Breves notas e experiências na educação pública e popular

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Em regiões esvaziadas de manifestações culturais, a escola, como espaço democrático e participativo, deve ser preenchida com música, artes visuais, projetos para cinema, rádio e tv na escola, teatro e outras práticas artísticas e comunicativas.

A convite do colega e amigo Nei Alberto Pies, decidi escrever algumas notas a respeito de minha trajetória como professor da rede pública. Sistematizar as nossas práticas e experiências faz parte do nosso autoreconhecimento e do reconhecimento social, tão importantes na vida de cada educador ou educadora.

Minha trajetória se faz de caminhos profissionais que estão indubitavelmente conectados com minhas participações em projetos socioculturais e artísticos com jovens e adolescentes em contextos urbanos e periféricos. São redações de lembranças, indispensáveis para minha constituição como sujeito que busca, incessantemente, distintos modos de olhar e interagir no mundo e com os outros.

Embora narradas em primeira pessoa, essas são histórias vividas a partir de um “eu” coletivo, povoado pelos afetos, rodeado pelas amizades com profissionais dos campos da Educação e da Cultura e pela inserção às comunidades escolares. Diante disso, não posso esquecer que estas histórias são emaranhadas com as distintas relações de poderes cotidianos e atravessadas pelas forças sociais, políticas e econômicas existentes nos locais em que atuei e ainda exerço minha função como professor.

Pode uma alma-artista se fundir com a de um professor “observador-participante”?

Passados mais de vinte anos atuando no campo da educação pública talvez seja possível vislumbrar algumas considerações a essa questão. Experiências constituídas de práticas, projetos e vivências que permitiram extrapolar as fronteiras entre a educação formal e não formal.

Como destaca Larrosa (2002), cada experiência vivida se constitui como “[…] um encontro ou uma relação com algo que se experimenta ou se prova” (p. 25). Sobretudo, experiências pelas quais aprendi, seguindo Paulo Freire, a praticar uma pedagogia da esperança que vem movimentando-me de forma coletiva e solidária no campo da educação popular. Para que possamos entender a tessitura dessa história é preciso retroceder no tempo…

Durante minha adolescência, iniciada juntamente com o fim da ditadura militar e com o processo político-social de abertura para as liberdades de expressão, flertei com a arte e com a cultura, seja no campo das artes visuais com a produção de fanzines, histórias em quadrinhos e desenhos, na formação e participação em bandas de rock ou com organização de festivais de música.

O legado daquele tempo de investimentos juvenis para transformar artisticamente o lugar onde vivia, foi o entendimento de que a arte pode se misturar com a vida de maneiras distintas.

Em meados dos anos de 1990, já vivendo em Porto Alegre, ingressei no curso de graduação em História, proporcionando-me um estágio no Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo. No Museu, exerci função em que participava dos processos de pesquisa, concepção e montagem de exposições, além de monitoramento com alunos em visitas guiadas.

Entre 1999 e 2000, organizei, juntamente com a equipe diretiva, a primeira oficina de grafite naquela instituição. A ideia para a oficina surgiu da observação e do registro dos grafites, pichações, stencils, adesivos e outras formas de arte de rua que remodelavam esteticamente os espaços da cidade de Porto Alegre.

O objetivo dessa oficina pretendeu aproximar a comunidade com o museu, visando à apropriação democrática daquele espaço cultural por meio de ações pedagógicas e promovendo a educação patrimonial. O público era composto por adolescentes e moradores do bairro Cidade Baixa, onde fica localizado o museu. Hoje, percebo o quão interessante foi aquela experiência de estágio, pois minha entrada no mundo da Educação iria se articular com os campos da Cultura, da História e das Artes.  

Em uma tarde de novembro do ano de 1999, adentrei com minha bicicleta a cidade de Alvorada, RS, na procura da escola onde iria iniciar minhas atividades como professor. Logo percebi que a prática docente em escolas da região metropolitana de Porto Alegre me inseria em outros ambientes multiculturais, onde as experiências e vivências dos alunos estão entrelaçadas com suas distintas condições sociais.

Ao professor, educador ou outro trabalhador da área social, a escuta e o diálogo contínuo, não somente com alunos, mas com a toda a comunidade escolar, é indispensável.

A implantação do programa de Educação de Jovens e Adultos EJA, na escola em que eu atuava à época, proporcionou uma riqueza de experiências. Lecionar nessa modalidade de ensino é entrar em um universo de múltiplas vivências, em que diferentes faixas etárias se encontram, possibilitando profícuos diálogos e atividades entre gerações.

Desde minhas primeiras experiências com educação pública, precisei um olhar atento, investigador, um olhar que pretende adentrar o “universo” dos alunos, pois atuamos em condições, situações e públicos diversos e multifacetados.

Em cada estudante existem mundos onde se misturam conflitos, incertezas e precariedades, mas também desejos e vontades. Muitas vezes, esses mundos são germinados através de diferentes modos de expressão pelos quais representam suas vidas.

O projeto Graffiti na Escola, realizado em 2005 na Escola Estadual João Goulart, nasceu dessa observação às ilustrações e escritas esboçadas nos cadernos dos alunos, alertando-me para o fato de essa linguagem artística fazer parte de seu cotidiano. A metodologia utilizada para execução das oficinas consistia na criação e esboços de desenhos de autoria própria dos alunos, priorizando a criatividade e, posteriormente, o desenvolvimento de técnicas de pintura em painéis, muros e paredes. As oficinas de grafite surgiram da necessidade de outras intervenções didáticas e de conteúdos extracurriculares.

