Nos despedimos de 2016 com a última entrevista da Série “Profissões Educadoras” falando sobre direitos, quebra de paradigmas, lutas, conquistas e garantias. Nossa entrevistada, que no nome traz flor, na vida se destaca pela luta em defesa dos direitos sociais: a advogada Maria Sirlei Flor Vieira, pós-graduada em Direito do Trabalho e em Processo do Trabalho. Ela advoga e labuta com movimentos sociais há mais de 30 anos. Maria Sirlei lutou pelo direito das pessoas, numa época em que defender direitos era considerado um ato subversivo, quebrando paradigmas, fundou a Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF). Acompanhe a entrevista e até 2017!
Márcia Machado: O que lhe levou a trabalhar com movimentos sociais?
Maria Sirlei: Durante a faculdade eu participava de movimentos de juventude como Pastoral da Juventude e de Emaús (Movimento de Comunidades Missionárias para jovens da Igreja Católica). Ajudei a criar a Pastoral da Juventude, justamente numa época de transição política, onde estava terminando a ditadura militar. Durante este período, os movimentos sociais eram proibidos, eles só ocorriam escondidos, na clandestinidade.
Os movimentos de jovens ligados à Igreja Católica eram muito fortes. No fim da ditadura, início da abertura política, foi que começamos a criar os movimentos sociais e foi criada a Pastoral da Juventude, havia a pastoral dos jovens trabalhadores rurais e outra dos jovens trabalhadores urbanos, foi quando nós iniciamos a criação do movimento estudantil, através de uma pastoral nesse meio.
Com a minha formatura em Direito, passamos a buscar a criação da Comissão de Direitos Humanos. Criamos a Comissão em Passo Fundo, em 1985, com movimento das “Diretas Já”, e outros movimentos de denúncia e irregularidades, tudo era feito na clandestinidade, não havia Internet, na época era tudo camuflado. A CDHPF em Passo Fundo e no Brasil, tinha a função de denunciar as disparidades e os abusos de poder, abuso contra as pessoas. Foi então, que a gente começou um trabalho de divulgação dos direitos humanos.
Márcia Machado: Em Passo Fundo a senhora foi a primeira presidente da CDHPF?
Maria Sirlei: Sim, apesar de termos passado em torno de dois anos atuando sem estar legalizados, entramos em uma rede que havia em todo o Brasil, e começamos a participar de encontros estaduais e nacionais, e, então, criamos legalmente a Comissão. No início começamos junto à Igreja Católica, depois foi desmembrada e passou a ser autônoma como é até hoje.
Márcia Machado: Como foi essa experiência, saindo de uma ditadura, se envolver com um movimento de luta social?
Maria Sirlei: Pelo medo da ditadura a gente não tinha muito noção do que eram esses direitos, foi com a abertura política, através dos movimentos ligados à igreja que a gente começou a descobrir que existia uma ditadura e que existiam direitos. Foi então que começamos a divulgar esses direitos, através dos movimentos.
“Desde essa época, vem um preconceito contra a CDHPF, porque ela surgiu na clandestinidade, durante a ditadura, para proteger os presos políticos, então ficou caracterizada como defensora de bandidos, o que era divulgado pela ditadura para descaracterizar o movimento”.
O que não é verdade. Os presos políticos não são bandidos, mas sim, pessoas que defendiam ideias. No transcorrer dos anos, nós conseguimos manter a CDHPF em Passo Fundo. Com a democracia ela perdeu essa característica de defesa de presos políticos, para tratar dos direitos universais das pessoas. Começamos divulgar os direitos das pessoas nas escolas e sofremos muitos processos, tivemos casos de professoras que foram processadas por distribuir informativos sobre o tema, a argumentação é tinham tendência ao comunismo e não poderiam estar divulgando o material. A Comissão intervinha fazendo a defesa desses casos.
Qualquer pessoa que escrevesse sobre direitos das pessoas era considerada subversivo, e nessa época já havia abertura política. Isso só mudou a partir da nova Constituição em 1988 com a garantia de direitos. Hoje, a Comissão é mais educativa e menos de luta.
“Qualquer pessoa que escrevesse sobre direitos das pessoas era considerada subversivo, e nessa época já havia abertura política”.
Márcia Machado: Quais as conquistas da CDHPF?
Maria Sirlei: Na época, a CDHPF tinha uma atitude mais combativa, necessária naquele momento, hoje, ela está mais silenciosa, com uma participação mais educativa. Foi através de todos os movimentos de direitos humanos que veio à tona todas as barbáries da ditadura. Se não fossem os movimentos, talvez nós nem tivéssemos a democracia que temos hoje. Mas eu acho que agora começa um novo trabalho da CDH para combater essa “corrente”, não sei de que ordem ela é, mas que busca uma volta da ditadura militar e isso é muito perigoso.
“Eu acho que agora a atuação da Comissão é conscientizar as pessoas que não se pode ser radical a ponto de se terminar com uma democracia, trazendo de novo uma ditadura”.
