É o comportamento típico daquele do barão famoso,
sem com isso dizer que o ministro da Cidadania
também seja um contumaz repetidor de suas
práticas epistemológicas.
Há um ministro, o da Cidadania, Osmar Terra, que tem se especializado em produzir uma “teoria da verdade” que dá sustentação à ação política do governo do qual é parte.
Ele formula seus posicionamentos orientado por um conceito de evidência bem peculiar (e conveniente): se vi (do verbo ver, não do verbo enxergar),[1] então existe e, se existe, é verdadeiro; se não vi, não existe, não é verdadeiro. Uma pérola da epistemologia, que não é nova, remonta ao Barão de Münchausen.
O ministro fez esta formulação em duas ocasiões. Na primeira, foi quando recusou os resultados do trabalho da Fundação Oswaldo Cruz no 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Disse à reportagem de O Globo: “Se tu falares para as mães desses meninos drogados pelo Brasil que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia de drogas, elas vão dar risada. É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas ruas. Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que nos basear em evidências” – grifo nosso[2].
“Mafalda (em uma de suas tirinhas) acha que o poder público deveria cuidar daquele pobre, enquanto que a coleguinha da Mafalda, rainha da futilidade e de posições conservadoras, opina dizendo que não era necessário tanto, que bastava que se tirasse o pobre da vista. Ou seja, o pobre, o mendigo, o drogado de rua atrapalha as vitrinas. É realmente isso que importa”. (Filósofo Paulo Ghiraldelli sobre as cracolândias)
Dias atrás, segundo a jornalista Rosane de Oliveira[3], do grupo RBS, teria dito que “em matéria de fome, Brasil está nos níveis de Japão, Suécia, Noruega e Dinamarca. Ministro da Cidadania afirmou ainda que, ‘neste momento’, não conhece ninguém que passe fome no país”.
É o comportamento típico daquele do barão famoso, sem com isso dizer que o ministro também seja um contumaz repetidor de suas práticas epistemológicas, apenas que parece pôr mais força em suas convicções do que nos fatos; mais força na sua versão, melhor, na sua visão, que confunde com “evidência”.
O famoso livro “As aventuras do Barão de Münchhausen”,[4] escrito por Rudolf Erich Raspe e publicado em Londres, em 1785, conta a história da “experiência de um explorador disposto a defender seus ideais a qualquer custo”. Sua fama é a de ser o maior mentiroso do mundo. O incrível “barão” acreditava em suas próprias invencionices e as queria fazer passar por “verdades”: “Muito bem, cavalheiros, todos me conhecem e não podem pôr em dúvida minha veracidade” (2014, [59]).
O barão conta suas “histórias”, dá a “prova” da sua “verdade” e fornece os critérios para que tal se estabeleça. Por exemplo, depois de relatar sua segunda ida à lua diz: “Sei bem que tudo isso deve parecer muito estranho. Porém, se a sombra de uma dúvida restar no espírito de alguém, a solução é simples: que ele próprio faça essa viagem, pois vai então constatar o quão fiel à verdade sou como viajante” (2014, [72]). Ora, se restar dúvida que aquele que a tem tire por si a prova, “faça essa viagem”.
Este tipo de posição sugere uma suposta “teoria da verdade”, uma suposta “teoria do conhecimento”. Na verdade, trata-se de uma “anti-teoria” ou da impossibilidade da verdade.
Em termos práticos, não há porque fazer teoria, de qualquer tipo, não há porque fazer ciência, de qualquer tipo, nem mesmo porque buscar a verdade, basta “ver”. O que vale é a “crença”, no mais reles dos sentidos, aquele que não tem sentido algum.
Centrada no “puro mistério”, na ausência completa de qualquer possibilidade de algum tipo de necessidade de ser evidenciada, nem objetiva e nem subjetivamente, simplesmente qualquer coisa, qualquer dito, contanto que dito por quem pode dizer, quem tem poder para tal, pode ser elevada à certeza absoluta, indiscutível e incontestável, natural, eterna e perene: foi o “barão” que disse.
Não há possibilidade de crítica, porque simplesmente não é necessário debate, nem mesmo doutrinação – quem faz doutrinação é que sustenta verdades e as usa para “convencer forçosamente” aos outros.
O que faz é dizer e dizer é mais do que “fazer coisas com palavras” (Austin), dado que não há sequer a necessidade de algum vínculo entre o que se diz (palavras) com qualquer coisa que seja ou simplesmente com qualquer coisa (mas não em sentido pragmático), menos ainda com o que se faz. Está-se diante de tanto “nonsense” que, de tão dito e repetido, vira “bom senso” e está “muito bem distribuído”.
Nem Susan Haack, uma das mais renomadas estudiosas das teorias da verdade, poderia imaginar alguma possibilidade tão inaudita. Até o “paradoxo do mentiroso” por ela analisado[5] ficaria ultrapassado com tanta criatividade epistemológica, gnosiológica, lógica e ontológica.
Enfim,
talvez o Pequeno Príncipe possa nos dar algum alento para seguirmos acreditando
que possamos voltar a enxergar e, quiçá, poder dizer a verdade, sem virar
barão, ou ministro…