Em seus cadernos, os estudantes podem esboçar medos e vontades, como aquele aluno que somente desenhava personagens com armas nas mãos. Nos muros da escola, outros projetos de vida são matizados, como aquele mesmo aluno, que após algumas oficinas, ao invés de uma arma, grafitou um microfone nas mãos do personagem.

Acredito que a poética da vida pode ser grafitada na existência dos alunos. Onde existe o cinza da realidade, o professor auxilia na mistura das cores para seus sonhos escondidos. Embora olhares de contentamento não possam ser captados em um texto, estas são narrativas de um professor que ao vislumbrar a capacidade de criação dos alunos procura instigar projetos semelhantes para ornamentar as monocromáticas superfícies de concretos das escolas.

Em regiões esvaziadas de manifestações culturais, a escola, como espaço democrático e participativo, deve ser preenchida com música, artes visuais, projetos para cinema, rádio e tv na escola, teatro e outras práticas artísticas e comunicativas.

Essa atuação cultural na educação foi enormemente favorecida pela minha participação, entre os anos de 2006 e 2010, como oficineiro, coordenador pedagógico e membro do Conselho da ONG Movimentação. Fundada no final dos anos de 1970 pelo jornalista e ativista social João Carlos Agostinho Prudêncio, o contato com esta ONG possibilitou, em meados dos anos 2000, a edição da revista escolar Construir União e Cidadania. Embora com publicação restrita, a revista exerceu uma importante função pedagógica, já que desde a captação de notícias à editoração final sua produção era realizada pela atuação conjunta entre professores, alunos e comunidade escolar.

Em 2007, preparando-me para iniciar o mestrado em Educação, participei de uma experiência riquíssima junto ao ponto de cultura De Olho na Cultura, instalado na cidade de Alvorada, RS. Vivíamos, no Brasil, um período de valorização e reconhecimento dos saberes populares, principalmente aqueles oriundos das tradições ancestrais de matriz indígena, afro-brasileira e quilombola. Não por acaso, o lema proposto pelo Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura do Brasil era o de “desesconder as culturas populares”.

Nesse contexto, em busca de legitimar as manifestações culturais e artísticas de cada comunidade, as atividades propostas pelo ponto de cultura percorreram regiões periféricas do Município de Alvorada, RS. O De Olho na Cultura desenvolveu ações de apoio a grupos culturais e artistas locais atuando como uma agência de fomento ao fazer artístico. Ao realizar parceria com escolas municipais e estaduais o De Olho na Cultura trabalhou no sentido de consolidar uma ação de organização e construção da memória cultural da cidade. As atividades envolviam a criação e manutenção de oficinas de música, artes visuais, dança, teatro e cineclube.

O Grupo de teatro Terreira da Tribo intensificou as ações do ponto de cultura. Encenada a céu aberto, o espetáculo A Saga de Canudos apresentava uma peça teatral ambulante e diferente das performances cênicas executadas de forma tradicional. Atores e população pareciam se fundir; a rua se transformava em palco. Na interação entre a comunidade e a arte a participação popular era mais que democrática, possuía função libertária, transformando a peça em experimento artístico e público como condição estético-política para outros modos de atuação social e comunitária.     

Entre os anos 2013 e 2014, preparando-me para iniciar um doutorado em Educação, assumi a coordenação do PROTEJO, projeto do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, PRONASCI, do Ministério da Justiça. Como já atuava desde 2010 na função de professor da Rede Municipal de Educação de Alvorada, o convite foi feito pela Prefeitura e Secretaria de Assistência Social daquela cidade, pois minhas experiências em projetos com público juvenil e periférico já eram conhecidas.

O objetivo do PROTEJO visou a formação e inclusão social de jovens e adolescentes expostos à violência doméstica ou urbana nas áreas geográficas de maior risco social. No município de Alvorada, o trabalho abrangeu as regiões conhecidas como Umbu e 11 de Abril. Com duração de um ano, o projeto focou a formação cidadã dos jovens e adolescentes a partir de práticas esportivas, culturais e educacionais, visando o resgate da autoestima por meio da convivência pacífica. Cada jovem inscrito no projeto participava no turno inverso ao escolar, recebendo uma bolsa-auxílio. O projeto foi encerrado em 2014, coincidindo com meu afastamento para dedicar-me ao doutorado.

Os contextos hoje são outros, vivemos tempos pandêmicos entremeados com uma inimaginável situação política, econômica e social caótica e complexa que atravessa o Brasil. Nossas experiências, vividas quase completamente de forma virtual, não são sentidas com intensidade suficiente para atravessar todo nosso corpo e produzir outros sentidos para existir em comum.

Diante de tantas incertezas, as práticas e projetos apresentados neste texto, muitas vezes acusados de se confinar no espaço da utopia, são lembranças de tempos em que outra educação foi possível. Seguindo a consciência biocêntrica de Ailton krenak (2020), considero que as ideias para adiarmos o fim do mundo talvez se encontrem na capacidade de trazermos para a experiência desperta as histórias de nossos sonhos. Assim como esse autor, acredito no sonho como instituição “onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de recursos para dar conta de si e do mundo” (p.34).

Autor: Eloenes da Silva

Edição: Alex Rosset

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