Início Site Página 56

Como mentir com estatísticas educacionais

Muitos jovens não escolhem a universidade com base nas suas paixões. Todos dizem a eles: ‘Escolha a faculdade que vai lhe fazer ganhar dinheiro’. É assim que estamos corrompendo os jovens. (Núccio Ordine, filósofo italiano)

Um livro clássico intitulado Como mentir com estatística, escrito por Darrell Huff, publicado em 1954 nos Estados Unidos, o autor demonstra de forma muito direta como números que parecem tão fortes são na realidade frágeis, quando não totalmente falsos, formando castelos de areia que ruirão após uma análise mais detalhada, ampliada e desprovida de ideias preconcebidas.   

No país da desigualdade, a forma como os dados educacionais brasileiros são organizados e divulgados induzem, geralmente, a conclusões imparciais, pontuais e insuficientes para produzirem uma compreensão cabal dos verdadeiros impactos da educação na vida das pessoas e na estrutura da sociedade brasileira.

Cabe relembrar que, a educação, é um processo complexo que requer análises e evidências ancoradas em processos e séries históricas de médio e longo prazo.

O Censo da Educação Básica de 2022, divulgado recentemente, serviu de palco para reforçar teses parciais e conclusões tendenciosas. Ele apontou e destacou avanços no ano de 2022 se comparando com dados de 2020 e 2021, que foram os piores anos para a educação, devido a pandemia e a falta de políticas e gestão do MEC. Se estendermos a análise para os anos anteriores a pandemia, veremos que não tivemos avanço algum, pois, sequer recuperamos os avanços da década passada (2010-2019).

Outra perspectiva necessária é relacionar os impactos educacionais decorrentes das políticas do governo Temer (2016-2018) e suas reformas educacionais (BNCC, reforma “novo” ensino médio); do governo Bolsonaro (2019-2022) que praticou o desinvestimento em educação reduzindo 25% o orçamento para educação; relacionar com o descumprimento deliberado das Metas do PNE 2014-2024 pela União, Estados e Municípios, além do contexto pandêmico que ainda vivenciamos. Ou seja, a educação requer um olhar de totalidade por períodos históricos mais amplos e políticas (des)estruturantes praticados pelo estado brasileiro.

Porém, os próprios dados do Censo da Educação Básica (EB) de 2022 precisam de um outro olhar e questionamentos, como: Por que ainda temos 1,04 milhão de crianças e adolescentes fora da educação que é considerada obrigatória nesta faixa etária de 04 a 17 anos, conforme PEC-59/2009? Por que temos taxas de insucesso tão elevadas no 6º ano (4,3%) do ensino fundamental  e  9,8% no primeiro ano do Ensino Médio? Por que a Educação de Jovens Adultos (EJA) diminuiu 21,8% entre 2018 e 2022 chegando a apenas 2,8 milhões de matrículas em 2022? E, porque, o Ensino Médio que teve 347 mil matrículas (-5,3%) a menos em 2022, agravando uma tendência dos últimos 16 anos?

Aliás, sobre o Ensino Médio (EM), maior desafio da educação brasileira atual junto com o tema do financiamento da educação, precisamos ampliar o olhar para, no mínimo, três décadas atrás.

De 1991 até 2021, período de 30 anos, o EM cresceu 100%, passando de 1,56 milhões de matrículas para 8,5 milhões em 2005. Porém, desde 2006, descreveu – 15%, baixando agora para 7,8 milhões. Esta queda de mais 5,3%, somente em 2022, agrava esta etapa da educação básica, pois o Brasil continua com 48 milhões de jovens entre 14 e 29 anos.

Ao relacionarmos o EM com a expansão do Ensino Superior (ES) no mesmo período de 1991 até 2021, evidencia-se o paradoxo e a gravidade da condição educacional brasileira. O ES expandiu-se, no mesmo período, 475%, sendo 619% no ensino superior privado (período governo FHC) e, 245% no ensino público (período Lula/Dilma). Atualmente, a expansão no ES somente se mantém impulsionada pela EAD, que cresce no segmento privado, cujos ingressantes superam as matriculados presenciais.

As matrículas no EM estão em queda há 16 anos, formando anualmente, somente, 1,8 milhões de jovens. Este número é bem inferior aos ingressantes no ES, que superam 3 milhões ano, causando impactam no sistema de ensino superior federal, com ociosidade de vagas nas IES privadas e, inclusive, nas universidades públicas. Cabe lembrar que o ingresso no ensino superior está estagnado desde 2015 no Brasil, coincidentemente, após implementação das políticas dos governos Temer e Bolsonaro.

Portanto, não é a pandemia a responsável pela situação dramática do EM e do ES no Brasil, mas o desmonte das políticas públicas educacionais recentes, redução de investimentos e as reformas em curso. O “novo” ensino médio já está agravando e acentuando o insucesso dos estudantes e desmotiva que jovens de escola pública sonhem com formação de nível superior, incentivando a permanecerem no nível médio com qualificações profissionais fragmentadas. Por um conjunto de razões precisa ser revogado imediatamente. Reformá-lo não é a solução.  

Outras relações e estatísticas precisam ser consideradas quando abordamos a educação no contexto brasileiro. Tanto relatório da UNICEF, como pesquisas da FGV Social, abrem as lentes para a correlação com as desigualdades sociais, econômicas, a pobreza e a fome dos estudantes.

Segundo UNICEF, pelo menos 32 milhões de meninos e meninas no Brasil vivem na pobreza. O número representa 63% do total de crianças e adolescentes no país e abarca a pobreza em diversas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação. É o que indicou a pesquisa As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil, divulgada em fevereiro de 2023 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Estudos recentes da FGVSocial sobre Retorno para Escola, Jornada e Pandemia, demonstram que: 1)  o segmento mais adversamente afetado na pandemia foram os estudantes novos, na faixa de 5 a 9 anos, que sofreram evasão mais alta; 2) o tempo de escola para alunos de 6 a 15 anos caiu drasticamente (2 horas e 23 minutos por dia útil); 3) a falta de atividades escolares percebida pelos estudantes é mais relacionada à inexistência de oferta nas redes escolares do que a problemas dos próprios alunos; 4) queda na qualidade do ensino brasileiro na pandemia foi superior em comparação com os demais países; 5) os estudantes mais prejudicados foram os mais pobres e residentes em regiões remotas, entre outras constatações. Portanto, não foi só a pandemia que impactou a educação, mas a falta de (re)ação dos gestores por meio de políticas públicas de inclusão e assistência em situação de emergência sanitária e educacional. 

Nesta perspectiva de ampliar as estatísticas educacionais com outros correlações e pesquisas, recente estudo publicado pelos pesquisadores Guilherme Lichand e Maria Eduarda Perpétua, da Universidade de Zurique (Suiça) e, Priscila Soares (USP), apontam que a elite econômica do Brasil capturou até 65% dos ganhos que os trabalhadores brasileiros tiveram com o aumento na escolarização para o nível fundamental, 60% para o nível médio e 30% para o superior, nos últimos 40 anos.

Neste período de quatro décadas, apesar dos avanços, os 10% mais ricos (o topo da pirâmide), continuaram ganhando até 50% mais que a metade mais pobre, ainda que eles tenham o mesmo nível de escolaridade. “Pelos resultados, podemos observar, se duas pessoas conseguem um diploma de ensino médio, ambas vão ter recompensas pelo investimento de tempo e dedicação, mas essa diferença é 50% maior se uma delas for da elite”, esclarece Lichand.

O que estes dados revelam é que os brasileiros de menor renda ganham menos no mercado de trabalho até mesmo quando conseguirem estudar mais. A discrepância ocorre, também, por questões raciais. A recompensa salarial para cada diploma é de até 50% maior para brancos e amarelos em relação a pretos, indígenas e pardos (pelos critérios do IBGE). Esta distância cresceu ao longo do tempo para o ensino fundamental e médio. Ou seja, talvez não seja o esgotamento da inclusão na educação, mas sim, o fracasso da inclusão em compartilhar retornos.

