Por muitas vezes desejei que a vida tivesse gosto de mistério; que minhas certezas, tão pouco prováveis, soçobrassem aos caprichosos devaneios que nos entregam devedores de respostas.
Acredito que algumas pessoas compõem com o mundo, se colocam de tal modo que parecem atender a uma espécie de destinação. É como se ouvissem um clamor próprio e habitassem o mundo em uma proximidade poética. Criam um modo de vida incapaz de provocar o que existe, encantando o tempo para que a crueza dos dias seja menos estúpida.
O poeta é um encantador do tempo, sabe acolher o passado, o presente o futuro, abertos em suas inteirezas, dispondo-se ouvindo a voz da sua própria condição. “Encantar o tempo, é isso que devemos fazer a todo instante, laçar a vida e ir segurando no exato limite que ela, ao ir se soltando, não nos deixe com a sensação de que não somos nada”.
Quanto mais encantamos o tempo, mais contamos histórias, pois somente as contamos porque, de alguma forma, nos sobramos no tempo. É como se permanecêssemos nas pequenas coisas, por alguns instantes, e pudéssemos narrar uma história sobre nós mesmos.
Saber ler sem a pressa dos “alfabetizados” que devoram informações; ler como quem compreende menos a palavra e mais o dizer; demorar-se e ao esticar-se no espaço-tempo, experimentar a completude de uma vida singular. Da altura da minha percepção enviesada, desejo encantar o tempo para entregar a cada um dos outros uma história menos difícil de ser vivida.
“Meus sonhos estão cá fora do mundo, lugar devido das paradas reais, os outros, heróis de carne, homens simples, príncipes eventuais…”
Por muitas vezes desejei que a vida tivesse gosto de mistério; que minhas certezas, tão pouco prováveis, soçobrassem aos caprichosos devaneios que nos entregam devedores de respostas. Sei que nada nos impede de sermos açambarcados pelos pasmos dos encontros primeiros, mesmo que cansativamente acontecidos, mas temo que a explicitação absurda das cruezas humanas impossibilite as experiências e nos entregue ainda mais empobrecidos.
No limite, poderíamos compreender nossa própria existência como repetição, pois de alguma maneira antecipamos nosso modo acontecendo, assumindo possibilidades já lançadas. Creio, contudo, que há algo que resvala, que fica ali, a mexer conosco, tentando empurrar espessura para nossa fisionomia existencial. Não sei o tamanho e nem o quanto, mas podemos fazer algo, “tenho por isto a entrega do que me sou”.
Autora: Marli Silveira. Poeta e Escritora. Acadêmica da Academia Rio-grandense de Letras. Também escreveu: “O dizer poético”: https://www.neipies.com/o-dizer-poetico/
Edição: A. R.