Hoje não cabem mais ditadores, pois levaria a uma guerra civil. Cabe a CDHPF e, acho que será uma luta dela, esclarecer à população sobre essa diferença entre democracia e ditadura. Se a democracia não está sendo boa para as pessoas, a ditadura é pior, porque na ditadura ninguém tem direitos garantidos. É preciso que as pessoas façam valer os direitos conquistados pela Constituição de 1988, luta dos movimentos sociais que ficaram na clandestinidade por mais de 20 anos.
Márcia Machado: Na atual conjuntura política e econômica do país, me parece que os movimentos sociais que outrora tomaram as ruas, hoje estão retraídos. Como a senhora analisa esse momento?
Maria Sirlei: Compartilho da mesma ideia, parece que eles sumiram. Onde estão os movimentos sociais? Eu acho que agora é a hora de revivê-los novamente, de nova organização, pois estão começando a mexer nos nossos direitos e no momento em que mexem nos direitos dos trabalhadores é momento de reorganizar sindicatos e associações e retomar a luta, do contrário, corremos o risco de estarmos vivendo um retrocesso de direitos, e, provavelmente entraremos numa ditadura moderna, ou, outra forma de ditadura, talvez mais cruel.
“ […] estão começando a mexer nos nossos direitos e no momento em que mexem nos direitos dos trabalhadores é momento de reorganizar sindicatos e associações e retomar a luta…”
Márcia Machado: Como a tua profissão pode ser educadora?
Maria Sirlei: Estamos vivendo uma revolução no Direito e se não modernizarmos a nossa profissão e não levarmos informação as pessoas, corremos o risco de sermos afastados da sociedade.
Márcia Machado: As pessoas estão muito individualistas hoje, mas pela sua fala, o que se percebe é que deve haver um movimento contrário na busca de direitos em grupo?
Maria Sirlei: Com a democracia as pessoas tiveram uma falsa ilusão de que os direitos estavam garantidos e aí as pessoas se individualizaram, cada um buscando o seu direito. Hoje, o sentimento que se tem é que precisamos voltar a nos unir, através das nossas redes sociais mesmo, organizando grupos por afinidades para discutir a garantia de direitos.
Márcia Machado: A grande discussão hoje é a efetivação de direitos e a humanização do sujeito. Como avalia essa questão?
Maria Sirlei: O grande desafio hoje é as pessoas voltarem a lutar por categorias ou associações porque é nesse sentido que estão perdendo seus direitos. Elas (as pessoas) só vão perceber que precisam das outras pessoas, quando se sentirem sozinhas e começarem a perder seus direitos. Nós advogados, se não nos acordarmos e lutarmos pelos direitos dos advogados como trabalhadores da justiça, corremos riscos de sermos excluídos da sociedade, porque de repente a sociedade pode entender que não precisa de trabalhos jurídicos, porém, a justiça só existe se tiver um advogado para fazer a defesa das pessoas ou dos grupos.
“Elas (as pessoas) só vão perceber que precisam das outras pessoas, quando se sentirem sozinhas e começarem a perder seus direitos”.
Márcia Machado: Quais os desafios da sua profissão?
Maria Sirlei: A nossa profissão de advogado é muito individualista, o maior problema é a individualização. Eu me preocupo com o meu problema e não com o do meu colega, nós não lutamos por direitos iguais dentro da nossa profissão. Existem grupos de advogados ligados a movimentos sociais, mas não grupos que defendam os trabalhadores da justiça, que defendam melhores condições de trabalho. Existe uma Ordem de Advogados (OAB), mas não uma associação de advogados.
Márcia Machado: Na atual conjuntura política como a senhora avalia essa crise envolvendo os poderes?
Maria Sirlei: È um grande problema que nós temos no país, aliado a falta de ética, não só dos políticos, mas do povo brasileiro.
“As pessoas criticam os políticos, o legislativo, o executivo, o judiciário, mas a própria sociedade tem como cultura a corrupção. Ainda se valoriza muito o corrupto e a ética é uma exceção”.
Temos que mudar isso, é uma questão de educação, se nós não educarmos nossos filhos, nosso alunos, as crianças e adolescentes para a honestidade como algo normal e natural, nós não vamos mudar o país. Na situação que está muda de “A” para “B” e a corrupção vai continuar porque o sistema está corrompido. Nesses 30 anos de democracia deveríamos ter investido mais em educação para fazer mudança na cultura, na mentalidade e na vida das pessoas, o que não aconteceu. Esta crise é justamente para pensarmos para onde vai o país, para onde vai a sociedade.
“Se nós não educarmos nossos filhos, nossos alunos, as crianças e adolescentes para a honestidade como algo normal e natural, nós não vamos mudar o país”
Márcia Machado: A senhora acredita que essa mudança ética, a qual se refere, passa pela educação?
Maria Sirlei: Com certeza, porque não tem outro jeito, se nós não mudarmos nossa mentalidade, e voltarmos para uma nova ética, estaremos correndo o risco de mantermos esta sociedade como ela está. É preciso que as pessoas mudem e queiram tal mudança em todas as esferas. E isso passa pela educação.
Márcia Machado: Uma frase para definir a missão de sua profissão na sociedade.
Maria Sirlei: Nós somos os buscadores da justiça, os buscadores do direito. Sem advogados, não existe justiça!