LGBTfobia, educação e disputa nos currículos escolares

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Os termos “gênero” e “sexualidade” inseridos em documentos da educação, sozinhos, não são capazes de estancar o sofrimento e a expulsão/evasão escolar. É preciso lutar por formação continuada e valorização das/os profissionais da educação, para avançarmos numa educação mais inclusiva.

Os currículos escolares constituem um campo de intensas disputas ideológicas, dentre as quais estão as discussões que pautam o combate à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Para entendermos melhor esta disputa, é necessário olharmos para alguns marcos importantes para a educação brasileira nas últimas três décadas: a aprovação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), na segunda metade da década de 90; o processo de elaboração e aprovação dos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação (PNE, PEEs e PMEs), entre 2014 e 2015 e; o processo de elaboração e aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2017.

Os PCNs, publicados em 1996, um ano após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), são documentos de caráter orientativo para a construção de currículos escolares os mais diversos, como diverso é o território brasileiro. Além da sinalização de conteúdos mínimos, os documentos trouxeram os Temas Transversais, que sugeriam múltiplas abordagens sobre o cotidiano, como os temas referentes à educação sexual, transversalizados nas disciplinas tradicionais do currículo escolar.

Em muito focados em questões relativas à prevenção do HIV/Aids e da gravidez na adolescência, tidos como problemas pedagógicos emergentes da época, os Temas Transversais dos PCNs trouxeram também discussões bastante progressistas sobre gênero e sexualidade, fortemente alinhadas com conceitos de autoras como Judith Butler.

Sem um plano sistematizado para que tais discussões ocorressem de fato no chão das escolas, a abordagem ficou a cargo de professoras e professores sensíveis a estas temáticas. Durante anos, discutir gênero e sexualidade nas escolas foi pauta de um movimento LGBT acuado, pouco ouvido ou levado a sério, e a evasão escolar, principalmente de pessoas trans, foi (e é) uma realidade vivenciada, mas não colocada em estatísticas e em estudos acadêmicos que levassem à identificação de um problema e a propostas de solução.

Foi em 2011, sob um contexto de fortalecimento do movimento LGBT que já havia passado por sua I Conferência Nacional LGBT em 2008, e passaria pela segunda ao final daquele ano, que o Ministério da Educação encaminhou ao executivo uma proposta de cartilha a ser utilizada nas escolas como forma de combate à homofobia e à transfobia, visando colaborar para o sucesso escolar de pessoas LGBT.

Com significativa reação do setor conservador, sobretudo religioso com força dentro do campo da representação política, o material foi vetado pela então presidenta Dilma. Começa a ganhar força uma ofensiva antigênero, que já era observada mundialmente desde a década de 90, encabeçada por lideranças católicas e aos poucos apropriada também por neopentecostais.

A polêmica retornaria com muito mais força em 2014, durante a elaboração do PNE, e se estenderia pelos próximos anos, com a elaboração dos PEEs e PMEs, e da BNCC, esta última, uma demanda proposta pelo próprio PNE.

Os setores conservadores, disseminando a campanha contra o que denominaram “ideologia de gênero”, tiveram uma vitória significativa ao conseguir suprimir os termos gênero e orientação sexual do PNE e da maioria dos PEEs e PMEs do país.

A ofensiva antigênero e a campanha contra a “ideologia de gênero”, na tentativa de reduzir campos complexos de estudo a questões meramente ideológicas e amedrontar a sociedade cristã contra uma conspiração para destruir a família, a moral e os bons costumes, foram as principais bandeiras do Movimento Escola Sem Partido (EsP).

O movimento nasceu na internet e se fortaleceu com projetos em várias partes do país, que visam proibir, por força de lei, o que chamam de doutrinação político-ideológica por parte de professoras/es tanto da rede de educação básica quanto do ensino superior.

A disputa tem resultado semelhante na aprovação da BNCC, ao final de 2017. O documento que se apresenta como uma nova proposta de currículo nacional, ao contrário dos PCNs, não pauta discussões a respeito de gênero e sexualidade como temas minimamente relevantes. Tais pautas foram consideradas “esquerdistas demais” pelos principais atores que influenciaram a elaboração do documento: parlamentares neoliberais, representantes da educação privada, multinacionais e ONG’s empresariais.

A construção da BNCC também é atravessada pela reforma do ensino médio, implementada pelo governo Temer por meio de Medida Provisória, um mês após o afastamento de Dilma pelo Senado, em 2016, e aprovada definitivamente pelo Congresso em 2017. Assim se consolidou uma proposta de currículo nacional, comum a todo o território, desconsiderando a diversidade cultural de um país de dimensões continentais, atendendo aos interesses mercadológicos do capital: a formação de mão de obra barata e a supressão do pensamento crítico.

Contudo, a liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o conhecimento segue assegurada pela Constituição Federal e pela LDB. Responder aos ataques à educação pautando a flexibilidade de adaptação dos currículos escolares às mais diversas realidades, o combate às opressões no chão da escola e a construção de um ambiente escolar acolhedor, que não expulse quem não se enquadra à cis-heteronorma, nunca foi tão urgente e necessário.

Assista ao vídeo LGBTfobia no ambiente escolar.  Professor Pós-Doutor Toni Reis, autor do livro “Homofobia no ambiente educacional: o silêncio está gritando” traz reflexões e debates provocados pelos dirigentes do SINESP Getúlio Márcio Márcio Soares e Flordelice Magna Ferreira e pelas questões colocadas pelos Gestores Educacionais. https://youtu.be/NMkOYhJ20X0

Finalizo com a perspectiva da experiência pessoal enquanto criança viada. Levo para vida dois nomes de professoras que demonstraram sensibilidade aos meus piores momentos na vida escolar, e tentaram, mesmo sem embasamento algum, me acolher e incentivar. Isso me leva a acreditar que os termos “gênero” e “sexualidade” inseridos em documentos da educação, sozinhos, não são capazes de estancar o sofrimento e a expulsão/evasão escolar. É preciso lutar por formação continuada e valorização das/os profissionais da educação.

Afinal, um país que não é capaz de respeitar e valorizar educadoras e educadores, não nos trará dignidade alguma.

Produzimos, durante as últimas décadas, bases teóricas sobre gêneros e sexualidades, além de metodologias para levar essas bases teóricas à educação básica e ao ensino superior, acreditando no poder desse movimento como transformação social. Hoje, a ofensiva antigênero, patrocinada e fomentada pelo executivo federal e por grande parte do legislativo, promove um grande retrocesso de pautas tão importantes. Leia mais: https://www.neipies.com/resistir-a-que/

Autor: Oscar de Souza

Edição: Alex Rosset

Homem gay cisgênero Professor de Biologia - Resgate Popular (POA) Cofundador do Plural – Coletivo LGBT (Passo Fundo)

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