Um Tissot para o resto dos meus dias? O que as gavetas ocultas de nossa infância podem nos mostrar?

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Quem ainda não percebeu das horas que nos consomem, é porque não parou e olhou demoradamente seu ponteiro dos segundos.

Quem não olhou ainda para os ponteiros dos segundos de um relógio e não sentiu a fragilidade da sua vida, não se atentou para a corrida do tempo, contra os seus próprios dias. Não há como não amar um relógio de pulso. Ainda mais quando se tem 10 anos. 

E não há como não o odiar, igualmente, vendo em seus segundos, um instante que nos consome, num girar sem fim, sem retorno e sem paradas. Triste destino este, dos relógios, condenados que são a denunciar o tempo todo, em todas as horas, a nossa vida fragmentada.

Entretanto, que alívio ao vermos um relógio quebrado! Inerte, sem ação, como nos lembrando do delírio de um tempo que não importa mais e que a tudo parou.

Nos meus 10 anos incompletos, meu pai tinha uma mesa de cabeceira junto a sua cama.  Uma portinhola para seus calçados e, logo acima, uma gaveta.

Quando aberta, via-se três relógios.  Uma descoberta maravilhosa para uma criança e um sonho inesperado que nascia naquele momento; vestir meu pulso com um relógio e sair pela cidade.  Nem precisaria funcionar!

Mas não o ganhei.  Foram anos tentando e até a chave da gaveta pensei em descobrir.  Como meu pai viajava muito, teria todo o tempo do mundo para sentar ao lado do móvel, muito próximo…e esperar. E conspirar.

Minha Mãe, que temia mais meu Pai que a Deus, possuía uma cópia da gaveta do móvel infame. Mas nunca se permitiu a abrir, mostrar ou mesmo falar, como por exemplo:

_ Tome, é seu.  Mas por um dia!  Logo que anoitecer o relógio deverá voltar ao seu lugar.  Para o descanso das horas e para o retorno do mofo que abraça sua pulseira.

O que queria um menino em seus 10 anos?  Comer chocolate escondido? Tomar banhos nos rios? Expiar fechaduras? E o que um relógio faria de diferença em uma trinca deles, todos abandonados ao fundo de uma gaveta ignóbil?

Sendo óbvio o que um analista falaria, e economizando centenas de sessões, aos 50 anos vi a minha própria gaveta cheia, com 40 deles.  Relógios de várias marcas e tamanhos, formatos, cores e lembranças dos dias em que os arranquei das vitrines dos vários lugares onde passei.

Todavia, a gaveta da minha infância permanecia na memória, ainda fechada, com a sua chave escondida.

_O que custava me emprestar, que fosse, o dito relógio suspirado?  Murmurava.

_Que mal poderia fazer, senão sofrer o massacre do ponteiro dos segundos, nos 10 anos iniciados, tempos aqueles em que não se tinha qualquer pressa?

Bem, um dia desses, resolvi desapegar dos relógios para chamuscar a nuvem da velha gaveta que me assombrava. Contei 43. 

_Vamos vender todos, falei.  Menos os três.

Eu explico:  Quando meu saudoso Pai nos deixou, herdei de sua misteriosa gaveta, documentos, um porte de arma vencido há 60 anos, carteira de fundador do clube local, papéis, jornais…quanta coisa!  E claro, fui presenteado com os três relógios.  Mas aí já era tarde para as armadilhas da mente.

Sequer me interessei em saber seus nomes e reservei a eles o fundo escuro, de uma nova gaveta, moderna que os abrigava. Foi a vingança!

Mas era amigo todos, admirando-os de quando em vez, desinteressado na sua pontualidade.  Muito amigos, na verdade, pois não há amigo melhor do que um relógio parado, incapaz de denunciar o tempo e de lembrar a você o tempo todo… da sua extinção.

Quem ainda não percebeu das horas que nos consomem, é porque não parou e olhou demoradamente seu ponteiro dos segundos.  Ali, vê-se um spoiler da vida que caminha para o fim.

E fui ao joalheiro!