As categorias classe social, raça e gênero são fundamentais e estruturantes na educação.  

Esta perspectiva de análise de estatísticas educacionais, correlacionando com raça, renda e pobreza, desmonta a teses ideológicas da OCDE, dos Institutos e Fundações Empresariais, de perspectivas educacionais ancoradas na meritocracia individual, nas avaliações de desempenho, na ideologia “querer é poder” e no discurso simplista que a escolaridade por si só aumentará a renda dos trabalhadores em um país que ainda pratica o trabalho análogo a escravidão. No caso brasileiro, para os pobres, negros e indígenas não é corresponde e, inclusive, já é fator de desistência e descrédito para com o valor da educação em si.  

Por fim, não é a estatística ou o indicador educacional que mentem por si, mas a descontextualização e a linguagem secreta dos números, tão atraente em uma cultura votada para os fatos, empregada para reforçar, inflar, confundir e produzir simplificações enganadoras.

Métodos e termos estatísticos são necessários para relatar tendências socais e econômicas, pesquisas de opinião e censos, mas, na educação, requer-se responsabilidade ética, correlações de fatores diversos e análises enquanto totalidade e complexidade do processo formativo da condição humana.  

Autor: Gabriel Grabowski

O sofrimento faz parte da vida

A filósofa e escritora Viviane Mosé conversa sobre vida, morte, sofrimento, o papel da arte e saúde mental, em entrevista ao jornalista Adriano de Lavor, 30/08/2022, Revista Radis. Confira!

Psicóloga, psicanalista, filósofa e escritora, a capixaba Viviane Mosé se sente à vontade para falar sobre saúde mental, não somente por sua formação, mas pelas inquietações e reflexões que a levaram a questionar modelos de raciocínio e verdades absolutas. “Não existem doenças psíquicas, existem diferenças psíquicas”, disparou ao primeiro momento da entrevista que concedeu à Radis, durante o 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, antes de lotar uma das sessões mais disputadas do encontro, que aconteceu no fim de julho na cidade de São Paulo.

Na conversa, ela apresentou um mundo em transição, descrevendo metaforicamente dois movimentos: um prédio que nasce, representando a libertação dos corpos em contraponto à normatividade da razão, e um prédio que cai, constituído pela dificuldade humana em lidar com o sofrimento da certeza de sua própria finitude. Neste cenário, criticou a medicalização excessiva da tristeza e destacou a potência da arte e da complexidade dos corpos como antídotos à loucura. “O sofrimento faz parte da vida e tem que ser tratado com arte”.

“A negação da arte nos hospitaliza”, advertiu Viviane, que defendeu a construção de um novo modelo de saúde, que inclua o delírio, o erro e a fantasia, e destacou o quanto são potentes as vivências da diversidade. Corpos livres, diferentes e potentes contra o controle dos psicofármacos; vidas em diversidade, conectadas pelo uso consciente de instrumentos de comunicação e de construção do conhecimento. “A vida é o que a gente inventa”, propôs a filósofa, vislumbrando um novo ser humano, mais consciente das complexidades de seu corpo e da mente, mais integrado à sociedade e suas complexidades.

“Não existem doenças psíquicas, existem diferenças psíquicas”.

De que modo a saúde mental se relaciona com o seu trabalho?

A saúde, especialmente a saúde mental, é meu tema de trabalho a vida inteira. Com 17 anos eu já estava na faculdade de Psicologia, e a minha carreira veio daí. A Filosofia entrou na minha vida como um complemento. E todo o meu trabalho de Filosofia diz respeito ao humano. Minha palestra de hoje é por um ser humano mais amplo. Daí eu discuto o modelo psíquico que nos é imposto e a nossa subjetividade, que é um modelo. A minha questão fundamental não é curar doenças, mas produzir saúde. É a produção de saúde, não a cura de doenças.

Não existem doenças psíquicas, existem diferenças psíquicas, e algumas doem muito, mais do que outras diferenças. Esse é meu trabalho a vida inteira. Por isso estou aqui.

Na apresentação do congresso, um texto destaca o lirismo de Manoel Bandeira, quando diz: “Quero antes o lirismo dos loucos / o lirismo dos bêbados / o lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare / Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. Neste momento em que se busca ou se defende a racionalidade tecnológica, como usar o lirismo para promover a saúde mental?

Eu não concordo que haja uma busca pela racionalidade. Ninguém está buscando racionalidade e não há racionalidade. Nós vivemos hoje a queda drástica da razão. A razão é um modelo de raciocínio que nasceu no pensamento platônico-socrático, mas que se estrutura na modernidade com o pensamento cartesiano. E o pensamento cartesiano, segundo Michel Foucault, é o início da exclusão dos loucos. Como é que começa essa exclusão? Quando eu digo “penso, logo existo”. Mas eu não existo porque penso; eu existo porque eu sinto. Então a ideia cartesiana de “eu existo porque eu penso”, que marca o início da modernidade, nos diz que não é que eu existo porque eu penso; ela nos diz que eu existo porque eu penso do modo cartesiano. Então quem não pensa do modo cartesiano está no lugar da (des)razão. É aí que a história da loucura começa.

“A vida é o que a gente inventa”.

Quais os reflexos disso para a vida?

O que nós temos no mundo é um modelo psíquico que foi inventado e que funciona a partir de um raciocínio em linha, que estabelece que de um lado está o bem e do outro, o mal. Isso não é real. Todo mundo sabe que existem bem e mal, mas ninguém sabe a diferença, onde se encontram um e outro. Ninguém sabe a diferença entre sanidade e loucura, porque a razão (o modelo racional de raciocínio) é um dos maiores produtores de violência e de sofrimento psíquico. Este modelo racional e cartesiano está em franco desabamento.

Hoje nós vivemos o caos da queda da estrutura civilizatória; vivemos a urgência e a necessidade da queda dessa estrutura, e ela cai muito em função das novas mídias, quando saímos de um modelo vertical de gestão para um horizontal. Neste novo modelo também há espaço para a defesa da Terra plana e para a crença de que a vacina não presta, mas isso é bolha, é consequência da liberdade do pensamento que veio com a internet. Hoje vivemos um caos porque tínhamos um modelo pronto de verdades, que eram excludentes, e elas caíram. Ainda bem! Mas ainda não temos uma nova possibilidade. Eu leio esse novo momento como a queda do modelo lógico-racional como predomínio e o nascimento de outros modos de pensar. Isso traz outros seres. E o que é esse novo modo de pensar? É o modo de pensar que inclui o delírio. Não existe um ser humano sem delírio. Todos deliramos, todos imaginamos. Nós todos somos líricos. A vida é o que a gente inventa. Então quando a gente separa a loucura da razão e a chama de (des)razão, nós estamos dizendo que a razão é um pensamento sem loucura e que a loucura não tem razão. Isso não é verdade. A loucura tem a sua razão. Ela tem seu modo de organização. Assim como a razão também tem loucura e delírio. A gente tem que inventar um modelo psíquico que inclua a fantasia e o delírio na nossa vida, que inclua o erro. Temos que ampliar o modelo psíquico não para nos tornarmos melhores como seres humanos, mas para nos tornarmos maiores. Tornando-nos maiores nós incluímos. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas deliravam, viam santos e ninguém as chamava de malucas. Havia um delírio incluído. É claro que na Idade Média também havia pessoas que divergiam. Sempre há quem diverge do modelo e sai na ponta. Mas o importante é perceber que essas pessoas não eram chamadas de doentes. Essa é a questão. Existem diferenças psíquicas; existem pessoas que não conseguem entrar na nossa ordem. E isso não é uma doença.

Ao chamar o seu sofrimento de doença, você fica sob o domínio de quem lhe cura. E quem lhe cura não é um terapeuta, é a medicação psiquiátrica, que cria dependência”.

