Resenha do novo livro de Nelceu Alberto Zanatta, O Menino Sem Rosto, que provoca a reflexão sobre a importância de contar e ouvir histórias, desde cedo, para a formação de uma consciência que realmente enxerga, além dos olhos.
Quando Davi entrou no pátio foi assustador. Estava na porta que dá para os fundos da casa; e sei lá em que casa estávamos.
Mas Davi não subiu a escada e parou junto ao seu canto, em seu primeiro degrau. Tentei sair correndo pela outra porta, achando se tratar de um presságio. Pedi para sair pelos fundos, por onde todas as pessoas sem rumo saem um dia, mas não tive teve como não olhar. Como não estava a sós, falei a ela:
_Vamos embora daqui pois alguém chegou à porta.
_Mas é só um menino, não deve ter muito a querer. Damos uma fruta qualquer e ele se irá, ouvi. O que pode querer um menino em um pátio esquecido de uma casa abandonada?
Então resolvi ficar e o observei de longe, com a eterna desconfiança de um adulto frente a uma criança.
Por que será que os adultos desconfiam? Eles sabem mentir muito bem, mas crianças ainda não aprenderam. Fica desigual este encontro.
_Não tenha medo de mim senhor, sou apenas um menino, falou. Quanta sabedoria para um garotinho, pensei?
_O que posso fazer mal, falou. Deve haver uma criança dentro de você, e caso não me aceitares, posso ficar amigo dela somente. Teremos todo o tempo, de todos os dias e anos para que você possa me aceitar. Por enquanto, posso ir falando com seu menino oculto.
_Como pode falar estas coisas? Alguém ensinou a você tais palavras?
Minha voz sumiu, minha boca secou, minhas pernas e braços, já não as sentia. Mais próximo a mim do que eu mesmo, Davi deu um passo decisivo para que eu não entrasse em desespero. E, então, aproximou-se, fazendo um pedido.
_Eu não o vejo senhor, apenas o sinto. Não vejo nada, aliás, apenas ouço. Depois eu penso, depois eu falo. O que aprendi foi ouvir, ouvir e ouvir. E depois repetir. O que eu falo é porque antes de mim, alguém falou. Mas agora eu cansei! Preciso falar as minhas próprias palavras.
E o Davi se aproximou e pediu:
_Conte uma história pra mim?
Paralisado que estava, com os nervos contorcidos por tantas perguntas a responder, por não ter como não olhar, como não ver, apenas respondi;
_ o que você tem Davi?
É que o Davi não tinha rosto.
A sua cabeça a minha frente, como a de uma escultura que, com os anos, foi perdendo seus traços, o seu rosto era compacto e de uma forma só. Como um homem que nunca sorriu, nada se via em sua face.
_Mas o que você faz aqui? Nesta casa abandonada?
_É que eu estava andando pela rua e vinha me batendo pelas casas quando ouvi vozes. E fui entrando aos poucos. Mas, mas, se esta casa está abandonada porque você mora nela?
_Bom, em não moro aqui e estava somente de passagem, respondi. É que nós gostamos muito de coisas abandonadas, gostamos demais de coisas sem uso, sem valor algum e vamos nos agarrando a elas como que quem precisa de coisas velhas para manter as novas.
_Não entendi muito bem. Eu não sei o que é uma coisa nova ou uma coisa velha. Eu vivo a cada dia sem esperar que eu acorde amanhã. Como eu não vejo, não sei o que é velho e o que é novo. Mas você pode me contar uma história? Qualquer delas. A minha Mãe, quando partiu, disse que eu era para ouvir muito, depois, ler muito, e que depois que eu fizesse tudo isso, aos poucos, começaria a ver.
_E quando a sua Mãe partiu?
_Agora.
Quando eu entrei neste portão ela seguiu. Ela me falou: filho, entre por este portão porque eu vou seguir em frente. Mas não sei o que é em frente. Acho que ela não vai muito longe porque nem sabe o que é seguir em frente. Ela não enxerga mais.
Fiquei no meio do caminho, sem avançar em minha fuga, sem atender o seu pedido, sem saber que a saída para o desconhecido, muitas vezes, é apenas ficar.
_Só queria uma história, senhor! Continuava ele.
_Não tenha medo senhor, porque não faria mal a ninguém. Nem correr eu posso. Aprendi a sentir cheiros e ver somente vultos a minha frente. Que mal eu faria?
Tudo o que eu preciso é ouvir uma história. Porque se eu ouvir eu vou enxergar. Foi o que minha Mãe falava. Mas ela mesma nunca ouviu qualquer história. Então não sabia contar.
Cansada de não enxergar, começou a andar e andar até bater neste portão. E eu junto. Quando ela tropeçava, eu também tropeçava.
E estou andando a dias, sempre seguindo o cheiro de uma mata aqui próxima. Quando sinto que estou me afastando volto aos poucos para a sua beirada.
_E eu finalmente entendi que mesmo próximo ao lugar em que queremos andar, ali mesmo poderemos nos perder.
_Ouvir! Minha Mãe falava, também é uma forma de enxergar. Ouça muito meu filho, pois assim você poderá ver um dia.
Então eu saí de casa com este seu lembrete: ouvir muito, com muita atenção e assim vou começando a ver.
_Mas e a sua Mãe, perguntei!
_Há, a minha Mãe eu a perdi pelo caminho. Porque ela não enxergava também. Então nós cansamos um do outro. Eu até lembro que a sua voz foi se distanciando aos poucos, como que levada pelo vento e, aos poucos, fomos nos perdendo um ao outro.
Ela estará sempre comigo! Mas cansamos de não ver nada. Cansamos de ter um ao outro somente pela nossa voz, pois esbarrávamos dentro de casa, o tempo todo, ao dormir e ao acordar. Um dia, acordei e resolvi partir. Pois para quem não enxerga, tanto faz ficar ou partir pois na escuridão não há amanhecer. Somente anoitecer.
_Mas pense bem. Há muitos rostos por aí. Você consegue ver alguns agora?
_Se você me contar uma história, acho que sim.
Pelo menos um pouco.
Tomei Davi em meus braços e contei a ele uma velha história. …havia um Reino onde o Rei e sua corte proibiu livros e a sua leitura. À noite, seus soldados passeavam pela cidade para roubar rostos…E a Vila sem livros, parecia sem vida, com a cor desbotada das cores sem vida dos sonhos que não querem ser revelados… Assim, estes rostos apenas tinham um corpo que os levava a caminhar, dormir ou acordar, mas sem vida alguma. Que diferença para o mundo fazem eles?
Aos poucos, Davi abria seus olhos e como um milagre em tempo real, seu véu de pele como que se descobria de seu rosto.
_Há, tem uma luz dentro de cada um. Já nasce com a pessoa. É uma luz muito intensa, brilha muito, mas quando o tempo vai passando ela se apaga aos poucos. Ouvindo, lendo, renascemos à luz.
_Olha aquele homem caminhando! Há algo que brilhe em seu rosto? Nada, não? Pois é. Você quer tanto um rosto, mas pode se tornar como ele; sem luz alguma para emitir, sem nenhum raio para alcançar os outros, sem nada a brilhar e sem nada a refletir. Ele caminha para um grande buraco na rua, que, mais dia menos dia, vai engolir seu corpo e o seu rosto.
_Mas eu prefiro qualquer rosto a nenhum, respondeu o menino.
Você me falou que ajudaria e eu não vou mais sair do seu lado, porque a sua voz está me levando para algum lugar.
_Eu não vou mais abandoná-lo até porque se eu não ajudar você sou eu quem perderá aos poucos o seu rosto.
Até porque nosso rosto é um rastro que Deus deixou sobre a Terra, qualquer coisa que o lembre, um pequeno fiapo divino que nos fala em como seria Deus, de fato. Nele podemos encontrar as suas digitais. Porque não há rosto igual entre milhões. Mesmo assim, um mundo inteiro está caminhando agora em direção ao nada, porque de seus olhares, nada há o que esperar.
_Quando você tiver o seu rosto, você entenderá o que eu falo; ver uma criança sorrir é de Deus. Não é daqui. Ver uma pessoa sorrindo, ver um rosto feliz, nada é daqui. Só pode ser de outro mundo. E, ao ouvir muitas histórias, você aprenderá a olhar, certamente.
