Nem todos os cristãos conhecem a proposta de Jesus na sua essência.
Arrisco-me a um decálogo daquilo que considero ser o central
e o núcleo inegociável dos valores cristãos deduzidos
da vida e das palavras de Jesus.
Depois de dois mil anos ainda não chegamos a um acordo sobre o que é fundamental e o que é secundário no seguimento de Jesus. Facilmente, toma-se a parte pelo todo, o acidental pelo essencial, o periférico pelo central e nos agarramos a posições que, talvez, Jesus mesmo não se reconhecesse nelas. Eu arrisco um decálogo daquilo que considero, modestamente, ser o central e o núcleo inegociável dos valores cristãos deduzidos da vida e palavras de Jesus.
Defesa da vida. Toda vida merece ser preservada, cuidada, promovida e defendida. Quando falamos de vida estamos falando da humana ou também a vida dos animais e dos vegetais? Dos animais e vegetais podemos, nós humanos, dispor e fazermos o que bem entendermos para o nosso proveito, ou há neles um valor em si que não depende de nós? Eu arrisco dizer que há um erro de interpretação do cristianismo quando pensamos que o “não matar” e “que todos tenham vida e vida em abundâncias” seja aplicável somente aos humanos. Eu não tenho dúvida de que se Jesus vivesse hoje seria vegano e ambientalista. E por quê? Porque o senhor da criação não é o homem, mas Deus, e a culminância da criação não é o Homem, mas o sábado da confraternização da comunidade de vida. Essa consciência, hoje, é tranquila entre os mestres e entendidos, como não seria para Jesus, mestre dos mestres?
Opção pelo vulnerável. Quando há conflito e a vida está em jogo, o cristão não deveria ter dúvida de se colocar do lado mais frágil e injustiçado, chamando à conversão o que, pretensamente, se acha superior e “do bem”. Mas e se o lado frágil for pecador? Ficar do lado dos fortes contra os fracos, dos bem constituídos contra os de fora das “rodas sociais e das igrejas”, dos supostos “do bem” contra os supostos “do mal”, significa renegar a mulher adúltera e ficar do lado dos que queriam apedrejá-la. Para um cristão não há os “do bem” e os “do mal”. Somos todos pecadores nos esforçando para ser bons ao lado de outros pecadores fazendo o melhor para serem bons. Só Deus é bom. Mas, e o marginal? Atire a primeira pedra…Mas, e o marginal? O ladrão? Atire a primeira pedra… A vida do marginal e do ladrão não nos pertence. Prendemo-los, se for o caso, mas o julgamento não nos cabe e não nos cabe o direito de vida e morte. Mas, bandido bom não é bandido morto? Atire a primeira pedra….
O Reino de Deus. O Reino de Deus é a meta e o fim último da vida e das palavras de Jesus e, por dedução, dos cristãos. Quem não prega o reino, prega a Igreja ou se prega a si mesmo e seus interesses. Quem prega o Reino de Deus, prega o senhorio e o domínio de seus valores. Quais valores? Os valores do Reino são monetários? Só por perversão poderíamos dizer que ganhar dinheiro seja uma benção de Deus. Só por perversão podemos dizer que acumular capital seja um valor do Reino de Deus. Só por perversão…A teologia da prosperidade é uma perversão. Dizer que dá para servir a Deus e seu reino e ao dinheiro, é perversão. Mas o dinheiro não é mau. Sim, é bom, se distribuído. Mas, isso é comunismo. Se cada um ficasse com os seus peixes e seus pães não haveria o milagre da partilha. Mas, isso é comunismo. “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus”.
Os bens do Reino de Deus. Há bens que são pessoais e privados. Sobre os bens pessoais e privados tudo o que um cristão pode dizer é: se foram adquiridos justamente, desfruta-os e partilhe quanto puder, pois nem todos têm. Não dá para dizer mais do que isso quanto aos bens privados. Os bens do Reino de Deus, contudo, são bens comuns, são bens que dizem respeito a todos e seria bom que todos tivessem. A paz é um bem do reino. A justiça é um bem do reino. O resultado da justiça federal e da paz, e a paz como fruto da justiça, leva ao maior dos bens: a felicidade. Felizes e bem-aventurados os que vivem e proclamam a justiça e a paz, deles é o reino dos céus. Uma coisa há em comum entre os bens privados e os bens do Reino, ambos não são puro mérito humanos, mas graça e dádiva divina.