Mas as políticas públicas e o mercado não tentam estruturar isso de outro modo? Não há um conflito aí?

Quando eu falo isso é porque eu estou fazendo um complô em favor disso. Eu estou aqui para dizer: “Tudo caiu!” Mas é obvio que o mercado vai levar isso por um outro caminho, para uma nova ordem, que é castradora. Mas esse é o melhor momento para a gente, entende? Apesar de todo o sofrimento que ele traz, nós podemos entubar uma nova possibilidade, porque não tem ninguém coordenando esse troço. O mercado virou um salve-se quem puder. É terrível, é cruel. Quem manda hoje no lucro capitalista, basicamente? A indústria farmacêutica! Você fecha uma loja, um restaurante ou um centro cultural e ali abre uma farmácia de quatro quarteirões. É algo inacreditável. A farmacologia, especialmente a psicofarmacologia, aparece como saída para todo mundo que sofre! Mas o sofrimento é parte da vida, e ele tem que ser tratado com arte. Quando a Organização Mundial da Saúde diz que no século 21, se não fosse a pandemia, a doença mais incapacitante do mundo seria a depressão, é porque está se considerando depressão uma diferença individual que diz respeito ao sofrimento.

Hoje, sofrer é ter depressão. Peraí! Então todo mundo que sofre tem depressão? O que é isso? Tornaram-nos deprimidos e a indústria farmacêutica — que não investe em pesquisa e cobra caríssimo pelos seus medicamentos — gasta seus milhões em mídia. Só que mídia de medicação produz doença. Então hoje existe uma produção de depressão para controle social. Passamos a ser controlados por medicações psiquiátricas, e elas são muito competentes. Até a mãe que está amamentando uma criança, cansada, faz um Tik Tok reverenciado o uso de remédios como Rivotril ou Frontal. O que é isso? Então para se ter um filho tem que tomar Frontal? Rivotril, três gotinhas. Isso é moda no Tik Tok: todo mundo que está sofrendo tem que tomar umas gotinhas. Isso também é a destruição da humanidade e é muito grave. Nós não somos deprimidos, estamos sofrendo. É preciso parar de chamar de depressão o sofrimento. Porque ao chamar o seu sofrimento de doença você fica sob o domínio de quem lhe cura. E quem lhe cura não é um terapeuta, é a medicação psiquiátrica, que te cria dependência. Hoje a gente tem uma revolução na psicofarmacologia, com medicamentos incríveis, não é isso? Então por que nunca tivemos tantos deprimidos, suicidas e automutiladores? A medicação psiquiátrica está aumentando o número dessa gente. Então o ser humano tem que resgatar a sua existencialidade e o seu sofrimento para se libertar desse controle social, feito por quem mais lucra no mundo, que é a indústria farmacêutica.

“A negação da arte nos hospitaliza”.

O tema do congresso destaca as antropofagias e as potências da luta antimanicomial. Você apresenta este momento como caótico, mas também muito potente. 100 anos depois da Semana de Arte Moderna, quais são as lições que a antropofagia pode dar para enfrentar esse momento e fortalecer o complô que você propõe?

O que a Semana de Arte Moderna trouxe ao Brasil foi a sua dignidade estética como o povo da diferença. Isso é alucinante! A gente tinha vergonha de existir. E a Semana de Arte Moderna disse: Nós somos incríveis, com toda essa loucura que existe nesse país, com essa mistura de todas as coisas. A Semana de Arte Moderna deu dignidade à cultura popular, colocando-a nos museus; ela trouxe o Brasil para a nossa mão. Então o que é que a gente tira dessa experiência? Que a arte dignifica a nossa existência. Há 100 mil anos, apenas, nascia a nossa espécie, que é a Sapiens sapiens. Ela nasce quando adquire consciência de si, quando começa a enterrar os mortos. Ali você já vê que há consciência.

O que é a nossa dor humana? É a dor de existir. É saber que se nasce e que se morre. É terrível descobrir isso, desde criança, quando se entende que há um fim. O que faz com que a gente não enlouqueça, no pior sentido? É a arte! Então você se descobre mortal, mas você se descobre criador. A arte não pertence aos artistas. A arte pertence a todos nós. É isso que a Semana de Arte Moderna nos ensina. Que nós somos artistas quando compomos a nossa casa, especialmente no Brasil. Eu conheço o Brasil como a palma da minha mão. Quando você chega ao Nordeste, que é nossa área mais pobre, quando você chega a uma favela, assim como quando você chega ao continente africano, o que você encontra? Arte brotando por todos os lados. A África é o continente mais pobre do mundo, mas a música do mundo nasceu na África. A negação da arte nos hospitaliza. Então se a gente quer falar de luta antimanicomial, a gente tem que falar de uma sociedade que ama e cultiva a arte e a cultura.

Neste cenário de resgate das potências da luta antimanicomial, qual é o papel da comunicação?

A comunicação é o que domina nosso mundo. A terceira guerra mundial não é o coronavírus. É a guerra da informação. Nós vivemos uma guerra diária pela informação. Quantas pessoas morreram porque não tomaram a vacina? A gente tem que ter raiva delas porque eram negacionistas? Não, eram apenas pessoas que foram influenciadas por notícias erradas. Elas acreditaram na cloroquina, ou que dentro da vacina havia um chip que iria transformar as pessoas em jacarés. De onde vem o controle de corpos hoje, que nos diminui tanto? Vem da informação, do conhecimento e da comunicação. A gente só vai conseguir resgatar os ideais da Semana de Arte Moderna e do Movimento Antimanicomial, que é um movimento libertador, se resgatar os ideais desse movimento que realmente entrou com tudo. Como é que a gente faz isso? Compreendendo que nós somos dominados pelo conhecimento e pela informação.

Que movimentos, hoje, você identifica como contrapontos a esse aprisionamento e a esse controle de corpos e mentes?

Eu sinto que a grande abertura psíquica que vivemos ainda não é proporcionada pela arte. Até porque a gente viveu essa pandemia e o isolamento atrapalha muito o processo artístico. O que vejo claramente como algo que rompe, hoje, e que é interessante para se pensar no debate sobre saúde mental, é a transexualidade e a diversidade de gênero. A possibilidade de corpos livres, que se combinam em masculino e feminino como bem entendem. A gente já mexe no corpo há muitos anos, faz plástica, faz cirurgias, mas isso pode, né? Então porque não posso colocar peito, retirar peito e mudar?

As pessoas hoje, na transexualidade, estão criando um movimento que não é somente relacionado ao corpo. É algo que se relaciona com um novo ser humano. Vou falar de outra maneira. Quando fiz Psicologia, na Universidade Federal do Espírito Santo, uma excelente universidade, a gente já sabia que a homossexualidade não era doença. Ninguém nem discutia isso. Mas a gente tratava a transexualidade como um desvio grave de papel. Hoje, a gente sabe que isso não é verdade. A gente sabe que pessoas não são masculinas ou femininas. A oposição entre masculino e feminino existe em consequência da oposição entre bem e mal, que caiu. Então quando cai a oposição entre bem e mal, saúde e doença, cai também o modelo psíquico básico que diz que mulher é uma coisa, homem uma oposta e que no meio está tudo errado. Isso não é verdade. Homem tem muito de mulher e mulher tem muito de homem. E não deixam de ser mulher ou homem. Pessoas que se colocam na transição de gênero estão abrindo uma possibilidade humana muito grande. Grande parte das hospitalizações feitas no século 20 tinham relação com a diversidade de gênero, porque se aceitava que um homem se colocasse como mulher, mas não se aceitava que uma mulher que se colocasse metade dela mulher e a outra metade, homem. Isso não podia, era um desvio grave. Hoje, você anda na rua e vê um cara de barba, batom vermelho e brinco. E o que você tem com isso, se é assim que ele se sente? O mundo está rompendo, de um modo inacreditável, para a liberdade da diferença. Isso é uma coisa legal, é bom, algo que eu chamo de “prédio que nasce”. Mas há também “o prédio que cai”, ao mesmo tempo. E o que cai é aquele que pega a nossa depressão e a medica.