_Será que os rostos que não sorriem é porque ouviram as histórias erradas, perguntou?
Continua…
(Resenha do novo livro de Nelceu Alberto Zanatta, O Menino Sem Rosto, que provoca a reflexão sobre a importância de contar e ouvir histórias, desde cedo, para a formação de uma consciência que realmente enxerga, além dos olhos.)
O radialista JG, da rádio Uirapuru de Passo Fundo, fez sua passagem aos 69 anos, neste último dia 26 de agosto de 2024. José S. P. Gomes tornou-se uma marca da comunicação, especialmente pelos microfones da Rádio Uirapuru. Trabalhou também na Rádio Passo Fundo.
Natural da fronteira, chegou à cidade de Passo Fundo nos anos 80 e construiu uma bela história de vida pessoal e profissional nestas plagas. Foram 40 anos junto aos microfones da mesma rádio, a Rádio Uirapuru.
Acompanhamos há mais de 30 anos a trajetória deste querido radialista. Queremos, por meio desta matéria, render nossa singela homenagem.
Convidamos Saul Spinelli, presidente da Câmara Municipal de Vereadores de Passo Fundo e Régis Leonardo, comunicador da Rádio Uirapuru e colega de trabalho de JG para a escrita de uma mensagem em homenagem a este grande comunicador e amigo do povo de Passo Fundo, RS.
JG, a voz do povo nas ondas da rádio
Meu pai disse uma vez que viver é nos acostumar com as despedidas de quem amamos.
Confesso que tive dificuldade de escrever sobre a passagem do JG. Dificuldades de mais uma vez ter este sentimento de que foi cedo demais e que tinha mais para viver, curtir a família e dar boas risadas.
JG era único e, por isso, especial, e na sua despedida reuniram-se amigos, colegas, autoridades e não podia faltar o povo. Mulheres e homens com os olhos cheios de lágrimas e visivelmente tristes pela partida daquele que, do seu jeito, falava as coisas que o povo queria que falasse.
Eu tenho um misto de tristeza e gratidão. JG fez muito por mim e acreditou sempre na minha boa vontade de lutar pela comunidade, inclusive no dia que, junto com companheiros da Vila, deitei no asfalto pedindo quebra-molas. Me ajudou quando me elogiou na Rádio, mas também quando me chamou a atenção. J era o J, um ser humano intenso nas suas qualidades e fraquezas, assim como todos somos.
Agora se reúne com Julio, Altair, seu Bruno, Dr. Fragomeni e tantos colegas e amigos que nos últimos 50 anos alegraram nossas vidas com a paixão que é o rádio.
Gratidão JG, gratidão pela tua vida!
(Saul Spinelli, jornalista e presidente da Câmara de Vereadores de Passo Fundo)
***
Gratidão, Jota!
A partida do José Sirdon Pointevin Gomes, ou simplesmente JG, deixou uma marca de tristeza profunda as pessoas, que assim como eu, tiveram o privilégio de conviver com ele durante sua vida. Além do excelente profissional, comunicador da mais alta qualidade, JG consolidou laços de amizade por onde passou. Tinha uma forma de se comunicar com as pessoas, mesmo fora do microfone, que cativava e conquistava.
Era uma presença ativa na minha vida desde a infância. Lembro que formava uma grande equipe de renomados radialistas nos primeiros anos da Rádio Uirapuru, com meu pai Júlio Rosa, Dirne Terezinha, Altair Colussi, Flávio Ferlin, Antonio Missel, Julio Pacheco, entre outros profissionais que consolidaram a Rádio como a de maior audiência da cidade na época.
Convivi minha infância nos corredores Uirapuru e tinha uma admiração especial pelo JG. Posso afirmar que teve grande influência na decisão de me ternar um radialista também. Era algo que parecia natural, afinal, convivi com meu pai e irmãos nos meios de comunicação, mas não foi fácil.
O tempo passou e depois de alguns anos nos reencontramos aqui na Uirapuru. Eu operador de som no início de carreira e o JG comunicador renomado. Aprendi muito nos 5 anos que trabalhei diariamente com ele, período em que apresentou o extinto programa “Seu Pedido é Um Sucesso”, nas tardes da Uirapuru. Foram anos de muito aprendizado, de conversas e conselhos. JG foi importante demais na minha formação como ser humano e profissional. E assim foi com outros tantos colegas.
Tudo o que conquistou foi com muita garra, dedicação, e competência. Estar na prateleira dos maiores comunicadores do RS é mérito do seu esforço e luta. Mesmo nos dias mais difíceis de sua enfermidade, encontrou força e entusiasmo. Não vi o Jota triste e desanimado em nenhum momento da minha vida.
Me incentivou, demonstrou o caminho e me ajudava todos os dias a seguir meu trabalho quando tive que substituí-lo no programa Repórter do Povo, que é o de maior audiência de Passo Fundo. “Vai lá Réginho, tu tem capacidade!”, me disse nos momentos em que nem eu acreditava que era possível.
Sua presença física ficará na saudade, mas seu carinho, ensinamentos e o homem íntegro que foi nessa passagem pela terra, estão eternizados nos meus sentimentos. Gratidão, Jota!
(Régis Leonardo, comunicador da Rádio Uirapuru, Passo Fundo, RS)
Esse canto torto de pássaro me toca mais do que qualquer máquina. Mas como explicar isso a quem não ouve, a quem talvez nunca tenha ouvido? A voz dos educadores, uníssona, ecoa no deserto para ouvidos surdos: “Tragam-nos livros, por favor!”
Nesta semana, no Congresso dos professores municipais do CMP SINDICATO, ouvi novamente o velho clamor dos professores, ignorado por nossos governantes. Apesar de alguns projetos bem-intencionados, os recursos continuam a ser desperdiçados em tecnologia, enquanto as verdadeiras necessidades da educação permanecem negligenciadas.
Vivemos uma era de entusiasmo digital, onde as novas tecnologias são vistas como a solução para todos os desafios pedagógicos. Computadores, salas makers e outras inovações são amplamente celebrados, mas os educadores, sem desmerecer essas ferramentas, voltam seu olhar para um horizonte mais humanista.
Durante o congresso, o professor Jaime Giolo, Doutor em História e Filosofia da Educação pela USP, ecoou novamente essa voz que conhecemos tão bem. Uma voz que, ao contrário da dos governantes, sugere outros caminhos.
E quais seriam esses caminhos? Eu poderia dissertar árdua e longamente sobre isso, mas não quero cansar o leitor. Prefiro recorrer às metáforas, que tanto encantam na literatura.
A voz dos educadores, uníssona, ecoa no deserto para ouvidos surdos: “Tragam-nos livros, por favor!”
Livros coloridos, cheios de ilustrações. Livros engraçados, melancólicos. Para crianças e jovens. Livros de terror, de aventuras impossíveis. Romances doces, cheios de beijos. Travessos, que falem de infância, adolescência e suas tormentas. Livros sobre o corpo, sobre a sexualidade. Livros para viajar e para levar em viagens. Livros para meninos, meninas, avós. Livros para todos.
E bibliotecas — uma em cada escola, quem sabe? Para abrigar esses livros e, simbolicamente, resguardar nossas almas. Bibliotecas com almofadas tão coloridas quanto as próprias histórias, onde as crianças possam deitar e rolar, e as professoras também, se quiserem. Estantes de madeira, pufes, tapetes. Mesas de leitura e luminárias que, ao iluminarem as páginas, acendam na mente dos leitores as chamas da literatura.
E já que estamos a pedir, que haja também uma professora — ou, quem sabe, uma bibliotecária — dedicada a esse espaço. Alguém que organize o acervo, promova a leitura.
Pode ser aquela professora cansada, quase se aposentando. Não importa, desde que cuide dos livros com carinho.
Eu poderia escrever um texto técnico, menos poético, explicando por que estamos exaustos de tanta evolução disfarçada de tecnologia. Mas seria tão óbvio que só o governo não vê.
Prefiro o caminho sinuoso. A vida não é reta, e eu também não.
