“Nem tudo está perdido!
Ainda podemos acreditar
na humanidade, Laercio”.
Ouvi, e ainda ouço, muitos comentários em relação à morte que poderá ser provocada pelo vírus. O que assusta é que são comentários tão desumanos, ao extremo. O que está acontecendo com o “ser humano”?
“Condição de ficar parado assim, afeta as consequências que nós vamos ter economicamente no futuro, vão ser muito maiores do que as pessoas que vão morrer agora. Eu sei que nós temos que chorar, vamos chorar cada uma das pessoas que morrer”. “Pessoas morrendo é muito triste, 15000 mortos para 7 bilhões de pessoas no mundo é um número muito pequeno.” Quanto vale a vida de uma pessoa?
“Por conta de 5 mil pessoas ou sete mil pessoas que vão morrer, eu sei que é muito grave, eu sei que isso é um problema, mas muito mais grave é o que vai acontece no Brasil com a economia.”
Em meio às atrocidades blasfêmicas que ouvimos, ainda encontramos outros gestos que ainda nos fazem acreditar no “ser humano”, como humano.
Ano passado, no Instituto Estadual Cecy Leite Costa, deparei-me com uma situação que exigiu de mim, mais do que ser um professor, ser um verdadeiro ser humano, que vê no outro o seu semelhante. Entrei para dar aula num 3º Ano, observei que 3 alunos não eram brasileiros. Eu poderia fazer como muitos: eles que se virem, quem mandou sair do Haiti para morar no Brasil? Darei minha aula de Língua Portuguesa e se eles não aprenderem, o problema é deles.
“As histórias se repetem: fome, pobreza, perseguição política ou religiosa, medo, violência, ou alguma razão semelhante faz com que as pessoas abandonem sua casa, seu país, suas raízes e parte de sua família para viver em outro lugar”. (Tatiana François Motta)
Logo de cara, percebi que o Obelsone dominava muito bem a Língua Inglesa, além do Francês e do Criolo. Logo para esse comecei dar uma atenção especial e quando não entendia em Português a explicação, falava em Inglês para, que de fato, ele entendesse a estrutura linguística do Português. Em contra partida, ele me ensinava o Francês e me ajudava comparar com a minha língua materna na forma estrutural.
O Jean falava muito bem espanhol, como domino esta língua muito bem, foi moleza para explicar a estrutura do Português em espanhol, para que ele entendesse.
O Youmenson , dominava um pouco de Inglês, Francês e Criolo.
Com o passar do tempo, percebi o entusiasmo e a força de vontade que ambos traziam para suas vidas, que acabava me motivando, enquanto ser humano, que por vezes, devido ao sufocamento provocado pelo governo à nossa profissão, estava desanimado, porém, logo era esquecido, tomando como exemplo de vida, suas vidas.
Sem dúvida, eles entendiam muito bem o Português, porém percebi que precisava inserí-los ainda mais na língua e na sociedade. Foi aí que levei a minha inquietude a minha Orientadora , Professora Dra. Marlete Diedrich, da Universidade de Passo Fundo, e juntos desenvolvemos um projeto de inserção na sociedade brasileira e convocamos outros pesquisadores da linguagem para formar encontros intitulado Ateliê de Conversação. Nossos encontros foram para aflorar as línguas. As discussões se deram em espanhol, francês, inglês e até em criolo.
Envolvemo-nos tanto, que fomos aos bancos resolver questões financeiras, procurar trabalhos, no fórum para organizar papeis de casamento, visitar as condições de trabalho deles, visitas em TVs e Shopping. Acreditamos no humano, por isso, fizemos isso. Somos irmãos. Foi uma experiência humana fabulosa, na e pela linguagem.
Nesse ano, 2020, estou eu numa sala de aula do Instituto Cecy Leite Costa, num relance, observo meu Diretor Rodrigo Gomes Rodriguês, ofegante na porta da sala: – Laercio, me socorre! Estou com um pai e uma filha na minha sala e não estou entendendo nada. Aí, desço. Encontro seu Jose Gerardo Gonzalez e sua filha Gerliennys, da Venezuela.
Logo estabeleço um diálogo, descobrindo que eles já tinham o documento da Central de Matrícula e era só encaminhar à secretaria a matrícula. Percebo que a aluna estava numa das 11 turmas do primeiro ano, porém não era a que eu lecionava. Dessa forma, solicito ao diretor que a colocasse na turma da qual lecionava Língua Portuguesa, assim se tornaria mais fácil explicar a estrutura, visto que dominava as estruturas linguísticas das duas línguas.
Passei acompanhar a aluna em eventos da escola, a fim de permitir a tradução e que ela pudesse entender. Na sala, sempre acompanhava explicando a ela a estrutura das línguas.
Foi numa aula onde explicava que no português há sempre a contração do artigo e da preposição, diferente do espanhol. Viro-me para ela e digo que seria importante ela anotar com uma caneta diferenciada. Ela me olhou e disse: – Professor eu só tenho essa caneta preta, aliás não tenho material, além dessa caneta e desse caderno. Aí estabeleci um diálogo, foi quando me falou que era difícil, pois seus pais estavam sem trabalho. Aquilo me chocou!
Cheguei em casa e relatei o fato a minha Sobrinha e afilhada Isadora dos Santos, sem pretensão nenhuma. No outro dia, ela chegou me dizendo que havia mobilizado todos os terceiros e segundos anos do Colégio Estadual Fagundes dos Reis, escola estadual na qual estuda, recolhendo dinheiro junto a uma colega, Évelyn Giovanna e que, no outro dia, iriam comprar material para a minha aluna venezuelana. No total, juntaram cento e poucos reais. Na semana seguinte, fizemos a entrega para a aluna, que emocionada, chorou e disse: – “Vocês são muito bons”!
Agradeço a Diretora Do Fagundes Cleopatra e sua Vice Taís que além de abrir espaço para este gesto humano, ajudaram com alguns reais também. E finalizo esse texto, usando uma frase da nossa Orientadora Educacional, Ana Van Groll: – “Nem tudo está perdido! Ainda podemos acreditar na humanidade, Laercio”.