De que modo isso acontece?

Nós estamos entre dois movimentos: Um deles é o movimento de libertação do corpo, do pensamento, por um ser humano maior, onde os gordos podem viver felizes, os velhos podem transar e viver, as pessoas que têm limites físicos podem ser felizes. Hoje tudo está mudando. Se você não tem uma perna, se você só tem o tronco, você se maquia toda, aparece e se casa! Então hoje não importa se você não tem perna, não tem braço, se tem vitiligo. Tudo isso é colocado como bonito. A sociedade em rede está acabando com muitas exclusões — e que geram internações. Então jovens que tem uma diversidade de gênero grande, pessoas muito gordas ou muito magras, muito bonitas ou muito feias, tudo isso era um inferno, e hoje não há mais isso. Assumimos os obesos. Se é uma questão de saúde, isso é problema deles, mas eles existem. Isso é legal, é o prédio que nasce.

E o prédio que cai…

O prédio que cai é representado por todos nós, que não sabemos lidar com o sofrimento e estamos à mercê da indústria. A indústria nos capta por meio da medicação psiquiátrica. A Inteligência Artificial é a nova revolução que vai acontecer no mundo. E ela vai se ocupar do que? Da sua decisão. Quando você é deprimido e medicado, é mais fácil você comprar um produto de Inteligência Artificial. Existe um complô, que não é organizado por uma pessoa, e não é uma teoria da conspiração, mas o mercado, há muitos anos, nos adoece para nos tratar depois. Diz o Michel Foucault: No controle social, no controle do poder, descobriu-se que é mais barato criar um fraco do que punir um forte. O poder repressivo pega você, que é forte, te tortura e te manda para a cadeia. E o poder disciplinar cria você fraco. Somos uma sociedade de produção de fraqueza. Fraqueza que depois será dominada pela medicação.

Como reagir a isso?

O outro caminho é: sejamos gordos, sejamos velhos, sejamos sem perna, sejamos transexuais, sejamos o que quisermos. Isso é o novo ser humano. E isso é produção de saúde. Eu existo no mundo e eu tenho direito a existir. É uma trajetória entre o meu nascimento e a minha morte, que eu traço como eu quero. Se eu não estiver machucando ninguém, se eu seguir respeitando os outros, por que eu não posso ser como quero?

Entendendo sua fala como uma injeção de potência na luta por uma nova ideia de Saúde, qual a contribuição da Filosofia à formação de novos profissionais?

A Filosofia tem total contribuição. Eu discuto muito com meu filho sobre estas possibilidades. Ele tem 18 anos e vê o mundo a partir de sua destruição. Ele me fala: “Mãe, não tem jeito. Olha o meio ambiente, isso e aquilo não têm jeito”. Eu digo a ele: “Olhe só, nós não temos uma sociedade em rede? Temos! Não nos comunicamos, todos, com o mundo inteiro, mesmo com todas as diferenças, inclusive com quem não acredita em vacina, inclusive com quem acredita em Terra plana?” Ele responde: “É, mãe”. Há uma mudança conceitual nesta rede.

Em cinco anos temos outro mundo. Nós temos tecnologia para resolvermos os problemas em nossos mares, para clonar animais e plantas, para resolver a vida neste planeta, sim nós temos. O que não temos é vontade política. Uma mudança conceitual de pensamento muda o mundo, certo? Profissionais de saúde hoje continuam trabalhando no sufoco, assim como os professores. Neste momento, não somos mais consumidores, nós somos o produto. Robôs brigam para que nossas cabeças se transformem em consumidoras. É um troço terrível! Neste contexto, quando os profissionais de saúde entendem essa interpretação eles se potencializam. Porque o que potencializa um profissional de saúde é ele entender o que é o jogo, porque senão, como humano, ele submerge no mesmo buraco, achando que não tem saída, que é um retrocesso.

Como lidar com a ideia de retrocesso?

Retrocesso só existe para quem acredita em progresso. Progresso é uma ideia ridícula, que diz que a gente vai do menos para o mais desenvolvido. Mas o mundo caminha para frente, para trás, de lado, de banda, não existe uma linha. Então, e daí se estamos em retrocesso? Um retrocesso pode significar um respiro para um avanço imenso, posterior.

O mundo não caminha somente para frente, então retrocesso não é um problema. Estar em retrocesso pode ser bom para a gente sentir na carne a importância da liberdade, para entender como se vota… Então tudo isso não é o problema. A questão é entender que quando a gente sofre um abismo como o que a gente vive agora, a hora é de se potencializar para dar um maior salto. E quem é que vai dar este salto? O profissional de saúde e o profissional da educação, basicamente. Antes, era mais o da educação; hoje é mais o da saúde porque a doença psíquica domina o planeta. Antigamente o professor era o profissional mais valorizado — e eu falo isso direto para eles. Agora, é a hora da Saúde, infelizmente, porque o analfabetismo, que era nosso grande problema, ainda existe, mas hoje é o suicídio de jovens que é a segunda causa de mortes entre jovens e a primeira entre crianças, em muitas partes do mundo. Em muitas cidades americanas, é a primeira causa de morte entre crianças, superando inclusive em número os acidentes.

Historicamente, qual o papel de uma pandemia neste cenário que você descreve? Ela acelera, ela faz parte, ela não impacta… Qual é a sua avaliação deste momento que a gente ainda vive?

A gente só sabe o que acontece com a gente depois. Nós ainda estamos em uma pandemia, mesmo que não usemos mais máscaras. Só que a gente viveu, durante dois anos, assistindo a covas coletivas sendo furadas para enterrar pessoas. Então o que nós sofremos, isolados dentro de casa, com medo de respirar o ar que podia nos matar, foi desesperador. Isso inevitavelmente muda as pessoas. Mas elas não mudam racionalmente. “Ah, ninguém mudou”, podem pensar. Não mudou racionalmente. Eu vi uma matéria esta semana dando conta de que existe na Europa um acúmulo de produtos. As pessoas não estão comprando. O mercado imaginou que as pessoas, saindo de uma pandemia, iriam surtar. Ninguém sabe o que fazer. As pessoas hoje não compram produtos, elas compram virtualidades. E mais outra coisa. O mercado está mudando. Nós vamos trabalhar quatro dias na semana. Isso já está acontecendo no mundo todo. E o que é que se vai fazer nesse terceiro dia? Arte e cultura! E por que isso? Porque as empresas de tecnologias estão vendo o suicídio de seus líderes, no mundo todo. Em Franca, São Paulo, já existem algumas empresas que não trabalham às quartas-feiras. O que eles descobriram: que a lucratividade melhora. Estamos em um mundo de mudanças!

Conheça também este interessante vídeo sobre Afeto e Aprendizagem: https://youtu.be/huyCAjoTwhE?t=158

FONTE: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/o-sofrimento-faz-parte-da-vida

O poeta e o cientista

Fundir o pensamento do poeta do inefável, Rainer Maria Rilke, com as ideias da “lenda viva de Harvard”, Edward O. Wilson, pode soar absurdo, a menos que se considere a criação artística e a prática científica como indissociáveis.

Indiscutivelmente, Cartas a um jovem poeta, de Rilke, e Cartas a um jovem cientista, de Wilson, são duas obras imprescindíveis de orientação para quem pensa em se aventurar no mundo da poesia e/ou no mundo da ciência, uma vez que em ambos há mais pontos em comum do que se poderia imaginar à primeira vista. Resumindo: o cientista ideal, de Wilson, deve pensar como um poeta, e o poeta ideal, de Rilke, deve pensar como um cientista.

Em 1929, foram reunidas as 10 cartas que Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta nascido em Praga e expoente das letras alemãs, trocou com Franz Xaver Kappus, o jovem que ambicionava ser poeta.