Reto é o pensamento de quem nos governa, guiado por um algoritmo opaco que me assusta.
Enquanto isso, de forma poética e torta, as professoras continuam a clamar, como pássaros cujo canto, ao insinuar-se, revela mais do que qualquer palavra direta.
Esse canto torto de pássaro me toca mais do que qualquer máquina. Mas como explicar isso a quem não ouve, a quem talvez nunca tenha ouvido? Não se pode dissecar um pássaro sem matá-lo.
Resta ao pássaro seguir cantando.
E aos que não escutam, seguir não escutando.
Imagens do Evento IX Congresso dos Professores Municipais de Passo Fundo.
O excesso de consumo, a barbárie que se materializa de diversas maneiras, o empobrecimento cultural que tomou conta de nossos educandários, a ostentação de futilidades, dentre outras tantas manifestações, são apenas alguns dos traços da cultura do tédio e da violência da positividade que se instaurou nas nossas vidas.
Não faltam estudos que tentam compreender a cultura do nosso tempo. Cada um, grosso modo, procura traçar características gerais ou específicas que possam esclarecer o modo de se comportar ou de viver de uma determinada geração e, dentre os comportamentos, as manifestações de violência. Para tanto, os estudiosos, inicialmente, utilizam metáforas, não conceitos, para caracterizar as descrições dos fenômenos que estão analisando.
O trabalho com metáforas possibilita uma compreensão criativa e simbólica daquilo que estamos lidando. A título de exemplo, poderíamos falar da metáfora de “mal-estar”, de Sigmund Freud, ou do “império do efêmero”, do pensador contemporâneo Gilles Lipovetsky, “medo líquido”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, ou, ainda, “violência da negatividade” e violência da positividade, do filósofo coreano Byung-Chul Han.
Em um estudo publicado com o título Formação ética: do tédio ao respeito de si¸ o professor e pesquisador do Instituto de Psicologia da USP, Yves de La Taille, faz uma excelente análise de nosso tempo a partir da expressão “cultura do tédio”. Na compreensão de La Taille (2009, p. 15), a cultura do tédio se traduz em uma “vida pequena”, porque é uma vida sem sentido, sem aprendizagem, sem conhecimento, sem criação, sem projeto, sem fluxo, sem energia, sem potência. La Taille (2009, p. 16) se associa ao grande escritor francês do século XIX, Alfred de Vigny, quando dizia que o tédio é “[…] a grande doença da vida.” Mas o que significa vida no tédio? Em que situações experimentamos o tédio? Por que nosso tempo pode ser caracterizado como cultura do tédio? De que forma a cultura do tédio se traduz na “violência da positividade”?
Há uma relação muito próxima e íntima entre o tédio e o tempo. Tempo no tédio é tempo longo, tempo que não passa, tempo que se alonga além da expectativa. Alguém entediado tem a sensação de que os ponteiros do relógio não passam, que o momento é fatigante, que o dia seguinte ou o próximo mês precisam chegar rápidos, na ilusória esperança de que serão melhores que o momento presente. Para La Taille (2009, p. 16), experimentamos o tédio “[…] quando não temos nada para fazer, ou quando estamos fazendo algo que, para nós, carece de significação.” Penso que seja exatamente em decorrência dessa “carência de significação” que nosso tempo pode ser caracterizado como a “cultura do tédio”. Isso pode soar contraditório, pois, diante de tantos entretenimentos disponíveis, de tantas atividades para nos ocupar, como alguém pode não ter o que fazer?
O problema não reside na falta de ocupação e, sim, na falta de sentido.
“Quem diz minha vida é um tédio”, esclarece La Taille (2009, p. 17), “[…] está afirmando que ela é morna, insípida, vazia, insuportável, longa demais.” Para evitar esse tipo de sensação, muitos buscam ocupar freneticamente seu tempo: lotam sua agenda de atividades, fazem questão de ostentar a plena ocupação de seu tempo, vão às academias, falam ao celular sobre qualquer coisa, verificam incansavelmente seus e-mails a todo instante, navegam exageradamente na internet durante horas, deixam a televisão ligada o tempo todo na esperança de encontrar uma novidade com que possam se distrair. Na avaliação de La Taille (2009, p. 17), “[…] engana-se momentaneamente o tédio, mas não se o vence, e o tempo acaba voltando a parecer melancolicamente longo porque a vida permanece pequena.” Trata-se da presença implacável da “[…] violência da positividade”, caracterizada pelo filósofo coreano Byung-Chul Han (2016) e brevemente apresentada na introdução deste ensaio.
Alguém poderia dizer que esse tipo de análise é exagerada e pouco evidente. Num mundo bombardeado de “felicidade” prometida em cada comercial de televisão, diante de tantas possibilidades de lazer e de consumo, como alguém poderia caracterizar a contemporaneidade como tempo de melancolia ou cultura do tédio? Sentir tédio não seria visto como fraqueza de caráter? Sentir-se infeliz diante de tantas possibilidades não seria visto como incompetência social? Como alguém pode se sentir entediado diante da velocidade estonteante a que somos submetidos todos os dias?
Todos esses questionamentos são legítimos e certamente devem ser considerados. No entanto, é preciso tomar cuidado para não simplificar a leitura dos acontecimentos que diariamente vivenciamos. Identificar a presença da cultura do tédio implica vasculhar o que caracteriza a identidade do homem contemporâneo e de que forma ele sucumbe à “violência da positividade”.
Em sua obra O mal-estar da pós-modernidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998) alerta para as dimensões da incerteza da identidade de palimpsesto que configura o homem pós-moderno. “O mundo pós-moderno”, diz Bauman (1998, p. 32), “[…] está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível.” No que consiste essa incerteza? Quais os fatores que a possibilitam? De que maneira contribui para a instalação da cultura do tédio?
Na análise de Bauman (1998, p. 33-36), muitos fatores poderiam ser indicados como provocadores da incerteza: “[…] a nova desordem do mundo”, provocada pelo fim das divisões bem definidas que marcaram a política dos blocos de poder do século XX; “[…] a desregulamentação universal”, oportunizada pela liberdade concedida ao capital e às finanças à custa de todas as outras liberdades; “[…] o esfacelamento das redes de segurança do estado de bem-estar”, que acabou gerando a desigualdade, a qual não consegue mais se autorregular e se autocorrigir; “[…] a pragmática consumista”, que reduz o outro um mero potencial cliente capaz de adquirir um determinado produto; “a indeterminação e maleabilidade do mundo”, produzida pela persuasão eficaz dos meios de comunicação. Nesse mundo de incerteza, reforça Bauman (1998, p. 36), “[…] tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas – e o que quer que aconteça chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso.”
A identidade, neste mundo de incerteza, diz Bauman (1998, p. 36), em vez de ser construída de forma gradual e paciente, é feita por “[…] uma série de ‘novos começos’, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas, mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras: uma identidade de palimpsesto.” Nesse tipo de identidade, esquecer é mais importante que memorizar; é mais importante que aprender; é condição para realizar contínuas e promissoras adaptações de novas pessoas ou coisas.
Na identidade de palimpsesto, diz Bauman (1998, p. 36-37), “[…] a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma incessante auto-obliteração.” Por isso, nessa autoeternizante incerteza, “[…] nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é inteiramente segura, nenhuma perícia é de utilidade duradoura, […] carreiras consideradas sedutoras muito frequentemente se revelam vias suicidas.” (Bauman, 1998, p. 35). Como construir projetos pessoais de vida num mundo marcado por essa autoeternizante incerteza? Como pensar sobre o que se fará amanhã se o que caracteriza o tempo presente é “uma série de novos começos”? De que forma saber quem se é, se a cada instante somos forçados a novas adaptações, que obrigam a “esquecer” grande parte daquilo que somos ou sabemos?
