Sempre falamos com alguém. Mesmo que nem sempre saibamos com quem estamos a falar. Viver é conversar. Com alguém. Alguém que está aqui ou que já se foi.
Há, creio, uns dez anos, fui procurado por uma mulher de mais de noventa anos; quase cem, na verdade. Ela desejava uma medicação que a fizesse, quando assim decidisse, dormir e não acordar mais. Não estava com depressão. Temia perder a autonomia que ainda tinha, veio sozinha até mim. Mais do que isso: as pessoas com as quais tinha assuntos em comum não estavam mais aqui.
Por mais que estivesse rodeada de familiares, sentia-se só, a não ser quando, em imaginação, conversava com o marido, com um irmão, uma amiga, um filho – todos já falecidos.
Dias depois, lembro-me dela ao sentar-me em um banco da Praça Tamandaré e ver, dali de onde estava, um velho a caminhar lentamente. Parecia-se com o doutor J. Tive a impressão de que falava sozinho.
De imediato, me veio à mente uma crônica de Rubem Braga sobre um velho que falava sozinho… Devia estar conversando com algum amigo morto. A certa altura ficou quieto, com o ar contrariado de quem está ouvindo alguma coisa de que não gosta. Quem sabe o morto estava lhe dizendo poucas, porém boas?
Imagino que o doutor J. continuará a cruzar a calçada da Praça Tamandaré a conversar com seus amigos mortos. Provavelmente, sente-se mais próximo deles do que dos jovens vivos que encontra em suas caminhadas. Quem vai lhe escutar quando contar que foi trabalhar logo que se formou numa pequena cidade e encontrou lá uma epidemia de tifo? Dos dez doentes, salvaram-se cinco, e, destes, dois tornaram-se amigos para sempre. Quem vai lhe ouvir com prazer? Seu neto adolescente ou os amigos da sua geração, que já se foram?
E se as vozes com os as quais o doutor J. conversa forem se apagando? Como vai ele continuar a viver se viver é sempre o diálogo com alguém?
Quando estamos de mal com uma pessoa, por questões políticas, por exemplo, a “conversa mantida em pensamento” se faz em tom áspero. Mas a gente pode perder nas urnas e, mesmo assim, pessoalmente ter a vitória mental de parar de “conversar” interiormente com a pessoa ou as pessoas nossas adversárias. Sem conversa não há vida, no caso, entre nós e elas.
O badalo dos sinos da igreja e os gritos festivos das crianças que, com entusiasmo desenfreado correm pela praça, sempre conversando – as crianças estão sempre conversando -, me fazem exclamar: “É bom viver!”.
O fato é que é mesmo bom viver. Dou-me conta de que estou a falar sozinho. Sozinho não! Sempre falamos com alguém. Mesmo que nem sempre saibamos com quem estamos a falar. Viver é conversar. Com alguém. Alguém que está aqui ou que já se foi.
Autor: Jorge Alberto Salton