Nessas peças epistolares, Rilke, com clareza avassaladora e elevada densidade poética, diz coisas que se aplicam tanto a um aprendiz de poeta quanto a um estudante de iniciação científica. Por exemplo, que nem tudo é tão fácil de aprender e nem de dizer como normalmente somos levados a acreditar. Ou, ao sugerir, para maior chance de êxito em algo relevante, que sejam evitados temas e formas muitos usuais e comuns de escrever, exemplificando com o caso dos poemas de amor. A dificuldade é sempre maior em meio à profusão de coisas boas e algumas até brilhantes.

Ainda: quando diz que não se deve esperar uma resposta de fora (do ambiente externo) para questões que apenas podem ser respondidas intimamente. E, especialmente, ao afirmar que a tão comum tendência para a dúvida, que graceja entre as pessoas, se bem educada e usada com inteligência, pode se tornar uma qualidade positiva. Pois, quando essa dúvida for capaz de ser convertida em crítica e virar saber, deixará de ser meramente destruidora para se converter em colaboradora/construtora.

Edward O. Wilson (1929-2021) é um dos principais expoentes da ciência contemporânea. Professor emérito da Universidade Harvard, foi criador de disciplinas (biogeografia e sociobiologia, por exemplo) e de conceitos científicos (biofilia, biodiversidade e consiliência) visando à unificação das áreas de humanidades com as outras ciências, além da iniciativa de criação da Enciclopédia da Vida, que se configura em marco sem precedentes para estudos da biodiversidade global.

Wilson também é autor de dezenas de livros, sendo vencedor de dois Prêmios Pulitzer. Ao longo de uma carreira científica de mais de 60 anos, Edward O. Wilson produziu obras de valor inestimável. Este é o caso do livro Letters to a young scientist (Cartas a um jovem cientista), lançado em 2013.

Em Cartas a um jovem cientista, Wilson usa a si mesmo como referência para sugerir a essência do que é necessário para alguém ser bem sucedido na carreira científica.

Começa realçando que o conhecimento científico dobra a cada 15 anos, dificultando sobremaneira quem pretende saber tudo ou intenciona apenas se manter atualizado.

Destaca que a nossa ignorância sobre o tamanho da biodiversidade terrestre coloca essa área da biologia entre as portadoras de futuro. E condiciona que qualquer pretendente a cientista dever ter bem claro que a prática científica hoje é baseada em uso de tecnologia (equipamentos de pesquisa, por exemplo), que a tecnologia que permeia o nosso dia a dia é derivada do conhecimento científico e que a indústria contemporânea é baseada em tecnologia e ciência. Eis um novo mundo não tão simples assim.

Wilson orienta que a paixão pela descoberta vem antes do treinamento, ainda que esse seja imprescindível. E que bons mentores/orientadores são essenciais na formação dos jovens cientistas, pois são eles, pelos exemplos pessoais, que modelam valores e comportamentos. Realça que, por mais glamorosas e atrativas as áreas científicas da ocasião, deve-se sempre buscar o novo, onde poucos estejam trabalhando, pois como também frisou Rilke ao aprendiz de poeta, aí as chances de sucesso são maiores.

Finaliza lembrando que a prática científica é a busca pela verdade. E isso, acima de tudo, exige ética, pois se atua numa espécie de campo minado em que vicejam vaidades, competições pessoais e invejas de toda sorte.

E, de resto, poeticamente lembrando, é deixar a vida acontecer.

Do livro: Ah! Essa estranha instituição chamada ciência, 2021.

Autor: Gilberto Cunha

Lobos solitários: o que já sabemos

O futuro “lobo solitário” não é um ser estranho. É ele “um de nós” que está dominado pelo pensamento primitivo maniqueísta, que tem fortes desejos narcisistas, que está socialmente isolado, que tem acesso a armas e que mentalmente está preso na bolha de um movimento discriminador, xenofóbico, excludente.

Crimes assustadores, assombrosos, terroríficos em escolas como ocorridos nas cidades de Aracruz e Saudades, para citar dois exemplos, nos obrigam a examinar quem são esses assassinos chamados de “lobos solitários”.


Por terrorismo, referimos o uso da violência que visa assustar um público mais amplo do que os alvos diretos do ataque. Autores como Jerrold Post da The George Washington University, dividem o terrorismo em ondas: (1) onda anarquista; (2) nacional-separatista; (3) sócio-revolucionária; (4) onda religiosa e (5) onda “lobo solitário”.

A quinta onda provoca pânico pela sensação de que o agente do terrorismo pode surgir em qualquer local e a qualquer momento. E pergunta-se: até mesmo em qualquer pessoa?

Estudos de casos tentam encontrar características que distingam os futuros “lobos solitários” das demais pessoas.

Já se sabe que: (1) não há relação direta com uma doença mental listada nas classificações; (2) há com frequência a presença de traços narcisistas; (3) isolamento social; (4) acesso a armas; (5) agem por conta mas mentalmente estão na bolha de algum movimento discriminador, xenofóbico, excludente; (6) o pensar primitivo, maniqueísta, em dado momento passa a dominar a mente desses indivíduos.

O co-piloto alemão Andreas L. que derrubou uma aeronave da Germanwings em 24/03/2015 apresentava depressão e risco de suicídio. Mas essas características não foram as mais relevantes. Inclusive, a maioria das pessoas depressivas que cometem o suicídio não mata outras pessoas.

É possível que Andreas L. apresentasse traços de personalidade antissocial e é bastante provável que apresentasse fortes traços narcisistas de personalidade. Ou seja, a necessidade de ser “admirado” no mundo todo pode ter contribuído para o ato midiático de cometer homicídio e suicídio derrubando um avião.

Anders B., o norueguês que em 22/07/2011 em dois ataques terroristas matou setenta e sete pessoas, não era uma pessoa violenta. Assistam “22 de julho” na Netflix. A sua biografia comprova isso. E, após controvérsia inicial, a avaliação psiquiátrica concluiu que ele não apresentava doença mental. Mas revelava sim traços narcisistas e, nos anos que precederam o ato criminoso, foi gradativamente se afastando das pessoas.

A decisão de planejar a matança ocorreu no momento em que ele, isolado socialmente e desejoso de realizar suas necessidades narcisistas, tornou-se frequentador assíduo de sites maniqueístas existentes na época como “Gates of Vienna” e “Stormfront”. Fez o que fez mentalmente vinculado a ideologia xenofóbica contida nos sites.
Asne Seierstad (“Um de nós”, Record, 2016) está na foto da crônica pelo seu admirável trabalho de pesquisa. Ela fez aquele que talvez seja o mais extenso e minucioso estudo de caso de um “lobo solitário”. Na biografia que escreve sobre Anders B.
fica evidente que os ataques terroristas foram precedidos pelo predomínio do pensar maniqueísta, a característica (6) citada acima.

Mani, filósofo persa do século III, trouxe para a filosofia a forma primitiva do pensar humano que diz que aquele ou aquilo que eu não conheço é meu inimigo.

O pensamento maniqueísta apresenta sete características: reducionismo, generalização, dogmatização, uma forma de pensar que, a partir de uma suspeita qualquer, já salta para a conclusão, ausência de autocrítica, inexistência de empatia e necessidade de inimigos. Há a divisão entre “nós e eles”. E “eles” deixam de ser “gente como a gente”.

A humanidade conseguiu desenvolver o pensamento científico: sabe observar, classificar, deduzir, induzir, experimentar. Conseguiu, desde Isaac Newton (1642-1727), entender que “a maça” cai pela força da gravidade. Porém, a forma primitiva de pensar está dentro de nós e pode dominar nossas mentes: a maça cai na nossa cabeça porque os desconhecidos, os diferentes, os maus, os inimigos a jogaram em nós.

O futuro “lobo solitário” não é um ser estranho. É ele “um de nós” que está dominado pelo pensamento primitivo maniqueísta, que tem fortes desejos narcisistas, que está socialmente isolado, que tem acesso a armas e que mentalmente está preso na bolha de um movimento discriminador, xenofóbico, excludente. O problema é como detectar essas pessoas antes de cometerem o hediondo ato criminoso.