La Taille (2009, p. 38) dá um destaque especial ao significado do esquecer como condição para esse processo de contínua adaptação: “[…] esquecer é não dar valor, não se fixar em valores”. Quando valoramos algo, estão presentes duas formas de mediação: a mediação cognitiva e a mediação afetiva. A mediação cognitiva é responsável por perceber e conceber o mundo, ao passo que a mediação afetiva é que nos leva a “apegarmos” ao mundo, ou seja, a nos interessarmos por ele. Sendo os valores investimentos afetivos, ou seja, “[…] mediação afetiva entre o sujeito e o meio natural e social”, quando prevalece o império da incerteza, esquecer torna-se indispensável para “desvalorizar” aquilo a que por um tempo tivemos de nos apegar para lhe dar importância. “Viveríamos, por conseguinte”, diz La Taille (2009, p. 39), “[…] não em um mundo sem valores, pois a afetividade está inevitavelmente presente e atuante, mas sim em um mundo sem valores estáveis, em um mundo de valores que se equivalem e que se revezam.”
Neste mundo sem valores estáveis tudo se torna passageiro, trivial, frívolo, efêmero. Pratica-se o “[…] achatamento de valores” e nega-se a hierarquia de valores, pois é malvista a pessoa que “ousa” dizer que certas expressões culturais são melhores do que outras, ou que algumas carecem de valor. “Assim”, ressalta La Taille (2009, p. 41), “[…] o refletido, o belo, o raro, o pensamento, construções laboriosos da mente humana, acabam se equivalendo ao espontâneo, ao feio, ao clichê, ao trivial, àquilo, portanto, que não nasce com a intenção de perfeição, mas sim de arroubos momentâneos e efêmeros.”
Alguém poderia dizer que deveríamos evitar a hierarquia de valores, pois na história das civilizações, e mesmo no passado recente, o fato de algumas culturas serem consideradas superiores a outras resultou em processos de genocídios, perseguição, barbárie e eliminação de certas culturas. Como não lembrar dos genocídios realizadas pelos europeus quando aportaram na América? Seria insensato apagar da memória a história da escravidão que marcou os processos de colonização da América e da África. As barbáries praticadas no século XX tiveram como pressuposto a hierarquia de valores: a título de exemplo, poderíamos citar as crueldades executadas pelo nazismo em prol da superioridade da “raça ariana”, ou as atrocidades praticadas pelos comunistas em nome de “[…] um ideal de organização social”.
Entretanto, é necessário tomar cuidado para não fazer generalizações apressadas, pois a ausência de hierarquização de valores é muito mais perversa e perigosa que a indicação de certos valores que servirão de indicadores para balizar nossos projetos de vida. Cabe aqui o alerta de La Taille (2009, p. 42) quando diz que “[…] se recusar hierarquia de valores é válido ou prudente em alguns casos, aplicar tal nivelamento para todos os elementos culturais é se privar de balizas para a construção do próprio sentido da vida.”
“Sentido da vida”, “projeto de vida” e busca da felicidade têm sido assuntos recorrentes em nosso tempo. Não que sejam temas completamente novos, pois, se vasculharmos a história do pensamento ocidental, certamente encontraremos inúmeros escritos que versam sobre o assunto.
Filósofos, místicos, poetas e escritores em geral não pouparam o verbo para abordar a felicidade em seus diversos ângulos. Em nosso tempo o assunto também se mostra com insistência de forma diversificada. Se consultarmos um site de busca na internet ou visitarmos uma livraria, certamente não faltarão indicações de muitos escritos sobre a felicidade. Poderíamos discorrer longamente sobre a qualidade técnica e intelectual de todo esse arsenal bibliográfico que está a nossa disposição. Assim como há bons livros que certamente nos ajudariam a discernir sobre o tema, há outros escritos de qualidade duvidosa, que possivelmente mais alienam do que “jogam luzes” para enfrentar a angustiante problemática.
Na avaliação de La Taille (2009, p. 67) são escritos “[…] cujos autores procuram inescrupulosamente ganhar dinheiro e fama a custa dos infelizes.” La Taille está se referindo, de modo específico, aos livros de “autoajuda”, que ajudam apenas a quem escreve, pois, “[…] se houvesse um livro de autoajuda que de fato ajudasse, não seria necessário publicar tantos”. De qualquer forma, não resta dúvida de que o problema da felicidade é uma preocupação contemporânea e de que, se tal interesse faz parte da agenda de hoje, certamente é porque vivemos “[…] em um clima de mal-estar existencial”. Mas o que caracteriza tal mal-estar? Quais são as evidências que possibilitam tal diagnóstico? Que relação existe entre este mal-estar e a cultura do tédio? E por que esse mal-estar poderia ser traduzido em “violência da positividade”?
Na análise de La Taille (2009, p. 67-68, grifo do autor), há dois indícios que retratam o estado insatisfatório com que levamos nossa vida: “[…] a alta incidência da depressão e a alta frequência de suicídios.” Não que esses indícios sejam uma característica exclusiva da contemporaneidade. Em outros tempos tais indícios tinham outros nomes (cansaço de viver, melancolia, tristeza, acídia, desespero, pessimismo, niilismo, náusea, desgosto) e representavam um estado existencial específico.
Apesar de o termo “depressão” ter sido utilizado desde o século XIX, é nos dias atuais que é “[…] mais empregado e muito presente!” Alguns dados destacados por La Taille (2009, p. 68-70) confirmam essa afirmação: conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), há 121 milhões de pessoas diagnosticadas como depressivas, e a depressão é considerada uma das principais causas mundiais de incapacidade para o trabalho; nos Estados Unidos, acredita-se que pelo menos 25 milhões de pessoas (10% da população) tomam ou tomaram algum tipo de antidepressivo; no Brasil, entre 2000 e 2002 houve um aumento de 48% no consumo de antidepressivos por parte de crianças.
Ainda, conforme a OMS, no ano 2000 houve 815 mil suicídios, contra 510 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil por guerras. Conforme o estudo de dois respeitados sociólogos franceses (Cristian Baudelot e Roger Establet), no conjunto do Planeta o suicídio mata em torno de 100 pessoas por hora, e a taxa de suicídios entre jovens de 14 a 25 anos triplicou na segunda metade do século XX. Apesar de os estudos sociológicos sobre o suicídio e a depressão não explicarem tudo, pois há muitas variações que uma análise mais cuidadosa deveria verificar, La Taille (2009, p. 70) sentencia: “Uma coisa é certa: seja qual forem as diversas causas, tal ato de desespero quase sempre traduz o fato de que a vida perdeu o sentido. […] o suicídio é o infeliz final de um longo processo de perda do sentido.” Talvez poderíamos inferir que a presença da “violência da positividade” se traduz na forma como alguns dão cabo de sua própria vida, mas isso seria tema para um outro ensaio.
Na leitura de La Taille (2009, p. 71), com a qual concordo, há uma íntima ligação entre o estado insatisfatório que provoca a depressão e o suicídio e a cultura do tédio que se instaurou na cultura contemporânea. Em seu escrito Filosofia do tédio, o filósofo norueguês Lars Fr. H. Svendsen (2006) tipifica dois tipos de tédio: o tédio situacional ou superficial e o tédio existencial ou profundo. O primeiro diz respeito a situações passageiras que todos nós, em maior ou menor proporção, enfrentamos no dia a dia; o segundo, a uma maneira de “viver a vida” e está intimamente ligado “à perda de sentido”.
Isso nos faz lembrar uma consideração importante feita por Charles Taylor (1997, p. 33) em seu livro As fontes da construção do self, quando diz que “[…] o problema do sentido da vida está em nossa agenda, por mais que possamos zombar dessa expressão, quer na forma de uma perda ameaçada de sentido, quer porque o encontro do sentido para nossa vida é o objeto de uma busca.”
Segundo Taylor (1997, p. 34), o problema do sentido da vida não se colocava para os pré-modernos, pois eles tinham convicção de que havia um sentido da vida e o desafio se limitava a encontrar o caminho certo para a sua execução. De forma diferente, nós nos defrontamos com “a falta de sentido”, com o medo “[…] de um vazio aterrorizante, com uma espécie de vertigem, ou mesmo uma fratura do nosso mundo e do nosso corpo-espaço.” É a presença marcante da “violência da positividade” que se faz sentir no vazio existencial. É por isso que o medo do vazio, ou o tédio existencial, é decorrente da carência de sentido e “[…] encontrar um sentido para a vida depende de construir expressões significativas adequadas.” (Taylor, 1997, p. 33).
