Que ao pátio de nossos primeiros anos possamos retornar, não importando agora por quais hinos cantar. Pensando no IE (Instituto Educacional de Passo Fundo), salvando todos, salvei a mim mesmo.
Como foi difícil deixar o IE.* Não havia mais nada para fazer ali. No entanto, queria morar em suas salas, levar minhas coisas para viver em seus corredores, poder escolher uma sala como dormitório. Um corredor para cada dia, uma classe para cada noite. Mas não era mais possível, as aulas terminaram, os degraus do Curso Ginasial se encerravam e o que me restava… talvez fugir. Embora fugindo, arrastei os atores, todos comigo.
Meus passos em direção à praça em logo frente foram trôpegos, sem vontade, desde que recebi meu boletim de aprovação. Fui aprovado com ressalvas e vários conselhos. A matemática teimava em me enganar. A química, em me trair. Saí contrariado porque o motivo de minha vida em seus 19 anos estava por se extinguir na escola, pelo menos naquela hora. Um banco de praça me serviu de companhia, enquanto eu olhava para trás e via as últimas janelas do IE sendo fechadas. O prédio se trancando e eu prisioneiro em uma praça.
Em seu pátio estávamos todos em fila, a fila diária, por ordem de altura e que nos ensinou, pelo resto de nossas vidas, o tamanho do nosso próximo mais próximo e que na vida haveria espera para quase tudo.
E então… entrávamos para as salas de aulas pelos fundos. Do enorme átrio em que se edificavam a ordem das coisas em nosso mundo, subíamos para as salas, andar por andar, passando pelos rígidos olhares dos professores, pelas escadas de degraus curtos, entre risos miúdos e pequenas censuras.
Salve Instituto, sempre impoluto… já havíamos cantado. Parte do Evangelho já havíamos lido, então, estávamos prontos para nosso recomeço diário.
Assim era o universo para nossas mentes, em uma Passo Fundo de muitas casas, e de 6 prédios apenas, de calçadas enormes, de uma Escola imponente que se opunha nossas alturas, nós adolescentes em profusão, espantados com a obra colossal do IE, das construções em sua volta e da arte expressa em suas colunas.
Este mundo era grandioso demais para que deixássemos de frequentar, somente porque os anos do ginásio sumiam de nossa frente. O último dia, no prédio, foi assim mesmo. Um misto de desespero pela página que se virava, um pouco de alívio pela pressão por liberdade, um sossego mental em não ter de entoar orações e hinos, agora não mais todos os dias. E sem saber, claro, que depois sentiríamos sua falta por anos e anos…
E o banco da praça da avenida me acolheu, quando olhei pela última vez a escadaria, uma entrada proibida, onde raramente se tinha acesso. Talvez por se tratar de degraus de professores, direção, autoridades, que poderiam até se confundir com alguns pais reclamando por seus filhos reprovados, saindo dali lendo seus boletins recheados de insuficiências, mesmo com promessas para um próximo ano melhor, a repetir, que seja.
Sim, a entrada era proibida, apenas alguns degraus, era a entrada triunfal. Mas quem sentia falta? Os fundos da escola foram exatamente o rascunho de uma vida de independência que estava se avizinhando, sem os mesmos colegas, pena, os pilares de nossa infância, sem os professores amarrados aos seus credos, sem a ordem litúrgica, diária, cruel e tão indispensável para aqueles dias.
Ficaram para trás os tambores da banda organizada, impecável. Que sempre nos remetia a uma cidade americana, sim, nós, que até nos uniformes nos espelhávamos um pouco no país dos fundadores. As fotos dos alunos dispersos pela sua secretaria e um pátio onde o centro do mundo ecoava, a família de fato, nos olhares e intenções, nos amigos e nos pequenos desafetos, nosso começo de caminhada, nossos primeiros valores.
O IE foi tudo para uma geração, mais. Foi a formação de todos os valores que trouxemos pela vida, para o bem ou para menos que isso. As filas aquarteladas nos lembravam que a vida fora de seu pátio nos exigiria paciência, respeito. A educação, com seu rigor e sua ética como que se nos falava em tempos menos nobres pela frente. O horror de um boletim manchado muito nos dizia sobre os méritos a enfrentar, sobre a vontade contínua em aprender, ou então, as nuvens da reprovação. Não teríamos sempre, afinal, notas ou céus azuis pela frente.