Sugiro a leitura do artigo: “Understanding the Motivations of ‘Lone Wolf’ Terrorists: The ‘Bathtub’ Model”, Perspectives on Terrorism Vol. 15, No. 2, April 2021.
Este artigo de Boaz Ganor baseia-se em extensos estudos realizados sobre as motivações dos “lobos solitários” pelo Instituto Internacional de Contraterrorismo (ICT) com sede em Herzliya, Israel. Busca contribuir com a literatura sobre o tema propondo um novo modelo. O “Modelo da Banheira” sugere que o processo de formação da decisão do “lobo solitário” de perpetrar um ataque pode ser semelhante a um recipiente de água (como uma banheira), que seria preenchido por várias fontes de água, cada uma representando grupos e subgrupos de motivações. O limite superior do modelo “banheira” representa, portanto, o nível máximo da capacidade do “lobo solitário” de conter suas motivações, frustrações e emoções.

Autor: Jorge Alberto Salton

Em Defesa da Palavra

“Em Defesa da Palavra”, do autor Eduardo Galeano, é aquele tipo de texto que você quer mostrar para todo mundo.

Conheci esta sua instigante reflexão nos anos 1990, por intermédio de uma professora de Literatura no Ensino Médio, numa escola estadual de Santo Ângelo, RS. Este texto marcou-me profundamente, a tal ponto que o retomo agora, ao ser acolhido como membro efetivo da Academia Passo-fundense de Letras, pois o considero um tratado sobre a necessidade da autenticidade da escrita e da literatura.

Gosto muito de um outro texto, um conto do autor, cujo título é “O mundo”. Não canso de repeti-lo e recontá-lo, pois tem um jeito especial de fazer todo mundo entender as diferenças entre os humanos.

Assista (na voz de Eduardo Galeano):https://youtu.be/pi0LhCR_aQs?t=68

Segue o texto “Em defesa da palavra”, do autor Eduardo Galeano.

***

Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo na nossa cabeça: “Vale a pena escrever? Será que as palavras sobreviverão em meio aos adeuses e aos crimes? Tem sentido esta profissão que escolhemos, ou pela qual fomos escolhidos?

As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros para denunciar aquilo que perturba e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais, porque supõem que a literatura transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a conhecer melhor, para nos salvar juntos.

Na realidade, escrevemos para pessoas com cuja sorte ou má sorte nos sentimos identificados: os que comem mal, que dormem pouco, rebeldes e humilhados desta terra; que em geral nem sabem ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantas dispõem de dinheiro para comprar livros?

Que bela tarefa de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema da fome e das cadeias visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?

Escrevemos para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem, por dentro; mas aquilo que escrevemos só pode ser útil quando coincide, de alguma maneira, com a necessidade coletiva à conquista da identidade.

Ao dizer “Sou assim” e assim me oferecer, avalio que eu gostaria, como escritor, poder ajudar muitas pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo.

A obra nasce da consciência ferida do escritor e projeta-se ao mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade.

Acredito no meu ofício. Creio no meu instrumento. Nunca pude entender por que escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entender os que convertem a palavra em alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.

Creio que a função primordial da literatura atual consiste em resgatar a palavra, que foi usada e abusada com impunidade e frequência, para impedir ou atraiçoar a comunicação.

“Liberdade” é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se “Democracia” a vários regimes de terror; a palavra “amor” define a relação do homem com seu automóvel; por revolução entende-se aquilo que um novo detergente pode fazer na sua cozinha; “glória” é o que um sabonete de certa marca produz; “felicidade” é a sensação que se tem ao comer salsichas. “País em paz” significa em muitos lugares da América Latina, “cemitério em ordem”; e onde se diz “homem são” deveria ler-se muitas vezes “homem impotente”.

Ao escrever, é possível oferecer o testemunho do nosso tempo e da nossa gente, para agora e para depois, apesar da perseguição e da censura. Pode-se escrever como que dizendo, de certa maneira: “Estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim fomos”.

Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literatura que não ajuda os demais a dormir; antes, tira-lhes o sono; que não se propõe enterrar os nossos mortos; antes que perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca, procura acender o fogo.

Essa literatura continua e enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam. Se é melhor como cremos a esperança à nostalgia, talvez esta literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais, que mudarão radicalmente o curso da nossa história, mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. E, quem sabe, ajude a guardar, para os jovens que virão, “o verdadeiro nome de cada coisa” – como dizia o poeta.

Autor: Eduardo Galeano (1940 – 2015). Escritor uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina”.
Do livro “Crónicas 1963-1988”.

Imortalidade é das palavras

“Em realidade, a gente escreve para as pessoas com cuja sorte ou má sorte se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra: que em geral nem sabem ler”. (Eduardo Galeano. Em defesa da palavra)

Desejo tornar público pequeno texto que escrevi para externar minha motivação pessoal para integrar a Academia Passo-Fundense de Letras. Este texto foi apresentado, junto com outros documentos, na minha inscrição para me tornar membro efetivo da APL (Academia Passo-Fundense de Letras) que, neste ano de 2023, completa seus 85 anos de existência.

“A escrita perpassa a minha história e biografia pessoal e profissional. Desde cedo, ainda nos anos finais do Ensino Fundamental, encontrei na escrita uma forma de me “tornar bonito aos outros”, como ensinara Rubem Alves. Acontece que, por sofrer de gagueira, compensava formas de valorizar minha importância na sala de aula, através de leituras e de iniciativas de escrita.

No Ensino Fundamental, a leitura foi um grande laboratório para a imaginação, criatividade e vontade de expressar ideias e sentimentos, que foram se aperfeiçoando ao longo da vida. No Ensino Médio, a leitura restringiu-se a livros e literatura de autoajuda, livros de psicologia e outros leituras que complementavam o vazio existencial de uma alma que se descobria jovem. Na escola, muita teoria sobre literatura e pouco estímulo ao prazer e gosto pela leitura.

No Ensino Superior, já em Passo Fundo, continuei escrevendo, descobrindo potencialidades e aperfeiçoando reflexões através dos estudos filosóficos. Foi um momento rico e desafiador, sobretudo ao despertar também para as dimensões poéticas da escrita (a descoberta da poesia).

Desde então, há 25 anos, dedico-me à escrita de crônicas. Já publiquei em diferentes periódicos como jornais, revistas impressas, revistas especializadas de educação. Sempre busquei espaços para publicação, infelizmente restritos àqueles e àquelas que se fazem escritores, nos interstícios da vida, do tempo disponível e das atividades do cotidiano.

Em dezembro de 2014, lancei primeiro livro: “Conviver, educar e participar: nos palcos da vida”, onde selecionei mais de 80 crônicas já publicadas em revistas, jornais e outros periódicos.

Ainda no mesmo mês, passamos a editar site www.neipies.com Nasceu daí um movimento que visa o engajamento e fortalecimento da escrita desde Passo Fundo, ao agregar outras pessoas que, regularmente, escrevem e publicam. Hoje, mais de 70 pessoas, a quem denominamos Convidados, se agregaram nesta iniciativa (alguns daqui e outros de fora de Passo Fundo). Temos especial atenção a novos escritores e novas escritoras, que passam a contar com este espaço de escrita e divulgação de suas produções literárias.

Mais recentemente, também me envolvi por sete anos, na organização e promoção do Projeto “Bandinho de Letras”, vinculado à UPF (Universidade de Passo Fundo)/Mundo da Leitura.

Em 2017, protagonizei a criação de uma Comunidade no Faceboock denominada “Cultura local em Passo Fundo”, que conta com mais de 160 membros, maioria deles envolvidos na defesa da cultura local e na produção literária.