Vencer a cultura do tédio pode se apresentar como uma alternativa confiável para superar o conjunto de problemas que assolam nossa contemporaneidade, inclusive da violência escolar, da violência da positividade e das violências invisíveis que tomam conta do cotidiano.
O excesso de consumo, a barbárie que se materializa de diversas maneiras, o empobrecimento cultural que tomou conta de nossos educandários, a ostentação de futilidades, dentre outras tantas manifestações, são apenas alguns dos traços da cultura do tédio e da violência da positividade que se instaurou nas nossas vidas.
La Taille sugere que uma das formas de superar a cultura do tédio ocorre pela instauração da cultura do sentido. Isso será tema da próxima coluna.
Para os que desejarem ter acesso ampliado das reflexões deste texto, podem acessar o artigo “Violência da Positividade e Educação: da cultura do tédio à promoção da cultura do sentido”, publicado na qualificada Revista Roteiro da Unoec/Joaçaba/SC. Segue o link de acesso:
Impedimos que nossos meninos e meninas, adolescentes descubram e desenvolvam seus talentos e aprendam o gosto da atividade física para seu prazer, tempo livre e saúde. Vem aí as paraolimpíadas e vamos ver brilhar quem conseguiu inclusão escolar e na sociedade!
Ninguém tem dúvidas de que o resultado numérico das medalhas nas Olimpíadas mostrando Estados Unidos e China na liderança corresponde ao poder econômico e político mundial, mas também da decisão política de valorizar o esporte desde a infância.
Mas as vitórias femininas brasileiras do ouro na Ginástica, no Judô e no Vôlei de Praia, nossa garra e desempenho nos esportes, coletivo ou individual, mostram a nossa potência. Em especial porque não conseguimos manter políticas continuadas de formação desde a infância na rede escolar, com estruturas descentralizadas de centros de esportes em cada modalidade, jogos escolares, campeonatos estudantis entre cidades, intercâmbios internacionais, bolsas de incentivo de atletas, professores e técnicos, etc.
Ao contrário, o básico da formação e descoberta da potencialidade de atletas de alto nível – a Educação Física Escolar – vem sendo desprestigiada e desvalorizada de todas as formas. Desde sua participação no currículo escolar às condições materiais para desenvolver as aulas e práticas nas escolas e ainda pela falta de professores e professoras.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece que a Educação Física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da Educação Básica. No entanto, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em vigor, permitiu que no Ensino Médio as escolas oferecessem o componente curricular da Educação Física como itinerário formativo à escolha dos alunos, assim como de outros componentes curriculares, com exceção da Língua Portuguesa e Matemática, que são os únicos obrigatórios.
Aqui no Rio Grande do Sul, no Ensino Fundamental são ofertados dois períodos por semana e, no Ensino Médio, apenas um. No ensino noturno, pasmem, a Educação Física é prevista à distância!
Além da baixa oferta, o Monitoramento das necessidades de obras escolares na rede estadual e de recursos humanos da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, identifica em 2023 e em 2024, a grande precariedade das quadras esportivas, quando existem, demanda de coberturas e ginásios, de equipamentos e de professores com a Educação Física só ficando atrás da Matemática!
Na realidade, em grande medida, temos impedido nossos meninos e meninas, adolescentes e jovens de descobrirem e desenvolverem seus talentos e de aprenderem o gosto da atividade física para seu prazer, tempo livre e saúde. Vem aí as paraolimpíadas e vamos ver brilhar quem conseguiu inclusão escolar e na sociedade!
Empreendedorismo é o nome com que o mercado diz às pessoas “Olha como fazes, conserte-te sozinho, do Estado não espere nada”, é a farsa de uma atividade econômica autônoma que encoraja para uma economia individual de voo curto no final do qual a frustração espreita.
O empreendedorismo pegou como a varíola. Surpreende-se o número de pessoas que ‘tem’ um empreendedorismo que muitas vezes está ligado a comida de plástico, mas em versão ‘gourmet’.
Em outros casos, são pequenos trabalhos em crochê, brinquedos para animais de estimação, velas ou sabonetes artesanais; nos bairros menos favorecidos fazem pão e outros panificados. Há de tudo, mas tudo para uma economia que não resulta das necessidades de quem consome, mas das de quem empreende, pequeno detalhe.
São empreendimentos que, na maioria das vezes, se esgotam em um público de família e amigos que compram para dar uma mão e que rapidamente deixam de consumir.
A necessidade, juntamente com a ideia de que empreender é fácil, algo como uma espécie de vontade que dispensa a viabilidade real do empreendido, está na base da frustração de pessoas que querem “salvar-se” sem ter as ferramentas básicas de um negócio onde é preciso ter habilidades, conhecimentos e competências específicas e capacidade de se autorganizar, é preciso conhecer o mercado mesmo que este seja modesto.
Trate-se de uma ilusão, a de uma economia que coloca a tônica no esforço individual, que frustra a massa de empresários que quiseram mas não souberam.
Empreendedorismo é o nome com que o mercado diz às pessoas “Olha como fazes, conserte-te sozinho, do Estado não espere nada”, é a farsa de uma atividade econômica autônoma que encoraja para uma economia individual de voo curto no final do qual a frustração espreita.
Autor: Eduardo Corbo Zabatel. Ensayista, Psicólogo, Profesor de Historia, Magist en Ciencias Sociales. Mora em Buenos Ayres, Argentina. Também escreveu e publicou no site “Precisamos nos ocupar em desconstruir a estupidez”: www.neipies.com/temos-que-nos-ocupar-em-desconstruir-a-estupidez/
Eduardo Galeano resumiu: “os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me disse que somos feitos de histórias”. E eu acredito mais em Manoel de Barros que nos cientistas: “Eu penso renovar o homem usando borboletas”.
O termo “literatura infantil” vem sendo revisado por alguns escritores e críticos. Preferem usar “literatura para crianças” ou “literatura para a infância”. Isso porque o termo “infantil” pode soar pejorativo, como se fosse algo menor ou até não literatura.
De minha parte, prefiro falar de livros para a infância, cuja principal característica é ser uma literatura que se firme por padrões estéticos e se dedique ao diálogo com a infância e suas problemáticas. Esses textos, os bons, podem (e devem) ser lidos por humanos de qualquer idade, porque, ao promoverem o diálogo com a infância, problematizam a vida humana em suas questões fundamentais.
Ler e contar histórias para as crianças é unanimidade entre pedagogos e psicólogos, embora, entre teoria e a vida, pais acalmem os filhos com um celular ou tablet. É muito mais cômodo. Esse segredo simples é um daqueles tantos outros: são óbvios, mas ninguém leva a sério. Contar histórias fica a cargo da escola, isso quando esta não se resume ao cumprimento de programas pedagógicos, o que acontece na maioria das vezes.
A coesão narrativa tem o dom de costurar os fragmentos da vida no mundo, dá unidade, constrói sentido, demonstra as crises dos desejos e os empecilhos aos sonhos. As boas histórias não precisam de enredos magníficos ou peripécias incríveis. Basta um ser humano, ou algo que lhe seja metáfora, em busca da realização de um desejo. Esse desejo pode ser a fuga de uma vida medíocre, como em Madame Bovary, ou o desejo de trazer um peixe para a terra, como em O Velho e o Mar, ou, simplesmente, em destruir gigantes imaginários por amor, como em Dom Quixote. Quanto às histórias infantis, há tantas!
Essa característica da linguagem, pelo que se sabe até hoje, é inerente apenas ao ser humano. Embora se saiba que golfinhos se comunicam, que pinguins resmungam, que os elefantes soltam gritos alertando perigos, não se imagina qualquer desses animais relatando a história da família aos filhotes ou fazendo-os dormir com contos de fadas ou de bruxas.
Uma rede de televisão fez uma reportagem sobre uma experiência médica com prematuros. Um grupo deles foi submetido à contação de histórias por voluntários ou familiares, outro teve apenas o tratamento convencional. A experiência revelou uma melhora significativa naqueles bebês que ouviam histórias, um aumento da resistência às infecções e uma estabilização dos batimentos cardíacos, entre outros benefícios. A voz humana, além do enredo – que seguramente os recém-nascidos não entendem –, transmite emoções. Segundo a médica, esse vínculo afetivo com a voz é que produz os efeitos físicos.