De nossas amizades, aprendemos que os fundamentos de nossa existência estavam nos primeiros anos neste Ginásio. Foi ali que o concreto em nossas construções foi derramado e sobre ele é que desenhamos a forma de nossas carreiras, conquistas e demais ilusões, agora na distância dos que partiram ou na rotina dos que ficaram. A riqueza ou a escassez de cada um, pode ter sido lançada nestes dias e, mesmo aos mais céticos, nestes anos ingênuos e de descobertas impressionantes, ali mesmo foi onde encontramos o sentido para toda a vida.
Quanto mais seguimos adiante, parece que mais nos aproximamos do pátio de nossa adolescência. Nossas vidas têm poucas escolhas quando se trata de memórias cristalizadas, que jamais nos deixarão. Mesmo contra nossa vontade, será para o pátio de nossa escola que apoiaremos nossos melhores dias, sem percebermos, em dias e anos, nessa edificação que não paramos de construir e a que chamamos de tempo.
No banco solitário da praça em frente, perguntava às pedras que serviam de álibis, como viver agora, sem a sisudez do Prof. Arno, o rigor do ‘Casquinha’, sem a sinceridade do Norton, sem a ajuda cartesiana do professor Renato, sem as travessuras do Fausto…sem tantos, tantos e tantos a citar.
Preciso voltar nem que seja para dizer bom dia, a quem estiver por perto. Para assistir ao menos a uma nova aula, enfadonha e essencial, para expiar pelas janelas do IE e descobrir como andavam as pessoas pela praça, estas mesmas que pertenciam ao outro lado do mundo. Sem os sinos, que não sei de onde anunciavam o meio-dia. E preciso de mais. Das manhãs de geada, das salas frias do ‘redondão’, das aulas intermináveis no laboratório, do curioso e inquieto Jacob.
Ver os amigos em uma partida de vôlei, a paciência da Prof. Ana Maria, o Prof. Osvaldo Reis, a querida Bere, o rigor do início de carreira do Gilles, a inteligência da Prof. Lourdes. E o bumbo da banda sendo tocado e trocado pelo Kiko Paiva? Preciso rever as milhares de partículas de lembranças deixadas para trás. O Foguinho, o Cláudio Nelson, meu Deus, quantos!
E o que lembrar da Walkíria, inesquecível, como esquecer, impossível! Um anjo que se disfarçou de aluna para não impressionar com sua beleza, arrebatando em vida os que a cercavam. Ela mesma que esquecia suas asas em casa para não nos machucar.
E o que falar das tardes frias nas escadas do IE, vitimados por um vento implacável que soprava pelo Boqueirão, do salão aos fundos do pátio em que se ensaiava o teatro e as gincanas das turmas, suas cadeiras em madeira, como se ali fosse um cinema local.
E o que dizer sobre os desfiles de 7 de setembro, as fileiras impecáveis de uniformes pela Av. Brasil… os nervos expostos nos dias que antecediam as provas, os primeiros amigos…os primeiros namoros… as primeiras perdas.
E o que mais lembrar do prédio no antigo internato. Ali mesmo, o Daniel e eu, os dois últimos internados, desta vez por opção.
Recentemente, quando a Vila Elisabeth veio abaixo, a casa dos Reitores, algumas fissuras sob o nosso chão, onde pisávamos sobre os primeiros sonhos, ficaram expostas. O barulho infernal das máquinas destruindo o que foi o nosso palco, operavam como que arrancassem um pedaço de nossas memórias. Quantos reitores que ali moraram e partiram não juraram vingança!
Mas, enfim, fiz um acordo de saída, na praça mesmo. Não volto não. Ninguém estará lá. Falava-se que novos tempos viriam, um novo segundo grau… então acabou.
Se não é mais possível caminhar em seu entorno, resolvi levar todos comigo, para sempre, pelos anos, até o fim. Os que me enfeitiçaram pela educação e ainda os alquimistas de 18 anos que, comigo, achavam que poderiam salvar o mundo. Pensando no IE, salvando todos, salvei a mim mesmo.
Que ao pátio de nossos primeiros anos possamos retornar, não importando agora por quais hinos cantar. Na memória de seu espaço, aprendemos ali, na razão daqueles dias, a vida em seu despertar, sendo todos nós filhos das manhãs longas e frias de Passo Fundo, que aos poucos diminuíam aos nossos olhos, agora crescidos e tão melancólicos.
* Instituto Educacional de Passo Fundo, Escola Metodista centenária, que formou centenas e centenas de alunos na cidade e região.
Fotos: fachada e corredor interno: Diogo Zanatta.
Autor: Nelceu Alberto Zanatta
Edição: A.R.