Participo, ainda, de uma Sociedade Literária, denominada Sociedade dos Poetas Vivos, com atuação em nossa cidade. Esta sociedade reúne escritores locais que, coletivamente, promovem a leitura e a literatura, bem como editam livros a partir de contribuições de seus membros.  Em livro O monstro e a flor, participo com a publicação de uma crônica Um palco e uma passagem.

Como se pode constatar, há um crescente envolvimento e engajamento meu em prol da leitura, escrita e literatura desde a cidade de Passo Fundo.

Minha motivação para participar da Academia Passo-Fundense de Letras intenciona fortalecer todos os esforços e iniciativas que promovam verdadeiramente a escrita, a leitura e a produção de literatura desde a nossa querida e amada Passo Fundo. Queremos ajudar a construir uma cidade que valorize e reconheça as histórias e as contribuições de todas as pessoas que, indistintamente, a seu modo, fazem deste lugar um espaço de boa convivência, de reconhecimento dos seus feitos e histórias e que necessitam de reconhecimento social”.

Posse de novos membros da Academia Passo-Fundense de Letras

A Academia Passo-Fundense empossará seis novos membros em evento que ocorrerá no dia 24 de março de 2023. Segue registro de acolhimento aos novos membros. (Arquivo APL)

Autor: Nei Alberto Pies

O que significa ter uma vida bem-sucedida?

Destruímos aquilo que não nos pertence e temos dificuldade de compreender: nossa própria existência, pois realizamos uma enorme confusão entre viver, sobreviver, ter êxito e ter uma vida boa.

A pergunta que dá o título deste escrito pode parecer óbvia demais num tempo em que, frequentemente, vemos estampado nos jornais, nas revistas de grande circulação, nos noticiários, nos reality shows, nas diversas mídias o realce a certas personalidades consideradas pessoas bem-sucedidas.

Seja no mundo empresarial, da moda, no meio artístico, no âmbito político ou científico, tais pessoas são exaltadas por terem tido sucesso financeiro, por serem famosas, por obterem “reconhecimento” do público, por ganharem uma competição ou eleição ou, ainda, por terem descoberto algo inédito.

Neste contexto, ter uma vida bem-sucedida é confundida como sinônimo de “êxito social”. Lamentavelmente, essa confusão faz com que o “imperativo do êxito” seja posto como projeto de vida. Para muitos, ter um minuto de fama, ter nas mãos o poder, ganhar muito dinheiro, ser idolatrado, conquistar um título, ser visto nos jornais ou na mídia está acima de qualquer outro objetivo de vida.

O estilo de vida contemporâneo ficou tão ofuscado com essa estreita concepção de sucesso que perdeu o horizonte da própria existência humana. Os holofotes do êxito produziram a banalização e a “barbarização” da vida: em nome do sucesso jovens modelos são capazes de sacrificar a saúde, submetendo-se as terríveis dietas para ter um “um corpo ideal”; em vista do lucro empresários são capazes de submeter centenas ou até milhares de trabalhadores em condições precárias de trabalho com salários aviltados; em vista do poder candidatos são capazes de fazer de tudo para ganhar eleições (comprar votos, fazer acordos suspeitos, articular alianças absurdas, renegar princípios, enterrar a ética etc); atletas são capazes de se submeter as mais perversas técnicas de exaustão do corpo para conquistar um título inédito; em vista do enriquecimento, traficantes são capazes de ceifar milhares de vidas colocando nas mãos de adolescentes e jovens os instrumentos da auto-destruição.

Será que ainda sabemos o que significa uma vida bem-sucedida? 

Alguém pode dizer que tem uma vida bem-sucedida quando seu “êxito individual” é diretamente responsável direto ou indiretamente pela eliminação ou destruição de outros?

Alguém pode sentir orgulho de ter vencido uma eleição e se sentir o “legítimo representante do povo” quando os votos foram comprados ou está comprometido com grupos suspeitos que financiaram sua eleição ou mesmo por meio de fakes news?

Se olharmos com atenção os acontecimentos que nos rodeiam, chegamos à conclusão que o curso do mundo nos escapa. Na expressão do filósofo francês Luc Ferry, o mundo parece, por assim dizer, um giroscópio que deve simplesmente girar para não cair, independentemente de qualquer projeto.

Induzidos mecanicamente, jogados numa rotina frenética, acelerada, dinâmica, exigente, mas sobretudo fora de qualquer finalidade visível, somos limitados a conquistar escassas migalhas que sobram duma lógica perversa que se autodestrói. Por isso, nosso tempo é marcado pelo desejo inautêntico do consumo onde “ter uma vida bem-sucedida” significa, para muitos, poder consumir tudo aquilo que está a nossa frente. E assim, destruímos aquilo que não nos pertence e temos dificuldade de compreender: nossa própria existência, pois realizamos uma enorme confusão entre viver, sobreviver, ter êxito e ter uma vida boa.

Autor: Dr. Altair Alberto Fávero

Projeto Moinhos – Literatura em Movimento

No próximo dia 09 de março, em uma quinta-feira, terá início na cidade que leva o título de Capital Nacional da Literatura, um projeto inovador, descentralizado e com foco em literatura, trata-se do Projeto Moinhos – Literatura em Movimento, uma inciativa da editora e produtora cultural Projetos Sorrisos (https://instagram.com/projetossorrisos?igshid=NmE0MzVhZDY= ).

O Projeto Moinhos: Literatura em Movimento, é um projeto híbrido de natureza descentralizada, itinerante, democrática, de incentivo à produção literária e à leitura, projeto que conta com 32 profissionais gaúchos ou residentes no Rio Grande do Sul, profissionais experientes, envolvidos com literatura em seus vários desdobramentos, entre eles: autores, editores, ilustradores e contadores de histórias.

Idealizado pela escritora, contadora de histórias e produtora cultural Luciana Marinho Albrecht em 2018, o Moinhos teve seu projeto piloto em parceria com a Sociedade dos Poetas Vivos de Passo Fundo em 2020, uma ideia que evoluiu e concorreu no edital estadual PRÓ-CULTURA FAC Publicações da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, sendo contemplado em 2022.

O Moinhos conta com a coordenação de núcleo artístico do professor e escritor Aleixo da Rosa e coordenação de redes sociais e meios digitais da arquiteta e escritora Stefani Pinheiro Paludo e a coordenação geral de Luciana Marinho Albrecht.

O projeto foi planejado para acontecer em 03 períodos do ano de 2023, na nona região funcional do Rio Grande do Sul, mais especificamente na cidade de Passo Fundo/RS.

As três edições do projeto acontecerão em locais diversos, físicos e virtuais, fechados e a céu aberto, de fácil acesso à população, como livrarias, o teatro municipal Múcio de Castro, o auditório da Academia Passo-Fundense de Letras, praças e também na internet através das redes sociais e plataforma Youtube. Os locais onde acontecerão as intervenções presenciais têm forte relação histórica e cultural com a cidade de Passo Fundo.

O projeto ainda prevê a distribuição de 200 obras literárias para as escolas públicas, ongs e demais participantes dos eventos.

Como a própria autora do projeto se refere a ele, “o Projeto Moinhos será uma explosão de literatura na cidade, é a literatura viva e circulante”.

Para saber mais sobre o Moinhos e acompanhar a vasta programação e as datas dos eventos confira as redes sociais oficiais do projeto:

Facebook: https://www.facebook.com/projetomoinhos?mibextid=ZbWKwL

Instagram: https://instagram.com/projeto_moinhos?igshid=NmE0MzVhZDY=

Youtube: https://youtube.com/@moinhosliteraturaemmovimento

Como se descasca uma laranja? Qual a utilidade da religião?

A vida nos dá várias “laranjas” para serem descascadas. A religião pode nos ajudar a “descascá-las”.

Com essas perguntas iniciei, uma das primeiras aulas de Ensino Religioso com uma turma de Sétimo Ano do Ensino Fundamental em uma escola pública da rede municipal de Passo Fundo, RS.

Para conectar as duas questões e encontrar as respostas, contei aos alunos a história que resumo a seguir.

