Ler, incluiria o escrever, são práticas ou exercícios que permitem ao indivíduo humano transitar sobre si-mesmo e no deslocamento sobre si, poder imaginar-se em outras paragens poéticas e humanas.
Creio que todas as pessoas concordam, mesmo as opiniões não transitadas por dentro das academias, que a leitura tem um papel importantíssimo não apenas na/para a formação humana, quanto na formatividade inerente ao processo psicológico que nos mobiliza na direção de.
Há um pressuposto na matriz epistemológica que orienta a comunidade intelectual, que é o fato do indivíduo humano poder se formar e se autoformar. Sem entrar em maiores discussões se toda a leitura é ou não capaz de contribuir no processo formativo e, por optar momentaneamente pelo presente modo de acesso à discussão, embora reconhecendo as implicações das tamanhas desigualdades que pautam a vida da população brasileira, recorro ao papel da literatura no que concerne ao desenvolvimento integral do ser humano.
Apresento por ora, a condição muito própria da literatura, que é a de lançar o indivíduo no aberto da existência. Aristóteles já havia nos dito que a “literatura ( no caso, a tragédia) é mais filosófica do que a história”, porque enquanto esta aborda o que aconteceu, aquela se desdobra na direção do possível. Neste sentido, açambarca a todos dentro de uma generalidade circunscrita pelas bases nas quais somos tocados pela proximidade existencial.
Ler, incluiria o escrever, são práticas ou exercícios que permitem ao indivíduo humano transitar sobre si-mesmo e no deslocamento sobre si, poder imaginar-se em outras paragens poéticas e humanas.
A experiência literária (ler, escrever, ouvir) implica um dos modos de “se segurar” o tempo, retesando um tipo de fruição que pode garantir a liberdade para se começar, suspendendo o passado e as determinações. Considero enormemente a liberdade trazida pela envergadura teórica de Beauvoir e a dificuldade de separá-la da igualdade (e das condições materiais), confesso, contudo, que há uma performance genuína colocada em jogo nas experiências da literatura, aderentes à pendularidade ontológica humana.
Também, mobiliza outro aspecto muito importante, que é a possibilidade de se poder imaginar e ou se colocar nas proximidades dos outros. E é justamente o fato de sermos implicados por uma transitoriedade que nos permite repactuar nossa própria vida com a vida dos outros, sem ela, viveríamos uma linearidade sem espessura existencial.
Sempre achei que Clarice Lispector tinha razão quando dizia que sabia muito pouco, mas tinha a seu favor tudo o que não sabia. No caso, ausentam-se os preconceitos quando se ingressa em campos pouco ou nada conhecidos. É como estar liberado da carga de determinações, medidas e sentidos ditados pelas incursões partilháveis cotidianamente.
Levei anos para entender que a melhor parte de mim é aquela que não se sabe, pois é com ela que posso me propor ao devaneio criativo. O que em mim cria está em aberto, pois é justamente a sinuosidade de uma mesmidade que não está dada que permite que nos lancemos na direção de nós e do mundo, podendo revisitar nosso próprio modo e as implicações da agência criativa.
Há, portanto, uma relação muito estreita entre a literatura e a potência do inacabado, um sem-lugar que nos devolve sempre constrangidos de não continuar tentando completar-se, pois há um desejo de querer-se por inteiro, mesmo que saibamos que tal completude será experimentada como antecipação de uma chegada malograda.
Concordo com Bachelard, para quem “os poetas nos convencem que todos os nossos devaneios de criança merecem ser recomeçados”, pois inscrevo a pronúncia da literatura em uma região advertida da palavra final, endereçada aos inacabamentos que arrancam outros modos possíveis de apresentação, ali mesmo onde parecia haver apenas destroços, rearticulam-se sentidos em lide agônica com Cronos.
Literatura é mobilizadora de mundos, de sentidos e possibilidades. Reconheço que há limites, que há diferenças radicais inscritas nas distintas culturas, como e fundamentalmente, modos de acesso diferenciados e que implicam a experiência social. Contudo, por força da humanidade que cultivo, preciso acreditar que podemos tentar e construir caminhos mais solidários também por obra da poesia e da Literatura. Leia mais: https://www.neipies.com/uma-mulher-poeta-na-academia-rio-grandense-de-letras/
Autora: Marli Silveira
Acadêmica, Academia Rio-Grandense de Letras.
É que me encontrei em seu posicionamen, qdo li que ‘ler mobiluza a possibilidade de se poder imaginar…’ e n isso, eu ne encantei por seu texto!
Escritora maravilhosa!