Valentina

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Muito próxima à janela do ônibus, balançava suas pernas que ainda não alcançavam o chão, olhava pra fora e via os pinheiros colossais para a sua idade, na grandiosidade de uma cidade que jamais parou de crescer e que a recebera tão nova e com tantas amarguras. Mas suas copas não eram tão distantes a ponto de Valentina não poder alcançá-las.

As fotos de lindos pinheirais mal saíam do celular de Valentina, e, em sua mente, vieram à tona, a razão de tantos crescerem no seu pátio: 42 deles, lindos, enviados a pouco a um amigo curioso, em uma manhã insuspeita, linda, igualmente. E um fragmento do filme de sua infância ressurgiu em segundos, nas duas mulheres sentadas lado a lado no mesmo ônibus e que comentavam entre si:

-Como pode uma menina tão pequena andar por aí sozinha?

Bem, assim é que foi.

Valentina não tinha opção para o luxo de andar acompanhada. Desde os seus 8 anos, sua rotina fora ameaçada pela solidão, ao dia e, pela incerteza, à noite.  Se bem que a sua Mãe chegaria tarde, muito tarde, altas horas, após dois empregos, estafada e com muito pouco tempo para dormir.  Mas chegava!

Valentina corria ao seu encontro para contar as novas do dia, ou as mesmas; o que se passou com sua irmã, sua avó, como foi o seu almoço, que ela mesma fizera e como foram as compras, em que ela mesma comprara.

Quem roubou a sua idade e a sua infância, esqueceu de roubar a sua fala e esperteza. Qual Mãe que não queria ouvir uma sequência de novidades, após ficar fora pelo dia e confiar a uma menininha, sua casa, sua outra filha e ainda a sua mãe?

Que Maria, a santa, mantinha essa mãe em pé, em sua força para continuar? Porque assim que o sol nascesse, novamente, Valentina, sua irmã de algumas semanas, sua avó, todas nesta casa, neste pedaço escuro de incertezas, ficariam novamente a sós. E pelo resto do dia!

Sua mãe partia cedo, pois o caminho era longo. Seis quilômetros e mais 800 metros a separavam de um ponto solitário de ônibus. E logo embarcada, veria o sol nascer de sua janela, pensando, decerto, como se poderia tocar em frente com a sua nova protetora da casa:  uma menina de 8 anos incompletos, agora destinada a cuidar da irmã, da avó, da casa, dos seus sonhos mal desenhados e ainda, e em que lugar deste seu pequeno lar seria o melhor para se sentar e chorar.

Mas Valentina trocou seu choro pela força, crendo que anjos cercavam sua casa, vale lembrar.

Seu Pai falecera a pouco tempo. Nele estava assentada sua força e futuro.  A morte de seu maior amparo ocorreu poucas semanas após o nascimento de sua irmã. E o seu mundo ruiu!

E lá se foi Valentina… para assumir o papel de Mãe, agora mãe de fato de uma criança de dias apenas, com todos os cuidados a cuidar, e ver sua infância destruída pela grandeza infeliz de ser ‘mãe’ precoce.

Sua Avó, igualmente, estava em sua relação de cuidados diários.  Mas nem se levantava pelo dia, pois muito não poderia fazer sendo cega.

E lá se foi Valentina… a perder novamente seus dias de descoberta, em seus anos mais preciosos; agora, em seu novo papel de filha, que zelava pelo bem e asseio de sua vó.

Que capricho de destino esse, que a escolheu para cuidar de todos os que a cercavam, menos de si mesma?

Mas precisava mais:  lavar a roupas de todos, ir ao mercado, ir à escola, sim, porque mesmo em sua infância desprovida de alegria, era preciso disfarçar e tentar ainda ser criança. Para seus colegas, falava como por consolo, que em sua casa, dava banho a uma boneca de verdade…

E as duas senhoras bem-vestidas, passeando em uma tarde de abril, quando os primeiros ventos frios sopravam pelas avenidas de uma Curitiba dos anos 70, quando o frio era mais frio, claro, não imaginavam que de pequena mesmo, nesta menina, nem o seu nome levava jeito.

Talvez ambas fossem servir-se de chá em uma cafeteria do centro, passear e sorver as primeiras impressões do outono, em uma rua qualquer, próxima à XV, quando ainda era possível se andar em paz. Bem arrumadas, com meias cor da pele, casacos para uma virada de tempo mal-humorada pelo final do dia, contrastavam com o vestidinho da menina em suas pernas miúdas de fora, em um sapatinho branco de andar somente aos domingos, alvos, combinando com a alvura de seu rosto, formando um conjunto que mais lembrava uma santinha.  Mas era uma santa a Valentina!  Uma dessas, destinada a brilhar, que resistirá a tudo e que jamais desistirá. Sentiu-se santa ela, escolhida, única!

Com seu dinheiro contado, amassado em uma das mãos, e o carnê de pagamentos em outra, ela trazia o compromisso em ir ao centro da cidade e pagar a sua prestação, retornar neste ônibus de assentos gelados e janelas emperradas, e, somente depois de desembarcar, topar com sua realidade em que fora golpeada pelo destino de outros, assumindo a conta de tudo.

Muito próxima à janela do ônibus, balançava suas pernas que ainda não alcançavam o chão, olhava pra fora e via os pinheiros colossais para a sua idade, a grandiosidade de uma cidade que jamais parou de crescer e que a recebera tão nova e com tantas amarguras. As suas copas não eram tão distantes a ponto de Valentina não poder alcançá-las. E seguindo pelas ruas já traçadas da cidade, o ônibus cumpria a sua rota de beleza sem igual, para uma menina que mal despertara para a vida e que não tinha tempo para entender por que fora desta forma escolhida.

Carros, pessoas, nuvens, casas e jardins, ruas e avenidas a vencer, aos olhos de Valentina não sobrava tempo para ver que o céu de abril formava uma concha de porcelana no horizonte. E logo anoiteceria.

De volta ao seu banco no ônibus, com um sorriso curto de satisfação pela parcela paga, mais um dever cumprido para sua casa, Valentina tinha a certeza de que estes dias não o seriam para sempre. Os pinheirais pelo caminho pareciam encorajá-la, um a um, em seus tamanhos variados, imponentes.  Chegou a contar: eram 42 deles. Pensou em chamá-los por testemunhas, para que não a abandonassem.  Na verdade, chamara. Pois quais deles, com tantos galhos, poderia deixar de abraçá-la nessas tardes gélidas em seu encalço, onde havia tantos motivos para não continuar?

E falava baixinho;

-Um dia, meus amores, vocês estarão todos no meu quintal.

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “Pedro pequeno e sua caminhada de fé: uma história fascinante em livro”:  https://www.neipies.com/pedrinho-pequeno-e-sua-caminhada-em-busca-de-fe-uma-historia-fascinante-em-livro/

Edição: A. R.

1 COMENTÁRIO

  1. Linda Crônica, com certeza existem muitas “bravas Valentinas” em nosso rico país de enormes desigualdades…”Santas Valentinas”

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