“Quando eu tinha 17 anos, minha família foi, por um tempo, dona de um bar, em Getúlio Vargas.

Certa tarde entrou no estabelecimento um senhor humilde e eu o olhei “de cima a baixo”.

Meu irmão mais velho, naquela época, tocava violão, e nosso ritmo preferido era rock.

O homem elogiou o talento do meu irmão ao violão e pediu que ele tocasse algumas músicas sertanejas, ao que eu respondi, com desprezo:

— Ele não toca essas porcarias!

O senhor, visivelmente, se sentiu humilhado.

Não muito tempo depois, o bar faliu. Tive que procurar um emprego, qualquer emprego, meu primeiro emprego, para contribuir com a renda familiar.

A única vaga que consegui foi em um curtume, na pior parte possível da produção: eu deveria tirar o couro dos carroções, um por um, centenas e centenas de couros, e estendê-los em uma esteira para iniciar a secagem.

Adivinhe quem era meu companheiro de trabalho? Aquele senhor que, um tempo antes, eu havia humilhado. E, ao contrário do que eu podia esperar, ele me tratou muito bem. Lembrava-se de mim e me deu dicas de como fazer o trabalho da melhor maneira possível, tudo de forma amável, altruísta.

Na metade da manhã, soou o sinal do intervalo. Quinze minutos. O lugar era frio e fétido. Um gigantesco porão. Eu estava com dor nos braços e nas costas, com frio e com fome. Mas o pior, mesmo, era o quanto eu me sentia desamparado, desenganado, humilhado.

Como eu não tinha levado merenda, tive que me contentar com algumas laranjas que o senhor humilde me ofereceu. Comecei, com uma faca de serrinha, sofregamente, a descascar uma das laranjas.

As mãos, geladas, tremiam. O fio da faca também não ajudava.

— Não é assim que se descasca uma laranja — disse meu colega, sorrindo. Tomou a laranja das minhas mãos e tirou, do bolso da calça, um canivete.

Ao invés de descascar a laranja como eu tentei fazer e, suponho, a maioria de nós faz — rodeando a fruta com a faca —, ele cortou a laranja ao meio e, em seguida, cortou cada metade também ao meio.

Forçando, então, as extremidades de um dos pedaços, tirou a casca do gomo inteiro, sem esforço.

— Assim se descasca uma laranja — sorriu mais uma vez e me alcançou os pedaços da fruta”.

Hoje, aos 35 anos, sei que naquele dia comecei a aprender duas coisas:

1) não humilhe os outros; a vida dá voltas;

2) seja humilde — e humildade, aqui, não significa se humilhar, mas ter disposição para aprender.

Afinal, podemos aprender algo em quase qualquer circunstância. A sabedoria, mais que um lugar, é um estado de espírito.

Obviamente, não aprendi, de todo, as lições citadas acima. Longe disso! Mas sigo tentando…

Nas próximas aulas, apresentarei aos educandos quatro histórias de tradições religiosas distintas, todas com um mesmo tema: humildade.

A ideia é apontar a conexão entre vida e ensinamentos religiosos, mostrando que a Religião pode ser muito útil à vida de todos. Mostrando que a Religião não é uma coletânea de histórias antigas, mas sim a reprodução de coisas que nos acontecem todos os dias e que podemos perceber e aprender com isso, desde que tenhamos olhos para ver.

A vida nos dá várias “laranjas” para serem descascadas. A religião pode nos ajudar a “descascá-las”.

O Componente Curricular Ensino Religioso só tem sentido quando tem foco no amor e no respeito às diferenças de pensamento e de fé.

Autor: Aleixo da Rosa

Bancada evangélica repudia escola de samba por desfile contra a intolerância religiosa

Quem realmente atacou a fé cristã não foi a Gaviões da Fiel, mas os que a usam para disseminar ódio e violência contra segmentos já discriminados em nossa sociedade.

A Frente Parlamentar Evangélica veio à público para repudiar o desfile da Escola de Samba Gaviões da Fiel, de São Paulo, que trouxe como enredo “Em nome do Pai, dos Filhos, dos Espíritos e dos Santos”. A Frente divulgou uma nota em que afirma que a doutrina da Trindade teria sido deturpada, e, por conseguinte, desrespeitada.

Ainda segundo Eli Borges, líder da bancada evangélica, “Não se compara Cristo e Oxalá, divindade das religiões de matriz africana, em hipótese alguma.”

Interessante notar a incoerência deste discurso. Não se pode comparar Cristo a Oxalá, principal Orixá cultuado em religiões de matriz africana. Mas pode-se afirmar que Exu é o próprio diabo.

Na mitologia iorubá, Oxalá é o responsável pela criação do mundo, o mesmo que se diz de Cristo, o Logos Divino. Portanto, ao relacionar Cristo a Oxalá, os fiéis destas religiões demonstram um grande apreço por Ele. Mas ao relacionar Exu ao diabo, os evangélicos demonstram enorme desrespeito às crenças de matriz africana.

Para crentes fundamentalistas, o dogma vale muito mais que os ensinamentos de Jesus. Se o samba-enredo expressasse de maneira rigorosa o dogma cristão da Trindade, mas estimulasse a intolerância, o proselitismo antiético, e a demonização de outros cultos, certamente eles se sentiriam representados e talvez até emitissem nota elogiando o desfile.

Enquanto focam a imprecisão do dogma expressado no título do enredo, deixam passar a mensagem absolutamente cristã, em plena sintonia com o que Jesus ensinou.

Repare nesses trechos da letra:

“Do Pai maior aprender a lição

Tirar as angústias do nosso caminho

Pra ajudar seu irmão a carregar sua cruz

Na força da fé, nunca estou sozinho

Enfim a nossa terra prometida

Na paz eu vi o povo se amar

Nessa terra que é de amém e de axé

O mar se abriu, testemunhou

Um novo dia enfim clareou

E lá no céu essa luz que ilumina

Uma lágrima divina por Seu filho a derramar.”

Infelizmente, preferimos focar naquilo de que divergimos, e não nos pontos de convergência.

A Bancada Evangélica, no comunicado, ainda ignora o sincretismo religioso presente em inúmeras crenças no Brasil e afirma que “não se pode comparar comparar Cristo e Oxalá, “em hipótese alguma”, como se coubesse a esses políticos determinarem o que é correto ou não em matéria de fé.

Será que os membros desta bancada sabem que por onde o cristianismo passou, ele assimilou e adaptou parte das crenças locais? Até a celebração do Natal é fruto do sincretismo religioso!

Quando o centurião responsável pela crucificação de Jesus exclamou “Verdadeiramente ele é o Filho de Deus”, ele não se referiu a Iavé, como Deus se fez conhecido entre os judeus, mas a Theos (de onde vem o termo “teologia”). Era assim que os romanos se referiam a Júpiter, e os gregos a Zeus, ambos chamados “Deus dos deuses”. Será que Paulo foi sincrético ao dizer aos atenienses que lhes anunciava o “Deus desconhecido” para o qual haviam erigido um altar?

O mesmo líder da bancada evangélica, Eli Borges, que atacou a Gaviões da Fiel, saiu em defesa do pastor norte-americano que disse durante um congresso de jovens evangélicos que haveria um lugar reservado para gays, trans e bissexuais no inferno. Segundo o deputado, a constituição lhe garante que, com a Bíblia na mão, ele teria a liberdade de dizer o que disse.

Quem realmente atacou a fé cristã não foi a Gaviões da Fiel, mas os que a usam para disseminar ódio e violência contra segmentos já discriminados em nossa sociedade.

Atacar o evangelho não é questionar seus dogmas ou expressá-los de maneira imprecisa, mas corroer os ensinamentos de Jesus, transformando sua mensagem de amor e solidariedade numa verdadeira guerra santa contra tudo e todos que ousem divergir dos dogmas, da moral e dos costumes impostos pela igreja.

Autor: Hermes C. Fernandes

Veja também

As pestes

Desesperança