_Senhor! Preciso trocar as pilhas de 40 relógios, mais três.

Eis que encontrei um novo amigo no tempo, e que não usava qualquer relógio em seu pulso, apesar de sua teimosia em consertá-los. Ter um amigo joalheiro é uma espécie de garantia pelos anos. A figura de um guardião da passagem das horas.

Combinando preços e prazos, o bom homem, inimigo das eras, imagina-se, perguntou:

_Por que você não procura por um automático?

_Há, que desejo oculto esse, respondi.

Isso porque os relógios automáticos são como nossos melhores sonhos; basta sacudi-los um pouco e logo tornam a funcionar.

_O que você me indica?

_Indico um Tissot.  Tenho a sua máquina, basta encontrarmos uma caixa adequada.

Retornando à casa, errei pela cidade com este curto diálogo na cabeça. E à noite, sempre à noite, há surpresas…e abri a gaveta esplendorosa, onde escondia meu desconsolo e meu vazio dos 10 anos ou mais. A negação vestida com pulseira. A indignação oculta por tudo o que marca o tempo…

Fui até o seu fundo… e quase caí!

Entre os três relógios que meu Pai deixou, estava um Tissot.

E foi o Universo me passando um pano no rosto, lembrando que, em se tratando de sincronia, somos homens disformes e desafinados. Caminhei pela casa com o relógio em mãos e ao meu gosto; com ele devidamente parado.

Mas ao fim dos primeiros passos, o ponteiro dos segundos se mexeu.  Quase caí novamente!  E então dei mais passos, mais uns, outros mais e o relógio automático mostrou a que veio: funcionou perfeitamente!

Coração disparado, com um nó de marinheiro malfeito a ser engolido, ajustei os ponteiros sem graça das horas e ele trabalhou a noite toda. Isso após 13 anos de descaso. Pois é: eu sabia que as coisas que mais importam estão próximas a nós, sem a necessidade de mover o mundo para conquistá-las.  Mas precisava receber um recado tão claro?

Vou deixar em meu testamento incógnito, uma ordem expressa!  Ao fechar a tampa do ignominioso esquife, certifiquem-se todos que em minha mão esquerda o Tissot esteja funcionando.  Ele agora não terá forças para muito tempo; benfeito! Que ironia, aliás.  Ditou o tempo nesses anos todos e agora, logo mais, a sua morte será programada.

Preciso partir com ele no meu braço, pois tenho muitas perguntas a fazer ao meu estimado pai. E de respostas, que divã algum poderá me oferecer. Em seu erro, ou, em seu acerto, ao não me presentear, evitando a corrida dos dias e anos e ensinando que a espera também pertence ao seu tempo.

Voltando à gaveta, sem qualquer interesse nos demais, encontrei a abominável chave que abria a outra, a antiga, nos anos em que eu pensava, que um relógio poderia me elevar e despender o tédio nos passeios das minhas tardes de domingo.

_Que ela fique onde está. Não abrirá mais nada! Pensei aos gritos.

Se bem que há muitas outras gavetas trancadas a vasculhar, para justamente abrir, conhecer, entender, libertar-se de tantos desejos menores de nossos primeiros anos, muitos deles negados, e, em seguida, jogar fora todas as chaves.

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “A morte do Joaquim das letras vivas”: www.neipies.com/a-morte-do-joaquim-das-letras-vivas/

Edição: A. R.

2 COMENTÁRIOS

  1. Gratidão Daniela!
    Você acrescenta amparo e incentivo para continuar contando histórias. Que falta nos faz leitoras como você!

  2. Que história maravilhosa! Me fez “viajar” no “psicológico” desse menino, como se eu estivesse vivendo realmente na pele dele. É possível imaginar, ouvir, sentir a textura, o cheiro, e até a frustração desse menino/homem na pele. Até a percepção de tudo que se sucedeu a partir do episódio da sua infância, chegando a sua vida adulta. Os conselhos salutares que eu li aqui não são para “hoje”, mas sim para a vida. Muito obrigada por isso.

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