Eduardo Galeano resumiu: “os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me disse que somos feitos de histórias”. E eu acredito mais em Manoel de Barros que nos cientistas: “Eu penso renovar o homem usando borboletas”.
“Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática”. (Paulo Freire)
Agradecer pelo que somos é escolha de quem decide desenvolver suas potencialidades, ciente dos obstáculos a serem superados, com a coragem dos resilientes. Neste sentido, desejo agradecer pelos caminhos que me trouxeram ao exercício da docência, por todos os docentes que inspiraram essa minha decisão, pelos colegas de caminhada que na sala de aula ou no exercício de outras funções fazem “esse mundo da educação” acontecer. No entanto, não basta expressar gratidão, é preciso ser coerente e elaborar leituras do contexto que atravanca o fazer pedagógico, especialmente em escolas da Rede Estadual do Rio Grande do Sul.
O que motivou a necessidade deste escrito foram algumas mensagens alusivas ao dia do Coordenador Pedagógico (22/08). Ao partilhar algumas aprendizagens e indignações amorosas, tenho por objetivo gerar reflexão para mobilizar esperançosas ações, sem as quais a qualidade da educação dificilmente irá melhorar.
Ocupando esta função desde dezembro de 2022, experimento desafios que me acompanham em momentos formativos, análises de conjuntura, reuniões internas e externas de equipes gestoras e determinações da mantenedora advindas da política do momento.
Infelizmente, carecemos de uma política educacional pautada por ações que garantam qualidade, equidade e inclusão. Embora estes conceitos sejam repetidos em discursos oficiais, ainda estamos longe de atingir esses ideais. O motivo deste insucesso, provavelmente, já seja do conhecimento dos prezados leitores dessa coluna mas, mesmo assim, o óbvio precisa ser dito, proclamado sobre os telhados, gritado em púlpitos, assembléias, paralisações, emendas, plebiscitos.
É urgente valorizar os profissionais da educação, entender que sem estes não se faz um município, um estado, uma nação verdadeiramente humanizada, consciente do papel das subjetividades na construção do coletivo. Para alcançar esse objetivo convém compreender que os profissionais da educação são verdadeiros heróis, pois lutam incansavelmente contra toda forma de alienação e exclusão social.
É preciso derrubar por terra os argumentos neoliberais que tentam justificar baixos salários, benefícios irrisórios de vale alimentação, vale transporte e planos de carreira defasados.
Outra ação indissociável da valorização salarial vai ao encontro da necessidade sempre urgente de investimentos na formação inicial e permanente dos professores. É incoerente discursar e mostrar ações que visam melhorar a qualidade do ensino e as notas do IDEB, ao mesmo tempo em que se oferece pouco e ou quase nenhum espaço para formação entendida como práxis: ação – reflexão – ação. Dirão que existe jornada Pedagógica, parada pedagógica, ações que, embora bem vindas, precisam de reformulação e coerência. A esse respeito teço algumas observações nascidas da minha ação e da interação com meus pares.
A Jornada Pedagógica oferecida pela Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, tem se constituído em transmissões feitas pelo Youtube, momentos informativos, instrutivos nos quais se faz mais propaganda das ações do governo do que formação propriamente dita. O que tem de pedagógico na jornada que leva esse conceito? Ouso dizer que são poucos momentos, estes se resumem em algumas salas temáticas voltadas para segmentos específicos.
Quanto a Parada Pedagógica, reconheço a importância da mesma, porém lamento que seja apenas uma por trimestre, o insuficiente para responder a todas as demandas advindas da mantenedora. Entendo a necessidade da burocracia e do registro das ações, no entanto o excesso de planilhas nos consome, contribuindo com o adoecimento de uma categoria que já vem sofrendo há tempos com o desmonte do plano de carreira, com a ausência de estabilidade (o último concurso ocorrido na rede foi mais simbólico do que resolutivo se considerarmos a demanda de recursos humanos de nossas escolas).
É tarefa do coordenador pedagógico motivar a equipe de professores, instruir e acompanhar planejamentos, projetos e ações que respondam a necessidade sempre urgente de uma educação de qualidade. Como cumprir com essa missão num contexto que favorece o adoecimento da categoria? Pesquisas comprovam o crescente adoecimento dos educadores e isso se deve à carga horária excessiva, excesso de demandas burocráticas, pouco tempo para planejar, estudar e organizar o trabalho que se faz antes, durante e depois da aula dada.
O que falta para a sociedade compreender o trabalho dos professores?O que ainda precisa acontecer para os governos olharem com coerência para os contextos diversos nos quais ocorre o ensino e aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens?Até quando seremos presa fácil de um sistema que se encaminha dia a dia para o “apostilamento” e a privatização?
Soma-se a estas questões a remuneração dos supervisores escolares em nosso Estado. Trata-se de uma função de gestão feita por especialistas que não são remunerados como tal. Cabe a estes profissionais, dentre outras tarefas, responder a diversas demandas, fazer a leitura das estatísticas e o planejamento de ações eficientes e eficazes em tempo reduzido, comparecer à escola fora do seu horário de trabalho para atender professores que lá se encontram cumprindo hora atividade. Deste modo, professores de sala de aula e gestores adoecem, a ansiedade de uns avoluma a angústia de outros e vice-versa.
Não concluo este texto sem renovar minha gratidão pelos que lembraram dessa data e manifestaram reconhecimento e carinho. Por razões diversas, é desafiador ocupar este lugar numa escola pública, pois:
interagimos com os pares e suas angústias, esperanças e desejos;
convivemos com educandos que, também, por razões muitas, demonstram pouco interesse pela escola, apegados ao mínimo matam o desejo de evoluir profissional e humanamente;
lidamos com diferentes concepções de educação presentes na prática do outro; a dimensão ética e política do fazer pedagógico carece de aprofundamento.
Penso que transformar tanta indignação em ação é uma tarefa coletiva, requer consciência política. É impossível mudar o contexto se quem está imerso nele não for escutado ativamente, ou seja, contemplado em ações de real valorização e formação. Existem exemplos que apontam melhorias nos resultados apontados pelo IDEB em Estados que investem na valorização dos profissionais, caberia aqui mencioná-los, no entanto deixo para você esse desafio de pesquisa, entendendo ser tarefa primordial da educação formar para um agir autônomo, crítico e investigativo.
A opção pelo exercício da docência, independente do espaço onde ela se efetiva não pode ficar refém de um partido político e de uma ideologia calcada na valorização do mercado e de “pacotes da iniciativa privada”… a pretendida cooperação público / privado não justifica o menosprezo de instituições e profissionais da rede pública. A aquisição desses pacotes e assinatura de plataformas de leitura não parecem adequados se a intenção for melhorar a qualidade da educação: a neurociência e as experiências de outros países quanto ao uso de telas deveriam ser consideradas.
Renovemos nossa opção e estendamos as mãos com empatia: essa é uma força política com poder de colocar em movimento as consciências, recriando as “marchas” tão queridas por Paulo Freire, nosso patrono.
Indignado e grato, desejo que essa breve reflexão provoque não o Éco do mesmo, mas outras reflexões, questionamentos e ações que possam, efetivamente, melhorar e transformar a educação no Estado do RS.
Em entrevista, o escritor, pensador e um dos mais importantes ativistas do movimento indígena brasileiro, Ailton Krenak, discorre sobre as ideias de pertencimento e resistência que permeiam a luta das populações autóctones do continente americano.
Por Ana Paula Orlandi, jornalista e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Como você define “pertencimento”?
Para mim, pertencimento não tem nada a ver com a concepção utilitária de algumas culturas, principalmente aquelas fortemente influenciadas pelo pensamento ocidental, que o associam à ideia de pátria, de nacionalidade. Pertencer a um lugar é fazer parte dele, é ser a extensão da paisagem, do rio, da montanha. É ter seus elementos de cultura, história e tradição nesse lugar. Ou seja, em vez de você imprimir um sentido ao lugar, o lugar imprime um sentido à sua existência.