A Família. Muito se fala sobre os valores da família cristã. Muito se fala sobre a sexualidade como parte da família cristã. Mas, o que de fato Jesus falou da família e da sexualidade? Jesus amava sua mãe, certamente. Respeitava seu pai, certamente. Mas não era o sangue o critério do respeito e do amor. A família de Jesus não tem nada a ver com o que os supostos defensores da família dizem. A família de Jesus é ampliada. Quem são meus irmãos e meus pais senão aqueles que fazem a vontade do Pai? É moralismo, sem base hermenêutica, continuar insistindo na família sanguínea e nuclear, sem se abrir à grande família dos que acolhem, agem e pregam os valores do Reino de Deus e seus bens. Defender a família e pregar a violência, a tortura, a morte ao outro, aos fora da família, é algo diabólico e não cristão. Quanto à sexualidade, convenhamos, Jesus falou muito mais “da mesa” do que “da cama”. A família se reúne e acontece, mesmo, é na mesa! A família acontece, no amor, ao redor da mesa. Isso é o essencial, a cama é secundária!
O amor. O amor é a síntese mais acabada do cristão. Amar é igual respeitar, cuidar, zelar, promover e ajudar o outro, sem vingança, sem ódio e sem ressentimentos. O perdão é o fruto mais genuíno do amor. Quem ama é livre para perdoar até mesmo o inimigo e o que lhe causa o mal. Quem ama não quer o mal do maldoso. Quem ama quer o seu bem, a sua conversão, não sua morte. O amor é paciente, o amor é generoso, o amor tudo suporta, até a ignorância arrogante dos que dizem que alguns não merecem amor.
Espiritualidade e Oração. Jesus vivia segundo o Espírito Santo de Deus. Todos vivemos segundo um espírito. Alguns vivem segundo o espírito da estética. Outros, segundo o espírito do eu e do apego. Outros, ainda, segundo o espírito do capitalismo. Outros, ainda, segundo o espírito de porco a fuçar e se lambuzar na lama. Para cada um segundo seu espírito. O cristão vive segundo o Espírito Santo de Jesus. O “espírito da coisa”, isto é, o espírito de Jesus, é o que foi dito nos seis primeiros itens, e os que seguem, desse decálogo. Não há nada de exotérico e nada de fuga do mundo na espiritualidade de Jesus e dos cristãos. A oração, o recolhimento, a distância do cotidiano, a separação dos afazeres da labuta diária para um momento de oração, é o que alimenta e dá energia para o fogo da espiritualidade cristã.
A fé, esperança e caridade. As virtudes cristãs são retroalimentadas e circularmente fecundadas. Onde há fé, há esperança e caridade, onde há caridade aí há fé e esperança e onde há esperança reina a fé amorosa. Há tempos em que a fé é a prioridade, há tempos que a esperança se impõe contra o desespero, há tempos que a caridade é uma exigência. Há tempos que se exige as três, sob pena de secarmos e perecermos. Em tempos sombrios, a esperança. Em tempos de fome e sofrimento, a caridade. Em tempos de medo, a fé.
A comunidade. O Deus cristão é trino: pai, filho e espírito santo. O culto ao eu, à espiritualidade intimista e interesseira, à uma vida isolada e refratária à vivência com os outros é, no mínimo, estranha aos valores cristãos. Deus é comunidade de amor. A identidade na diferença encontra na comunidade o lugar de sua expressão e cultivo. Fora da comunidade não há salvação. A família é uma comunidade. A escola é uma comunidade. A igreja é uma comunidade. A associação de bairro e as organizações não governamentais são uma comunidade. A rede social seria uma comunidade? Sim, é, mas não substitui as demais. A vida acontece no aparto de mão, no abraço, no encontro face a face, na partilha do pão e não comunhão de sonhos. A amizade, o amor, a comunhão, a fraternidade, a paz, a solidariedade, a justiça, enfim, os valores cristãos só são possíveis na abertura ao outro e no encontro com o outro na comunidade real.
A liberdade. A servidão involuntária não cabe nos valores cristãos. O Deus cristão é tão pouco mesquinho que não obriga ninguém, contra a vontade. Perder-se sempre será uma possiblidade respeitada por Deus. Se o humano não quiser, Deus não salva. Deus não salva quem quer se jogar no abismo. Deus não salva quem prefere a ditadura à democracia. Deus não salva quem prefere a ignorância e a mentira, à verdade. Deus respeita e fica olhando…Ele sofre, mas não força, contra a liberdade.