos legislativos: a partir de 2023, serão 11 deputadas, distribuídas em oito siglas, duas a mais que na legislatura atual. Mas a diferença ainda é muito expressiva, uma vez que a ALERGS possui 55 cadeiras. Precisamos continuar sonhando com um outro cenário político, com mulheres que defendem a democracia, a igualdade e a justiça social.
Parafraseando Belchior
Presentemente eu posso me considerar uma “sujeita” de sorte Porque apesar de muito “moça”, me sinto “sã e salva” e forte E tenho comigo pensado, “as Deusas são brasileiras e andam” do meu lado E assim já não posso sofrer no ano passado Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro…
Nossa luta é coletiva e permanente. Encerramos a campanha e o primeiro turno, entre vitórias e derrotas. Com a certeza que o nosso trabalho continua.
Estamos de parabéns, pela trajetória que estamos trilhando.
Gratidão pelo apoio de cada uma e de cada um!
Autora: Eva Valéria Lorenzato Vereadora pelo PT/Passo Fundo