O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro defende que pertencer à terra, em vez de ser dono dela, é o que define os povos indígenas. Concorda com ele?
Sim! O ser humano não é superior a qualquer outro ser vivente do planeta e, portanto, me parece absurda essa ideia de querer ser proprietário de alguma porção da Terra. Tem uma carta atribuída ao Chefe Seattle, Ts´ial-la-kum, escrita no século 19 em resposta à proposta do então presidente dos Estados Unidos, Franklin Pearce, que queria comprar o território indígena dos Suquamish e Duwamish, na região do atual estado de Washington (EUA). Em um trecho esse líder indígena diz assim: “É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como podem compra-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo”. Ele não estava falando apenas daquele território, mas da Terra, desse organismo vivo, fantástico, do qual fazemos parte como condição para a gente existir. Essa ambição de ser o dono do lugar leva o ser humano a se descolar da Terra e observar o mundo de fora, como se não participasse do todo. Esse descolamento faz, por exemplo, algumas pessoas olharem para uma montanha apenas para calcular quantas toneladas de minério podem extrair dali.
No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, lançado em 2019, você escreve: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Poderia falar mais sobre isso?
A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio Doce, no estado de Minas Gerais, e na direita está a montanha Takukrak, que é uma espécie de oráculo para a gente. Toda manhã, olhamos para ela para saber como vai ser o dia. Quando ela amanhece com nuvens claras sobrevoando sua cabeça, toda enfeitada, é sinal que podemos dançar, pescar, festejar, sair. Já quando ela está com cara de poucos amigos, ficamos mais quietos. Mas no livro falo também da nossa relação com o rio, que chamamos de Watu e consideramos como um ancestral, um ancião, nosso avô. Em 2015, ele foi afetado profundamente por um crime ambiental [N. da R.: o rompimento da barragem do Fundão, em Minas Gerais, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton, que matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do Rio Doce, com mais de 600 km de extensão] a ponto de ter sua morte anunciada pela imprensa. Esse episódio atingiu nossa vida de forma radical: ficamos sem a água, sem o peixe, sem lugar para os rituais e as festas. As crianças não podiam mais brincar ali.
Quando os Ministérios Públicos Federal e Estadual começaram a pressionar a Samarco, a Vale e a BHP Billiton para que reparassem os Krenak pelos danos sofridos pela lama tóxica da mineração, a primeira coisa que o consórcio de empresas queria fazer era tirar a gente do nosso território. E a gente se recusou. Eles, das empresas, nos perguntaram: Mas vocês vão ficar aqui como flagelados agora que o rio morreu? E a gente respondeu: O rio é uma extensão da nossa família, vamos continuar aqui para velar por ele. Isso pode ser incompreensível para mentes dissociadas da ideia de pertencer a um lugar.
Como você avalia a situação dos indígenas no Brasil com o desmantelamento da política ambiental e indigenista por parte do governo anterior?
Em 2018, pouco antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro, um jornal português me perguntou: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu respondi: “Tem 500 anos que os índios estão resistindo, estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa”. E até agora não vi uma atitude mais contundente dos brancos em relação aos ataques do governo ao meio ambiente, à educação, à cultura, às políticas sociais. Eu imaginava que os partidos políticos fossem fazer uma imensa coalizão para confrontar esse projeto neoliberal, mas nada aconteceu. As pessoas parecem anestesiadas. Nós, indígenas, continuamos resistindo, mas vejo o governo Bolsonaro como mais um capítulo da nossa luta colonial, que começou em 1500, quando os portugueses invadiram nosso território, e prossegue até os dias de hoje. O modelo de ocupação da América pelos europeus visava o extermínio dos povos originários e ao longo desse tempo a gente nunca teve paz. Sempre estivemos em guerra.
É possível adiar o fim do mundo?
Digo no livro que para adiar o fim do mundo é preciso reafirmar o sentido de viver em sociedade, é preciso ser capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. Nós, seres humanos, precisamos manter vivas nossas subjetividades, nossas visões e nossas poéticas sobre a existência e também valorizar a diversidade, porque homogeneizar a humanidade é uma forma de roubar nossa alegria.
Autora: Ana Paula Orlandi, jornalista e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Ciências é uma disciplina tão bonita e tão gratificante de ser ensinada e aprendida! Causa espanto e admiração mostrar às nossas crianças explicações científicas das coisas que acontecem ao nosso redor e mostrar-lhes que para tudo há uma resposta física.
Estudei a minha vida inteira na escola pública, e me lembro bem do meu ensino fundamental I e II numa escolinha pequenina do meu bairro que se dedicava a ensinar tão somente língua portuguesa e matemática de uma forma simples. Aprendíamos a soletrar as palavrinhas e a fazer continhas de somar e subtrair, as demais ficavam em terceiro plano.
Nos anos 70, já tínhamos um ensino público carente de recursos didáticos, com professores mal remunerados e sem condições financeiras de comprarem livros ou pagarem uma pós-graduação para se aperfeiçoarem. O ensino era precário demais. Até hoje tenho uma certa dificuldade com as ciências exatas, principalmente física e matemática.
Há, sim, muitas dificuldades nas escolas públicas para o ensino de Ciências às crianças, principalmente àquelas mais pobres e de periferias esquecidas das autoridades. Eu mesma nunca tive uma experiência de Ciências no ensino fundamental. Isso me desestimulou e me fez seguir a carreira literária, pois tinha o sonho de ser uma neurocientista já com sete anos de idade.
Uma das principais dificuldades de se ensinar Ciências às crianças pobres de escolas públicas é a falta de recursos financeiros, principalmente o investimento em laboratórios equipados com materiais práticos para experimentação que possam ajudar o aluno no seu ensino-aprendizagem. Também faltam materiais didáticos para o incentivo do estudo na escola e em casa, os professores não estão preparados para este tipo de ensino, não sabem quais ferramentas usar, como ensinar, quais metodologias e didáticas melhores devem ser utilizadas em um ou outro assunto que deve ser abordado.
Acredito que devia ser criada uma união de forças dos governos, das escolas e da sociedade civil para superar essas barreiras e levar às crianças pobres de escolas públicas o incentivo no estudo das Ciências. Sabemos das grandes dificuldades que a educação pública precisa vencer nas disciplinas de matemática e língua portuguesa, mas não podemos podar os sonhos dos nossos alunos como fizeram com os meus.
Na minha pequena escola sequer tinha uma biblioteca, imagine um laboratório de Ciências. As pequenas escolas dos municípios pequenos espalhados pelo Brasil e por onde tenho passado também não têm laboratórios de Ciências e os alunos aprendem apenas o que está ali no material didático desatualizado, mofado, com cupins ou páginas amareladas e com suas imagens cortadas para algum trabalho de artes que precisava delas. É triste saber que podíamos ter mais engenheiros, cientistas, astronautas e tantos outros profissionais das Ciências. Eis porque importamos tantos cientistas e nunca recebemos um Prêmio Nobel.
A falta de infraestrutura nas escolas públicas também é um grande desafio às autoridades e professores. Falta quase de tudo nessas escolas. Laboratórios improvisados, salas de aulas quentes e superlotadas, instalações precárias tornam difíceis o ensino desta disciplina e as coisas se complicam a cada ano que passa, pois por mais esforços que os professores façam não se pode fazer ciências sem material adequado, sem recursos financeiros para comprar o necessário para que os alunos possam fazer os seus experimentos.
A primeira vez que entrei em um laboratório de Ciências foi no ensino superior e fiquei maravilhada. Infelizmente quase explodi o laboratório com um experimento, mas foi coisa de quem fica admirado e espantado com tanta boniteza ao seu redor e quer experimentar de tudo ao mesmo tempo. De repente, me vi pensando nas crianças pobres do meu bairro que estudam numa escolinha pública perto da minha casa que nunca entraram em um laboratório daqueles.
As condições socioeconômicas das famílias dessas crianças também é um desafio para o ensino das Ciências. Elas não recebem em casa o apoio merecido, não são incentivadas a estudarem esta disciplina e delas é exigido apenas que saibam ler, escrever e fazer contas. Como seria bom que os nossos alunos soubessem fazer mesmo essas três coisas! Não passaríamos vergonha nos testes de educação internacionais e nem mesmo nos nacionais.
Ciências é uma disciplina tão bonita e tão gratificante de ser ensinada e aprendida! Causa espanto e admiração mostrar às nossas crianças explicações científicas das coisas que acontecem ao nosso redor e mostrar-lhes que para tudo há uma resposta física.
Não permitir que as crianças fiquem somente com o pensamento do senso comum, mas que experimentem e pratiquem novas teorias, novas hipóteses, novas práticas e levantem outras questões empíricas em relação às coisas que ainda não foram respondidas pelos atuais cientistas.
O ensino de Ciências é necessário e preciso para todas as crianças. Falo aqui da criança pobre na escola pública, mas me volto para o ensino no geral. Não me detenho ao ensino privado porque sei que neste sempre há um espaço dedicado para as ciências mesmo que seus laboratórios sejam pequenos, porque os materiais para equipá-los são caros por demais. Imagine se um familiar vai deixar de presentear seu filho com um bom tênis esportivo para comprar um microscópio? Ele não tem cultura para fazer isso e nem a criança sabe o valor de um aparelho como este.
Os livros didáticos não condizem com a vivência da criança pobre e trazem sempre atividades que fogem do seu cotidiano não despertando o interesse para o estudo da disciplina de Ciências. Muitas vezes a atividade solicitada não traz um estímulo, uma reflexão, um espanto e passa despercebida pela criança que sente fome e calor numa sala de aula onde o barulho e a indisciplina reinam porque o professor não consegue ter domínio da turma grande demais.
É preciso capacitar os professores para ensinarem Ciências de uma maneira que cause espanto e admiração nos alunos. O apoio das autoridades, a ampliação de políticas públicas educacionais maiores nessas escolinhas de municípios com poucos habitantes, mas com crianças que têm os mesmos sonhos das de cidades grandes.
Também um programa de formação continuada para os professores numa parceria com as universidades públicas seria muito bom, também. É essencial que a criança pobre tenha as mesmas oportunidades que a criança da escola privada, não diria que a criança rica, mas a que estuda nas melhores escolas. O ensino das Ciências é lindo porque ele explica o que apenas vemos acontecer no nosso cotidiano sem sabermos e nem darmos conta de que um acontecimento físico tem a sua explicação científica.
As crianças aprendem desde cedo a temerem as coisas do mundo, como dizem os seus avós. Contudo, elas precisam saber que este temor não é necessário, pois as Ciências explicam todos os fenômenos e acontecimentos da natureza e até de nós mesmos. Por muitos anos as crianças acreditam no que lhes contaram seus avós sobre as estações do ano, as marés, os eclipses, o fim do mundo, a morte sem darem conta de que para tudo isso existe uma explicação científica que pode sanar o medo.
Eu me lembro que uma vez no meu curso de filosofia o professor contou que o filósofo grego Tales de Mileto, quando criança, gostava de explicar os fenômenos da natureza para os seus familiares e amigos e que diziam ele viver no mundo da lua, quando na verdade ele estava certo em todos os seus experimentos científicos até descobrir na sua physis que a origem da vida estava na água para mais tarde ter a sua teoria revogada por outro filósofo. E assim são as Ciências, esta é a sua boniteza, ela está sempre em movimento como as águas do rio do filósofo Heráclito que dizia que não entramos no mesmo rio duas vezes.
Encontramos no documento da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, uma proposta em espiral para o ensino das Ciências às crianças, ou seja, que os assuntos vão se aprofundando com o passar dos anos até se tornarem compreensivos à criança visando o seu desenvolvimento e maturidade. Não me parece coisa simples, mas é assim que está lá escrito. A minha pergunta é a seguinte para quem redigiu este documento: Como a criança vai criar maturidade e desenvolver habilidades naquilo que nunca experimentou? Num ensino que fica muitas vezes na teoria e que quase sempre é deixado de lado para dar lugar ao ensino da escrita, leitura e aprendizagem das quatro operações matemáticas.
No documento da BNCC faz-se referência a assuntos como atmosferas, sustentabilidade, biodiversidade, ecossistemas etc., quando a maioria das crianças do fundamental I e II nunca tiveram acesso a essas palavras que acham estranhas e difíceis de serem pronunciadas imaginem explicar o que elas querem dizer.
Nas feiras de Ciências que algumas escolas públicas de ensino fundamental I e II ainda insistem em fazer por exigência das secretarias de educação dos municípios as crianças reproduzem com a ajuda de maquetes criadas pelos professores de artes um ensino teórico repetitivo e cansativo que nada diz e nada explica na verdade.
Eu mesma já presenciei isso em várias feiras de ciências que visitei nas escolas públicas do Brasil. As crianças apresentando felizes as suas maquetes e com uma cola da explicação científica nas mãos, sem saber na verdade o que está por trás do experimento que aquela maquete quer representar.
Não vemos uma escola pública fazer rifas ou balaios juninos para aquisição de livros de Ciências ou para compra de materiais para um laboratório. Infelizmente, somos o país de pouquíssimos astronautas, talvez dois apenas viajaram pelo espaço até hoje, são eles os senhores Marcos Pontes e Victor Correa Hespanha, que não fizeram nenhum esforço para mudar essa história das Ciências nas escolas públicas. Espero que ainda haja tempo do senhor Marcos Pontes, senador pelo Estado de São Paulo rever os seus conceitos de Ciências na educação brasileira.
Desde 2016, no dia 11 de fevereiro comemora-se o Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência. A data foi definida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre a presença e a excelência das mulheres na ciência. Segundo dados da Unesco, as mulheres representam 33,3% de todos os pesquisadores no mundo e apenas 12% delas são membros de academias científicas nacionais. Ao olhar para áreas de tecnologia e inovação a presença de pesquisadoras cai ainda mais: elas são apenas uma em cada cinco profissionais. A fonte destes dados é do Jornal UNESP, datado de 10 de fevereiro de 2023 com o seguinte título “A ciência precisa de mais mulheres”. É isso que vemos no Brasil, o patriarcado ditando o lugar da mulher como sempre.
Se é difícil para os homens conseguirem a formação de astronautas num país que não investe em projetos de exploração espacial como o nosso, imagine as mulheres que nas escolas aprendem mal aprendem a ler e a escrever e já se tornam mães aos 13 ou 15 anos incompletos. Sendo que 73% dessas mulheres são negras, ou seja, o racismo se fazendo presente mais uma vez tirando as chances das nossas meninas conquistarem os seus sonhos da formação acadêmica que poderia proporcionar-lhes uma vida melhor.
Assim sendo, é um esforço coletivo e coordenado de diversos segmentos da sociedade o reconhecimento e valorização do ensino das Ciências nas escolas públicas onde estão a grande maioria das crianças pobres deste país. Começando pelas autoridades educacionais até a escola em si. Não é tarefa das mais fáceis, mas quem sabe possamos formar um outro Newton ou Einstein pelo sertão ou cerrado brasileiros.
Portanto, o desafio do ensino de Ciências às crianças pobres das escolas públicas do nosso país é grande por demais. É preciso um esforço conjunto para compra de material didático escasso nestas escolas, construção de laboratórios equipados com bons materiais e a capacitação continuada dos professores despertando neles o interesse pelo ensino-aprendizagem aos seus alunos.
Para finalizar de verdade, trago o poema “Acima da verdade” do heterônimo Ricardo Reis criado pelo poeta português Fernando Pessoa que nos diz
“Acima da verdade estão os deuses. / A nossa ciência é uma falhada cópia / Da certeza com que eles / Sabem que há o Universo…”
Que a ciência seja para as crianças não uma falhada cópia, mas um espanto de uma maçã ao cair nas suas cabeças em plena manhã de outono despertando para uma nova teoria física, matemática ou outra ciência qualquer. Que as nossas meninas pretas, pardas ou de qualquer outra cor de pele possam subir ao espaço e pisarem na lua como pisamos no chão de terra seca do nosso sertão, porque elas também são deusas e podem tudo!
Leia também interessante matéria sobre fazer ciência, estimulando as crianças a gostarem do saber científico: www.neipies.com/quero-ser-cientista/